Arma de fogo desmuniciada

Resumo: neste despretencioso escrito, o autor procura atrair a atenção do leitor para as inconveniências de interpretações contemporâneas as quais apontam no sentido de que a arma de fogo desmuniciada não é objeto bastante para a configuração dos ilícitos penais insculpidos na Lei nº10.826/03. Não obstante essa propensão doutrinária e também jurisprudencial atuais, o responsável por este redigido traz à baila o basilar princípio da tripartição dos poderes, idealizado por Montesquieu, onde a cada poder estatal cumpre função específica e profícua em prol da coletividade, não cabendo ao outro, em choque com os interesses da coletividade, desconceituar as criações do seu análogo.

Palavras-chave: Lei nº10.826/03; Arma de fogo desmuniciada; Tripartição de poderes.

Sumário: Introdução; Aspectos teóricos e gerais acerca da Lei nº. 10.826/03; e Conclusão.

Introdução

No presente trabalho, enfaticamente, procurar-se-á defender o posicionamento de que a arma de fogo desmuniciada, à luz da legislação vigente, deve ser considerada objeto bastante, para a configuração dos crimes elencados na Lei nº 10.826/03, em que pesem fortes correntes contrárias, tanto de natureza jurisprudencial como doutrinária.

Visar-se-á, mais do que defender, fazer com que todos lembrem do essencial e célebre princípio outrora criado por Montesquieu[1], às vezes esquecido pelos juristas e doutrinadores pátrios.

Para Montesquieu, o Estado haveria de ser repartido, por assim dizer, em três poderes, cada qual com uma função distinta. “Em sua opinião, o normal seria a existência de um órgão próprio para cada função, considerando indispensável que o Estado se organizasse com três poderes, pois “tudo estaria perdido, se o mesmo homem ou mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou mesmo do povo, exercesse a totalidade desses três poderes”[2].

Aspectos teóricos e gerais acerca da Lei nº. 10.826/03[3]

Os crimes de arma de fogo encontram-se elencados na Lei nº 10.826/03 (Estatuto do Desarmamento), que revogou a Lei 9.437/97. Os crimes estão previstos nos artigos 12 a 21 do referido diploma legislativo.

Para evitarmos a redundância, analisaremos, tão-somente, o art. 14 da Lei em evidência, que assim dispõe:

Porte ilegal de arma de fogo de uso permitido

Art. 14. Portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

Parágrafo único. O crime previsto neste artigo é inafiançável, salvo quando a arma de fogo estiver registrada em nome do agente.

Sua objetividade jurídica: manifestamente, diz respeito à incolumidade pública.

Sua classificação: consubstancia-se, inarredavelmente, em crime de mera conduta, de ação múltipla, comum e de perigo abstrato.

Seu objeto material: verseja sobre arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido.

Seu sujeito ativo: por configurar-se em crime comum, o sujeito ativo pode ser qualquer pessoa.

Seu sujeito passivo: logicamente, trata-se da coletividade.

Seu elemento objetivo do tipo: diz respeito ao aspecto objetivo ou exterior da ação, ou seja, versa sobre o comportamento proibido.

No artigo 14 temos, ainda, 13 verbos[4]:

1. Portar: ocorre, quando a arma é conduzida consigo;

2. Deter: ocorre, quando a arma é conservada em seu poder;

3. Adquirir: percebe-se esta hipótese, quando o sujeito obtém a arma por meio de compra;

4. Fornecer: é o abastecimento do comércio clandestino de armas. É a venda, desde que de forma esporádica, já que se no exercício de atividade comercial ou industrial, a tipificação será do artigo 17;

5. Receber: é a aceitação ou o acolhimento da arma de fogo;

6. Ter em depósito: é a conservação da arma de fogo;

7. Transportar: é a condução da arma de fogo de um lugar para outro;

8. Ceder, ainda que gratuitamente: é a transferência da posse da arma para outra pessoa, ausente qualquer ônus para esta;

9. Emprestar: é a confiança a alguém, de forma gratuita ou não, do uso da arma, objeto este que será depois restituída ao seu possuidor;

10. Remeter: é a expedição ou envio da arma de fogo;

11. Empregar: é a conduta em se fazer uso da arma;

12/13. Manter sob guarda ou ocultar: é a conservação da arma em local onde permaneça guardada, dissimulada ou escondida.

