Resumo: Presente artigo tem como objetivo principal elaborar um estudo global da responsabilidade penal da pessoa jurídica. Apesar de na esfera jurisprudencial a discussão ser bem diminuta, no âmbito doutrinário estudiosos ainda divergem sobre o acatamento de tal instituto. De um lado, os constitucionalistas/ambientalistas afirmar a presença do instituto em nossa Constituição Federal, bem como sua presença legal no artigo 3º da Lei n. 9605/98; do outro lado, os criminalistas, apregoados aos institutos do Direito Penal, pregam que a responsabilidade criminal do ente coletivo “quebraria” vários dogmas do ordenamento jurídico criminal.
Palavras-chave: Responsabilidade criminal pessoa jurídica – Análise geral – Aceitação.
Abstract: Present paper aims to develop a major comprehensive study of the criminal liability of legal entities. Although the discussion in the sphere of jurisprudence be very small, under doctrinal scholars still differ on the reverence of this institute. On the one hand, the constitutional / environmental confirm the presence of the institute in our Federal Constitution, as well as their legal presence in Article 3 of Law no. 9605/98, on the other hand, the criminalists, touted to institutes of criminal law, criminal responsibility to preach the collective being "break" several tenets of criminal law.
Keywords: Criminal liability corporation – General Analysis – Acceptance
Sumário: 1. Considerações iniciais; 2. Breve análise a respeito da responsabilidade criminal do ente coletivo; 3. Dos entes coletivos e suas teorias sobre natureza jurídica: teorias da ficção legal, da equiparação, da realidade objetiva ou orgânica e da realidade jurídica; 4. Evolução histórica da responsabilidade penal da pessoa jurídica; 5. Sistemas de responsabilidade penal da pessoa jurídica; 6. Aspectos da legislação comparada; 7. Conclusão. Referências Bibliográficas.
1. Considerações iniciais
Apesar de todos os estudos aprofundados a respeito da responsabilidade penal da pessoa jurídica, podemos verificar que ainda persistem duas correntes doutrinárias que estão em plena divergência: os constitucionalistas/ambientalistas e de outro lado os criminalistas. Os primeiros, visando a maior proteção do meio ambiente, defendem que nossa Constituição Federal de 1988 (art. 225, §3º) fez a previsão enfática da responsabilidade do ente coletivo, posteriormente, regulamentada pela Lei n. 9605/98. Já para a segunda corrente, sustentada nos dogmas do Direito Penal, negam veementemente a possibilidade jurídica de se responsabilizar criminalmente as pessoas jurídicas.
Como segundo objeto de estudo deste artigo, iremos fazer uma breve análise das teorias que se firmam em torno da natureza jurídica dos entes coletivos, sendo as mais destacadas a da ficção legal, da equiparação, da realidade objetiva ou orgânica e da realidade jurídica, sendo que logo após, iremos detalhar a evolução histórica da responsabilidade penal da pessoa jurídica.
Será ressaltada a análise dos sistemas internacionais sobre a possibilidade de se reconhecer a responsabilidade criminal do ente coletivo, sendo os dois mais conhecidos, o sistema francês vinculado ao romano-germânico, onde vige o princípio societas delinquere non potest, segundo o qual é inadmissível a punibilidade penal das pessoas jurídicas, aplicando-se-lhes somente a punibilidade administrativa ou civil. O outro sistema em pauta é o inglês, onde estão os países anglo-saxões e naqueles que receberam suas influências, predomina o princípio da common law, que admite a responsabilidade penal da pessoa jurídica.
Posteriormente, faremos uma comparação detalhada entre os regimes jurídicos de vários países, explanando que ainda existem vários países negando a responsabilização criminal das pessoas jurídicas quando as mesmas cometerem delitos contra o meio ambiente.
2. Breve análise a respeito da responsabilidade criminal do ente coletivo
Desde já, podemos registrar que conforme afirmado pela doutrina mais abalizada, que dos temas de maior complexidade de posicionamentos no regime jurídico ambiental é quando se trata da responsabilidade penal da pessoa jurídica, sendo que estudiosos divergem com as devidas fundamentações em pauta, umas afirmando e outras negando a previsão em nosso ordenamento jurídico brasileiro.
