Resumo: Sem ter a pretensão de esgotar o tema, o artigo busca apresentar parâmetros para reflexão dos “operadores do direito” sobre a possibilidade de aplicação da arbitragem na esfera trabalhista (relações individuais). As teses contrárias estão superadas ou hão de ser em breve espaço de tempo, razão pela qual, em especial os profissionais vinculados, devem atualizar seus conhecimentos nesta nova onda renovatória.
Sumário: I. Introdução. II.Direitos disponíveis. III. Direitos Indisponíveis. a. Disposição arbitral de cunho coletivo. b. Disposições nas relações individuais. c. Destaques sobre a disponibilidade. IV. Hipossuficiente. V. Direito Subjetivo. a. Autonomia de vontade. b. Liberdade de escolha. VI. Conclusão.
I. Introdução
Muito se tem falado sobre a possibilidade (ou não) do uso da arbitragem para solução do dissídio individual decorrente da relação de trabalho onde as teses comutadas, ora admitem-na, ora não; fixando posições sobre a indisponibilidade que veda a renúncia e na tese da hipossuficiência do trabalhador, cerceadora da autonomia de vontade e da liberdade de escolha.
Traz a Lei de Arbitragem (Lei nº. 9.307/96) em seu artigo 1º que: “As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis”.
A primeira vista não apresenta grande problema fixar a disponibilidade de direitos frente à Lei de Arbitragem quando o assunto versar sobre direitos patrimoniais decorrentes de uma relação civil (contratual), onde as partes capazes fazem inserir em um contrato firmado de forma livre e espontânea a cláusula compromissória (art.4º), dispondo que a solução da controvérsia, caso surja, se dará pela via arbitral.
Controvérsia surgirá em delimitar a extensão da indisponibilidade de direitos, como os que possam ser litigados no direito de família, os decorrentes da relação de consumo e, especialmente, na área trabalhista, dada a repercussão social que o tema assume, ou por outra, não se tratar de boa política enfrenta-lo, pois que polêmico, mas como veremos, de fraca resistência argumentativa.
II. DIREITOS DISPONÍVEIS
Os direitos tidos como disponíveis situam-se exatamente no campo dos direitos patrimoniais, assim compreendidos aqueles que podem ser objeto de alienação sob qualquer forma, inclusive pela renúncia de seu potencial exercício.
Exemplificando temos os direitos hereditários que podem livremente ser dispostos ou mesmo objeto de renúncia pelo herdeiro e, as obrigações decorrentes dos contratos em geral, na divisão e demarcação de terras, no recebimento de créditos, na recuperação extrajudicial, na dissolução de sociedade, entre outros.
III. DIREITOS INDISPONÍVEIS
Os indisponíveis puros situam-se especialmente no campo dos direitos extrapatrimoniais, como no pátrio poder, no reconhecimento de paternidade, no dever dos pais para com seus filhos; outros ainda sobre os quais o titular não tem liberdade de disposição: direitos de personalidade, direitos referentes ao estado e capacidade da pessoa. São irrenunciáveis e quase sempre intransmissíveis.
O enfrentamento do debate sobre a disponibilidade ou indisponibilidade dos direitos trabalhistas, com vista à aplicabilidade da Lei de Arbitragem subsumiu-se a duas esferas: do direito coletivo e da relação contratual particular (contrato de trabalho).
a. Disposição Arbitral de cunho coletivo
Sem qualquer dúvida, no direito coletivo do trabalho (convenção e dissídio) é a área com maior proveito para a utilização da Arbitragem, pois sobre ele não existe dissenso, frente à disposição constitucional (§§ 1º e 2º do art.114 da Constituição Federal.([1])).
Na perspectiva da solução extrajudicial de conflitos coletivos a Constituição nos remete a duas formas, quais sejam: a negociação e a arbitragem[2]. Ambas pressupõem o livre consenso de vontades, mesmo que, a princípio, justapostas.
b. Disposições nas relações individuais
Na relação individual do trabalho surge para alguns a dúvida sobre a aplicabilidade da arbitragem, mormente frente ao contido nos artigos 6 e 7([3]) e incisos da Constituição Federal e, artigos 9-444-468([4]) da CLT.
O STF no RE 234.186-SP, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, analisando um caso de rescisão de contrato de trabalho (sob a garantia da estabilidade decorrente de gravidez) levado à efeito com base na norma coletiva relatou:
“Trata-se de direito irrenunciável da empregada, que não pode ser afastado ou neutralizado por simples convenção.”