CONSUMAÇÃO: ocorre no momento em que o agente realiza um dos verbos do tipo penal em estudo.

ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO: trata-se do dolo, o qual consiste na vontade livre e consciente de o agente realizar as condutas descritas no tipo, abarcando-se o conhecimento dos elementos normativos que compõem o tipo.

ELEMENTO NORMATIVO DO TIPO: está prevista na expressão “sem a autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar”. Dessa arte, o agente flagrado portando uma arma de fogo com autorização expedida pela autoridade competente, em horário e local autorizados pela regulamentação, não incide em ilicitude.

É cristalino, ainda, que o sujeito ativo, ainda que possua autorização para o porte de arma, não a poderá exibir ostensivamente em local de aglomeração pública.

Com efeito, a ostensividade do material bélico, ainda que por um agente de polícia, p. ex., em um local público e com ausência de uma situação de estrito cumprimento do dever legal, enseja situação de visível perigo à coletividade, já que alguém do povo, não o identificando de plano como policial, poderá reagir e/ou criar pânico entre os presentes.

Por outro lado, preteritamente, uma questão que suscitava caloroso debate era aquela em torno do fato de estar municiada, ou não, a arma de fogo. Discutia-se, pois, se referida conduta subsumir-se-ia, ou não, em tipo penal.

Hodiernamente, pois, a questão já perdeu a sua razão de ser, em decorrência da previsão específica contida nos artigos 12 e 14, quando ali observamos as expressões “acessório ou munição”.

Com efeito, o fato de o agente trazer a arma desmuniciada e desmontada já caracteriza, dessarte, a conduta incriminada.

De modo indubitável, a letra da Lei é clara e não abre margem a qualquer suscitação de dúvida.

Se é incompreensível, dentro de uma sociedade democrática e de direito, uma idéia de civilização sem juízes independentes, que possam conter o uso da força contra o oprimido ou o abuso do poder contra os mais fracos, também incompreensível é que o Estado-juiz desconsidere a faculdade constitucional do Legislador, invadindo a sua seara de atribuições, considerando as letras que desejar e desconsiderando aquelas que vão contra a sua noção de “conveniência e oportunidade”.

Pois é aqui em que nos deparamos com o ponto fulcral da questão em tela: é constitucionalmente válido ao Judiciário transformar a leitura de um texto legal, fazendo emanar dele letras que ali nunca foram inseridas por quem constitucionalmente de direito, ou não visualizando em seu texto vocábulos nele tão perfeitamente estampados, em perfeito e hialino vernáculo?

Tenho que a tarefa do magistrado é a de interpretar e aplicar a legislação, dada pelo Poder Político Constituinte, sempre verificando antes a constitucionalidade do seu texto. Nesse sentido, o artigo 35 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Lei Compl. 35, de 14.03.79 – LOM), diz que é dever do magistrado cumprir e fazer cumprir, com serenidade e exatidão, as disposições legais.

O juiz constrói, pois, um sistema lógico cujo ponto de partida são as leis feitas pelo Legislativo e nisso baseia a sua decisão. Quero dizer: o juiz não pode legislar e deve se submeter às proposições normativas vigentes.

É claro que se o juiz aplicar estritamente o direito, que é extremamente formalista e segue rigorosamente a lei, pode, muitas vezes, causar danos à justiça, ou mesmo agir com injustiça. Por isso, é necessário abrandar o texto legal, através da equidade.

Todavia, essa eqüidade não pode ser utilizada como pressuposto de abuso.

Não impor limites à chamada eqüidade, seria permitir a aniquilação plena das atribuições do Legislativo, Órgão este responsável pela expressão da vontade popular, resumindo-o em um simples formador de esboços de textos legais a serem “complementados” ao bel-prazer dos Juristas que com eles venham a se deparar.

O juiz, aplicador do direito, com a sua competência e investido no órgão Judiciário, tem seu poder de decisão de conflitos limitado pela dogmática jurídica, pois deve aceitar as normas jurídicas, sem as negar ou as contestar. Porém, como o direito só é aplicado depois de interpretado, o juiz tem, por óbvio, certa liberdade ao interpretar as normas. Não obstante, mesmo nesse aspecto, a dogmática limita o poder do magistrado, já que, a interpretação válida é aquela que segue, obviamente, os padrões dogmáticos. Podemos afirmar, ainda, que o juiz tem seu poder um pouco mais “alargado” quando é autorizado a julgar por eqüidade, embora essa possibilidade de poder torne-se pequena quando comparada com o “poder de legislar”, este sim próprio do Legislador.