Após estudos doutrinários, verificamos a existência de dois entendimentos a respeito da responsabilidade penal da pessoa jurídica, uma filiada ao sistema romano-germânico e um outro aos países anglo-saxões. Com relação aos países que foram influenciados pelo sistema romano-germânico adotou-se o princípio da societas delinquere non potest, afirmando o mesmo que, as pessoas jurídicas não podem ser penalizadas criminalmente, restando-lhe somente a punibilidade administrativa e civil. Já com relação aos países que adotaram o sistema anglo-saxões, vige o princípio da common law, possibilitando a responsabilidade penal da pessoa jurídica. Tal discussão tem sido originada no Brasil dando ênfase a duas normas constitucionais (art. 173, §5º e art. 225, §3º da CF), havendo de um lado os constitucionalistas e ambientalistas e de outro lado, os doutrinadores criminalistas, sendo que as duas vertentes possuem posicionamentos veementemente antagônicos.
Vislumbramos que antes da CF de 1988, realmente era quase unânime entre os estudiosos que somente a pessoa natural poderia cometer atos que seriam qualificados como infração criminal, o que passou a ser totalmente modificado com a promulgação da Constituição Cidadã, sendo que antes da mesma não se questionava o princípio societates delinquere non potest, salvo raras exceções, sendo que um novo perfil foi traçado para se permitir a responsabilização de tal ente jurídico.
Apesar das previsões constitucionais acima citadas, parte da doutrina, principalmente do segmento criminalista, continuaram a entender que tais dispositivos não tinham afirmada a responsabilidade penal da pessoa jurídica. Vale ressaltar o posicionamento de Juarez Cirino dos Santos[1] ao fazer comentários do art. 173, §5º nos seguintes termos: “a Constituição fala em responsabilidade – e não em responsabilidade penal; a Constituição fala em atos – e não de crimes; finalmente, a Constituição delimita as áreas de incidência da responsabilidade pela prática desses atos, exclusivamente, à ordem econômica e financeira e à economia popular, sem incluir o meio ambiente”.
No que tange ao art. 225, §3º, referido doutrinador acima citado defende que deve ser feita uma análise semântica para se chegar ao resultado cogitado pelo constituinte, sendo que as condutas dizem respeito às pessoas físicas, tendo como conseqüência a prática de crimes, enquanto o termo atividades se relaciona com as pessoas jurídicas, tendo como aplicação em caso de descumprimento, as sanções administrativas. Apesar desta afirmação, fortes vozes doutrinárias vislumbram o equívoco cometido por Juarez Cirino, no momento em que afirma que a interpretação delineada por Juarez excluiria a possibilidade de o indivíduo ser responsabilizado administrativamente pelos danos causados ao meio ambiente, o que com certeza fulminaria a intenção do legislador constituinte, conforme podemos verificar no posicionamento de Fernando Antônio Nogueira Galvão da Rocha[2], nos seguintes termos: “o entendimento de que a Constituição teria deferido tratamento distinto às pessoas físicas e jurídicas levaria a concluir, também, que a responsabilidade da pessoa física ficaria restrita às sanções penais e a obrigação de reparar os danos. O que não é correto. Com certeza, a pessoa física pode ser responsabilizada administrativamente pela lesão ao meio ambiente. Prova disto são as multas instituídas pelo Decreto n. 3.179, de 21 de setembro de 1999, que regulamenta a Lei n. 9.605/98 e estabelece os parâmetros de responsabilidade administrativa para os casos de lesão ao meio ambiente”.
Luiz Vicente Cernicchiaro[3] defende que a interpretação conjunta do art.225, §3º e os princípios do art. 5º da CF proíbem aceitar que o legislador constituinte tenha deixado de lado o antigo dogma da irresponsabilidade penal da pessoa jurídica, o que recebeu críticas veementes de Guilherme Guimarães Feliciano[4], afirmando do tratamento não exaustivo da matéria, conforme a seguir transcrito: “Pensamos, ‘concessa venia’, que o constituinte não pretendeu exaurir toda a matéria penal relevante no art. 5º da Constituição Federal. Ao contrário, há princípios penais contidos no art. 5º que estão expressamente excepcionados fora dele, como há também normas de garantia e responsabilidade penal situadas além do art. 5º, com azo no seu próprio par. 2º” e continua: “O constituinte não estava premido por coisa alguma (tanto menos pelos limites do título II), podendo inserir, onde melhor lhe aprouvesse, normas de garantia e responsabilidade penal, mesmo porque se tratava de uma carta de ruptura. Compreende-se, desse modo, que tenha estabelecido exceções relativas e pontuais ao princípio da responsabilidade pessoal nos arts. 173, par. 5º, e 225, par. 3º da CRFB, em vista da especial gravidade, para o meio ambiente e para a ordem econômico-financeira, da delinqüência estritamente corporativa”.
