Apontamentos acerca do inquérito policial brasileiro comparado ao romance o processo de Kafka: a ampla defesa e o contraditório

Resumo: O inquérito policial é sigiloso e inquisitivo, e antecede a instauração do processo penal. Não admite o exercício da ampla defesa e do contraditório, apesar de ser um constrangimento ao investigado. De forma exagerada, Franz Kafka, em O Processo, criou um enredo em que o protagonista se via detido, investigado, processado e condenado sem que soubesse o motivo e sem oportunidade de defesa. Esse enredo foi brevemente comparado a alguns aspectos do inquérito brasileiro, e algumas considerações foram tecidas, especialmente em relação à doutrina e jurisprudência pátrias.[1]

Palavras-chave: Kafka; O Processo; Inquérito Policial

Abstract: The police investigation is confidential and inquisitive, and prior to the initiation of criminal proceedings. Does not allow the exercise of legal defense and contradictory, despite being an embarrassment to the investigation. In an exaggerated way, Franz Kafka, in The Process, created a scenario in which the protagonist found himself arrested, investigated, prosecuted and convicted without knowing the reason and defenseless opportunity. This plot was briefly compared to some aspects of the Brazilian survey, and some considerations were made, especially in regard to the doctrine and jurisprudence homelands.

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Key-words: Kafka; The Process; Police Investigation

Sumário: Introdução. 1. O Processo: uma breve resenha 2. O inquérito policial brasileiro e suas características kafkianas. Considerações Finais. Referências Bibliográficas

Introdução

É necessário um processo para a aplicação de uma pena. O processo é uma garantia de segurança jurídica, bem como dos princípios da dignidade da pessoa humana, ampla defesa, contraditório, dentre outros.

Sem a aplicação de uma pena, conforme defende AURY LOPES JR., o Direito Penal perde por completo sua eficácia. No entanto, a pena sem processo é inconcebível. Assim, mesmo que o acusado consinta com a aplicação de uma pena, um processo se faz necessário.

O processo pode ser definido como “o instrumento através do qual a jurisdição é exercida ou, como o procedimento que, atendendo aos ditames da Constituição da República, permite que o juiz exerça sua função jurisdicional”. (BRANDIS, 2012, p. 87).

Por ser instrumento, o processo não tem um fim em si mesmo. Tanto que, para AURY LOPES JR. (2012), a instrumentalidade tem por conteúdo a máxima eficácia das garantias e direitos fundamentais da Constituição Federal, sempre com atenção à dignidade da pessoa humana.

Formalidades excessivas devem ser repelidas. Porém, o procedimento do processo deve permitir a plenitude de defesa, bem como os outros ditames assegurados pena Carta Magna. Tudo isso, claro, a partir de um “caminho” previamente disposto em lei e com a garantia de um juiz natural (CF, art. 5º, XXXVII).

Em se tratando de Processo Penal, existe a fase pré-processual chamada de inquérito policial. O inquérito “é o meio mais utilizado para a busca de provas sobre a autoria e materialidade do delito, servindo este de base para a propositura da ação penal, objetivando a aplicação da sanção cabível ao agente que infringiu a norma penal” (RODRIGUES, 2012). Sendo assim, busca fundamentar a propositura de uma ação penal, ocasionando um processo. Essa fase pré-processual tem uma feição inquisitiva, o que significa dizer que “o inquérito policial apresentava como características ser um procedimento administrativo discricionário, escrito, sigiloso e inquisitivo, assim não estaria sujeito ao contraditório”.

Há críticas doutrinárias acerca do inquérito e seu teor inquisitivo. NUCCI (2012, p. 149) afirma que o inquérito policial possui um caráter conflituoso, na medida em que pretende ser um instrumento de garantia contra acusações levianas, mas acaba funcionando contra o próprio investigado/réu, que não pôde exercer o contraditório em relação às provas colhidas pela polícia.

Franz Kafka, em seu romance O Processo, expôs de forma clara o desdobramento de um inquérito e processo extremamente formalistas (sendo irrelevante o garantismo). É uma crítica bastante interessante ao desenrolar da justiça. As críticas do autor são atemporais, conforme se verá, ainda que de forma superficial, no andamento deste curto trabalho.