No tocante à questão em pauta, sobre considerar-se crime, ou mera infração administrativa, o portar arma de fogo desmuniciada, observamos uma tendência do Estado-juiz em não considerar a arma de fogo desmuniciada objeto bastante, para a configuração dos delitos capitulados na Lei nº 10.826/03.

Com efeito, o nosso Pretório Excelso (STF, 1ª Turma, RHC 81057), em tempo recente, suspendeu ação penal por porte ilegal de arma, declarando atípica a conduta, contra decisão do Egrégio STJ.

O cerne do fundamento jurídico de tão estardalhaçante decisum resume-se no argumento de que, tratando-se de arma desmuniciada, esta circunstância lhe retira a potencialidade ofensiva, e, por conseqüência, a tipicidade da conduta, eis que o bem jurídico protegido, a incolumidade física coletiva, somente pode ser ameaçada pela possibilidade de a arma produzir disparos (e não a sua mera capacidade).

Vemos, aqui, um violento choque de visões e, conseqüentemente, interesses, onde quem sai prejudicado, como de ordinário ocorre, é o cidadão de bem, aquele que paga os seus impostos e, do Estado, só implora mais segurança a si e à sua família.

Ora, o Legislador impregnou, na norma, com a mesma força e com a mesma energia com que um fazendeiro marca, indelevelmente, o seu gado com o ferro em brasa, por meio da expressão plural “acessório ou munição”, que o bem jurídico protegido pela norma (incolumidade pública) não exige um perigo concreto, mas sim, patentemente, um perigo abstrato.

Não existe, pois, qualquer gris, tampouco adminículo, na letra da Lei, o qual possa suscitar dúvidas a respeito disso.

E que prerrogativa constitucional, portanto, foi conferida ao Estado-juiz, para desvirtuar, tão flagrantemente, a vontade do Legislador?

Estaríamos em uma situação de paz absoluta em nosso país onde a repreensão veemente ao comércio clandestino de instrumentos bélicos não passaria de um mero capricho, desnecessário e de uma mente exageradamente preocupada?

Por óbvio, p. ex., as ações de portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição (grifei), de uso permitido, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar, fomenta, estampadamente, a criminalidade em nosso meio social, esta já em índices elevadíssimos, como é de todos cediço.

Com o mesmo espírito, aliás, a Lei nº 6.368/76[5], em seu art. 16, já reprimia a “posse” de substâncias entorpecentes. De fato, se o delinqüente estivesse de posse de um simples cigarro de maconha, não haveria em torno disso qualquer espaço, para discussão sobre que perigo concreto referida conduta poderia trazer a terceiros, muito menos se o autor poderia, ou não, dispor de sua própria saúde. O que o Legislador visava com tal repressão era, logicamente, impedir o fomento do tráfico.

Hoje, na mesma linha, atua o art. 28 da Lei nº11.343/2006, apenas retirando-se do preceito secundário do tipo de posse de entorpecentes a pena privativa de liberdade, remanescendo a advertência sobre os efeitos das drogas, a prestação de serviços à comunidade e a medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

Dizer-se, por conseguinte, que a mesma posse, só que de um instrumento bélico, ainda que desmuniciado, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar, não fomenta o índice de criminalidade em nossa sociedade é proferir-se, com as devidas desculpas, um tremendo disparate, algo ilógico e não próprio de quem está comprometido com a promoção de uma necessária contenção desta alarmante criminalidade que atordoa o nosso país.

Claro aos olhos deveria ser, a todos, que o que se busca na tipificação de delitos de perigo abstrato como os capitulados na Lei nº 10.826/03 “é a essencial manutenção da vigência da norma” e, conseqüentemente, da ordem pública.

A tipificação dos crimes de perigo abstrato, efetivamente, representa uma preocupação de cunho prevencionista do direito criminal da nossa sociedade contemporânea, a qual deseja antecipar a punição de certas condutas, com o fim de prevenir perturbações futuras e garantir a segurança, porquanto já fatigada está com as lesões efetivas aos seus bens juridicamente tutelados.

In casu, nada mais lógico do que reprimir, no limiar, uma “ofensa” aos nossos bens jurídicos, a qual, pela lógica, sem a devida repreensão do Estado, tornar-se-ia, futuramente, uma efetiva “lesão” a esses nossos mesmos bens juridicamente tutelados.