Esclarecemos que, de acordo com o acima disposto, geralmente as doutrinas contrárias à responsabilização penal da pessoa jurídica estão com seus fundamentos alicerçados às questões de ordem puramente dogmática, tomando como base as idéias individualistas que deram sustento ao garantismo penal e aos preceitos básicos de direito penal.
No aprofundar da matéria, verificamos que existem doutrinadores que trilham a irresponsabilidade penal da pessoa jurídica por ser impossível a aplicação de sanções penais a tais entes coletivos, mas somente sanções administrativas. Ora, é pacífica entre os estudiosos que como modalidade de sanção penal não existe somente a pena privativa de liberdade, mas também as restritivas de direito e a de multa, estas totalmente possíveis sua aplicação aos entes morais, conforme previsão expressa na lei n. 9.605/98.
Afirmaremos que, com a promulgação da Constituição Federal de 1988 esta trouxe um grande avanço no que tange à responsabilização penal da pessoa jurídica, afirmando a existência da mesma.
3. Dos entes coletivos e suas teorias sobre natureza jurídica: teorias da ficção legal, da equiparação, da realidade objetiva ou orgânica e da realidade jurídica
Antes de adentrarmos verdadeiramente no estudo da responsabilidade penal da pessoa jurídica, faz-se necessário analisar o estudo da natureza da pessoa jurídica para concluir sobre a possibilidade ou não de tais entes coletivos serem passíveis de cometer ilícitos penais.
Pode-se afirmar que pessoa é todo aquele sujeito de direito. É aquele que titulariza relações jurídicas, na órbita jurídica. Sujeitos de direito são os seres capazes de integrar o elemento subjetivo da estrutura das relações jurídicas.
Há duas modalidades de pessoas. Quando é o ser humano, individualmente considerado, o próprio sujeito de direito, o Código Civil denomina-o pessoa natural (= ser humano como sujeito de direito); quando, ao contrário, o sujeito de direito é um conjunto de pessoas ou de bens aos quais é conferida uma personalidade própria, diz-se estar diante de uma pessoa jurídica.
A pessoa jurídica é a unidade de pessoas naturais, jurídicas ou de patrimônio, que visa à consecução de certos fins, reconhecida pela ordem jurídica como sujeito de diretos e obrigações, reunindo características essenciais que torna sua personalidade diferenciada dos seus instituidores.
Quanto à natureza jurídica, podemos classificar as pessoas jurídicas em quatro terias distintas:
1) Teoria da ficção legal. Defendida por Savigny, entende que a pessoa jurídica é uma ficção legal para exercer direitos patrimoniais e facilitar o exercício de certas funções. Tal considera a pessoa jurídica como uma criação artificial da lei, carecendo de concretização, sendo que sua existência teria por finalidade somente facilitar determinadas funções.
Para esta teoria as pessoas jurídicas têm existência fictícia, irreal ou de pura abstração, sendo, portanto, incapazes de delinqüir, uma vez que carecem de vontade e ação, alicerçando assim o princípio da societates delinquere non potest. A mesma nos remetes às seguintes conclusões: as pessoas jurídicas, como são fictícias, não tem capacidade de ação, ou seja, não têm consciência e vontade, logo não podem atuar com dolo ou culpa, sendo sua punição a admissão da responsabilidade penal objetiva, vedada no direito penal; pessoa jurídica não tem capacidade de culpabilidade e de sanção penal; a pessoa jurídica não tem capacidade de pena (princípio da personalidade da pena), não sendo elas passíveis sequer de aplicação de medidas de segurança de caráter penal, já que para isso faz-se necessário ação ou omissão típica e ilícita.