“Aos acordos e convenções coletivas de trabalho, assim como às sentenças normativas, não é lícito estabelecer limitações a direito constitucional dos trabalhadores, o que nem à lei é permitido.”
A tese se fundamenta frente à questão do princípio da indisponibilidade dos direitos decorrentes da relação de trabalho, quer por proteção constitucional (direitos irrenunciáveis) ou na via do princípio da relação hipossuficiente defendida.
Em razão destes dois princípios, os mais cometidos e cautelosos conservadores, na contramão da história, entendem que é totalmente inaplicável a arbitragem como instrumento para solução dos dissídios individuais.
Olvidam-se, no entanto, que a própria lei e a instituição judicial estatal privilegiam a composição pela conciliação. Por mais das vezes, tal composição se dá em valores inferiores aos que foram reclamados, fazendo da coisa litigada um julgamento formal e material, pela via da “conciliação”.
De forma concreta e considerada apenas sob a ótica ortodoxa, a indisponibilidade é ultrapassada na transação judicial levada a efeito pela conciliação promovida pelo magistrado.
Num caso prático, porém rotineiro, duas questões nos saltam aos olhos: Fulano em seu pedido inicial requer o pagamento de 20 mil reais e, termina por transacionar seus direitos por 2 mil reais: a) ou o “acordo” (transação judicial) é nulo, pois que, se o direito é indisponível, portanto irrenunciável, jamais poderia, mesmo com a chancela estatal, sofrer tamanha redução; b) ou autor (reclamante) agiu de má-fé, pleiteando quantia que não lhe era devida, aceitando exatamente os valores que correspondiam ao seu direito.
Recorde-se o conteúdo do relatório do STF: Aos acordos e convenções coletivas de trabalho, assim como às sentenças normativas, não é lícito estabelecer limitações a direito constitucional dos trabalhadores, o que nem à lei é permitido.
Então talvez seja hora de deixar as medidas de meio e não mais usar a mesma tese como defesa contrária à aplicação da arbitragem ou outro meio de solução extrajudicial de conflitos individuais do trabalho, quando, na prática o órgão do poder estatal assim o faz, desconsiderando tal “indisponibilidade”. E o faz, pois que na verdade esta indisponibilidade já não mais existe.
Ou seja, contraditório em seus argumentos, usam-no segundo a conveniência pretendida. Ora contra a indisponibilidade e ora a favor da disponibilidade chancelada pelo estado.
É fato “indisponível” de idéias contrárias que a flexibilização das relações de trabalho ganha foro universal, com redução de jornada de trabalho, redução de remuneração, compensação de horas, acordos coletivos mais flexíveis, planos de demissão voluntária etc., para não mencionar novamente os acordos realizados perante o órgão do poder estatal.
As próprias entidades sindicais, de há muito, vêm concentrando seus esforços nesta flexibilização, o que, caso contrário, tornaria a relação de trabalho insustentável frente à rigidez legal posta.
c. Destaques sobre a Disponibilidade
Destaca-se algumas previsões legais quanto a flexibilização dos direitos trabalhista, mormente a do art. 7º, incisos VI, XIII e XIV da Constituição Federal([5]) (negociação coletiva).
Outro parâmetro que merece destaque está contido no artigo 7º, inciso XXIII da Constituição Federal ([6]), que trata da segurança do trabalho e dos adicionais de insalubridade e periculosidade, remetendo à lei ordinária sua regulamentação.
Por seu turno, o artigo 193 da CLT, em seus parágrafos, especialmente o 2º([7]), nos remete a uma interpretação doutrinária e jurisprudencial que tais adicionais podem ser negociados, cambiados, escolhidos, mas nunca cumulados.
A questão de saúde e segurança transcende a vontade das partes, tornando indisponível o direito, porém veda a cumulação, mesmo que esta de fato haja, devendo a escolha recair sobre um ou outro adicional; portanto, negociável.
O entendimento jurisprudencial tem sido no mesmo sentido, onde se pode evidenciar Proc. TRT nº 05853- 2002-906-06-00-7 (RO – 02590/02) – Com efeito, o Juízo de 1º grau indeferiu o pedido em epígrafe, sob o fundamento de que o recorrente já recebia adicional de risco de vida, por força do contido nas convenções coletivas da categoria, o que exclui a percepção do adicional de periculosidade, em razão da vedação legal para a acumulação dos adicionais. Mais ainda, a Portaria Ministerial nº3.214/78 vedou expressamente o recebimento cumulativo entre os adicionais mencionados.
