Feita a comparação entre o número de mortes por armas de fogo e o número de mortes por acidentes de trânsito no Distrito Federal, e, também, a correlação entre as respectivas ações do poder público, tanto normativamente quanto de fato, verificou-se a total ineficácia das normas restritivas em relação ao uso de armas de fogo para a diminuição das mortes decorrentes de seu uso.
1. Introdução.
Conforme as estatísticas apresentadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (BRASIL, 2003) a situação da mortalidade por homicídio mostrou-se grave quando considerados os óbitos masculinos de adolescentes e jovens com idade entre 15 a 24 anos. O uso de armas de fogo dentre o total de óbitos por homicídios é bem expressiva, estando presente em 68% dos casos. O presente trabalho verifica os aspectos julgados mais importantes pertinentes ao controle de armas de fogo e relaciona, de um lado, os argumentos daqueles que pugnam pelo uso da arma de fogo como um direito de defesa (já que o Estado não se pode fazer presente em todos os lugares ao mesmo tempo) e, doutro lado, os argumentos daqueles que entendem que a presença da arma de fogo no meio social, por si só, já é um elemento que fomenta a violência. Mediante dados estatísticos do Departamento de Trânsito do Distrito Federal (DETRAN/DF) faz-se uma correlação entre as vítimas fatais de acidentes de trânsito e os homicídios decorrentes do uso de armas de fogo. Ademais, faz-se a análise da legislação restritiva em relação ao uso de armas de fogo e sua implementação e verifica-se a sua total ineficácia em relação ao seu objetivo, que é a diminuição do número de vítimas de homicídios decorrentes.
2. Lei do Sinarm (Criminalização do porte).
A Lei das Contravenções Penais prescreveu o porte de arma de fogo da seguinte forma: “Art. 19. Trazer consigo arma de fogo fora de casa ou dependência desta, sem licença da autoridade: Pena – prisão simples, de 15 dias a 6 meses, ou multa, ou ambos cumulativamente.” (BRASIL,1941). O porte ilegal permaneceu como figura contravencional até a edição da Lei nº 9.437, de 20 de janeiro de 1997, somando-se a esta data o prazo da vacatio legis concedido conforme prescrição do art. 20: “Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, exceto o art. 10, que entra em vigor após o transcurso do prazo de que trata o art. 5º.” (BRASIL, 1997).
A Lei nº 9.437/1997, foi o resultado de aproximadamente 20 projetos de lei que tramitaram no Congresso Nacional desde 1986, quando o Brasil se comprometeu junto à ONU em elaborar normas mais rígidas com o objetivo de inibir delitos com o uso de armas de fogo. Com o advento dessa lei foi criado o Sistema Nacional de Armas – SINARM, que tinha como finalidade estabelecer condições para o registro e o porte de arma de fogo, definia condutas típicas e dava outras providências (PUPIN E PAGLIUCA, 2002, p.6). Como, após a promulgação da Lei nº 9.437/1997, não se viu alcançado aquele objetivo de redução nos crimes perpetrados com armas de fogo, principalmente o número de mortes em decorrência do uso de armas de fogo, começaram a tramitar no Congresso Nacional um sem número de projetos de lei buscando um aperfeiçoamento da norma que veio culminar com a moderníssima Lei nº 10.826/2003, conhecida como Estatuto do Desarmamento.
3. O uso da arma de fogo como instrumento de defesa pessoal.
Tanto na tramitação que precedeu à promulgação da Lei nº 9.437/1997, como na tramitação da recente Lei nº 10.826/2003, foi possível constatar o embate de forças contra e a favor de uma restrição quanto ao uso de armas de fogo como instrumento de defesa pessoal.
Ao se levantar os crimes violentos ou com grave ameaça pessoal, como por exemplo, estupro, roubo, homicídio etc., que tenham sido praticados nos últimos cinco anos é importante que se façam as seguintes perguntas: quantos deles foram cometidos com o uso de arma de fogo comprada regularmente e registrada no órgão policial competente? E quantos foram cometidos com o uso de arma de fogo não registrada na polícia? E mais, quantos foram cometidos com o uso de arma de fogo registrada no órgão competente, mas que tenha sido subtraída de quem a registrou? Se não houver respostas consistentes a essas indagações, a polêmica nacional em torno do destino das armas de fogo legalmente registradas continuará impregnada de passionalidade e desprovida de embasamento técnico (TUMA, 1999).