Essa análise será feita através de um conciso comparativo de algumas passagens do livro de Kafka com a característica inquisitiva do inquérito policial brasileiro.

Parte-se do pressuposto de que a obra literária em evidência pode ser encarada como um símbolo que, diferente de um sinal, admite diversas possibilidades de interpretação. Ademais “uma palavra ou uma imagem é simbólica quando implica alguma coisa além do seu significado manifesto e imediato” (JUNG, 2006, p. 16).

De forma mais precisa, pode-se encarar o romance como uma alegoria: O Processo aponta para a questão da fragilidade humana diante de uma máquina impessoal e extremamente poderosa, guiada pela burocracia, e regida por uma lógica própria e absurda.

O Processo “se trata de um texto altamente polissêmico, isto é, passível de várias leituras, convocando o leitor a uma espécie de co-autoria”. (MARQUES NETO, 2010, p. 103).

1 O Processo: uma breve resenha

Franz Kafka (1883 – 1924) nasceu em Praga. Graduou-se em Direito em uma universidade de língua alemã. Começou a escrever O Processo – Der Prozess – em 1914, com publicação apenas em 1925. O texto resenhado se encontra na coletânea “Franz Kafka: obras escolhidas”, publicada pela editora L&PM em 2013, com tradução para o português de Marcelo Backes. A resenha terá, naturalmente, uma perspectiva jurídica.

Pois bem. Logo de início, Josef K. é detido sem que soubesse o motivo. Tudo acontece num quarto em que se hospedava. “Mas e por quê?” – pergunta K. para os responsáveis pela detenção. Essa pergunta percorre todo o romance, e nunca obtém resposta. “Não estamos autorizados a dizer isso ao senhor. Vá para o seu quarto e espere. O procedimento jurídico acaba de ser aberto, e o senhor ficará sabendo de tudo na hora adequada” (p. 125), dizem os questionados por K.

K. estranha aquela detenção, na medida em que “vivia em um Estado de Direito, e por todos os lados imperava a paz, todas as leis seguiam vigorando” (p. 126). As críticas, através do absurdo e do exagero, são bastante pertinentes por parte de Kafka: no capítulo inicial, há críticas sobre a morosidade da justiça, a violação da intimidade e da moradia pelas autoridades policiais; também sobre a dificuldade de acesso à justiça, sobre o excesso de formalismo… “mas como posso estar detido? E ainda por cima dessa maneira?”, pergunta K. (p. 127, in fine). 

No segundo capítulo, K. é intimado a comparecer a um inquérito. Não se diz a hora precisa, nem o lugar preciso. Josef K. deduz a hora e, num domingo pela manhã, dirige-se ao local em que acredita estar instalado o tribunal. “Foi no primeiro andar que a procura começou de verdade”. O tribunal ficava instalado em um edifício mísero, onde viviam também pessoas pobres. Encontrado o local certo, K. percebe que se desdobra uma espécie de audiência. Há diversas pessoas. Um tumulto. Os autos do processo (ou do inquérito: há uma confusão terminológica) são apenas um pequeno caderno de notas.

Diante daquele caos, K., que era procurador de um banco, diz o seguinte:

“por trás de todas as declarações desde tribunal, no meu caso, portanto, por trás da detenção e do inquérito de hoje, encontra-se uma grande organização. Uma organização que não apenas emprega vigias corruptos, inspetores e juízes de instrução atoleimados, que na melhor das hipóteses são simplórios, mas sustenta inclusive uma magistratura de grau elevado e superior, com um séquito inumerável e inevitável de contínuos, escriturários, gendarmes e outros auxiliares, talvez até mesmo de carrascos (…) E qual o sentido dessa grande organização, meus senhores? Ela consiste em deter pessoas inocentes e em encaminhar contra elas um processo sem sentido e, na maior parte das vezes, assim como no meu caso, sem resultado.” (p. 165).