Cientificistas da doutrina positiva não acolhem tal consideração, pois fundamentados na prévia existência de norma que excepciona a indisponibilidade, aderem ao “princípio” da reserva legal, que por seu turno manterá o “princípio geral” aplicado. Assim, não haverá contradição, mas simples regra (des) excepcionada.
A questão fundamental aqui não é sobre o adicional em si, mas sim sobre a possibilidade de convenção em direito indisponível.
Acreditar na hipossuficiência como tese é o mesmo que acreditar no domínio como antítese, mas a síntese não poderá ser da concretização e exteriorização da patologia da relação; esta é exceção, como um desvio da regra geral.
Regra geral esta que nos remete a hierarquização de comando e a fixação de regras, comumente entendida no direito trabalhista pela expressão “relação de subordinação”, nada mais.
A exorbitância do exercício da hierarquia, geradora de atos meramente arbitrários, traz à tona a exceção da relação contratada.
Hipossuficiente somos todos nós, que frente a um fato não dispomos de liberdade de escolha, p.ex. o micro empresário e o banco, e o fiscal, e a lei do trabalho. Este “empresário” é senhor ou escravo? Une seu “capital” (?) à sua própria força de trabalho, disponibilizando riquezas e distribuindo-as, colaborando com os índices de emprego, apropriados pelo estado como virtude. Hipossuficiente somos todos nós jungidos à greve “legal” de serviços essenciais.
Numa dimensão contemporânea das relações do trabalho, todas legitimamente representadas por entidades de classe, convalidam suas regras, atribuindo direitos e responsabilidades recíprocas num ato consensual consolidado, pouco espaço há de sobrar para hipossuficiência.
De Washington de Barros Monteiro: “o direito objetivo é o conjunto das regras jurídicas; direito subjetivo é o meio de satisfazer interesses humanos (hominum causa omne jus constitutum sit). O segundo deriva do primeiro”.([8])
O Direito Subjetivo corresponde à “facultas agendi”, em outros termos, é a faculdade de usá-lo ou não na proteção do seu interesse. Logo, dele pode até mesmo dispor, pois este tipo de direito (subjetivo) tem como prerrogativa sua potencialidade de uso ou não. (autonomia de vontade).
Etimologia: auto = a si mesmo + “nomos” = lei, ordem. Um sujeito com autonomia é alguém que decide e determina, ele mesmo, a lei e a ordem para cada circunstância.
Muitos autores têm fixado a autonomia de vontade numa base meramente procedimental de aceite a inevitável imposição econômica, formulada segundo princípios do liberalismo ou do neoliberalismo, subvertendo todo o conteúdo da vontade autônoma a uma espécie de “aceite inevitável” ou um simples consentimento por tolerância.
A autonomia de vontade transcende aspectos puramente formais, mas antes, constitui autodeterminação consciente, logo voluntária. Mesmo que contrário fosse ainda sim seria autônomo, advindo de mero consentimento utilitário de interesse frente à adversidade ou frente ao proveito imediato.
Ser autônomo é ser capaz de tomar as próprias decisões em cada situação real de vida, levando em consideração suas vicissitudes.
Mais ainda, a autonomia de vontade representa, em última instância, o viés admissível para o regular exercício da cidadania, com liberdade de escolha.
De Immanuel Kant, lembramos seu artigo – Resposta à pergunta: O que é esclarecimento?
“Esclarecimento [Aufklärung] é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento [Aufklärung].”
Com o fim de estabelecer um paradeiro sobre tal discussão (indisponibilidade), não podemos deixar de observar que há na esfera dos direitos individuais o chamado direito subjetivo, entendido como a faculdade posta à pessoa em pleitear direitos assegurados pela norma objetiva, como acima já destacada.
Se por um lado os direitos advindos da relação de trabalho são considerados indisponíveis, por outro, este mesmo arcabouço de normas entrega à pessoa o direito de pleitear a proteção judicial.
Assim teremos que não todas as rescisões do contrato de trabalho são apresentadas ao judiciário. A lei não impõe a pessoa que utilize a forma judicial para solução de um conflito, o direito à ação não é um dever, mas sim uma faculdade compreendida na esfera de sua subjetividade.