Com pouco mais de dois anos de vigência da Lei do Sinarm (Lei nº 9.437/1997), presenciava-se um debate estéril, e por vezes até demagógico, enquanto não se implementava qualquer um dos aspectos essenciais daquela Lei, como por exemplo, o recadastramento obrigatório de todas as armas de fogo que já estavam legalmente registradas quando da promulgação da nova Lei. O que se pretendia, então, era a proibição total da fabricação e do comércio de armas de fogo e juntamente com isso a expropriação de todas as armas particulares ainda que registradas. Mas as informações nesses debates não são seguras, pois aparecem, quase sempre, precedidas com as expressões do tipo “acho que”, “consta que”, “tudo indica”, “seguramente” etc. Essa é uma questão relevante, pois está ligada diretamente com direitos fundamentais inscritos na Constituição e tutelados pela legislação penal. Entende-se, dessarte, que os órgãos de segurança pública relacionados no art. 144 da Constituição deveriam dispor de condições efetivas para garantir “aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país” a inviolabilidade de direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, determinada no art. 5º “caput” da Carta Magna. Contudo, o que se vê é que esses órgãos não têm condições de garantir a segurança pública integralmente, de uma forma que torne dispensável a aquisição legal de arma de fogo e respectiva munição por cidadãos de bons antecedentes e capazes, tendo em vista as hipóteses geradas pela exclusão de ilicitude prevista no art. 23 , inciso I e II (estado de necessidade e legítima defesa) do Código Penal (TUMA, 1999).
Há quem veja inconstitucionalidade nas normas restritivas em relação ao uso de armas de fogo por parte dos cidadãos – este é um dos aspectos guerreados nas as ações de inconstitucionalidades que ora tramitam na Corte Suprema – pois a lei que pretende proibir a aquisição e o porte de arma de fogo por qualquer cidadão, excetuando-se, logicamente, aqueles que por dever profissional e por amparo legal devam portar armas, seria flagrantemente contrária ao espírito da Constituição. Isso porque foi o Estatuto Político que preceituou o direito à segurança, dentre aqueles enunciados no “caput” do art. 5º, dispositivo que perfaz a síntese dos direitos e garantias individuais. E no capítulo constitucional que trata da segurança pública, no art. 144, dispõe que a segurança é dever do Estado e responsabilidade de todos, nestas letras: “A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos […]” (BRASIL, 1988) infere-se, portanto, que a propriedade, bem como o porte de arma de fogo, constitui instrumento hábil para a defesa pessoal, já que o Estado está impedido de, por meio de seus agentes públicos, dotados do poder de polícia de segurança, encontrar-se, de forma onipresente, em todas as situações em que se apresente o delito, a ameaça à vida, ao patrimônio e a outros bens jurídicos julgados relevantes pelo legislador. (ANDRADE, 1999).
É bom que se observe o fenômeno também em outras cercanias, nos Estados Unidos, por exemplo, embora a comparação inicial de índices de crime em Estados que apresentam ou não leis sobre armas de fogo de uso discreto seja sugestiva, é obvio que muitos outros fatores devem ser levados em conta. […] A discussão a seguir fornece informações sobre uma ampla área de atividades policiais, mas o foco principal reside na conexão entre a posse particular de uma arma de fogo e o crime. Pergunta-se, então: que leis sobre armas de fogo afetam o crime? O aumento de posse de armas de fogo causa aumento ou redução dos assassinatos? Qual o impacto de leis mais tolerantes com relação à posse de armas em mortes acidentais ou suicídio? Para testar se as mudanças nos índices de crimes são conseqüência das leis de armas de fogo de uso discreto, não seria o bastante observar, simplesmente, se essas leis reduzem os índices de crime, as modificações nos índices de crime devem também estar vinculadas às mudanças no número de concessões de arma de fogo de uso discreto. Há que se lembrar ainda que as leis não são sempre iguais: Estados[1] diferentes adotam exigências diferentes quanto a treinamento e idade para obter uma concessão (LOTT JÚNIOR, 1999). Segundo este autor, inclusive pelo título de sua obra já traduzida para o vernáculo, se houver mais armas na sociedade haverá uma chance de se diminuírem os crimes perpetrados com armas de fogo porque aqueles que pretendem utilizá-las para delinqüir terão sempre em sua mente a possibilidade de uma resposta armada.