Podemos concluir que tal teoria não se presta à justificar a responsabilização do ente coletivo nem no âmbito civil, muito menos no aspecto penal, chegando ao ponto de nem conseguir explicar a existência do Estado como pessoa autônoma dos indivíduos que o integram, conforme observa Roberto de Ruggiero[5], nos seguintes termos:
“Compreende-se facilmente como uma tal concepção seja inadequada para descrever a verdadeira essência da pessoa jurídica. A ficção é um mero artifício e não é com ela que se cria um ente, que seja distinto das simples pessoas dos componentes da corporação, ou dos administradores ou destinatários dos bens da fundação. Se o sujeito de direitos só pode ser o homem e aqui não existe tal sujeito, nada se obtém fingindo que êle existe. Nem vale de muito declarar que a ficção se deve reduzir a uma relação de analogia, em virtude da qual, devendo o direito referir-se a um sujeito diverso do homem, a entidade se concebe antromòrficamente, sendo a ela que como sujeito se atribui o direito, anàlogamente ao que sucede com a pessoa física. Na verdade, também nada há de real no sujeito se a sua existência é e permanece apenas imaginária”
Por tal teoria, a pessoa jurídica não poderá cometer crimes, baseada no princípio da societas delinquere non potest.
2) Teoria da equiparação. Defendida por Windscheid e Brinz, diz que a pessoa jurídica é um patrimônio equiparado no seu tratamento jurídico às pessoas naturais. É inaceitável, uma vez que eleva os bens à categoria de sujeito de direito, confundido coisa com pessoas.
3) Teoria orgânica, realidade objetiva ou da personalidade real. Referida teoria veio se opor à da ficção jurídica sustentada por Savigny. Defendida por Otto Gierk, a mesma preconiza que as pessoas jurídicas são entes reais com capacidade e vontade próprias, distintas das pessoas físicas que as compõem.
A pessoa jurídica seria um ente dotado de interesses próprios, promovendo atividades no meio social para a consecução de seus fins, tendo também como um de seus expoentes Clóvis Bevilaqua[6], onde o mesmo explica a lógica de personificação dos entes morais nos seguintes moldes:
“O direito é alguma coisa de vivo, que consiste em transformações constantes e que necessita de renovações ininterruptas, pois que a natureza se evolve, mudam as necessidades e, com estas, o direito. Daí resulta que o sujeito do direito deve ser formado de modo que possa acompanhar as mutações do movimento, de modo que possa entrar nesse movimento de uma maneira correspondentemente racional, isto é, conforme às [sic] determinações do direito. Por isso a ordem jurídica exige que os sujeitos de direito sejam, ao menos em sua generalidade, capazes de agir racionalmente. Na primeira linha, aparece o homem, que é um ser dotado de razão, e, depois, os seres aos quais se pode fornecer a razão humana pela anexação de órgãos. Assim, naturalmente, se constituem dois gêneros de pessoas: as corpóreas ou físicas e as morais ou jurídicas. Umas e outras são igualmente reais; a distinção está em que uma são dotadas, naturalmente, de razão, ao passo que, às outras, a racionalidade é parcialmente adquirida, mediante um arranjo especial do homem; umas receberam o seu organismo da própria natureza, ao passo que as outras somente conseguem a forma orgânica, porque as penetra a natureza humana”
Podemos citar como as principais conclusões desta teoria no que tange à responsabilidade penal: a) as pessoas jurídicas são entes reais com capacidade e vontade próprias, não se podendo falar em responsabilidade penal objetiva ao puni-la; b) tais entes possuem capacidade de culpabilidade e de sanção penal, aderindo à culpabilidade social, também chamada de culpa coletiva (STJ-Resp 610114/RN, DJ 19/12/2005), uma vez que a culpabilidade no conceito moderno, é a responsabilidade social, e a culpabilidade da pessoa jurídica, neste contexto, está relacionada à vontade do administrador; c) pessoa jurídica tem capacidade de pena, não ocorrendo violação ao princípio da personalidade da pena, pois a responsabilidade penal recai sobre o autor do crime, pessoa jurídica, que efetivamente comete crimes, não violando os princípios da personalidade e individualização da pena. Sobre a inadequação de algumas sanções penais às pessoas jurídicas (pena privativa de liberdade), a teoria da realidade rebate argumentando que o ordenamento penal prevê outras sanções para as pessoas jurídicas; d) há previsão constitucional da responsabilidade penal da pessoa jurídica no art. 225, §3º da Constituição Federal, bem como no art. 3º da Lei de crimes ambientais.
4) Teoria da realidade jurídica. Defendida por Hauriou. A personalidade humana deriva do direito da mesma forma que ele pode concedê-la a grupo de pessoas ou bens que tenham por escopo a realização de interesses humanos. A personalidade jurídica é um atributo que a ordem jurídica estatal outorga a entes que o merecem, estabelecendo que a pessoa jurídica é uma realidade jurídica. Por meio da mesma, a pessoa jurídica é dotada de existência real, mas sua realidade não é igual a das pessoas naturais, não se podendo negar a atuação dos entes coletivos no meio social com direitos e interesses próprios, todavia isso não os torna seres integrantes do mundo naturalístico, estando sua existência condicionada ao plano abstrato criado pela ordem jurídica.
