Resumo: As eleições são, em sua essência, um processo dinâmico. Do mesmo modo, a interpretação acerca dos tipos penais eleitorais é alterada frequentemente, sobretudo pela alternância da composição dos Tribunais Eleitorais e pela multiplicidade de condutas praticadas na complexa sociedade moderna. Diante desse panorama, e considerando a importância, a gravidade e a repercussão social do crime de corrupção eleitoral – artigo 299 do Código Eleitoral –, busca-se definir seus contornos materiais e processuais a partir da interpretação a ele conferida pelo Tribunal Superior Eleitoral. Assim, haverá subsídios tanto para o profissional do Direito quanto para qualquer interessado no processo eleitoral, seja para evitar a prática da conduta criminosa, seja para fixar balizas para o processamento e julgamento das ações penais respectivas.
Palavras-Chave: Direito Penal Eleitoral – Corrupção Eleitoral – Interpretação – Justiça Eleitoral – Tribunal Superior Eleitoral.
Abstract: Elections are, in essence, a dynamic process. Similarly, concerning the interpretation of the electoral criminal norms is frequently changed, in particular by switching of electoral composition Courts and the plurality of conduits practiced in complex modern society. Against this backdrop, and considering the importance, gravity and the social impact of the electoral corruption crime – Article 299 of the Brazilian Electoral Code – seeks to define its substantive and procedural contours from the interpretation given by the Supreme Electoral Court. So there will be subsidies for both the professional law as to anyone interested in the electoral process, is to avoid the practice of criminal conduct, is to set parameters for processing and judgment of their criminal actions.
Keywords: Electoral Criminal Law – Electoral Corruption – Interpretation – Electoral Justice – Supreme Electoral Court.
Sumário: Introdução. 1. Fundamentos do crime de corrupção eleitoral. 1.1. Fundamentos filosóficos, políticos e sociológicos. 1.2. Legislação pertinente. Evolução. 2. Tipologia do artigo 299 do Código Eleitoral. 2.1. O artigo 299 do Código Eleitoral. 2.1.1. Núcleos do tipo. 2.1.2. Elemento normativo. 2.1.3. Elemento subjetivo do tipo. 2.1.4. Classificação do crime. 2.1.5. Bem jurídico tutelado. 2.1.6. Sujeitos do crime. 2.1.6.1 Sujeito ativo. 2.1.6.2. Sujeito passivo. 2.1.7. Consumação e tentativa. 2.1.8. Corrupção eleitoral impossível. 2.1.9. Concurso de agentes. 2.2. Corrupção eleitoral (artigo 299 do Código Eleitoral) versus captação ilicita de sufrágio (artigo 41-A da Lei 9.504/1997). 3. Questões processuais. 3.1. Questões processuais relevantes. 3.1.1. Gravação ambiental. 3.1.2. Institutos despenalizadores. 3.1.3. Oitiva de corréu como testemunha. 3.1.4. Prisão preventiva. 3.1.5. Rito processual. 4. Casuística. 4.1. O posicionamento do Tribunal Superior Eleitoral ante casos concretos. 4.1.1. Bingo: distribuição de brindes. 4.1.2. Candidatura frustrada. 4.1.3. Compra de apoio político. 4.1.4. Concurso formal imperfeito. 4.1.5. Incomunicabilidade entre as instâncias cível e penal. 4.1.6. Oferta de vales-combustível. 4.1.7. Pedido implícito de votos. 4.1.8. Princípio da insignificância. 4.1.9. Promessas genéricas. Conclusão. Referências.
Introdução
As eleições são, em sua essência, um processo dinâmico. Outrossim, a interpretação acerca dos tipos penais eleitorais sofre constantes alterações, notadamente pela regular alternância da composição dos Tribunais Eleitorais e pela multiplicidade de condutas praticadas na complexa sociedade moderna.
Diante desse panorama, e considerando a importância, a gravidade e a repercussão social do crime de corrupção eleitoral[1] – artigo 299 do Código Eleitoral –, mostra-se imprescindível a definição de seus contornos materiais e processuais, por meio da busca dos pontos de interseção das decisões emanadas do Tribunal Superior Eleitoral sobre o tema, porquanto a ele foi atribuída pela Constituição da República a função de dar a correta interpretação das normas penais-eleitorais infraconstitucionais, sem se olvidar da doutrina.
De outra parte, cumpre destacar que, acerca do crime de corrupção eleitoral, não raro, há interpretações divergentes e até conflitantes no âmbito da Corte Superior Eleitoral. Essa situação, contudo, pode ser revertida a partir da análise dos pontos de convergência entre julgados aparentemente contraditórios, com o estabelecimento de balizas sobre as questões pertinentes ao tema. Com isso, busca-se contribuir para a consolidação da segurança jurídica em matéria penal-eleitoral.
Por outro lado, é justamente a fluidez da interpretação conferida à norma e a dinamicidade própria do Direito Penal Eleitoral que instigam a pesquisa. O desafio, portanto, é identificar e expor as linhas mestras das questões que perpassam a corrupção eleitoral, vulgarmente denominada “compra de votos”.
Sem pretensão de ineditismo ou esgotamento da matéria, dados os limites das possibilidades de um artigo, procurar-se-á discorrer acerca do crime de corrupção eleitoral e investigar a existência de parâmetros minimamente confiáveis para o exame de futuros casos concretos envolvendo o referido ilícito.
Acredita-se que, atingida tal meta, possa-se subsidiar tanto o profissional do Direito quanto qualquer jurisdicionado interessado no processo eleitoral, no sentido de evitar a prática de conduta criminosa, bem como obter parâmetros confiáveis para o processamento das demandas e julgamento daqueles que eventualmente venham a realizá-la.
Para tanto, este trabalho está dividido em quatro grandes partes, quais sejam: fundamentos do crime de corrupção eleitoral, tipologia do artigo 299 do Código Eleitoral, questões processuais e casuística.
Na primeira, serão apresentados, ainda que de maneira breve, os fundamentos filosóficos, políticos e sociológicos do ilícito penal. Ao final do tópico, destacar-se-á a norma de regência.
Na segunda, a estrutura do tipo será examinada pormenorizadamente, ressaltando cada um de seus núcleos, os elementos normativo e subjetivo do tipo, a classificação do crime, o bem jurídico tutelado, os sujeitos ativo e passivo, as questões envolvendo consumação e tentativa, bem como às referentes à caracterização de crime impossível e ao concurso de agentes. Far-se-á, ainda, a distinção entre o crime de corrupção eleitoral (artigo 299 do Código Eleitoral) e o ilícito cível-eleitoral da captação ilícita de sufrágio (artigo 41-A da Lei 9.504/1997).
A terceira parte dará ênfase às questões processuais pertinentes, com destaque à discussão acerca da gravação ambiental, dos institutos despenalizadores, da oitiva de corréu como testemunha, da possibilidade ou não de aplicação da prisão preventiva e do rito a ser observado.
Por fim, a quarta e última parte cuidará da casuística, lançando o posicionamento do Tribunal Superior Eleitoral ante os casos concretos.
1. Fundamentos do crime de corrupção eleitoral
1.1. Fundamentos filosóficos, políticos e sociológicos
Toda eleição deve ser autêntica, isto é, o resultado das urnas deve corresponder à vontade popular, o que confere legitimidade à escolha popular (ROSA, 2011, p. 30). Nesse sentido, o voto não constitui uma mercadoria, “mas uma premiação que deve ser conquistada após justa disputa, pelas ideias e pela história de cada competidor” (NIESS, 1994, p. 128).
No entanto, é cediço que a corrupção em sentido lato tangencia qualquer corpo social. Isso não é diferente no processo eleitoral. E sua expressão mais clara, nessa seara, está consubstanciada justamente no artigo 299 do Código Eleitoral, que criminaliza tanto a corrupção ativa quanto a passiva.
Esse tipo penal, portanto, não foi incluído no ordenamento jurídico pátrio de forma aleatória, pois fundado na ética, nos princípios democráticos e no sentido de corpo que deve permear a sociedade.
Não se pode admitir que aquele que almeja representar o povo, do qual emana todo o poder – conforme o disposto no parágrafo único do artigo 1o da Constituição da República –, lance mão de subterfúgios condenáveis para a consecução de seu intento. Lado outro, causa repulsa à sociedade a conduta daquele que transforma uma conquista histórica, cara a todos, – o voto – em objeto de escambo.
Daí porque não há dificuldade em concluir que a política legislativa nacional, há muito, é pela tipificação da conduta corporificada na comercialização do exercício do direito de sufrágio, aí incluídos o voto e a abstenção.
Nesse contexto, os reflexos da aplicação da norma penal em comento – friso, suas consequências mediatas – podem até mesmo implicar no exercício do papel contramajoritário do Poder Judiciário. De toda sorte, em última análise, estar-se-á a promover o bem comum. A propósito, a doutrina de Marcelo Roseno de Oliveira (2010, p. 102-103), a qual, embora não se refira especificamente à seara penal eleitoral, serve-lhe de substrato:
“Os tribunais eleitorais têm, não raro, reconhecido a carência de higidez da manifestação popular e cassado mandatos, comportamento frequentemente contestado em vista de uma possível ausência de legitimidade democrática para assim proceder.
Nesse contexto, as decisões judiciais são muitas vezes acoimadas de contramajoritárias, por supostamente confrontarem valor tão caro como o da soberania popular, fundante do Estado Democrático de Direito.[…]
É preciso ter presente o fato de que milita em favor do candidato vitorioso a presunção de haver logrado o mandato de forma lícita, sendo de se lhe garantir, em privilégio da soberania popular, o reconhecimento do título que o habilitará ao exercício das funções para as quais foi escolhido. Tal presunção, contudo, pode ser elidida enquanto perdurar a contestação dos expedientes de que mediante decisão judicial, a prática de vício (…) passará a militar em favor da coletividade o interesse de expurgar aquele que violou as regras da disputa.”
Diante dessas abreviadas considerações, infere-se que o crime de corrupção eleitoral possui arrimos filosóficos, políticos e sociológicos.