Por outro lado, encontram-se posições contrárias. Há quem defenda que há uma alta taxa de homicídios e de criminalidade violenta na América Latina chegando a ser considerada uma das regiões mais violentas do mundo. As causas desse fenômeno são várias e complexas, pode-se destacar entre elas a urbanização desordenada e como corolário o desmantelamento das redes sociais tradicionais, a reinante desigualdade sócio-econômica condenam importantes setores à exclusão social, a disponibilidade de armas de fogo e o alto grau de impunidade, as baixas taxas de resolução de crimes e a pequena capacidade de ressocialização dos presos. A grande maioria das políticas que tenham a intenção de mudar essa situação são difíceis e só produzirão efeitos a longo prazo (CANO e OLIVEIRA, 2002).
Segundo um estudo realizado pelas Nações Unidas em 1998 (United Nation Commission on Crime Prevention and Criminal Justice: United Nations International Study Firearm Regulation. Viena, 1998) (CANO e OLIVEIRA, 2002) do ponto de vista epidemiológico, as armas de fogo são o principal vetor de violência letal e o Brasil é, dentre os países que têm essa informação disponível, o que tem a maior taxa de homicídios cometidos com armas de fogo, isto é, 88%, isso dá uma idéia da gravidade da situação no país. Portanto, apesar de os dados internacionais sofrerem sérios problemas de confiabilidade, mostram que nos países que apresentam uma alta taxa de homicídios, no geral, uma grande maioria deles é cometida por armas de fogo.
O que se verificou no Estado do Rio de Janeiro, por meio de estudo de dados de fontes policiais e da área de saúde é que mais de 70% dos homicídios são cometidos por armas de fogo; e o número de homicídios no Estado tem variado de 5 mil a 8 mil nos últimos anos, constata-se, então, que se está diante de uma epidemia, cujo principal canal são as armas de fogo. Mesmo não sendo elas a causa principal da violência fazem com que esta tenha um efeito letal muito maior. Os homicídios múltiplos ou chacinas com freqüência ocorrem durante incidentes com armas de fogo, os quais dificilmente acontecem quando se trata de outro tipo de arma, ou seja, a letalidade das armas de fogo é muito superior a qualquer outro tipo de arma, como por exemplo, as armas brancas (CANO e OLIVEIRA, 2002).
Quer-se verificar com as opiniões divergentes e os levantamentos dos dados da realidade qual seria a melhor opção em termos de segurança social.
4. A matéria no âmbito internacional.
A Organização dos Estados Americanos (OEA) chegou a dizer em 1997 que a violência está fora de controle na América Latina, em decorrência disso o Presidente da República brasileiro e o Ministro da Justiça iniciaram movimento no sentido de sensibilizar o Congresso Nacional a reformular a legislação criminal, atendendo, inclusive, a recomendação das Nações Unidas. Nos anos de 1995 e 1996, o Brasil participou de alguns eventos internacionais, tais como: o IX Congresso da ONU sobre prevenção do Crime e Tratamento do Delinqüente, realizado no Cairo; o Quinto Período de Sessões da Comissão de Prevenção do Crime e Justiça Criminal, em Viena, em maio/junho de 1995; o Quinto Período de Sessões da Comissão de Prevenção do Crime e Justiça Criminal das Nações Unidas, em Viena, em maio/junho de 1996, onde essa matéria sobre o controle de armas de fogo foi amplamente debatida. Mostrou-se patente a preocupação do Governo brasileiro no sentido de modernizar a legislação penal, adequando-a às aspirações da segurança pública e humanização do sistema criminal, por isso, o Ministério da Justiça, buscando uma reforma “pontual” da legislação criminal, enviou a Mensagem nº 785, de 19 de julho de 1995, encaminhando projeto de lei ao Congresso Nacional o qual tinha como um dos objetivos a produção de uma lei que buscasse a punição dos fatos que comprometessem bens e valores individuais e sociais, sem prejuízo da garantia constitucional de todos os recursos essenciais à plenitude da defesa (JESUS, 1999).