Em outro domingo, K. se dirige ao tribunal novamente, mesmo sem intimação. Nada se passa naquele dia. Ele consegue acesso ao tribunal vazio e, com a ajuda da esposa do Oficial de Justiça (que ali morava!), tem acesso aos livros do juiz: eram livros eróticos. “Estes são, pois, os códigos legais estudados por aqui – disse K. – e é por homens assim que eu devo ser julgado.” (p. 171).

Inexistindo sessão, K. encontra o Oficial de Justiça e se dirige aos cartórios com ele. Lá estão vários acusados. “A maior parte dos acusados é tão sensível”, afirma o Oficial, para justificar o aparente temor dos homens “culpados”. É interessante o momento em que K. começa a se sentir mal: o ar é irrespirável daquele ambiente. O local é insuportável.

Preocupado com o desdobramento daquele processo sigiloso, Karl, o tio de K., propõe a procura de um advogado. Mesmo com um patrono, a situação jurídica de Josef K. era complicada:

“K. tinha de considerar que o processo não era público; ele até poderia, se o tribunal considerasse necessário, tornar-se público, mas a lei não recomendava publicidade. Em razão disso, os autos do tribunal, sobretudo o auto de acusação, não eram acessíveis ao acusado e sua defesa; era por isso, aliás, que não se sabia, de modo geral, ou pelo menos não se sabia ao certo, contra o que a primeira petição deveria ser dirigida e também por isso ela apenas por acaso poderia conter algo que tivesse alguma importância no andamento do processo” (p. 229/230)

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Como visto, a acusação era oculta, e não se sabia o objeto da defesa. Demais disso, “a defesa nem sequer é permitida pela lei, mas apenas tolerada”. Não obstante a contratação do advogado, a petição de defesa nunca é concluída. Como é dito na obra, somente as relações pessoais do advogado (rábula) é que valiam, na verdade, para possibilitar a defesa dos acusados.

K. dispensa o advogado e, por si próprio, busca realizar a petição. Josef K., nesse momento, passa a viver com mais intensidade o processo. Aquele processo sigiloso tortura-o.

Josef. K. aconselha-se com um pintor que, por tradição, tem contato com os altos nomes do tribunal (sempre inacessíveis e desconhecidos). O pintor explica a K. três possibilidades de libertação: a absolvição real, em que se confia tão somente na inocência do acusado: “tais absolvições (…) existiram, segundo se conta. Só que é muito difícil de comprová-lo. As decisões finais do tribunal não são publicadas, elas não estão disponíveis nem mesmo para os juízes” (p. 265); a absolvição aparente, em que uma influência externa serviria para garantir a inocência de terceiro, o que deixaria o  acusado temporariamente livre (até, pelo menos, antes da intervenção de um juiz de escalão superior, capaz de remover a garantia de inocência); e o processo arrastado, em que se tenta manter o processo continuamente em sua fase processual inferior, com a ajuda de contatos pessoais frequentes com o tribunal.

Kafka, nesse momento, critica com severidade a parcialidade dos juízes. O mais importante, no momento, é perceber a dificuldade que o acusado tem de “chegar” até o processo, de se defender: o contraditório parece impossível, especialmente em razão do sigilo.

Josef K. se encaminha para a execução, sem possibilidade de defesa – o que acontece de forma brutal e naturalista.  

MARQUES NETO (2010, p. 107) explica que “Kafka criou um enredo em espiral: a luta de Josef K. para descobrir do que é acusado, quem o acusa e com base em que lei, parece desenvolver-se em direção ao infinito, como se fosse empurrada por um mecanismo sinistro”.

Fala-se em “absurdo” em razão das oscilações verificadas no romance: o jogo entre o extraordinário e o natural, o trágico e o cotidiano. O absurdo é evidente na medida em que é possível.

Ademais, explica MARQUES NETO (2010, p. 119) que “o processo kafkiano é uma versão distorcida (…) do sistema inquisitório no processo penal”.