1.2. Legislação pertinente. Evolução.
Os crimes eleitorais foram progressivamente isolados da legislação penal comum, sem que, com isso, alcançassem autonomia disciplinar. Em verdade, tal especialização exsurge da exigência de uma ordem sistemática, em função de características comuns preponderantes (RIBEIRO, 1998).
Nesse sentido, o Código Penal de 1830 previu o que se pode denominar de “embrião” do crime de corrupção eleitoral. Veja-se:
“Art. 101. Solicitar, usando de promessas de recompensa, ou de ameaças de algum mal, para que as Eleições para Senadores, Deputados, Eleitores, Membros dos Conselhos Geraes, ou das Camaras Municipaes, Juizes de Paz, e quaesquer outros empregados electivos, recaiam, ou deixem de recahir em determinadas pessoas, ou para esse fim comprar ou vender votos.
Penas – de prisão por tres a nove mezes, e de multa correspondente á metade do tempo; bem assim da perda do emprego, se delle se tiver servido para commetter o crime.”
O Código Penal de 1890, por sua vez, não trouxe qualquer modificação expressiva, conforme se lê:
“Art. 166. Solicitar, usando de promessas ou de ameaças, votos para certa e determinada pessoa, ou para esse fim comprar votos, qualquer que seja a eleição a que se proceda:
Penas – de prisão cellular por tres mezes a um anno e de privação dos direitos politicos por dous annos.
Art. 167. Vender o voto:
Penas – de prisão cellular por tres mezes a um anno e de privação dos direitos politicos por dous annos.”
Sobreveio, então, o Decreto nº 21.076, de 24 de fevereiro de 1932 – primeiro Código Eleitoral brasileiro. Embora mais conhecido em virtude da extensão do direito ao voto às mulheres (artigo 2º) (FERREIRA, 1997, p. 12), a norma, esta sim exclusivamente eleitoral, previu que a corrupção eleitoral constituía “delito eleitoral”, passível de prisão. A respeito, veja-se a redação do artigo 107, § 21, do referido diploma legal:
“Art. 107. São delitos eleitorais:(…)
§ 21 Oferecer, prometer, solicitar, exigir ou receber dinheiro, dadiva ou qualquer vantagem, para obter ou dar voto, ou para conseguir abstenção, ou para abster-se de voto: Pena – seis mêses a dois anos de prisão celular.”
A partir daí, foram editadas diversas normas de natureza eleitoral, as quais cuidavam, inclusive, de matéria penal-eleitoral, tais como a Lei nº 48, de 4 de maio de 1935, e o Decreto-Lei nº 7.586, de 28 de maio de 1945. No entanto, não faziam referência expressa ao crime de compra e venda de votos.
O Código Eleitoral de 1950 (Lei nº 1.164, de 24 de julho de 1950), por seu turno, “foi fruto de uma longa maturação” (PORTO, 2000, p. 131). Nada obstante, esse amadurecimento legislativo não implicou alterações relevantes na norma. Confira-se:
“Art. 175. São infrações penais:(…)
20 – Oferecer, prometer, solicitar ou receber dinheiro, dádiva ou qualquer vantagem, para obter ou dar voto e para conseguir ou prometer abstenção:
Pena – detenção de seis meses a dois anos.”
Outras normas eleitorais sucederam-se ao Código de 1950 (v.g. Lei nº 2.550, de 25 de julho de 1955), mas somente com o Código Eleitoral de 1965 (Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965) o tipo penal foi aperfeiçoado, in verbis:
“Art. 299. Dar, oferecer, prometer, solicitar ou receber, para si ou para outrem, dinheiro, dádiva, ou qualquer outra vantagem, para obter ou dar voto e para conseguir ou prometer abstenção, ainda que a oferta não seja aceita:
Pena – reclusão até quatro anos e pagamento de cinco a quinze dias-multa.”
O artigo 299 da Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965, não sofreu qualquer alteração desde então.
Por outro lado, merece registro o fato de haver, no âmbito do Congresso Nacional, diversas propostas de modificação desse artigo, algumas delas inseridas no bojo de reformas mais significativas.
A título de ilustração, mencionam-se duas. A primeiro, o PL nº 839/2007, de autoria do Deputado Gustavo Fruet, “[a]crescenta parágrafo único ao art. 299 do Código Eleitoral (Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965), para tipificar o crime de violação de sigilo de voto por meio de fotografia ou filmagem”.
Já o PL nº 2168/2011, cujo autor é o Deputado Manato,
“[a]crescenta parágrafo ao art. 299 da Lei no 4.737, de 15 de julho de 1965, Código Eleitoral, e ao art. 41-A da Lei 9.504, de 30 de setembro de 1997, Lei das Eleições, responsabilizando pelo ato de compra de voto a pessoa que praticou a conduta ou expressamente autorizou que outrem a praticasse”.
Por fim, insta salientar ser assente na doutrina e na jurisprudência que o Código Eleitoral foi recepcionado pela Constituição de 1988, parte como lei complementar – quando disciplina a organização e a competência da Justiça Eleitoral, a teor do que dispõe o artigo 121, caput, do Texto Constitucional[2] –, parte como lei ordinária – ao, por exemplo, tipificar os crimes eleitorais.
2. Tipologia do artigo 299 do Código Eleitoral
2.1. O artigo 299 do Código Eleitoral
Como visto, a atual redação do artigo 299 do Código Eleitoral é a seguinte:
“Art. 299. Dar, oferecer, prometer, solicitar ou receber, para si ou para outrem, dinheiro, dádiva, ou qualquer outra vantagem, para obter ou dar voto e para conseguir ou prometer abstenção, ainda que a oferta não seja aceita:
Pena – reclusão até quatro anos e pagamento de cinco a quinze dias-multa.”
O tipo penal, pois, será examinado pormenorizadamente.
2.1.1. Núcleos do tipo
Diversas condutas configuram o crime de corrupção eleitoral – delito de ação múltipla, portanto –, conforme se denota por meio da simples leitura do tipo.
“Dar” pressupõe “uma atuação positiva, no sentido de entregar dinheiro, dávida ou qualquer outra vantagem com fins eleitorais” (GOMES, 2008, p. 242).
O núcleo “oferecer”, segundo Delmanto (citado por GOMES, 2008, p. 242), significa “pôr à disposição, apresentar para que seja aceito”.
Já o “prometer” implica a “compreensão de obrigar-se verbalmente ou por escrito a dar, deixar, vedar, fazer ou não fazer alguma coisa ou solver dívida em dinheiro; induzir esperanças ou probabilidades” (FILHO, 2012, p. 251).
Há, ainda, o vocábulo “solicitar”, o qual tem o sentido de “pedir, requerer, demandar, postular” (GOMES, 2015, p. 54).
Por fim, “receber” implica “auferir, obter, granjear, embolsar, entrar na posse ou detenção de uma coisa” (GOMES, 2015, p. 54).
As três primeiras condutas, “dar”, “oferecer” e “prometer” estão relacionadas à corrupção eleitoral ativa, na qual o agente busca o eleitor com o objetivo de obtenção do voto ou sua abstenção, ainda que a oferta não seja aceita.
As demais (“solicitar” e “receber”) referem-se à corrupção eleitoral passiva, que se perfaz no momento em que o eleitor – ao menos para a doutrina majoritária, como se verá no tópico 2.1.6.1 – pede ou aceita qualquer vantagem em troca do possível voto ou abstenção.
2.1.2. Elemento normativo
O elemento normativo do crime de corrupção eleitoral traduz-se no excerto “para si ou para outrem, dinheiro, dádiva, ou qualquer outra vantagem”, visto que imprescindível uma interpretação valorativa sobre a situação de fato por parte do destinatário da lei eleitoral penal.
Pela pertinência e riqueza textual, cito José Jairo Gomes (2015, p. 54-55):
“Dinheiro é por excelência instrumento de troca. Como tal deve-se entender moeda corrente ou papel-moeda, cédulas ou moedas empregadas como meio de pagamento. O dispositivo legal não impõe que o dinheiro seja o de circulação oficial no Brasil, donde se conclui que a conduta pode ter por objeto moedas estrangeiras, em curso, como dólar americano, euro etc. Nessa categoria, porém, não entram moedas sem valor corrente, mas meramente histórico ou comemorativo.
A seu turno, o termo dádiva é comumente empregado com o sentido de donativo, presente, recompensa ou gratificação. Trata-se de objeto de doação. Tecnicamente, doação é o contrato unilateral e gratuito em que há transferência de “bens ou vantagens” de um patrimôonio a outro (CC, art. 538). Os bens ou as vantagens transmitidas devem ter natureza econômica, incrementando o património do donatário. Assim, seu objeto pode ser qualquer coisa ou bem in commercio, e, pois, que tenha favor econômico e possa ser alienada. Conforme salienta Pereira (2009, p. 212), podem ser doados bens ‘imóveis, móveis corpóreos, móveis incorpóreos, universalidades, direitos patrimoniais não acessórios’. Assim, também pode ser objeto de dádiva direito de crédito, remissão de dívida (CC, art. 385). Por outro lado, a dávida pode referir-se a bens presentes e futuros. Como exemplo destes últimos, pense-se em coisas que ainda serão adquiridas, frutos pendentes que serão colhidos no tempo adequado, animal ainda prenhe.
Já a elementar típica qualquer outra vantagem constitui cláusula aberta, debaixo da qual podem ser compreendidos qualquer benefício, proveito, ganho, lucro, privilégio, direito, utilidade ou serventia. Sozinha, essa cláusula torna desnecessárias as duas outras que a precedem. Como a regra legal não especifica, não é mister que a vantagem tenha caráter patrimonial; pode, pois, ser de ordem pessoal, moral, religiosa ou política. Nesse sentido, imagine-se o eleitor que, para votar em certa candidata, lhe solicita que com ele pratique ‘conjunção carnal’ ou ‘outro ato libidinoso’ (CP, art. 213). Assim, nessa categoria também entram bens sem valor econômico corrente, mas meramente histórico ou comemorativo, tais como moedas antigas e selos, objetos de valor sentimental.