Quantas vezes por semana são apresentados nas Delegacias de Polícia de nosso País delinqüentes contumazes, com antecedentes por delitos tais como roubo, os quais foram flagrados portando arma de fogo sem munição em uma esquina escura das nossas ruas, parados ali como se estivessem esperando um transeunte desavisado? Seria lógico o Delegado de Polícia não lavrar prisão em flagrante, porquanto aquela arma de fogo desmuniciada não possuiria o condão de causar ofensa aos bens jurídicos tutelados pelo Estado? Por acaso os sujeitos passivos de roubo costumam interromper a ação dos delinqüentes, a fim de vistoriar as suas armas, com o escopo de constatar se estão, ou não municiadas? Deixo aos leitores a reflexão sobre o tema.

Por outro lado, aproveito-me agora, para colacionar aos interessados um interessante julgado, onde o Estado-juiz, à época, concluíra pela atipicidade da conduta do morador de área bucólica possuidor de arma de fogo que não dispunha de munição ao seu alcance:

PROPRIEDADE RURAL. ARMA DE FOGO. ATIPICIDADE. ABSOLVIÇÃO. EXCLUSÃO.

Lei das Armas. Espingarda de fabricação caseira desmuniciada. Residência em propriedade rural. Inexistência de munição. Disponibilidade do uso não configurado. Atipicidade da conduta pela ausência de afetação ao bem jurídico protegido pela norma incriminadora. O crime imputado ao apelante tem por objetivo tutelar a incolumidade pública. No caso dos autos, o bem jurídico protegido pela norma penal não chegou a sofrer qualquer ofensa em decorrência da ação do acusado, pois embora a perícia tenha constatado o funcionamento normal do mecanismo de disparo, a arma, que é de fabricação caseira e estava em mau estado de conservação, encontrava-se desmuniciada e sequer tinha ele, em casa, a munição apropriada, o que afasta a disponibilidade para o seu imediato uso, elemento indispensável à realização do tipo incriminador. A par disso, o apelante, que é analfabeto, era colono do sítio pertencente ao seu patrão Marcinho Japour, localizado na Fazenda dos Cafés, indicativo de que se trata de propriedade rural, circunstância que autoriza concluir pela ausência de afetação ao objeto da tutela penal. Recurso provido. (TJRJ, 3ª Câm., Apel. 2002.050.05437, Rel. Des. Valmir de Oliveira Silva, unânime, julg. 18/03/2003, reg. 09/06/2003).

No julgado em apreço, vê-se que há um fundamento aparentemente lógico e razoável, exigido pela Constituição Federal em seu art. 93, inciso IX, onde consta que todas as decisões judiciais serão fundamentadas, sob pena de nulidade.

Todavia, o leitor atento pode observar que o ponto que constitui a essência do decisum é aquele em que o julgado cita como elemento da tipicidade a indispensabilidade de que o armamento estivesse disponível para um alegado “uso imediato”.

Ora, se essa necessidade de disponibilidade para um chamado “uso imediato” poderia suscitar alguma dúvida na vigência da Lei nº 9.437/97, agora, com o advento do novo Estatuto legal de 22/12/2003, não cabem quaisquer incertezas a respeito do perigo abstrato, causado pelo fomento à ilicitude, que a arma, mesmo desmuniciada, ou qualquer peça sua (grifo meu), provoca em nosso âmbito social. E esse fomento tornasse conseqüência lógica, em um mundo de criminalidade já caótica como a que vivemos, caso não haja a necessária e preventiva repreensão implacável e de cunho penal do nosso Estado.

Não se deveria, como se fez no julgado supra, cogitar-se, como flagrantemente se fez, sobre a teórica possibilidade daquele pacato morador do campo utilizar o armamento bélico contra um terceiro. O que deveria haver sido notado, mas não foi, é a disponibilidade, que por meio da sua conduta perfez-se, de mais um instrumento bélico posto em nosso meio social, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar (grifo meu novamente).

E, para quem ainda não percebeu, segue um dizer de quem, na condição de Delegado de Polícia, atuante na função repressiva do Estado há mais de uma década, possui experiência prática, para, categoricamente, afirmar: são extremamente comuns os registros de ocorrências policiais, em nosso dia-a-dia, onde pacatos cidadãos, tanto os moradores das nossas áreas campestres como aqueles residentes em nossas áreas urbanas, deixam comunicado o fato de que as suas residências foram alvo de furto ou de roubo, de onde acabaram sendo subtraídos, dentre vários bens economicamente apreciáveis, justamente, armas de fogos (quer com autorização e em acordo com determinação legal ou regulamentar; quer sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar).