4. Evolução histórica da responsabilidade penal da pessoa jurídica
Aprofundando para uma melhor compreensão, faz-se necessário explicitar como se deu a evolução histórica da responsabilidade penal da pessoa jurídica na civilização humana, sendo que podemos dividir as fases entre o direito romano, os glosadores, os canonistas e os pós-glosadores.
Através da mesma teremos uma visão do intrigante assunto que provoca o confronto entre as correntes individualistas e coletivas.
Começou-se a pensar nas atividades ilícitas da pessoa jurídica ainda no direito romano, apesar dele, em princípio, não conhecer a figura de tal ente. Tudo começou em um âmbito municipal. Segundo Ulpiano, naquela época, podia ser exercida a acusação contra o Município, que tinha o status de corporação mais importante. Só para exemplificar a situação, tínhamos o fato de que quando o “coletor de impostos” fizesse cobranças indevidas, enganando contribuintes e com isso locupletando-se, possível era a actio de dolus males contra a instituição municipal. Quando fosse comprovada a responsabilidade do agente público (coletores de impostos), os moradores lesados da cidade seriam indenizados, sendo que podemos afirmar que a partir desta situação, ganhou espaço no Direito Romano a existência da capacidade delitiva das corporações.
Podemos dizer que a distinção entre os direitos e obrigações da corporação e dos seus membros foi, sem dúvida, uma das maiores contribuições ao estudo em exame. Em outros termos, o próprio direito romano já admitia, em certas circunstâncias, a responsabilidade de uma corporação, como era o caso do Município. Por outro lado, a distinção feita pelo direito romano entre a universitas e os singuli pode ser considerada como as raízes mais remotas da importante evolução que este instituto vai ter na Idade Média. Portanto, as fontes do Direito Romano não só mostram a existência de responsabilidade delitiva de uma corporação, como também as raízes da distinção entre responsabilidade coletiva e responsabilidade individual.
Entrando em outra fase histórica, já no início da Idade Média, quando as corporações começam a desfrutar de maior importância, tanto na esfera econômica quanto política, entra em pauta o debate sobre a responsabilidade penal das pessoas jurídicas. Os Estados começam a responder pelos excessos que cometiam contra a ordem social, especialmente em relação às cidades que estavam adquirindo sua independência.
Os glosadores, ainda que não tivessem desenvolvido um conceito de pessoa jurídica, reconheciam a figura das corporações, que nada mais eram do que a soma e a unidade de membros titulares de direitos a que se imputava a possibilidade de delinqüência, sendo este assim entendido quando, por intermédio de uma ação conjunta de seus membros, tinha início uma ação penalmente relevante. Em não sendo conjunta a ação, a responsabilização recaía sobre o membro da corporação, segundo os princípios da imputação individual.
Por assim ser, conclui-se que os glosadores sustentavam a responsabilização das ações das corporações, quer no âmbito penal, quer na esfera civil, reconhecendo certos direitos à corporação ao mesmo tempo em que admitia sua capacidade delitiva.
Já no período canônico, foi desenvolvida a idéia de que, segundo a Igreja, os direitos não pertenciam à totalidade de seus fiéis, mas a Deus. Com fundamento nessa premissa, os canonistas começaram a elaborar um conceito técnico-jurídico de pessoa jurídica. Partem da aceitação da capacidade jurídica da universitas, separada da capacidade jurídica dos seus membros e procuraram, assim, abranger as corporações e, inclusive, a Igreja que seria a corporação mais importante. A dificuldade prática de explicar o fenômeno real da organização eclesiástica, a partir da teoria elaborada pelos glosadores, forçou os canonistas a elaborarem uma nova teoria que atendesse a essa Entidade. Nesta nova concepção, passa-se a sustentar que os titulares dos direitos eclesiásticos não são os membros da comunidade religiosa, mas Deus, na figura de seu representante terrestre. Esse entendimento cristaliza o conceito de instituição eclesiástica, distinto do conceito de corporação adotado pelos glosadores, concebendo-a como pessoa sujeito de direito. Aparece aqui, pela primeira vez, a distinção entre o conceito jurídico de pessoa e conceito real da pessoa como ser humano. Este rompimento da identificação entre a corporação eclesiástica e a pessoa como ser humano, dá origem ao conceito de pessoa jurídica que, por ficção jurídica, passa a ter capacidade jurídica.