O dinheiro, a dádiva ou a vantagem dada, oferecida, prometida, solicitada ou recebida pode ser para si ou para outrem, ou seja: para o próprio corrompido ou para terceira pessoa. Exemplos: i) candidato dá dinheiro a eleitor para obter o seu voto; o corrompido recebe o dinheiro para si próprio; ii) para conseguir o voto de determinado eleitor, candidato promete entregar telhas ao seu genitor, custear tratamento médico de seu tio ou contratar sua irmã para trabalhar na Administração Pública, caso seja eleito; aqui a vantagem é prometida a terceiro.”
Como se verá no Capítulo 4 deste trabalho, existem infindáveis vantagens que se enquadram nas elementares típicas.
2.1.3. Elemento subjetivo do tipo
O elemento subjetivo do tipo (ou do injusto; ou, ainda, o “dolo específico” como é tratado até os dias atuais em muitos precedentes do Tribunal Superior Eleitoral) corresponde à vontade de corromper “para obter ou dar voto e para conseguir ou prometer abstenção, ainda que a oferta não seja aceita”.
Em sua ausência, a conduta será atípica.
A respeito, há dezenas de julgados da Corte Superior Eleitoral, dentre os quais, destaca-se o seguinte:
“RECURSO EM HABEAS CORPUS. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. CRIME. ARTIGO 299 DO CE. CORRUPÇÃO ELEITORAL. DISTRIBUIÇÃO DE COMBUSTÍVEL A ELEITORES. REALIZAÇÃO DE PASSEATA. ALEGAÇÃO. AUSÊNCIA. DOLO ESPECÍFICO. ATIPICIDADE DA CONDUTA. PROVIMENTO.
1. Esta Corte tem entendido que, para a configuração do crime descrito no art. 299 do CE, é necessário o dolo específico que exige o tipo penal, qual seja, a finalidade de “obter ou dar voto” e “conseguir ou prometer abstenção”. Precedentes.
2. No caso, a peça inaugural não descreve que a distribuição de combustível a eleitores teria ocorrido em troca de votos. Ausente o elemento subjetivo do tipo, o trancamento da ação penal é medida que se impõe ante a atipicidade da conduta.
3. Recurso parcialmente provido e, nesta extensão, concedida a ordem para trancar a ação penal ante a atipicidade da conduta.”[3]
Frise-se que este entendimento está consolidado há muitos anos. Menciono, verbi gratia, o HC nº 224, em cujo julgamento, ainda na década de 1990, o Tribunal Superior Eleitoral concedeu a ordem aos pacientes – dentre eles, um advogado e um médico, candidatos ao exercício de mandato eletivo em um pequeno município do interior do país – que ofereceram carona e medicamento a dois eleitores na véspera da eleição.
Ocorre que não havia qualquer indício de que as condutas em questão foram praticadas para obter-lhes voto ou sua abstenção. Aliás, esses eleitores eram empregados e pacientes clínicos do candidato.
Assim, diante da ausência de demonstração do elemento subjetivo do tipo, o inquérito policial foi trancado[4].
Só é típica, portanto, a conduta dolosa. Não há previsão de modalidade culposa.
2.1.4. Classificação do crime
Antes de examinar a classificação do crime previsto no artigo 299 do Código Eleitoral, convém tecer breves considerações acerca da classificação dos delitos eleitorais como gênero.
Em linhas gerais, crimes eleitorais são todos aqueles tipificados pelo Código Eleitoral ou por legislação extravagante que descrevem condutas violadoras às normas que regem o processo eleitoral.
Quanto a sua natureza jurídica, a doutrina, há tempos, sem consenso, debruça-se sobre a questão.
Alguns estudiosos entendem que os crimes eleitorais “compõem subdivisão dos crimes políticos” (RIBEIRO, 1998, p. 620), porquanto sua objetividade jurídica remonta às instituições políticas do Estado, notadamente porque as condutas delituosas enquadradas como tais afrontam a liberdade do direito de sufrágio e a legitmidade do pleito (GOMES, 2008, p. 53). Ofendem, portanto, o interesse político do Estado ou do cidadão (HUNGRIA, 1968, p. 129).
Outros, no entanto, consideram-nos crimes comuns de natureza especial, uma vez que se restringem a tutelar bens jurídicos no âmbito eleitoral e partidário; não atingem diretamente a organização política do Estado, mas o processo eleitoral (RAMAYANA, 2010, p. 711). Aquele que comete um crime eleitoral não se volta à radical transformação da sociedade (GOMES, 2015, p. 9). Essa posicionamento doutrinário vingou tanto no âmbito do Supremo Tribunal Federal[5], quanto no Tribunal Superior Eleitoral[6].
Há, também, um terceiro entendimento, pelo qual os crimes eleitorais podem ou não ser políticos, na medida em que atentem ou não contra a existência do Estado Democrático de Direito. Assim, os crimes eleitorais puros – entendidos como aqueles cujos bens protegidos o são apenas na legislação eleitoral – são políticos e, como tais, não geram reincidência e impedem a extradição. Já os eleitorais acidentais – que são aqueles também previstos na legislação penal comum – seriam comuns de natureza especial (PONTE, 2008, p. 40-42).
Feito esse arrazoado, tem-se que o crime previsto no artigo 299 do Código Eleitoral pode ser classificado, de acordo com a doutrina e jurisprudência majoritárias, como:
a) de ação múltipla: pode ser realizado com a prática de diferentes ações (GOMES, 2015, p. 54);
b) de forma livre: pode ser praticado por diversos meios: falas, gestos, etc (GOMES, 2015, p. 54);
c) comissivo: exige a realização de uma conduta por parte do agente;
d) comum (na corrupção eleitoral ativa): pode ser praticado por qualquer pessoa[7]; ou próprio (na corrupção eleitoral passiva): o sujeito ativo é apenas o eleitor (STOCO, 2014, p. 594);
e) formal: o resultado naturalístico é desnecessário para sua consumação[8];
f) principal: possui existência autônoma; independe da prática de crime anterior;
g) unissubsistente: a conduta não pode ser fracionada; portanto, uma vez realizada, acarreta automaticamente a consumação (FILHO, 2012, p. 254).
2.1.5. Bem jurídico tutelado
Há farta doutrina acerca do bem jurídico tutelado pela norma penal em comento. E, nada obstante a existência de variações terminológicas, pode-se antecipar que, essencialmente, o objetivo da norma corresponde à proteção da liberdade do exercício do voto, o que engloba a possibilidade de abstenção. Fala-se, ainda, na lisura do processo eleitoral, notadamente quanto à objetividade jurídica da corrupção eleitoral passiva.
Para uns, o artigo 299 do Código Eleitoral “visa resguardar a liberdade do sufrágio, a emissão do voto legítimo” (GOMES, 2008, p. 242) ou “o livre exercício do voto” (CÂNDIDO, 2006, p. 180). Já outros afirmam que o tipo penal tutela “[n]as variedades ativa e passiva, a garantia da livre opção de voto, em sua pureza e lisura” (FILHO, 2012, p. 250). Merece destaque, ainda, o entendimento segundo o qual “é a liberdade do eleitor de escolher livremente, de acordo com sua consciência e seus próprios critérios e interesses, o destinatário de seu voto” (GOMES, 2015, p. 53).
De forma mais abrangente, sem ater-se exclusivamente à corrupção eleitoral, Antonio Carlos da Ponte (2008, p. 42-43) preleciona:
“A análise do bem jurídico-penal dos crimes eleitorais, do modo como estão dispostos na nossa legislação, sem qualquer concepção crítica acerca do modelo de Estado adotado, conduz à conclusão de que os mesmos são supraindividuais, na medida em que são formados por interesses jurídico-sociais coletivos, atinentes a toda sociedade, com reflexos individuais.
Ao punir os crimes eleitorais, o legislador busca salvaguardar, fundamentalmente, a liberdade do voto, que diz respeito a todas as pessoas que agregam o tecido social, e ao mesmo tempo, o voto livre de cada um dos eleitores. Objetiva também assegurar a lisura do processo eleitoral e alguns fundamentos da República, como a cidadania, na sua forma mais ampla; a dignidade da pessoa humana, princípio maior de nossa Carta Constitucional; e o pluralismo político.
Em síntese, na expressão de Beatriz Romero Flores, objetiva o legislador salvaguardar bens jurídicos de nova geração, integrados por objetos difusos, sem referente individual, ou seja, bens jurídicos coletivos puros, cujos direitos e interesses não recaem sobre uma única pessoa, mas sobre toda a coletividade.”
O Tribunal Superior Eleitoral, aparentemente encampando os trabalhos teóricos consagrados, esposou, em mais de uma oportunidade, o entendimento segundo o qual o bem jurídico tutelado pelo artigo 299 do Código Eleitoral é, de fato, “o livre exercício do voto ou da abstenção”[9].
Portanto, como adiantado, salvo diferenças de nomenclatura não significativas, há pouca controvérsia sobre o bem jurídico tutelado pela norma penal eleitoral estudada.
2.1.6. Sujeitos do crime
Este tópico destina-se a indicar quais são os sujeitos ativo e passivo do crime, tanto na modalidade ativa (“dar, oferecer, prometer”), quanto na passiva (“solicitar ou receber”).
2.1.6.1. Sujeito ativo
Na corrupção eleitoral ativa, o sujeito ativo poderá ser qualquer pessoa que realizar o núcleo do tipo, porquanto se trata de crime comum. Não há exigência de qualquer condição especial do agente, tal como a de candidato ou eleitor (STOCO, 2014, p. 594; GOMES, 2008, p. 243; CÂNDIDO, 2006, p. 180; COÊLHO, 2012, p. 493), conforme entendimento consolidado no âmbito do Tribunal Superior Eleitoral[10]. A propósito, transcrevo elucidativo excerto da doutrina de José Domingues Filho (2012, p. 252).:
“Sujeito ativo do crime de corrupção eleitoral ativa pode ser qualquer pessoa, porquanto o tipo não exige qualidade nem condição especial do agente. Para sua configuração é suficiente o vínculo entre a dação, oferta ou promessa com a finalidade de ‘conseguir voto ou abstenção’, para si ou para outrem, independente de efetivação de resultado.