A pergunta, relativamente sarcástica, que resta, agora, é a seguinte: para quem irá e para o que servirá a arma de fogo ilicitamente subtraída pelo marginal?

O número de armas de fogo que são subtraídas, no meio urbano e no meio rural, pelos larápios contumazes, é uma verdadeira absurdidade, fato que fomenta, desenfreadamente, a criminalidade já em níveis polpudos em nosso meio social.

Frente a esta problemática, a par das opiniões contrárias daqueles que não confiam o suficiente no Estado-polícia, optou o Legislador em reprimir, com perceptível clareza, a manutenção, pelo cidadão, em desacordo com a Lei ou determinação regulamentar, armamento bélico, estando ele municiado, ou não; estando ele “inteiro”, ou não (lembre-se sempre da expressão legal “acessório ou munição”).

E, por isso, não pode agora o jurista, às vezes descontente com a postura do Legislador, Órgão este que, constitucionalmente, detém a representação da vontade popular, considerar a letra da Lei como “coisa não escrita”.

De acordo com a corrente que se está formando, chegar-se-ia ao disparate de considerarmos, como mera transgressão administrativa, v.g., um carregamento clandestino de centenas ou milhares de armas de fogo, sem qualquer munição próxima a elas.

Questão ferrenha que se mantém, de outra banda, é saber-se se a conduta da pessoa em possuir uma arma de fogo desmuniciada aproximar-se-ia mais de uma transgressão de “natureza” penal ou, então, tão-só, de uma transgressão de “natureza” administrativa. Para os defensores do direito penal mínimo, logicamente, afasta-se ela da natureza criminal, devendo ser tratada administrativamente. Todavia, por força constitucional, é o Legislador, com o mandato concedido pelo eleitor, quem, legitimamente, decide a respeito. E assim ele o fez, com patente clareza, ao editar a Lei nº 10.826/03. Aliás, é-nos cediço que não existe uma diferença de natureza ontológica entre ilícito penal e ilícito civil, pois ambos ferem o nosso ordenamento jurídico. Assim, a única diferença entre o ilícito penal e o ilícito civil é a diferença de cunho meramente formal, ou seja, aquela estabelecida na Lei penal, pelo Legislador. Caso ali, na Lei penal, não esteja tipificada determinada conduta, por certo, pelo princípio da reserva legal, o ilícito é, tão-só, civil. Agora, estabelecida, então, no ordenamento penal, com todas as letras e com toda a clareza possíveis, e em acordo com os princípios constitucionais e infraconstitucionais que nos regem, não estando, ainda, viciada por qualquer contradição ou ilogicidade flagrante, a conduta haver-se-á de ser tida como um ilícito penal, não sendo permitido, ao jurista cujo texto não lhe caiu no seu agrado, promover qualquer inovação.

Por certo, às vezes, o Legislador, na ânsia de “legislar contra a criminalidade”, em defesa do seu eleitorado, comete contradições flagrantes, o que deve, tão-só nessas hipóteses de natureza irrefutável, permitir-se, por parte do Judiciário, vamos dizer, uma lícita correção do dispositivo, tudo com base no bom senso e na eqüidade. Exemplo dessa interferência lícita, poderíamos citar, é o parágrafo único do art. 14 da comentada Lei nº 10.826/03, onde se estabelece que a pessoa cuja conduta subsuma-se no referido tipo, e cujo armamento bélico não esteja em seu nome, terá a sua liberdade, forçosamente, cerceada, porquanto o delito seria, assim sendo, inafiançável. No entanto, quer seja por haver contradição expressa com o art. 21 da mesma lex, onde se estabelece que os crimes previstos nos arts. 16, 17 e 18 são insuscetíveis de liberdade provisória, nada se referindo ao citado parágrafo único do seu art. 14; ou quer, ainda, pela ilogicidade de um delito ser considerado inafiançável, se a sua pena máxima prevista permite o regime inicial de cumprimento como sendo o aberto, tem-se pacífico no nosso meio jurídico a desconsideração do referido texto como a única opção acertada.