Este foi o momento em que houve a incriminação do porte de arma, a intenção do Poder Público era de reduzir a delinqüência urbana, a chamada “criminalidade de massa”, então, mediante a Lei nº 9.437/1997, de simples contravenção, o porte de arma sem a autorização, ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar passou a ser crime com uma pena de detenção de um a dois anos.
No entanto, entendia Jesus (1999, p. 3) que não se deve iludir com o milagre da Lei solitária, pois ela é o instrumento de que o Estado se utiliza para realizar suas determinações, contudo, sozinha a Lei não alcança o objetivo que se deseja, ou seja, a redução da delinqüência urbana, dos índices de criminalidade. Não adianta ter boas leis, nem boas idéias é necessário se valer de outros fatores para que elas cheguem a ser concretizadas.
A ONU vem propugnando pelas campanhas de sensibilização pública sobre o controle de armas de fogo (Public awareness campaigns on firearms regulations), conforme se verificou no Quinto Período de Sessões da Comissão de Prevenção do Crime e da Justiça Penal, realizado em Viena, em maio de 1996, e no Sexto Período de Sessões, realizado em Viena, em abril/maio de 1998, a ONU voltou a insistir no valor das campanhas de desarmamento e controle do uso de armas de fogo. Vê-se, ainda hoje, que essas campanhas em favor do desarmamento continuam na mídia. Além da atuação da ONU pode-se verificar que há Organizações Não-Governamentais (ONG) que estão envolvidas nessas campanhas.
5. Comparação entre vítimas fatais de acidentes de trânsito e de vítimas de homicídios em decorrência do uso de armas de fogo na vigência da lei nº 9.437/1997.
Foi feito um levantamento estatístico do número de pessoas vitimadas por acidentes de trânsito no Distrito Federal entre os anos de 1995 e 2002 e levantou-se, também, o número de vítimas em decorrência do disparo de armas de fogo no mesmo período. Por ser altíssimo o número de vítimas fatais em decorrência de acidentes com veículos, o Poder Público, tendo analisado as suas causas, procurou tomar algumas medidas buscando mudar este quadro. Dentre as quais podem-se citar: a “Campanha do Cinto de Segurança”, a “Campanha Paz no Trânsito”, o “Controlador Eletrônico de Velocidade”, vulgarmente chamado de “pardal”, o lançamento da “Faixa de Pedestre”. Em 23 de setembro de 1997 foi promulgada a Lei nº 9.503 (Código Brasileiro de Trânsito), que é uma lei de abrangência nacional com incidência também no Distrito Federal. A partir de julho de 2000 o novo “input” foi a “Fiscalização Ostensiva” e um ano depois, em julho de 2001, o Poder Público entrou com o “Radar de Operação Autônoma”, que são os radares móveis. O que se observou foi uma sensível diminuição dos níveis de acidentes de trânsito com vítimas fatais, de 652, em 1995, a 444, em 2002, ou seja, o reflexo das ações do Poder Público foi a diminuição de 31,9% no número de óbitos.