O autor logo acima mencionado conclui que:

O Processo, ao que me parece, ao parodiar os desvios e abusos comuns ao desenvolvimento de um processo penal, antes afirma que nega a necessidade de que este transcorra segundo regras claras, impessoais, democraticamente estabelecidas e com transparência, assegurados o contraditório e amplo direito de defesa. O processo penal assim concebido é uma conquista da civilização. Abrir mão desses critérios equivale a recair na barbárie. As normas processuais penais, entretanto, por mais garantistas que sejam, revelam-se ainda insuficientes” (p. 130/131).

Adiante, um comparativo entre as passagens do romance O Processo com algumas características do inquérito policial brasileiro.

2 O inquérito policial brasileiro e suas características kafkianas

O inquérito policial, cuja natureza jurídica é a de um procedimento administrativo com feição informativa e preparatória para a ação penal, consiste em um conjunto de atos, diligências e investigações policiais formalizadas e ordenadas em um só procedimento, com o objetivo de comprovar a existência de uma infração penal, sua materialidade e sua autoria (SOUZA, 2014, p. 29).

Segundo SOUZA,

“Na doutrina e mesmo na legislação vigente convencionou-se utilizar como sinônimo de inquérito policial as expressões ‘procedimento inquisitorial’, ‘apuratório’, ‘inquisitório’, ‘caderno investigatório’, ‘procedimento pré-processual’, ‘caderno inquisitivo’, entre outras.” (2014, p. 29).

Das próprias nomenclaturas do inquérito policial, extrai-se sua característica inquisitiva. O inquérito é, demais disso, escrito, sigiloso, revestido de oficialidade, obrigatório, unidirecional, discricionário, dispensável e temporário.

Percebe-se que esse procedimento pré-processual, a partir de suas características fundamentais, guarda bastante semelhança com o procedimento que amordaçou Josef K., protagonista de O Processo.

O Código de Processo Penal, em seu art. 20, determina que “a autoridade assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade”. Nessa fase, há a construção de elementos probatórios suficientes à fundamentação de uma ação penal.

Durante o curso do processo penal abrem-se as portas do contraditório e da ampla defesa. Antes do processo, não. Eis o lado inquisitivo do inquérito.

No inquérito, não há acusação ou defesa, não podendo o advogado interferir nas investigações, e possíveis requerimentos serão dirigidos à autoridade policial (artigos 14, 176 e 184 do CPP).

O sigilo e a inquisição propõem um “processo” onipresente, que passa a recair sobre o indiciado, sem que esse possa agir em sentido oposto. A perplexidade do investigado diante do desenrolar do inquisitivo parece ter mais efeito que a própria execução.

PRICE (2010) explica que Kafka construiu a ideia de um processo onipresente: o organismo judicial permaneceria eternamente em suspenso, e ao indiciado caberia se curvar ao seu totalitarismo:

“El rango y la jerarquía del tribunal son infinitos, y ni siquiera los iniciados lo entienden. Las causas son secretas incluso para los funcionarios menores, dentro de su horizonte, no saben de donde vienen, ni hacia donde van. El organismo judicial permanece eternamente em suspenso, cuando uno cambia algo por sí mismo, el suelo bajo sus pies puede desaparecer, pero el gran organismo prepara un escenario em otra parte, y puede volverse más cerrado, más observador, más riguroso, más malvado, lo que incluso, afirma K., es más verosímil” (2010, p. 145).

A detenção de Josef K. produz um efeito explicado por Michel Foucault em relação ao Panóptico: “induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder”.[2] “O sentido de todas as suas ações está determinado pelo processo” afirma DIAS (2010, p. 215) acerca do protagonista de Der Prozess.

Sensata seria a possibilidade de manifestação do indiciado nessa fase inquisitorial, não obstante a ulterior abertura do contraditório e da ampla defesa em sede de processo penal.

Isso em razão da existência de direitos fundamentais do indiciado no curso do inquérito, entre os quais o de fazer-se assistir por advogado, o de não se incriminar e o de manter-se em silêncio.