Deveras. Nos verbos de corrupção eleitoral ativa (dar, oferecer, prometer) o crime é comum. Qualquer humano pode cometê-lo, não exigindo o tipo que candidato propriamente dê, ofereça ou prometa contraprestação para eleitor votar ou abster-se. Logo, terceira pessoa (extraneus) pode cometer o delito, seja ela cabo eleitoral, simpatizante, eleitor de outro estado, estrangeiro ou conscrito. Enfim, a norma incriminadora antevê alguém, sem espeficidade, como agente da corrupção eleitoral ativa.”
Por outro lado, para boa parte da doutrina, será sujeito ativo da corrupção eleitoral passiva será exclusivamente o eleitor. Neste caso, cuida-se de crime próprio (FILHO, 2012, p. 252; STOCO, 2014, p. 294). De todo modo, admite coautoria ou participação de outros eleitores ou mesmo de pessoas que não ostentem essa condição, a teor do que dispõe o artigo 30 do Código Penal (PONTE, 2008, p. 106).
Contudo, José Jairo Gomes (2015, p. 53-54) diverge. Para o jurista,
“(…) essa interpretação é equivocada. Na modalidade passiva, a solicitação ou o recebimento de vantagem também pode ser ‘para conseguir ou prometer abstenção’, conforme registrado no próprio tipo legal. Uma pessoa cujos direitos políticos estejam suspensos, portanto um não eleitor, pode solicitar ou receber vantagem ou benefício (para si, para outrem, para si e para outrem) para obter voto de terceiro ou para conseguir abstenção de outrem. Isso, alias, aconteceu incontáveis vezes – e ainda hoje ocorre –, bastando pensar em situações em que alguém recebe vantagem não só para apoiar determinada candidatura, como também para obter o apoio de seus familiares.”
A despeito do posicionamento acima transcrito, e embora não se tenha encontrado algum precedente do Tribunal Superior Eleitoral que discorresse especificamente acerca do sujeito ativo da corrupção eleitoral passiva, a Corte Eleitoral tende a concluir que somente o eleitor o será.
Tal inferência decorre da jurisprudência majoritária no sentido de que a conduta cujo destinatário seja não eleitor traduz-se em crime impossível, como se verá no tópico 2.1.8 deste trabalho.
2.1.6.2. Sujeito passivo
O sujeito passivo do crime de corrupção eleitoral é o Estado (CÂNDIDO, 2006, p. 180; STOCO, 2014, p. 594; COÊLHO, 2012, p. 493) e/ou a sociedade (PONTE, 2008, p. 104-105), e também, secundariamente, o eleitor que refuga a oferta (FILHO, 2012, p. 252; GOMES, 2015, p. 54; RAMAYANA, 2010, p. 738). A doutrina, portanto, não indica divergência importante neste tópico.
Conquanto tenha-se investigado, não foi encontrado um precedente específico do Tribunal Superior Eleitoral que tratasse acerca do tema.
2.1.7. Consumação e tentativa
Como mencionado no item 2.1.4, o crime de corrupção eleitoral é formal, ou seja, o resultado naturalístico (entenda-se: a aceitação da vantagem ou a atribuição do voto ou, ainda, a efetiva abstenção) é desnecessário para sua consumação. Ademais, é unissubsistente; a conduta se aperfeiçoa mediante um único ato de execução, suficiente para produzir a consumação.
Disso, embora haja vozes isoladas na doutrina que aceitem a possibilidade em todas (CÂNDIDO, 2006, p. 186) ou em algumas hipóteses (“dar” e “receber”) (STOCO, 2014, p. 595), conclui-se que não existe na modalidade tentada. A propósito, cito José Domingues Filho (2012, p. 254):
“(…) a infração se perfaz em um único ato e tanto, evidentemente, não autoriza fracionamento da fase executiva iter criminis. O agente pratica ou não a vedada maneira de se comportar. Exemplo: A simples policitação caracteriza oferta; e conhecendo seu destino o eleitor a recebe ou enjeita a oblação. Portanto, comete-se ou não se comete o crime. Inexiste meio termo.”
De todo modo, o Tribunal Superior Eleitoral já se manifestou no sentido de que não se admite a corrupção eleitoral na modalidade tentada.[11]
2.1.8. Corrupção eleitoral impossível
Uma das outras tantas questões acerca do crime de corrupção eleitoral diz respeito à possibilidade de sua ocorrência em face do oferecimento de vantagens ao não eleitor. Como visto, prevalece na doutrina tratar-se de crime formal; portanto, bastaria a realização de um dos núcleos do tipo para sua consumação, sendo a obtenção do voto ou a abstenção, mero exaurimento do crime. Por todos, cite-se Nelson Hungria (1968, p. 135).
Contudo, na hipótese de o destinatário da ação ser/estar desprovido da capacidade eleitoral ativa, há questões de relevo que merecem destaque. Tal situação ocorre quando determinada pessoa oferece vantagem em troca de voto a outrem que não possua direitos políticos (v.g. o estrangeiro não naturalizado), ou tenho-os suspensos (v.g. o condenado por sentença criminal transitada em julgado), ou ainda seja eleitor – notadamente em pleitos municipais – em domicílio eleitoral diverso do corruptor.
Em circunstâncias como as descritas, Antonio Carlos da Ponte (2008, p. 104) defende tratar-se de crime impossível (artigo 17 do Código Penal), como corolário da absoluta impropriedade do objeto. Textualmente, “não se pode captar irregularmente o voto de quem não ostenta a condição de eleitor”. Ainda, segundo o jurista, a necessidade de o destinatário da ação ser eleitor, portanto, constituir-se-ia condição objetiva de punibilidade. No mesmo sentido, Joel J. Cândido (2006, p. 184):
“É verdade que o fato de o eleitor não ir votar não elide o crime, até porque a busca pela abstenção (que é́, exatamente, não ir votar) é uma das modalidades criminosas. Tampouco afasta o crime o fato de ele não cumprir o combinado com o corruptor, indo votar tendo prometido abstenção, ou votando em outrem diverso do candidato que lhe deu a vantagem e com o qual comprometera. Porém, não é menos verdade que a abstenção, o oferecimento ou a promessa de vantagem a quem não pode votar tal como quer o corruptor não caracteriza crime. É o caso, por exemplo, nas eleições municipais, do eleitor que vota em Zona Eleitoral diversa da do candidato corruptor. Ou, ainda que ambos da mesma Zona Eleitoral, quando o eleitor estiver impossibilitado de exercer o jus sufragii, de que é exemplo certo a suspensão de seus direitos políticos. Haverá, no caso, aqui como alhures, impropriedade absoluta do objeto (CP, art. 17).”
Afirma José Domingues Filho (2012, p. 256-257), por sua vez, que “corrupção eleitoral sem envolvimento de eleitor na sujeição de corrompido ou de corruptor traduz comportamento inofensivo ao bem/interesse jurídico especificamente tutelado pela norma penal”. E complementa: “tão somente haverá propriedade do objeto quando o agente viabilizar risco de venal interferência na vontade do votante ou orientando seu voto”.
Tal tese foi acolhida pelo Tribunal Superior Eleitoral, que decidiu ser exigido, “para a configuração do ilícito penal, que o corruptor eleitoral passivo seja pessoa apta a votar”.[12] No caso, a pessoa que seria agraciada com benesses em troca do voto estava, à época dos fatos e do pleito, com seus direitos políticos suspensos em decorrência de condenação criminal transitada em julgado.
Posteriormente, o Tribunal revisitou a questão e confirmou a tese ao proclamar que
“Configuraria impropriedade absoluta do objeto se a oferta de pagamento de multas eleitorais tivesse ocorrido após o fechamento do cadastro eleitoral para as eleições de 2008, pois, nesse momento, não mais seria possível regularizar e transferir o título eleitoral e, consequentemente, ofender o bem jurídico tutelado pelo art. 299 do Código Eleitoral: o livre exercício do voto ou da abstenção.”[13]
No mencionado julgamento, o Tribunal afastou a tese da defesa relacionada ao crime impossível apenas para aquele caso específico, ao argumento de que, no momento em que o corruptor efetuara o pagamento de multas eleitorais do eleitor em troca do voto, o eleitor ainda poderia alterar seu domicílio eleitoral para o do corruptor, porquanto realizado antes do fechamento do cadastro eleitoral. Assim, tendo em vista ser o crime instantâneo, não haveria falar em absoluta propriedade do objeto, a despeito de o eleitor não ter realizado a tempo a aludida transferência. Daí a ressalva transcrita alhures.
Em arremate, extrai-se da respectiva ementa:
“Exige-se [para a configuração do crime do art. 299 do Código Eleitoral] (i) que a promessa ou a oferta seja feita a um eleitor determinado ou determinável; (ii) que o eleitor esteja regular ou que seja possível a regularização no momento da consumação do crime; (iii) que o eleitor vote no domicílio eleitoral do candidato indicado pelo corruptor ativo.”[14]
Merece destaque, contudo, julgado no qual o mesmo Tribunal Superior Eleitoral, de modo diametralmente oposto às decisões citadas, baseando-se no fato de o crime do artigo 299 do Código Eleitoral ser formal – logo, indiferente ao resultado naturalístico – consignou expressamente ser “irrelevante a capacidade eleitoral ativa (aptidão para votar) do destinatário da ação”[15]. Nessa decisão, os fatos que ensejaram o debate cingiam-se à realização de bingos com distribuição de prêmios atrelados a pedido de votos a eleitores.
Não obstante os respeitáveis fundamentos desse julgado, a desconsideração da aptidão para votar do eleitor corrompível/corrompido como condição objetiva de punibilidade merece alguma reflexão. O fato de o crime do artigo 299 do Código Eleitoral ser formal, de consumação instantânea, não implica, de modo direto e imediato, que há não hipótese de corrupção eleitoral impossível. Com efeito, ainda que determinado crime seja formal, deve-se perquirir acerca da eficácia absoluta do meio e da absoluta propriedade do objeto – artigo 17 do Código Penal.