Observa-se que os canonistas foram os primeiros a distinguir a corporação de seus membros, e que a partir desse marco a pessoa jurídica passa a ser considerada como pessoa ficta, entendimento semelhante àquele elaborado pelos canonistas e pela teoria da ficção do século XIX, emoldurada por Savigny.
Os pós-glosadores se filiaram à definição dos canonistas segundo o qual a universitas era uma pessoa ficta. Entretanto, contrariamente aos canonistas, admitiam a possibilidade de praticar crimes.
Na Idade Média, a responsabilidade penal das corporações surge como uma necessidade exclusivamente prática da vida estatal e eclesiástica. Tal orientação perdurou até o final do século XVIII, quando entraram em cena as idéias do Iluminismo e do Direito Natural, que se traduziram em recusa de qualquer responsabilidade penal coletiva, conduzindo, necessariamente, à responsabilização individual.
Vale ressaltar que a consagração do princípio societas delinquere non potest, ao contrário do que sustentam alguns autores de escol, não decorreu da importância da teoria ficcionista da pessoa jurídica de Savigny, que negava capacidade de vontade e, por conseqüência, a capacidade delitiva da pessoa jurídica, na medida em que essa ficção não foi obstáculo aos canonistas e pós-glosadores que admitiam a responsabilidade penal da pessoa jurídica. Essa negação de responsabilidade, adotada de plano pela doutrina penal, foi igualmente recepcionada por vários doutrinadores que, segundo sustentavam, mesmo com a deliberação unânime da corporação, seria impossível a responsabilidade penal, posto que, nesse caso, não estaria atuando de acordo com a finalidade da associação, mas com finalidade distinta do seu desiderato.
Com relação ao aspecto jurídico brasileiro, no que tange à responsabilidade penal da pessoa jurídica, podemos afirmar que tudo se originou da formação histórica e cultural do país.
5. Sistemas de responsabilidade penal da pessoa jurídica
Duas correntes debatem ao longo da história sobre a possibilidade de se aplicar sanções penais às pessoas jurídicas, que são os países vinculados ao sistema inglês e outros ao francês.
Com relação ao sistema francês, vinculados ao romano-germânico, vige o princípio societas delinquere non potest, segundo o qual é inadmissível a punibilidade penal das pessoas jurídicas, aplicando-se-lhes somente a punibilidade administrativa ou civil. Entendem muitos juristas serem a responsabilidade penal atribuída exclusivamente às pessoas físicas, em face de que a imputabilidade jurídico-penal é uma qualidade inerente aos seres humanos, cedendo, pois, espaço para o problema da incapacidade de ação da pessoa jurídica. O art. 26 do Código Penal trata de considerações da pessoa que possui a capacidade de entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento.
Admitem alguns que se reconhecer a responsabilização penal da pessoa jurídica estaria a se arranhar o princípio da personalidade da pena. Insistem que é impossível admitir-se, ainda que com grande dose de benevolência, que a pessoa jurídica seja dotada de vontade e de consciência "pessoais", e que o acatamento da responsabilidade penal da pessoa jurídica afronta o art. 5º, inciso XLV, da Constituição Federal, bem como o da legalidade dos delitos e das penas estampados no inciso XXXIX, do mesmo artigo da CF.
Por outro lado, no sistema inglês, onde estão os países anglo-saxões e naqueles que receberam suas influências, predomina o princípio da common law, que admite a responsabilidade penal da pessoa jurídica, orientação esta que vem ganhando vulto sobre países até então predominantemente filiado ao sistema romano-germânico, a exemplo da Holanda, num primeiro momento, e há pouco, na França, que introduziu alterações no ordenamento a partir da reforma do Código Penal ocorrida em 1992 e a Dinamarca, que reformou o Código Penal em 1996.
Conforme muito bem observado por Cezar Roberto Bitencourt[7], "embora o princípio societas delinquere non potest seja, historicamente, adotado na maioria dos países da Europa Continental e da América Latina, a outra corrente começa a ganhar grandes espaços nos debates dogmáticos de vários países, ante a dificuldade de punir eficazmente a chamada criminalidade moderna, onde as pessoas jurídicas começam a exercer importante papel."