Nesse sentido, julgado do Supremo Tribunal Federal:

“I. Habeas corpus: inviabilidade: incidência da Súmula 691 ("Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de "habeas corpus" impetrado contra decisão do Relator que, em "habeas corpus"requerido a Tribunal Superior, indefere a liminar"). II. Inquérito policial: inoponibilidade ao advogado do indiciado do direito de vista dos autos do inquérito policial. 1. Inaplicabilidade da garantia constitucional do contraditório e da ampla defesa ao inquérito policial, que não é processo, porque não destinado a decidir litígio algum, ainda que na esfera administrativa; existência, não obstante, de direitos fundamentais do indiciado no curso do inquérito, entre os quais o de fazer-se assistir por advogado, o de não se incriminar e o de manter-se em silêncio. 2. Do plexo de direitos dos quais é titular o indiciado – interessado primário no procedimento administrativo do inquérito policial -, é corolário e instrumento a prerrogativa do advogado de acesso aos autos respectivos, explicitamente outorgada pelo Estatuto da Advocacia (L. 8906/94, art. 7º, XIV), da qual – ao contrário do que previu em hipóteses assemelhadas – não se excluíram os inquéritos que correm em sigilo: a irrestrita amplitude do preceito legal resolve em favor da prerrogativa do defensor o eventual conflito dela com os interesses do sigilo das investigações, de modo a fazer impertinente o apelo ao princípio da proporcionalidade. 3. A oponibilidade ao defensor constituído esvaziaria uma garantia constitucional do indiciado (CF, art. 5º, LXIII), que lhe assegura, quando preso, e pelo menos lhe faculta, quando solto, a assistência técnica do advogado, que este não lhe poderá prestar se lhe é sonegado o acesso aos autos do inquérito sobre o objeto do qual haja o investigado de prestar declarações. 4. O direito do indiciado, por seu advogado, tem por objeto as informações já introduzidas nos autos do inquérito, não as relativas à decretação e às vicissitudes da execução de diligências em curso (cf. L. 9296, atinente às interceptações telefônicas, de possível extensão a outras diligências); dispõe, em conseqüência a autoridade policial de meios legítimos para obviar inconvenientes que o conhecimento pelo indiciado e seu defensor dos autos do inquérito policial possa acarretar à eficácia do procedimento investigatório. 5. Habeas corpus de ofício deferido, para que aos advogados constituídos pelo paciente se faculte a consulta aos autos do inquérito policial e a obtenção de cópias pertinentes, com as ressalvas mencionadas. (STF – HC: 90232 AM , Relator: SEPÚLVEDA PERTENCE, Data de Julgamento: 18/12/2006, Primeira Turma, Data de Publicação: DJ 02-03-2007 PP-00038 EMENT VOL-02266-04 PP-00720 LEXSTF v. 29, n. 340, 2007, p. 469-480)”

A importância da participação do advogado durante o inquérito policial foi firmada a partir da Súmula Vinculante n. 14, com a seguinte redação: “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”.

Assim, o desenrolar do inquérito, no qual as provas que são levantadas são quase sempre as mesmas a serem produzidas na instrução criminal (MARQUES, 2011), deve prezar pela mitigação de sua característica inquisitiva:

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“É importante mencionar que a Súmula Vinculante 14 mitigou ou relativizou a característica da inquisitoriedade do inquérito, ou seja, havendo coação ou violência no curso do inquérito policial deverá ser assegurado o contraditório e a ampla defesa” (SOUZA, 2014, p. 33)

Nesse sentido, o indiciado – através de seu advogado e diferente do que aconteceu com Josef K. – deve ter meios para averiguar o andamento do inquérito policial. Não obstante sigiloso, o “processo” deve prezar por suas dimensões essenciais: “no que concerne à acusação, de que Josef K. é acusado? Quem o acusa? Que autoridade conduz o processo? Com base em que lei?” (MARQUES NETO, 2010, p. 118).

Sobre a existência de contraditório no inquérito, há uma parte minoritária na doutrina que o defende. Majoritariamente se entende que a fase pré-processual em estudo não tem conexão com o art. 5º, LIV, da CF, na medida em que se trata de procedimento e não de processo. O procedimento seria apenas uma peça informativa, em que não há qualquer decisão a ser impugnada. Ademais, o inquérito poderia restar frustrado se público.