Há, ainda, entendimento segundo o qual a situação estudada, na verdade, importaria erro sobre a pessoa. Este é o posicionamento do ex-Ministro Marcelo Ribeiro de Oliveira (2012, p. 504), que assim escreve:
“O Tribunal Superior Eleitoral estatui que o ato de corrupção há que ser eficaz, refutando, como se viu, tal ocorrência quando a vítima não se encontra com sua capacidade eleitoral ativa. Sustentou-se a ocorrência de situação de atipicidade. Sem embargo de uma maior reflexão e de um eventual reposicionamento quanto ao tema, haja vista a finalidade específica da conduta em obter voto, levanta-se a dúvida se a situação em tela não estaria contemplada no § 3o do art. 20 do Código Penal, por se tratar de erro quanto à pessoa da vítima. Nesses casos, a norma penal estatui que, na hipótese de erro quanto à pessoa contra a qual o crime é praticado, não há isenção de pena, deixando de ser consideradas as condições ou qualidades da vítima e adotando-se as condições da pessoa contra quem o agente queria praticar o crime. Em outras palavras, o corruptor pretendendo promover o crime contra um eleitor estaria a cometê-lo ao praticá-lo, em erro, contra alguém que esteja com seus direitos suspensos.”
De todo modo, prevalece, na doutrina e na jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral, o entendimento de que, ante a impropriedade absoluta do objeto (oferta destinada a não eleitor), está-se diante de crime impossível. Há, contudo, decisão em sentido contrário, já citada, bem como doutrina que aponta para outro norte, como visto.
2.1.9. Concurso de agentes
O concurso de agentes em se tratando do crime de corrupção eleitoral é amplamente aceito pela doutrina e penal jurisprudência. Destaque-se, ademais, que a ocorrência dessa figura é bastante comum.
Por óbvio, os requisitos legais do concurso de pessoas devem estar presentes. Não basta, para fins penais, que o candidato tenha se beneficiado do ato ilícito praticado por outrem. Nesta seara, a punição exige prévia comprovação de sua concorrência para o crime, seja como autor, coautor ou mesmo partícipe.
Assim, para a configuração do concurso de pessoas, devem ser observados os requisitos dos artigos 29 a 31 do Código Penal, quais sejam (MASSON, 2013, p. 516):
1) pluralidade de agentes culpáveis;
2) relevância causal das condutas para a produção do resultado;
3) vínculo subjetivo;
4) unidade de infração penal para todos os agentes;
5) existência de fato punível.
Sobre o tema, dois precedentes da Corte Superior Eleitoral:
“CORRUPÇÃO ELEITORAL (CE, ART. 299). INSTITUTO MANTIDO COM O FIM DE CONCEDER BENESSES EM TROCA DE VOTOS. CONCURSO DE AGENTES. PRISÃO EM FLAGRANTE DE SUBORDINADOS DO CANDIDATO ENCARREGADOS DA ENTREGA DAS VANTAGENS INDEVIDAS AOS ELEITORES. CANDIDATO FUNDADOR E EFETIVO RESPONSÁVEL PELO INSTITUTO, EMPREGADOR DOS EXECUTORES MATERIAIS DO DELITO E ÚNICO BENEFICIÁRIO DOS ATOS ILÍCITOS. CARACTERIZAÇÃO DA AGRAVANTE DO ARTIGO 62, III, DO CÓDIGO PENAL.
1. Reconhecida no acórdão recorrido a comprovação de que o candidato a vereador era o efetivo responsável por instituto voltado à concessão de vantagens a “associados” (eleitores) em troca de votos, era empregador dos executores materiais do delito de corrupção eleitoral e se constituiu no único beneficiário pelas práticas ilícitas, incide a agravante prevista no artigo 62, III, do Código Penal.
2. Recurso especial provido.”[16]
“HABEAS CORPUS. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. AFASTADA. FATOS APURADOS EM INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL E AÇÃO DE IMPUGNAÇÃO DE MANDATO ELETIVO. JULGAMENTO. IMPROCEDÊNCIA POR FALTA DE PROVAS. INCOMUNICABILIDADE ENTRE AS INSTÂNCIAS. DENEGAÇÃO DA ORDEM.
I – Os fatos narrados na denúncia levam, em tese, a indicativos do crime de corrupção eleitoral em concurso de agentes (artigo 299 do CE c.c. o artigo 29 do CP), o que não permite afirmar, de pronto, a falta de justa causa.
II – A sentença declaratória de improcedência, por insuficiência de provas, proferida na ação de investigação judicial eleitoral e impugnação de mandato eletivo, não alcança a ação penal baseada nos mesmos fatos, em decorrência do princípio da incomunicabilidade entre as instâncias civil e penal.
III – Denegação da ordem.”[17]
2.2. Corrupção eleitoral (artigo 299 do Código Eleitoral) versus captação ilícita de sufrágio (artigo 41-A da Lei no 9.504/1997)
Corrupção eleitoral e captação ilícita de sufrágio constituem normas distintas.
Enquanto a primeira está prevista no Capítulo II (Crimes eleitorais) do Título IV (Disposições penais) do Código Eleitoral – norma de caráter penal-eleitoral, evidentemente; a segunda está inserida na Lei nº 9.504/1997, a qual estabelece normas para as eleições – regra de cunho cível-eleitoral, portanto. Ei-las:
Estabelecida esta primeira diferença, já se constata que, embora ambas visem coibir a popularmente chamada “compra de votos”, seus requisitos, procedimentos e consequências não são os mesmos.
Como visto no tópico 2.1.5, o bem jurídico tutelado pelo artigo 299 do Código Eleitoral é, para a maioria da doutrina, a liberdade para o exercício do voto, o que coincide com o bem jurídico tutelado pelo artigo 41-A da Lei nº 9.504/1997 (GOMES, 2012, p. 520). O Tribunal Superior Eleitoral, inclusive, já se manifestou no sentido de que norma tutela a “soberania da vontade popular”[18] ou, ainda, a “vontade do eleitor”[19].
Desse modo, uma única “compra de votos” pode ser sancionada tanto na seara cível-eleitoral quanto na penal, desde que satisfeitos os requisitos legais. Ressalte-se que essa “dupla responsabilização” não é nova no Direito brasileiro, haja vista que uma mesma conduta ilícita pode ser sancionada nas esferas cível, penal e administrativa, sem que haja configuração de bis in idem, como no caso do funcionário público que se apropria de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio (artigo 312 do Código Penal).
Há outra semelhança entre as normas, a saber, a desnecessidade de pedido explícito de voto para sua configuração.
Quanto à corrupção eleitoral, a questão será analisada de modo mais verticalizado no item 4.1.7 deste trabalho. Em relação à captação ilícita de sufrágio, a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral é remansosa no sentido de ser absolutamente desnecessário o pedido explícito de voto. A respeito, confira-se:
“Recurso. Especial. Captação ilícita de sufrágio. Art. 41-A, da Lei nº 9.504/97. Prescindibilidade de pedido expresso de votos. Precedentes. Agravo regimental improvido. ‘Para a caracterização da conduta ilícita é desnecessário o pedido explícito de votos, basta a anuência do candidato e a evidência do especial fim de agir.’”[20]
No se refere ao instrumento processual cabível, a corrupção eleitoral, como cediço, é crime de ação penal pública incondicionada, a teor do que dispõe o artigo 355 do Código Eleitoral. Já a captação ilícita de sufrágio é aferida por meio da ação de investigação judicial eleitoral – AIJE, nos termos da Lei Complementar no 64/1990.
Relativamente ao rito processual, o crime previsto no artigo 299 do Código Eleitoral segue o disposto no artigo 357 e seguintes do mesmo Código, além de observar os artigos 394 e subsequentes do Código de Processo Penal, como será estudado no tópico 3.1.5. Já o procedimento da captação ilícita de sufrágio está previsto no artigo 22 da Lei Complementar no 64/1990.
Enquanto que a corrupção eleitoral dá ensejo à pena de reclusão de um a quatro anos e pagamento de cinco a quinze dias-multa (artigo 299 c.c. artigo 284 do Código Eleitoral), a captação ilícita de sufrágio implica as sanções de cassação do registro ou diploma, além de multa.
Como ação penal de iniciativa pública, cabe apenas ao Ministério Público Eleitoral propô-la quando houver a prática de corrupção eleitoral. Por seu turno, a investigação acerca da captação ilícita de sufrágio tem como legitimados ativos partido político, coligação, candidato ou Ministério Público Eleitoral (artigo 22, caput da Lei Complementar no 64/1990.
Podem ser réus na ação criminal qualquer pessoa física (na corrupção eleitoral ativa) ou o eleitor (na corrupção eleitoral passiva), conforme observado no tópico 4.6.1. Na investigação da captação ilícita de sufrágio, em tese, qualquer pessoa física ou jurídica pode figurar no polo passivo da demanda, na medida em que
“o artigo 41-A prevê a multa como sanção autônoma, cuja aplicação independe de o requerido ser candidato. Quanto à pessoa jurídica, não é difícil imaginar a situação em que partido político, por seu diretório, participe da ação ilícita levada a efeito pelo candidato.” (GOMES, 2012, p. 524).
Por fim, mister pontuar que, em ambos os casos, a desistência da ação não é admitida. A ação penal pública incondicionada, por sua própria natureza. A ação de investigação judicial eleitoral fundada na captação ilícita de sufrágio, por sua vez, ainda que proposta por partido político, coligação ou candidato, porque os fatos nela veiculados revestem-se de relevante interesse público, devendo o Ministério Público Eleitoral assumir a titularidade da ação conforme entendimento sufragado nos seguintes julgados:
“AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. REPRESENTAÇÃO ART. 41-A DA LEI 9.504/97. DESISTÊNCIA TÁCITA. AUTOR. TITULARIDADE. AÇÃO. MINISTÉRIO PÚBLICO ELEITORAL. POSSIBILIDADE. INTERESSE PÚBLICO. PRECLUSÃO. AUSÊNCIA.