Ao contrário, a lei limita o exercício deste direito, impondo um prazo para apresentação da reclamação. Nada reclamando significa que o trabalhador desistiu de possíveis direitos não satisfeitos? Esta desistência constitui renúncia? A inércia pode ser entendida como renúncia tácita? A concordância com o termo de rescisão do contrato e quitação geral como renúncia expressa?
Com o fim do contrato de trabalho e sua rescisão não há mais subordinação hierárquica (caindo por terra qualquer hipótese de hipossuficiência), podendo a vontade ser exercida livremente, quer com a renúncia pela falta do exercício de direito de ação; quer pelo exercício perante o Estado e; agora, pelo exercício deste direito subjetivo em buscar a solução do conflito pela via extrajudicial – arbitragem.
Conclusivamente, o exercício do direito subjetivo nasce da autonomia da vontade e da liberdade de escolha. Escolha esta que poderá perpassar pela renúncia ao exercício do direito de ação; pelo pedido de providência jurisdicional estatal; pelo pedido extrajudicial de composição, que poderá culminar com a construção conjunta da solução (mediação) ou numa determinação heterocompositiva (arbitragem), submetendo-se as partes ao comando proclamado.
As teses de inadmissibilidade de uma providência extrajudicial para solução de conflito decorrente da relação de trabalho se ainda não estão totalmente vencidas, hão de chegar à superação, pois que contraditórias em sua estrutura.
Nesta esteira de raciocínio, proclamo a decisão extraída do TST([9]), sob lavra do Min. Pedro Paulo Manus, publicada no dia 17/10/2008, como marco decisivo à consolidação da arbitragem na esfera do trabalho, especialmente em sua relação individual.
VI – Conclusão
Há, sem dúvida, uma nítida presunção, posta pelos opositores da arbitragem na esfera trabalhista, que ela não respeitaria a indisponibilidade ou que não reconheceria a relação de hipossuficiência; ou ainda que, a arbitragem não reconheceria o protecionismo dado ao trabalhador na relação de emprego, deixando margem para que “acordo” espúrio pudesse ser realizado.
É importante observar que a arbitragem na esfera do trabalho não nasceu com o propósito de subverter os direitos assegurados pela Constituição ou pela CLT.
A propósito, o artigo 2º, §1º ([10]) da Lei de Arbitragem, define como princípio o respeito à ordem pública (leia-se respeito à norma cogente constitucional). O artigo 21, §2º ([11]) também ressalva o estabelecimento de princípios que possam garantir uma correta aplicação do direito, tornando nula qualquer disposição que os viole (art.32, VIII).([12])
Não podemos supor a arbitragem como forma de convalidar acordos que muito bem se podem obter pela relação direta empregado-empregador, ou perante o sindicato de classe, ou ainda nas comissões de conciliação prévia.
Ultrapassadas as fases administrativas para rescisão do contrato de trabalho, sem que as partes consigam construir uma composição, nasce a possibilidade de dar início ao processo arbitral. Nesta ocasião, em cumprimento à lei, novamente as partes serão incentivadas à composição amigável. Restando infrutífera, a composição do litígio se dará pela prolação de sentença arbitral, respeitados todos os seus pressupostos legais estabelecidos pela CF e pela CLT.
A Arbitragem na esfera trabalhista se justifica pelo exercício da autonomia de vontade do empregado, fazendo uso de sua liberdade de escolha, de forma livre e consciente, optando pela resolução extrajudicial do litígio, pois que com este (litígio) é de se supor que não haja mais relação de subordinação.
Surge a arbitragem como alternativa bastante plausível e eficiente, pelo exercício do direito subjetivo de ação.
Não se pode negar à grande parcela da população mais esta possibilidade de acesso e distribuição de justiça, de forma célere, eficiente, responsável e de menor custo às partes.
A Arbitragem é posta a quem acredita ser um agente promotor da pacificação social, não um mero “operador utilitário” do direito, expressão pífia a quem jurou justiça.
§1º. Poderão as partes escolher, livremente, as regras de direito que serão aplicadas na arbitragem, desde que não haja violação aos bons costumes e a ordem pública.
Informações Sobre o Autor
Paulo Eduardo Christino Espada
Advogado Especialista em Filosofia Política Jurídica (UEL/PR) – Presidente do Instituto Jurídico Empresarial e d a Câmara de Mediação e Arbitragem de Londrina – Diretor jurídico do CEFIL – Centro de Estudos Filosóficos