A tendência é que se adeque aos anseios da sociedade, admitindo-se a responsabilização penal da pessoa jurídica, adotando-se assim o sistema inglês, espancando-se a idéia contrária.
Destaca Elaine Castelo Branco Souza que, “a tese sustentada de que a pessoa jurídica não é capaz de pena é facilmente debatida ante o fato de que não se mostra razoável, em pleno terceiro milênio, manter-se a mesma concepção teórico- penal. Não tem mais o Direito Penal a finalidade de fazer justiça, compensando-se a culpa com a pena. O Direito Penal de um Estado Democrático, não se vincula às finalidades teológicas ou metafísicas, mas sim destina-se a fazer funcionar a sociedade. Sob este prisma, pouco importa que o violador da norma seja uma pessoa física ou jurídica.”
6. Aspectos da legislação comparada
Em nível internacional, podemos vislumbrar que a responsabilidade penal da pessoa jurídica já é adotada de forma bastante veemente, uma vez que nestas nações as corporações são responsabilizadas de forma tradicional, sendo que em alguns países, como na Inglaterra e nos Estados Unidos a pessoa jurídica é sujeito ativo de crimes desde o século passado. No mesmo sentido, na América Latina tal responsabilidade já era adotada no México bem como na Cuba, e mais recentemente, no Brasil, que elevou o princípio societas delinquere potest a âmbito constitucional.
O XIII Congresso da Associação Internacional de Direito Penal, realizado em Cairo (Egito) em 1984 afirmou que a responsabilidade penal das sociedades e de outros agrupamentos jurídicos é reconhecida em um número crescente de países como um meio apropriado de controlar os delitos econômicos e dos negócios.
A Noruega, pela Lei de 13 de março de 1981, emendada pela Lei de 15 de abril de 1983 (art.80), adotou a responsabilidade penal das pessoas jurídicas.
Em Portugal a doutrina, majoritariamente, nega a responsabilização penal da pessoa jurídica. Apesar de, no início a jurisprudência ter acompanhado a doutrina, hoje ela passou a admitir plenamente. No que tange à legislação temos o Decreto-Lei 28/84, onde o mesmo somente afasta a responsabilidade penal do ente coletivo se a pessoa física tiver agido exclusivamente em seu próprio interesse, sem qualquer conexão com os interesses da pessoa jurídica.
Com relação à França podemos afirmar que a mesma adotou, desde 1992 a responsabilidade penal das pessoas jurídicas, apesar de serem chamadas pessoas morais.
No Canadá e em alguns Códigos Penais da Austrália, a regra geral é a responsabilidade penal das pessoas jurídicas. Essa responsabilidade se estabelece de duas formas: a)por fato de outrem; b)por ela mesma. Neste caso exigindo que : 1)as pessoas cometam crime com vontade criminosa; 2)no espectro de suas funções como agente da pessoa moral; 3)Com a suficiente posição hierárquica na pessoa jurídica, para que entre em vigor o princípio do alter ego.
Venezuela adotou a responsabilidade penal da pessoa jurídica na lei penal ambiental de 1992.
Na Grã-Bretanha, a pessoa jurídica pode ser responsabilizada criminalmente. Na prática, entretanto, a punibilidade se restringe às violações à economia, ao meio ambiente, à saúde pública e à segurança e higiene no trabalho. As doutrinas inglesas, holandesas e americanas já avançaram a passos largos, passando a enxergar que se a pessoa jurídica é capaz de contratar, tem também capacidade para, criminosamente, descumprir o contratado.
Vale ressaltar que, do mesmo modo como nos outros países do common Law, vigora nos Estados Unidos, desde a promulgação do Código Penal de Nova York, a responsabilidade penal da pessoa jurídica, sendo ainda mais amplo que na Inglaterra, admitindo-se a modalidade de infração culposa quando praticada por um empregado no exercício de suas funções, mesmo que a empresa não tenha auferido proveito com o ato.
Na Holanda, há a previsão da responsabilidade penal do ente jurídico, que foi introduzida no país pela Lei de Delitos Econômicos de 1950, uma vez que o Código Penal Holandês de 1881, não previa qualquer punição para as pessoas morais.
Apesar de a doutrina italiana tecer severas críticas com relação ao sistema adotado pelo país, na Itália vigora o princípio da responsabilidade individual, admitindo-se nos casos de pecuniária a responsabilidade subsidiária das pessoas jurídicas, ressalvando-se que tal responsabilidade é de caráter civil.