No entanto, a parte minoritária acima referida entende que, no inquisitivo, já há uma situação litigiosa, ante a confrontação do indiciado com a figura do estado acusador:

“Seguindo essa linha de pensamento, alguns autores como Ada Pelegrini Grinover, Antonio Carlos Araújo Cintra e Cândido Rangel Dinamarco afiançam que após o indiciamento, mesmo não sendo formal este ato, e inexistindo, ainda, a acusação propriamente dita, já há uma situação de litígio, ante a confrontação do investigado com o estado acusador. Então, conforme o art. 5º, LV da CF/88, deve-se permitir o contraditório pelas conseqüências causadas por este ato, causando, por óbvio, a exposição do nome do cidadão em inquérito que apura um delito, deixando sua reputação bastante fragilizada”. (PINTOS JÚNIOR, 2010)

Demais disso, grande é a relevância das provas não repetíveis colhidas durante o inquérito; além de que os juízes não costumam, segundo AURY LOPES JR., obedecer ao princípio do devido processo legal que só admite a utilização de provas obtidas em juízo como fundamentos de uma sentença condenatória.

Por conseguinte, mesmo sendo o inquérito inquisitivo – que decorre da utilização do sistema de processo penal misto, no qual o início da investigação conta com princípios regentes do sistema inquisitivo e o processo-crime é instruído pelos princípios do sistema acusatório (enaltecimento do contraditório e da ampla defesa) -, é imprescindível que algumas garantias do indiciado sejam resguardadas e respeitadas, sob pena de se visualizar um procedimento desarrazoado como o descrito por Kafka.

NUCCI (2011, p. 164), a propósito, faz o importante lembrete:

“O indiciamento, como ato do Estado-investigação, elegendo formalmente alguém como suspeito e provocando a anotação da folha de antecedentes, é, sem dúvida, um constrangimento. Portanto, em seguimento ao princípio constitucional da presunção de inocência, deve-se observar que não pode ser um ato isolado desprendido de fundamento, nem tampouco fruto da discricionariedade da autoridade policial. Se o estado de inocência é a regra, qualquer exceção que se abra (…), como ocorre com o indiciamento, exige lastro em provas mínimas de autoria, bem como de materialidade da infração penal”.

Considerações Finais

Em relação ao tema estudado, algumas considerações pontuais:

1. Para a aplicação de uma pena, é imprescindível um processo. Esse processo, por ser instrumental, não se prende a formalismos exagerados; no entanto, o procedimento deve estar previsto em lei, como garantia de segurança jurídica;

2. Há uma fase pré-processual chamada de inquérito policial, que difere do processo penal em si por ser sigiloso e não permitir, em regra, o contraditório ou quaisquer manifestações do indiciado;

3. Franz Kafka, em seu romance O Processo, expôs, de forma exagerada, a situação de um indivíduo detido e investigado sem as mínimas garantias fundamentais, em absoluto sigilo e sem possibilidade de defesa; esse enredo foi comparado, de forma breve, a algumas características do inquérito policial brasileiro;

4. A feição inquisitiva do inquérito vem sendo mitigada, notadamente a partir da Súmula Vinculante 14 do STF, que permite a intervenção do advogado durante a colheita de provas durante a fase estudada; alguns julgados asseveram que o indiciado possui vários direitos a serem resguardados durante a fase de investigação policial;

5. A maior parte da doutrina defende que o inquérito não comporta contraditório, notadamente pelo fato de que não há acusação nesse momento, nem sequer decisão; além disso, o indiciado poderá exercer a ampla defesa em sede de processo penal;

6. Concorda-se com o entendimento exposto no ponto anterior; no entanto, ressalta-se que somente o fato de ser investigado ou indiciado já provoca um constrangimento excessivo ao indivíduo; assim, quaisquer abusos por parte da autoridade policial devem ser repelidos, sendo permitida a intervenção do patrono do indiciado, conforme a Súmula Vinculante n. 14.