1. No tocante à suposta omissão do acórdão regional, o agravante não impugnou especificamente os fundamentos da decisão que negou seguimento a seu recurso especial. Incidência, in casu, da Súmula nº 182 do e. STJ: ‘É inviável o agravo do art. 545 do CPC que deixa de atacar especificamente os fundamentos da decisão agravada’.
2. O Ministério Público Eleitoral, por incumbir-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127 da Constituição Federal), possui legitimidade para assumir a titularidade da representação fundada no art. 41-A da Lei nº 9.504/97 no caso de abandono da causa pelo autor.
3. O Parquet assume a titularidade da representação para garantir que o interesse público na apuração de irregularidades no processo eleitoral não fique submetido a eventual colusão ou ajuste entre os litigantes. Assim, a manifestação da parte representada torna-se irrelevante diante da prevalência do interesse público sobre o interesse particular.
4. Não assiste razão ao agravante quanto ao alegado dissídio jurisprudencial, uma vez que não há similitude fática entre o acórdão recorrido e o acórdão paradigma.
5. Não houve preclusão quanto à possibilidade de emendar a petição inicial para a composição do polo ativo da demanda, uma vez que a necessidade de citação dos suplentes de senador para compor a lide surgiu apenas no curso do processo, a partir do julgamento do RCED nº 703 pelo e. TSE, em 21.2.2008. Ademais, o Ministério Público Eleitoral requereu a citação dos suplentes na primeira oportunidade em que se manifestou nos autos após o abandono da causa pela autora originária.
6. O Ministério Público Eleitoral, ao assumir a titularidade da ação, pode providenciar a correta qualificação das testemunhas a fim de que compareçam à audiência de instrução, mesmo porque isso não consubstancia, de fato, um aditamento à inicial.
7. Agravo regimental desprovido.”[21]
“Representação. Art. 41-A da Lei nº 9.504/97. Candidato a vereador não-eleito. Sentença. Procedência. Recurso eleitoral. Pedido. Desistência. Tribunal Regional Eleitoral. Impossibilidade. Matéria de ordem pública. Peculiaridades. Processo eleitoral. Interesse público. Quociente eleitoral. Alteração. Interesse. Intervenção. Partido e candidato. Assistentes litisconsorciais. Recurso especial. Terceiro interessado. Art. 499 do Código de Processo Civil.
1. A decisão regional que indefere o pedido de desistência formulado naquela instância e que modifica a sentença para julgar improcedente representação, provocando a alteração do quociente eleitoral e da composição de Câmara Municipal, resulta em evidente prejuízo jurídico direto a candidato que perde a vaga a que fazia jus, constituindo-se terceiro prejudicado, nos termos do art. 499 do Código de Processo Civil.
2. A atual jurisprudência desta Corte Superior tem se posicionado no sentido de não ser admissível desistência de recurso que versa sobre matéria de ordem pública. Precedentes.
3. Manifestado o inconformismo do candidato representado no que se refere à decisão de primeira instância, que o condenou por captação ilícita de sufrágio, não se pode aceitar que, no Tribunal Regional Eleitoral, venha ele pretender a desistência desse recurso, em face do interesse público existente na demanda e do nítido interesse de sua agremiação quanto ao julgamento do apelo, em que eventual provimento poderia resultar na alteração do quociente eleitoral e favorecer candidato da mesma legenda.
4. O bem maior a ser tutelado pela Justiça Eleitoral é a vontade popular, e não a de um único cidadão. Não pode a eleição para vereador ser decidida em função de uma questão processual, não sendo tal circunstância condizente com o autêntico regime democrático.
5. O partido do representado e o candidato que poderá ser favorecido com o provimento do recurso eleitoral apresentam-se como titulares de uma relação jurídica dependente daquela deduzida em juízo e que será afinal dirimida com a decisão judicial ora proferida, o que justifica a condição deles como assistentes litisconsorciais.
6. A hipótese versa sobre pleito regido pelo sistema de representação proporcional, em que o voto em determinado concorrente implica sempre o voto em determinada legenda partidária, estando evidenciado, na espécie, o interesse jurídico na decisão oriundo do referido feito.
Recurso especial conhecido, mas improvido.”[22]
Para melhor compreensão da matéria, confira-se quadro comparativo entre os principais aspectos materiais e processuais das normas, de acordo com o arrazoado acima:
Vê-se, portanto, que embora haja semelhanças, os artigos 299 do Código Eleitoral e 41-A da Lei no 9.504/1997 não se confundem.
3. Questões processuais
3.1. Questões processuais relevantes
Da mesma forma que o crime de corrupção eleitoral em si suscita debates que demandam o exame verticalizado da matéria, há questões processuais a ele relativas que são de suma importância.
Outrossim, a fluidez da interpretação conferida à norma e a dinamicidade própria do Direito Penal Eleitoral são replicadas também no campo processual.
Por essas razões, dedica-se parte deste trabalho à análise de algumas das questões processuais mais relevantes que orbitam em torno do crime de corrupção eleitoral.
3.1.1. Gravação ambiental
O tema em epígrafe constitui uma das questões processuais de maior expressividade no âmbito do processo penal eleitoral quando se cuida da corrupção eleitoral.
Corruptores e corrompidos procuram, ao máximo, não deixar rastros de suas condutas. Muitas vezes, no entanto, a gravação ambiental – entendida como a captação de sons ou imagens realizada por um dos interlocutores, sem o conhecimento dos demais – consubstancia-se no único meio de prova do crime do artigo 299 do Código Eleitoral.
A respeito da matéria, o Tribunal Superior Eleitoral costuma posicionar-se de maneira pendular, ora tendendo à licitude, ora rechaçando-a.
Em julgado relativamente recente, o Tribunal consignou a licitude da prova, remetendo-se, inclusive, ao entendimento do Supremo Tribunal Federal assentado após o reconhecimento da repercussão geral da matéria. Trata-se do HC no 309-90, cuja ementa se segue:
“HABEAS CORPUS. AÇÃO PENAL. RECEBIMENTO DE DENÚNCIA. PREFEITO. CORRUPÇÃO ELEITORAL. ART. 299 DO CÓDIGO ELEITORAL. ESCUTA CLANDESTINA. GRAVAÇÃO. INTERLOCUTOR. LICITUDE. PRECEDENTES DO STF. CASO DOS AUTOS. FRAGILIDADE DA PROVA. ORDEM CONCEDIDA.
1. O Supremo Tribunal Federal, após recenhecer repercussão geral sobre a matéria, assentou a licitude da gravação ambiental realizada por um dos interlocutores para utilização em processo penal (RE 583.937, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ de 18.12.2009), entendimento que deve orientar a jurisprudência desta Corte Superior.
2. A licitude ou a ilicitude da prova, conforme assentado na doutrina e na jurisprudência, liga-se ao modo de sua obtenção, com desrespeito aos direitos fundamentais de privacidade e intimidade, e não a qualquer outra razão, como a motivação egoística, com fins eleitorais.
3. No caso dos autos, a gravação que embasou a denúncia é ilícita, assemelhando-se ao flagrante preparado. É incontroverso que o seu autor é historicamente apoiador dos adversários políticos do paciente e induziu todo o diálogo visando obter do seu interlocutor alguma declaração sobre o suposto oferecimento de bem ou vantagem em troca de votos, circunstância que comprometeu a necessária espontaneidade do diálogo travado.
4. Ordem concedida para trancar a ação penal.”[23]
Merece destaque, ainda, o excerto do voto condutor do acórdão:
“Aprofundando a reflexão sobre o tema, passo a adotar a orientação do Supremo Tribunal Federal, que é essencialmente diversa da existente nesta Corte Superior. A propósito, confira-se, por todos, precedente da Suprema Corte:(…)
Alinho-me a esse entendimento por diversas razões.
Em primeiro lugar, porque realmente parece inexistir motivo para conferir mesmo tratamento à gravação clandestina (feita por um dos interlocutores ou por um dos presentes no ambiente monitorado e à interceptação clandestina (feita por terceira pessoa, não presente na conversa tampouco no ambiente monitorado). São situações bem distintas – sob a ótica da privacidade e da intimidade – que reclamam tratamento diverso.
Ademais, caso se entenda que a gravação por um dos interlocutores é ilícita, por afronta à privacidade, o depoimento sobre um diálogo também não poderia ser admitido como prova em juízo. E essa conclusão não me parece razoável, pois, se um dos interlocutores pode narrar em juízo uma conversa que teve e isso certamente é meio de prova (testemunhal), por que não poderia retratá-la (melhor e mais fielmente, inclusive) por meio da apresentação dessa conversa registrada em meio magnético? O registro é uma apenas forma de se demonstrar os fatos com a fidedignidade que muitas vezes escapa ao testemunho, bem como é maneira de o interlocutor poder provar o que alega em relação ao conteúdo do colóquio.
Idêntica conclusão foi assentada na RG-QO-RE 583.937, ReI. Min. Cezar Peluso, DJe de 17.12.2009 (…).
Também não vejo diferença – entre apresentar uma gravação e relatar uma conversa – que justifique tão forte proteção a uma suposta privacidade quando a própria pessoa a expõe de forma livre, consciente e espontânea.
Em terceiro lugar, não se pode confundir, sob o aspecto da utilização desse tipo de prova no processo eleitoral, licitude com valoração, por se tratar de institutos com implicações bem diversas.
É que, a rigor, a problemática da eventual indiscriminada produção de provas deste tipo (gravações clandestinas em sentido lato: telefônica e ambiental) não se relaciona à licitude ou à ilicitude da espécie probatória, salvo quando realmente se verificar que também obtidas com violação de direitos fundamentais (mas aí o fundamento da invalidade é este e não o fato de ser gravação).
Em outras palavras: não é porque no processo eleitoral há intensa disputa e eventual instigação a situações incriminadoras que se reputará ilícita a prova eventualmente colhida nessas circunstâncias.