Quiçá seja mesmo em decorrência de inúmeras ilogicidades como a acima exposta, o Estado-juiz criou, ao longo do tempo, corpo e coragem, para, ao seu bel-prazer, mesmo quando nenhuma contradição legal reluza aos seus olhos, criar novas normas, considerando ou não considerando, ainda que nos mais hialinos textos legais possíveis, a vontade expressa do Legislador.

Conclusão

Por derradeiro, como, sabiamente, Lord Acton, em carta ao Bispo M. Creighton, no ano de 1887, já declarara, “todo o poder tende a corromper; e o poder absoluto corrompe absolutamente.” Esta afirmação, com efeito, já nos foi provada ao longo da história da nossa humanidade.

O poder tende, insofismavelmente, a fascinar, deixando o desatento cego mesmo ao que está patente à sua frente.

E, literalmente, parece haver ocorrido isso na relação entre o Judiciário e a letra cristalina da Lei nº 10.826/03.

A vontade do Legislador, quando uníssona com os ditames constitucionais, em prol manifesto dos interesses coletivos, deve, sempre, ser tratada com o respeito a que faz jus. Assim, outrora, Montesquieu, pela bem articulada teoriz da Tripartição dos Poderes, já nos deixou claro.

Permitir-se, portanto, que a posse, sem autorização e em desacordo com determinação legal, daquele instrumento criado, precipuamente, para matar, seja, gritantemente de forma contrária à vontade do Legislador, tratada como mera infração de cunho administrativo, é fomentar, por demais, a já estapafúrdia criminalidade vigente, o que, por certo, não condiz com uma atitude lógica de qualquer Órgão, incluindo-se dentre eles o nosso ínclito e celebrado Poder Judiciário, cuja incumbência essencial é a promoção do bem-estar social.

 

Notas:

[1] O aristocrata Charles-Louis de Secondat, senhor de La Bredé e Barão de Montesquieu, nasceu em 18 de Janeiro de 1689 no castelo de La Brède,e perto de Bordéus, na França, e faleceu em 10 de Fevereiro de 1755, em Paris. Político, filósofo e escritor francês, filho de uma família nobre, ficou famoso pela sua teoria da separação dos poderes, atualmente consagrada em muitas das modernas constituições nacionais. Teve formação iluminista com padres oratorianos, de modo que cedo se mostrou um crítico severo e irônico da monarquia absolutista decadente, bem como do clero. Fez sólidos estudos humanísticos e jurídicos, mas também freqüentou em Paris os círculos da boêmia literária. Em 1714 entrou para o tribunal provincial de Bordéus, que presidiu de 1716 a 1726. Fez longas viagens pela Europa e, de 1729 a 1731, esteve na Inglaterra. Famoso como escritor, Montesquieu passou a maior parte da vida em Bordéus, mas sempre voltava a Paris, onde era muito requisitado. Escreveu várias obras, como Cartas persas (1721), Considerações sobre as causas da grandeza dos romanos e de sua decadência (1734) e do Espírito das leis (1748). Ganhou notoridade e exerceu notável influência. Contribuiu também para a Enciclopédia e foi uma das maiores figuras do Iluminismo.
[2] Dalmo de Abreu Dallari. Elementos da Teoria Geral do Estado. Editora Saraiva. Pág. 189.
[3] LEI Nº 10.826, DE 22 DE DEZEMBRO DE 2003. Dispõe sobre registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição, sobre o Sistema Nacional de Armas – Sinarm, define crimes e dá outras providências.
[4] A respeito, vide: PEREIRA, Marcelo Matias. Dos crimes de arma de fogo em espécie. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 319, 22 maio 2004.
[5] Hoje substituída pela Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006 (Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências.). A previsão legal sobre posse está contida no art. 28 desse novel texto legal, sendo ainda não totalmente assente o entendimento dos doutos nacionais sobre se é devido considerar-se crime, ou não, a posse de substâncias estupefacientes, já que o preceito secundário do tipo não comporta, dentre as penas a privação da liberdade (grifo meu).

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Roger Spode Brutti

 

Delegado de Polícia Civil no RS. Doutorando em Direito (UMSA). Mestre em Integração Latino-Americana (UFSM). Especialista em Direito Penal e Processo Penal (ULBRA). Especialista em Direito Constitucional Aplicado (UNIFRA). Especialista em Segurança Pública e Direitos Humanos (FADISMA)

 


 

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