7. Por fim, ressalte-se a importância de associar o Direito à literatura. Não é comum essa associação (diferente do que ocorre em se tratando da psicanálise). A literatura, como espelho da realidade e como fonte de símbolos, permite sua utilização para explicar e entender a história, o direito, a sociologia etc.

Referências
BRANDIS, Juliano Oliveira. RIBEIRO, Rodrigo Pereira Martins. Teoria Geral do Processo. FGV, Rio de Janeiro, 2012.
CABRAL, Bruno Fontenele. SOUZA, Rafael Pinto Marques de. Manual Prático de Polícia Judiciária. Editora Juspodivm: Salvador, 2013.
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Direito e Psicanálise: Interseções a partir de O Processo de Kafka. Editora Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2010.
DIAS, Mauro Mendes. A Falta de Processo. Conferência proferida na III Jornada de Direito e Psicanálise: Uma leitura a Partir de O Processo de Kafka. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2010.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir [Tradução de Raquel Ramalhete]. 38º Edição. Editora Vozes: Petrópolis, 2010.
JUNG, Carl G. O Homem e seus Símbolos. Edição Especial Brasileira. 6ª Edição. Editora Nova Fronteira: São Paulo, 2006.
KAKFA, Franz. O Processo. [Tradução de Marcelo Backes] Editora L&PM: Porto Alegre, 2013.
GRECO FILHO, Vicente. Manual de Processo Penal. Editora Saraiva: São Paulo, 2012.
MAIROWITZ, David Zane. MONTELLIER, Chantal. O Processo (Quadrinhos). Editora Veneta: São Paulo, 2014.
MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. O Processo Kafkiano. Conferência proferida na III Jornada de Direito e Psicanálise: Uma leitura a Partir de O Processo de Kafka. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2010.
LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. Editora Saraiva: São Paulo, 2012.
MARQUES, Mara Rubia. Superou-se O Processo de Franz Kafka? Uma análise do sistema inquisitivo. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIV, n. 85, fev 2011.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo e Execução Penal. Editora Revista dos Tribunais: São Paulo, 2012.
PINTOS JUNIOR, Acir Céspedes. O princípio do contraditório no inquérito policial. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIII, n. 82, nov 2010.
PRICE, Jorge E Douglas. Se Presume Culpable. Conferência proferida na III Jornada de Direito e Psicanálise: Uma leitura a Partir de O Processo de Kafka. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2010.
RODRIGUES, Rodolfo Silveira. O princípio do contraditório no inquérito policial. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3205, 10 abr. 2012. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/21482>. Acesso em: 13 nov. 2014.
 
Notas:
[1] Trabalho orientado pelo Prof. Dr. Edmundo de Oliveira Gaudêncio, possui graduação em Medicina pela Faculdade de Medicina de Campina Grande, Mestrado em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba e doutorado em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba (2004).

[2] Em Vigiar e Punir, Foucault descreve o Panóptico de Bentham. Esse mecanismo permite uma constante vigilância do detento, que acredita estar em permanente observação (como que dentro de um molde). Ocorre que essa observação não é obrigatória. Certa somente é a possibilidade de existir algum observador, o que força um comportamento do vigiado. A pressão sob a qual estava Josef K. o tornou culpado em seu próprio ver. “O processo adere ao acusado”, explica MARQUES NETO (2010, p. 112). Josef K. passou a viver o processo, que estava a todo o tempo suspenso sobre sua cabeça. FOUCALT (2010, p. 191) assim explica o Panóptico: “Daí o efeito mais importante do Panóptico: induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder. Fazer com que a vigilância seja permanente em seus efeitos, mesmo se é descontínua em sua ação; que a perfeição do poder tenda a tornar inútil a atualidade de seu exercício; que esse aparelho arquitetural seja uma máquina de criar e sustentar uma relação de poder independente daquele que o exerce: enfim, que os detentos se encontrem presos numa situação de poder de que eles mesmos são portadores”.


Informações Sobre o Autor

Cassio Nunes de Lira Braga

Acadêmico de Direito na Universidade Estadual da Paraíba


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