A produção de prova, ainda que mediante a demonstração de ‘paixões condenáveis’ (termo utilizado na inicial do writ à folha 5), não a caracteriza, de plano, como ilícita, pois a característica de licitude ou de ilicitude da prova, conforme assentado na doutrina e na jurisprudê̂ncia, liga-se ao modo de sua obtenção, especificamente com desrespeito aos direitos fundamentais de liberdade, em especial privacidade e intimidade e não a qualquer outra razão, como motivação egoística, fins eleitorais, falta de ética, etc.
O fato de nas disputas eleitorais ser comum entre os adversários a busca por provas que comprometam a outra candidatura parece ter atraído ao Tribunal Superior Eleitoral, com a devida vênia dos que concordam com a tese, uma indevida consequência jurídica – a de se proclamar ilícita toda gravação clandestina (ambiental ou telefônica).
O mais correto, a meu sentir, não é excluir, a priori, sempre, a gravação ambiental e a telefô̂nica, e sim valorar este tipo de prova com muito cuidado.
Ou seja, se a prova tiver sido obtida por adversários políticos, com provocação ou induzimento de modo a se retirar da conversa o que se quer obter de declaração da outra parte, por exemplo, é claro que ela será muito frágil e poderá ser declarada imprestável, no caso concreto, diante do livre convencimento do magistrado.
Por outro lado, ao se declarar ilícita toda e qualquer gravação clandestina abrir-se-á espaço, por exemplo, a que gravações feitas por cidadãos interessados tão somente na lisura do pleito e do processo eleitoral (e que poderiam contribuir para tanto) sejam eliminadas como provas (com o consequente descarte das provas delas decorrentes). Isso acarreta duas consequências nefastas.
A primeira é o engessamento do sistema probatório processual, o que acabou ocorrendo, com a devida vênia dos que pensam de forma diversa, por argumentos equivocados quanto à natureza jurídica da ilicitude da prova.
A segunda é a impunidade que a adoção da premissa (de que toda e qualquer gravação clandestina seria ilícita) acaba acarretando. Isso porque, na espécie, não se está apenas a observar o sistema de garantias constitucionais aos investigados, mas sim indo-se além na seara eleitoral ao se assentar que nenhuma gravação telefô̂nica feita por um dos interlocutores (ou ambiental, por uma pessoa presente) pode ser usada como prova se não tiver sido previamente autorizada judicialmente.
Por fim, estar-se-á́, ainda que implicitamente, desautorizando o Supremo Tribunal Federal como Corte Constitucional. É que, pensando no sistema jurídico vigente, não vejo espaço – mesmo no â̂mbito do Tribunal Superior Eleitoral – para contrariar a posição da Suprema Corte sobre matéria constitucional, principalmente em sede de extensão de direitos fundamentais e suas restrições.
Ora, se ao Supremo é atribuída a guarda da Constituição, não pode outro Tribunal, mesmo superior, seja de que forma for (implícita ou explicitamente), dar exegese diversa aos parâmetros dos direitos fundamentais e das garantias individuais por ele definidos, mormente quando haja posição expressa e pacificada sobre o assunto naquela Corte.
Como consequência dessa linha de pensar, a prova colhida por um dos presentes ou interlocutores, consistente em gravação ambiental ou telefô̂nica, não deve ser declarada ilícita, mas valorada com parcimônia diante do conjunto probatório.
Nesse raciocínio, o peso que esta prova adquirirá – pelas especiais circunstâncias que envolvem o processo eleitoral – é questão a ser sempre aferida no caso concreto. Sendo certa ou muito provável a sua fragilidade, pelos ânimos e meios dirigidos à sua produção, deve ser avaliada com cuidado pelo julgador e preferencialmente acompanhada de outras provas.
Em conclusão, não se exclui a possibilidade de se declarar ilícita gravação clandestina em processo eleitoral. Diante das circunstâncias do caso concreto, pode-se reconhecer a contaminação dessa prova pela forma de sua obtenção: com violação às garantias de liberdade e privacidade.
Em sendo verificada qualquer hipótese de obtenção de prova em desacordo com as garantias constitucionais aos direitos fundamentais (v.g.: infiltração de agentes não autorizada judicialmente, flagrante preparado pela polícia, etc.), deve-se sem dúvida declarar sua imprestabilidade e a das dela decorrentes. Mas isso decorrerá, repita-se, de afronta a direitos e garantias individuais e não do fato de nas disputas eleitorais ‘poder haver’ estratagema ou premeditação na produção dessas provas.
Desse modo, revelo meu anterior posicionamento e reconheç̧o, quanto aos processos penal eleitoral e cível eleitoral, a licitude das gravações ambientais realizadas sem autorização judicial e sem o conhecimento de um dos interlocutores, desde que sem violação às garantias de liberdade e privacidade, motivo pelo qual rejeito a alegação dos impetrantes acerca da matéria.”
Por outro lado, é fato que a orientação contrária predominou ao menos de meados de 2012 até pouco tempo atrás. Por todos, cito o seguinte precedente:
“CAPTAÇÃO ILÍCITA DE SUFRÁGIO – PROVA ILÍCITA – GRAVAÇÃO AMBIENTAL. AUSÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. CONTAMINAÇÃO DA PROVA DERIVADA. EFEITOS DA NULIDADE. INICIAL. INDEFERIMENTO. RECURSO PROVIDO.
1. No âmbito da Justiça Eleitoral, o poder de polícia pertence exclusivamente ao Juiz Eleitoral. Razões históricas que remontam a própria edição do Código Eleitoral de 1932 bem demonstram a razão de assim ser.
2. São nulas as atividades exercidas pelos agentes da Polícia Federal que deveriam ter comunicado à autoridade judiciária, ou ao menos ao Ministério Público Eleitoral, desde a primeira notícia, ainda que sob a forma de suspeita, do cometimento de ilícitos eleitorais, para que as providências investigatórias – sob o comando do juiz eleitoral – pudessem ser adotadas, se necessárias.
3. O inquérito policial eleitoral somente será instaurado mediante requisição do Ministério Público ou da Justiça Eleitoral, salvo a hipótese de prisão em flagrante, quando o inquérito será instaurado independentemente de requisição (Res.-TSE nº 23.222, de 2010, art. 8º).
4. A licitude da interceptação ou gravação ambiental depende de prévia autorização judicial. Ilicitude das provas obtidas reconhecida.
5. Inicial e peça de ingresso de litisconsorte ativo que fazem referência apenas às provas obtidas de forma ilícita. Não sendo aproveitáveis quaisquer referências aos eventos apurados de forma irregular, as peças inaugurais se tornam inábeis ao início da ação, sendo o caso de indeferimento (LC 64, art. 22, I, c).
6. Considerar como nula a prova obtida por gravação não autorizada e permitir que os agentes que a realizaram deponham sobre o seu conteúdo seria, nas palavras de José Carlos Barbosa Moreira, permitir que "a prova ilícita, expulsa pela porta, voltaria a entrar pela janela".
7. Preliminar de ilicitude da prova acolhida, por maioria. Prejudicadas as demais questões. Recurso provido para julgar a representação improcedente.”[24]
É de ressaltar, ainda, que o Tribunal Superior Eleitoral vem, inclusive, analisando os casos a ele submetidos de forma cada vez mais casuística, no sentido diferenciar situações nas quais a gravação ocorre em ambientes públicos, sem violação à intimidade ou à privacidade – lícita, portanto – e outras consubstanciadas em encontros privados, restritos – ilícitas, pois.
Apesar da jurisprudência oscilatória do Tribunal Superior Eleitoral, há de se fazer o registro a recente fato notório e de enorme repercussão em que o Pretório Excelso respaldou-se também em uma gravação ambiental para determinar a prisão – em caráter precário, bem verdade – de um então Senador da República[25], o que indica um caminho a ser tomado pela Justiça Eleitoral.
Em tempo, merece destaque julgado realizado no ano de 2016 pelo Tribunal Superior Eleitoral, por meio do qual, com apertada maioria, concluiu que, ainda que a gravação tenha sido considerada ilícita em relação àquele que a desconhecia, ela pode ser considerada lícita em relação aos eleitores que a registraram e receberam dinheiro em troca de voto.
Os fundamentos utilizados pelos julgadores foram os de que não seria permitido aos eleitores aproveitar-se da ilicitude a que deram causa. Além disso, não teria havido, em relação a eles, violação à privacidade e à intimidade, na medida em que eles próprios procederam à diligência[26].
3.1.2. Institutos despenalizadores
Nada obstante alguma celeuma doutrinária havida imediatamente após a edição da Lei no 9.099/1995, as atuais doutrina (GOMES, 2008, p. 94-102) e jurisprudência são majoritariamente no sentido de que a suspensão condicional do processo – artigo 89 da aludida lei – aplica-se ao processo penal eleitoral, notadamente no caso do crime de corrupção eleitoral.
Do Tribunal Superior Eleitoral, destacam-se os seguintes acórdãos:
“RECURSO EM HABEAS CORPUS. CORRUPÇÃO ELEITORAL. ART. 299 DO CÓDIGO ELEITORAL. SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. DESCABIMENTO. DESCUMPRIMENTO DE UMA DAS CONDIÇÕES IMPOSTAS. PRORROGAÇÃO DO BENEFÍCIO. DESPROVIMENTO DO RECURSO.
HABEAS CORPUS. CONCESSÃO DA ORDEM. PROPOSTA DE SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO. MINISTÉRIO PÚBLICO.
1. Tendo o Parquet permanecido silente, até o momento, concede-se a ordem para que o órgão ministerial se manifeste sobre o sursis processual a que se refere o art. 89 da Lei nº 9.099/95”.[27]
“HABEAS CORPUS. CRIME ELEITORAL. ART. 299 DO CÓDIGO ELEITORAL. INCLUSÃO EM PAUTA DE JULGAMENTO DA AÇÃO PENAL CONTRA O PACIENTE. AUSÊNCIA DE NOTIFICAÇÃO NOS TERMOS DO ART. 4º DA LEI N. 8.038/90. ORDEM CONCEDIDA.