Com relação à Alemanha vigora o princípio societas delinquere non potest desde a derrogação da legislação econômica estabelecida pelas potências de ocupação após a II Guerra Mundial, que permitia a responsabilidade penal da pessoa jurídica. Pode ser imposta somente sanções de índole administrativa.
No território espanhol não se admite a responsabilidade penal da pessoa jurídica, apesar de se prever a aplicação de medidas acessórias de segurança, em caso de, quando eventualmente auxiliarem na disponibilização de meios para a prática de um delito de pessoa física.
Na Suíça, somente os representantes das empresas é que podem ser culpados por um fato delituoso, é o que está previsto nos arts. 172 e 326 do Código Penal Suíço.
Por fim, no Japão, reconhece-se a responsabilidade penal da pessoa jurídica, por influência norte americana, baseando-se na teoria de Gierk sobre a real responsabilidade dos entes coletivos e na analogia que o direito anglo-americano faz com a responsabilidade delituosa das pessoas jurídicas no direito civil.
7. Conclusão
Ao final da presente exposição observa-se que foi feito um estudo geral concernente a responsabilidade penal da pessoa jurídica quando a mesma cometer atos que constituam infrações criminosas contra o meio ambiente.
Os criminalistas, arraigados aos dogmas do Direito Penal, insistem em negar que as pessoas jurídicas possam ser responsabilizadas por delitos contra o meio ambiente, argumento que, com a previsão constitucional e legal não deve mais prosperar em nosso ordenamento jurídico, conforme demonstrado pela corrente constitucionalista/ambientalista, sendo que esta “quebra” todos os fundamentos levantados pelos penalistas.
Portanto, entendemos que não há mais fundamentos que sustentem a negativação geral de se responsabilizar as pessoas jurídicas quando as mesma cometerem crimes contra o meio ambiente.
Referências bibliográficas
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal – Parte geral. 2ª Edição, Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2007.
ROCHA, Fernando Antônio Nogueira Galvão da. Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica. In: Direito Ambiental na Visão da Magistratura e do Ministério Público. Coordenadores: Jarbas Soares Júnior e Fernando Galvão. Ed. Del Rey, 2003.
CERNICCHIARO, Luiz Vicente; JÚNIOR, Paulo José da Costa. Direito Penal na Constituição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990.
FELICIANO, Guilherme Guimarães. Teoria da Imputação Objetiva no Direito Penal Ambiental Brasileiro. São Paulo: LTr, 2005.
RUGGIERO, Roberto. Instituições de Direito Civi – Introdução e Parte Geral, Direito das Pessoas, vol. I. 3ª Edição, São Paulo: Saraiva, 1971.
BEVILAQUA, Clóvis. Teoria Geral do Direito Civil. 4ª Edição, Rio de Janeiro: Editora Rio, 1972.
Notas:
[1] SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal – Parte geral. 2ª Edição, Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2007, p. 428-430.
[2] ROCHA, Fernando Antônio Nogueira Galvão da. Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica. In: Direito Ambiental na Visão da Magistratura e do Ministério Público. Coordenadores: Jarbas Soares Júnior e Fernando Galvão. Ed. Del Rey, 2003, p. 449
[3] CERNICCHIARO, Luiz Vicente; JÚNIOR, Paulo José da Costa. Direito Penal na Constituição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, p. 242.
[4] FELICIANO, Guilherme Guimarães. Teoria da Imputação Objetiva no Direito Penal Ambiental Brasileiro. São Paulo: LTr, 2005, p. 208-210.
[5] RUGGIERO, Roberto. Instituições de Direito Civi – Introdução e Parte Geral, Direito das Pessoas, vol. I. 3ª Edição, São Paulo: Saraiva, 1971, p.382-383.
[6] BEVILAQUA, Clóvis. Teoria Geral do Direito Civil. 4ª Edição, Rio de Janeiro: Editora Rio, 1972, p.127-128.
[7] (Responsabilidade penal da pessoa jurídica e medidas provisórias e direito penal. Luiz Flávio Gomes (Coordenador). São Paulo: RT, 1999 – pág. 51/71).
Informações Sobre o Autor
José Eliaci Nogueira Diógenes Júnior
Procurador Federal Membro da Advocacia-Geral da União. Pós-graduado em Direito Ambiental e Urbanístico. Pós-graduado em Direito Processual Civil e Trabalho. Pós-graduado em Direito Constitucional. Professor Universitário.