Ao se verificar os números de vítimas de homicídios causados pelo uso de armas de fogo registrados pelo Ministério da Saúde, entre 1994 e 2002, em todo o Brasil, constata-se que os números são expressivos e que requerem providências, não só do Poder Público, mas, da sociedade como um todo, mesmo porque, a única medida efetivamente tomada pelo Poder Público – a promulgação da Lei nº 9.437/1997, não surtiu o efeito desejado, qual seja, reduzir o número de homicídios causados pelo uso de armas de fogo; pelo contrário as estatísticas apenas aumentaram. Procurando-se trazer a questão para o nível de Unidade da Federação, e comparando-se os dados em relação ao número de vítimas fatais em decorrência de acidentes de trânsito no Distrito Federal em 1995 (652) verifica-se que foi 36,6% maior que o número de vítimas de homicídios causados pelo uso de armas de fogo no mesmo ano (477). As estatísticas mostram que os efeitos de fato em relação aos dois fenômenos caminharam em sentidos opostos.
Quais seriam, então, as razões da ineficácia das medidas adotadas pelo Poder Público quando da promulgação da Lei nº 9.437/97? Logicamente, esta não é uma pergunta a que se responde facilmente, mas procura-se fazer algumas considerações, do que foi proposto pelo Governo Federal e do que realmente se efetivou.
Em 17 de junho de 1986, o Presidente da República, na época José Sarney, enviou ao Congresso Nacional a Mensagem nº 261, a qual encaminhou o Projeto de Lei que pretendia instituir o Sistema Nacional de Armas, Munições e Explosivos (SINAE); o resultado desse Projeto foi a Lei nº 9.437/1997, que instituiu o SINARM. Acompanhou, também, a Exposição de Motivos dos Senhores ministros de Estado Secretário-Geral do Conselho de Segurança Nacional e da Justiça. Assim, com o objetivo de atuar sobre as deficiências do sistema de fiscalização do comércio legal e, conseqüentemente, sobre o mercado clandestino de armas e munições, o Anteprojeto de Lei tinha a finalidade de proporcionar:
imediata compatibilização de competência entre os Ministérios da Justiça e do Exército com vistas a uma maior especificidade e, conseqüentemente; a maior eficiência do sistema de fiscalização;
maior controle do mercado interno de armas de fogo;
máxima limitação das fontes do tráfico clandestino de armas;
maior controle do porte e da propriedade das armas;
ativar, efetivamente, o controle computadorizado da posse de armas pela Polícia Federal, de maneira a punir, judicialmente, os responsáveis pela interrupção da cadeia legal da posse de uma determinada arma;
proibir que as armas apreendidas permaneçam nas delegacias policiais, com exceção das que instruem processos, que deverão ser recolhidas, em prazo a determinar, à sede do SFPC[2] mais próximo;
impor critérios mais restritivos para concessão e mesmo para a revalidação do porte de arma;
que o porte de arma, sem licença da autoridade, deixe de ser considerado uma simples contravenção para constituir-se em crime.
Observa-se da leitura atenta desses objetivos que as medidas que se procuravam adotar eram uma reação à pressão que vinha da comunidade internacional e também da mídia interna. Procurou, então, o governo propor medidas capazes de coibir a proliferação de armas em mãos de delinqüentes e de pessoas não autorizadas. Entendia o governo, à época, que a proliferação de armas de fogo nas mãos de pessoas não autorizadas e de delinqüentes era conseqüência das facilidades proporcionadas pela existência de um abominável acesso clandestino à sua posse. A intenção do governo foi no sentido de buscar o aperfeiçoamento do sistema existente, destinado à fiscalização da produção, do transporte, do depósito, do comércio e da posse de armas de fogo, e, ainda, da atuação sobre as deficiências do sistema de fiscalização do comércio legal e, obviamente, sobre o mercado clandestino de armas e munições.
6. O Estatuto do Desarmamento (Lei nº 10.826/2003).
Nos anais do legislativo estão registrados os debates relativos à tramitação dessa matéria. Tanto na tramitação dos projetos de lei que resultaram na Lei nº 9.437/1997, quanto na daqueles que resultaram na novíssima Lei nº 10.826/2003, os argumentos que preponderaram foram sempre no sentido de que a sociedade deveria dar uma resposta normativa, com normas restritivas em relação à posse e ao porte de armas de fogo pelos cidadãos, para que se diminuísse a criminalidade e o número de vítimas de homicídios decorrentes do uso de armas de fogo. As razões que levaram à promulgação da Lei nº 10.826/2003, são as mesmas que levaram à promulgação da Lei anterior, portanto, se não houver providências no sentido de se resolverem os problemas em relação à fiscalização e ao controle será também ineficaz, para aquilo que se propôs, a novel norma.
Observa-se, ainda, que esta nova lei, traz alguns dispositivos que têm sido guerreados por estarem inquinados de inconstitucionalidade por inobservância do princípio da razoabilidade. Este é um dos aspectos aduzidos pela Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3198 ajuizada pela Associação Nacional dos Proprietários e Comerciantes de Armas – ANPCA. Nesta ação manifestou-se o senhor Procurador-Geral da República em parecer enviado ao Supremo Tribunal Federal em 06 de abril de 2004, e opinou pela procedência parcial do pedido para declarar a inconstitucionalidade dos parágrafos únicos dos artigos 14 e 15 do Estatuto do Desarmamento, que proíbem o pagamento de fiança para crimes de porte e disparo de arma de fogo. Considerou o douto Procurador que os dispositivos violam o princípio constitucional da razoabilidade (art. 5º, inciso LIV), por que esses crimes não podem ser equivalentes a terrorismo, prática de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes ou crimes hediondos.
Foram ajuizadas em relação à Lei nº 10.826/2003, não só a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.198, mas algumas outras: 3102, 3112, 3137 e 3263. Dentre os vários aspectos guerreados por essas ações, aduz-se apenas um. Não andou bem o legislador pátrio, no mister de sua atribuição, quando não observou princípios intrínsecos de um Estado Democrático de Direito, dentre os quais o princípio da razoabilidade.
Considerações finais.
Sem a intenção ser repetitivo, mas apenas querendo sintetizar as idéias que foram rapidamente tratadas ao longo do trabalho, elenca-se a seguir algumas das conclusões a que se chegou.
A conduta do porte ilegal de armas de fogo veio ser criminalizada em 1997 com a Lei nº 9.437. Com a nova Lei nº 10.826/2003, a conduta ilegal teve sua pena cominada exasperada.
As opiniões encontradas em relação ao tema se polarizam entre aqueles que entendem o direito de usar a arma de fogo como um legítimo direito de defesa – obrigação negativa para o Estado – tutelado pela Carta Maior, tendo havido uma inobservância desse direito fundamental quando da elaboração da norma, contudo, outros há que entendem que a simples presença da arma de fogo em mãos dos cidadãos já seria um fator de induzimento à criminalidade.
Feita a comparação entre vítimas fatais de acidentes de trânsito e de vítimas de homicídios em decorrência do uso de armas de fogo na vigência da lei nº 9.437/1997, verificou-se que as ações tomadas pelo Poder Público em relação aos acidentes de trânsito foram eficazes, o que não ocorreu com as medidas em relação aos homicídios decorrentes do uso de armas de fogo.
Ao se analisar os dados coletados no período de vigência da Lei nº 9.437/1997 e compará-los com os objetivos da norma, constata-se que os problemas levantados não foram resolvidos; ou por não terem sido normatizados os procedimentos necessários, ou quando o foram, não houve a sua implementação. Daí percebe-se a ineficácia daquela norma restritiva. E se o Poder Público não verificar quais foram os motivos relevantes daquela ineficácia, esta nova lei também o será. Que a sociedade não espere diminuição dos índices alarmantes de mortes em decorrência de disparo de arma de fogo por conta do Estatuto do Desarmamento, nem pela campanha que se vê na mídia.
Ademais, verifica-se a carência de estudos e dados estatísticos sobre as armas de fogo que foram apreendidas por terem sido instrumentos de homicídios e a situação legal dessas armas.
Com certeza, esta foi apenas uma apreciação sucinta sobre armas de fogo, matéria que é pouco estudada no Brasil. Há muito o que percorrer ainda; não só em relação a estudos, mas também em relação as próprias instituições.
Informações Sobre o Autor
Silas Barbosa Nunes
Assessor Jurídico na Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados/Exército Brasileiro.
Especialista em Direito Público pelo Centro Universitário do Distrito Federal – UniDF