1. Ao concluir pela inclusão em pauta de julgamento da ação penal oferecida contra o Paciente, o Tribunal Regional Eleitoral do Ceará não observou a sua necessária notificação prévia para que oferecesse resposta à denúncia, nos termos estabelecidos no art. 4º da Lei n. 8.038/90, nem a proposta de suspensão condicional do processo penal, formalizada pelo Ministério Público. Constrangimento ilegal configurado.
2. Ordem concedida.”[28]
“Habeas Corpus – Crime – Art. 299 do Código Eleitoral – Suspensão condicional do processo – Art. 89 da Lei nº 9.099/95 – Proposta não formulada pelo Ministério Público perante o juiz eleitoral – Manifestação da Procuradoria Regional em grau de recurso – Providência adotada pela Corte Regional – Impossibilidade – Concessão da ordem.[29]
Contudo, não se pode olvidar do posicionamento, por ora minoritário, de Antonio Carlos da Ponte (2008, p. 112-113) acerca da impossibilidade da suspensão condicional do processo no caso de corrupção eleitoral ativa:
“A doutrina e a jurisprudência, em matéria eleitoral, não divergem no sentido de que em tese é possível a suspensão condicional do processo (sursis processual) nos crimes de corrupção eleitoral ativa e passiva, previstos no artigo 299 do Código Eleitoral, tomando-se por base a pena mínima cominada aos autores de tais infrações, que não supera um ano.
Não se discute o posicionamento em relação à corrupção eleitoral passiva, dadas as peculiaridades que envolvem tal infração e as particularidades da ação de seus supostos autores, que por vezes trocam o único resquício que lhes resta de cidadania – o voto – por um prato de comida, (…). Porém, o mesmo não pode ser afirmado em relação à corrupção eleitoral ativa.
A análise descontextualizada do crime de corrupção eleitoral ativa, que comina aos seus autores uma pena privativa de liberdade mínima de um ano, e a disposição contida no artigo 89 da Lei no 9.099/95 levam, num primeiro momento, à conclusão singela de que a apontada infração penal é passível da suspensão condicional do processo. Todavia, a avaliação do ordenamento jurídico-penal e do papel destinado aos mandados de criminalização conduzem à conclusão bem distinta.
O combate à corrupção eleitoral ativa é necessidade decorrente de um mandado implícito de criminalização contido na Constituição Federal, posto que referido delito corrói os alicerces de um Estado Democrático de Direito e os próprios fundamentos da República enunciados nos incisos I, II, III e V do artigo 1o da Constituição Federal. Logo, o interesse público exige que seus autores tenham a conduta que lhes é atribuída apreciada efetivamente por parte do Poder Judiciário, dada a relevância da imputação, que não impede a adoção de medidas no campo administrativo-eleitoral, que podem resultar na perda do registro da candidatura ou até mesmo na desconstituição do ato de diplomação. Ademais, não teria sentido alguma o suposto autor de tal crime, que também caracteriza infração administrativa na esfera eleitoral, ser julgado pela via administrativa e, concomitantemente, ser beneficiado com a suspensão de seu processo criminal.
O interesse público, a lisura do processo eleitoral e a soberania do voto não podem se curvar a uma interpretação simplista que condena o Estado, atenta contra os alicerces democráticos e beneficia exclusivamente o suposto criminoso.
As consequências reservadas no campo administrativo-eleitoral ao responsável por suposta corrupção eleitoral ativa e os fundamentos alinhavados anteriormente impedem a formalização da proposta de suspensão condicional do processo por parte do titular da ação penal.”
Quanto à transação penal – artigo 76 da Lei no 9.099/1995 – embora haja divergência doutrinária acerca da aplicabilidade no processo penal eleitoral, é certo que ela não é admitida para o crime de corrupção eleitoral.
Como a sanção máxima do delito é de 4 anos, ele não pode ser considerado como de menor potencial ofensivo. Por conseguinte, incabível a transação penal na espécie (Lei no 9.099/1995, artigo 61 c/c artigo 76 (FILHO, 2012, p. 255).
Por fim, apesar da realização de buscas no sítio eletrônico do Tribunal Superior Eleitoral, não foi encontrado precedente específico sobre transação penal em casos de corrupção eleitoral, até, provavelmente, pela singeleza da questão.
3.1.3. Oitiva de corréu como testemunha
Ao contrário do que possa parecer à primeira vista, o crime de corrupção eleitoral não é bilateral, porquanto a existência de um crime de corrpução eleitoral passiva não importa, tampouco pressupõe, obrigatoriamente, a ocorrência da corrupção ativa (STOCO, 2014, p. 594).
No entanto, a realidade demonstra ser comum, até certo ponto, a existência concomitante das duas figuras típicas. É o caso, por exemplo, de cabo eleitoral que ofereça passagens aéreas a alguns eleitores para que se comprometam a votar em determinado candidato. Aceita a oferta, há a ocorrência tanto da corrupção eleitoral ativa (por parte do cabo eleitoral), quanto da passiva (pelos eleitores).
Diante disso, aventa-se a possibilidade de um dos eleitores corrompidos ser indicado como testemunha do cabo eleitoral, apesar de corréu.
Contudo, o Tribunal Superior Eleitoral, com esteio na jurisprudência também do Supremo Tribunal Federal, rechaça essa possibilidade, porquanto “o sistema processual brasileiro não admite a oitiva de corréu na qualidade de testemunha”[30], nem mesmo na qualidade de informante, na medida em que essa testemunha sequer tem o dever de falar a verdade ou prestar compromisso, nos termos do artigo 203 do Código de Processo Penal. Sua participação no processo, portanto, como testemunha ou informante, fica comprometida em razão de sua parcialidade.
Ademais, como ressaltado no julgamento do REspe nº 1-98,
“o fato de o Ministério Público partir para a observâ̂ncia da divisibilidade da ação penal pública não transmuda coautor em testemunha. Entendimento diverso implica contrariar a ordem natural das coisas, agasalhar estratégia não o compreendida pelo sistema”[31].
3.1.4. Prisão preventiva
Até o advento da Lei no 12.403/2011, que alterou o Código de Processo Penal, a prisão preventiva era, em tese, cabível no crime de corrupção eleitoral, desde que preenchidos os requisitos legais.
É o que se depreende, contrario sensu, do seguinte posicionamento do Tribunal Superio Eleitoral:
“HABEAS CORPUS. CRIME ART. 299 DO CÓDIGO ELEITORAL. PRISÃO PREVENTIVA. FUNDAMENTAÇÃO ABSTRATA. ART. 312 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. ORDEM CONCEDIDA.
1. A prisão imposta antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória exige concreta fundamentação, nos termos do art. 312 do Código de Processo Penal.
2. Não tendo sido demonstradas pelo magistrado as circunstâncias objetivas que justificariam a manutenção da custódia preventiva, deve ser deferido o pedido de liberdade provisória dos pacientes.
3. Ordem concedida.”[32]
Contudo, com as alterações promovidas pela citada lei, não há mais possibilidade de prisão preventiva no crime de corrupção eleitoral, salvo se o agente for condenado por outro crime doloso.
Isso porque, segundo a nova redação dos artigos 312 e 313 do Código de Processo Penal, a prisão preventiva “poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria”, sendo admitida “nos crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a 4 (quatro) anos”, o que não é o caso da corrupção eleitoral, cuja pena máxima é de 4 anos.
Assim, apenas na hipótese de o agente ser reincidente em crimes dolosos (artigo 313, II, do Código de Processo Penal), poderá ser decretada a prisão preventiva, desde que, por óbvio, presentes os requisitos do citado artigo 312 do mesmo Código.
Aliás, do mesmo modo que a prisão preventiva no processo penal comum, a prisão preventiva é, hodiernamente, medida excepcional.
3.1.5. Rito processual
O processo é o instrumento por meio do qual a jurisdição se realiza, afirmando-se os direitos humanos e fundamentais, além dos princípios concernentes ao Estado Democrático de Direito. Difere-se do procedimento (ou rito), o qual corresponde à técnica que organiza e normatiza a atividade desenvolvida no processo, constituindo o aspecto exterior, perceptível do processo (GOMES, 2015, p. 303).
Tradicionalmente, entendia-se que o rito do processo penal eleitoral, tanto o de competência do 1o grau de jurisdição quanto o de competência originária dos Tribunais, seria o previsto no Código Eleitoral, artigos 355 e seguintes, sem prejuízo da aplicação subsidiária do Código de Processo Penal, nos termos do artigo 364 do Código Eleitoral (CÂNDIDO, 2006, p. 685). Com a edição da Lei nº 8.038/1990, o Tribunal Superior Eleitoral passou a adotar, nas ações penais originárias de sua competência, o rito nela previsto.
Ocorre que as alterações promovidas pela Lei nº 11.719/2008 no Código de Processo Penal, notadamente em seu artigo 394, impactaram diretamente o processo penal eleitoral.
A nova redação do artigo, conferida pela mencionada lei, é a seguinte:
“Art. 394. O procedimento será comum ou especial.
§ 1o O procedimento comum será ordinário, sumário ou sumaríssimo: (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).
I – ordinário, quando tiver por objeto crime cuja sanção máxima cominada for igual ou superior a 4 (quatro) anos de pena privativa de liberdade; (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).
II – sumário, quando tiver por objeto crime cuja sanção máxima cominada seja inferior a 4 (quatro) anos de pena privativa de liberdade; (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).
III – sumaríssimo, para as infrações penais de menor potencial ofensivo, na forma da lei. (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).
§ 2o Aplica-se a todos os processos o procedimento comum, salvo disposições em contrário deste Código ou de lei especial. (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).
§ 3o Nos processos de competência do Tribunal do Júri, o procedimento observará as disposições estabelecidas nos arts. 406 a 497 deste Código. (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).
§ 4o As disposições dos arts. 395 a 398 deste Código aplicam-se a todos os procedimentos penais de primeiro grau, ainda que não regulados neste Código. (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).
§ 5o Aplicam-se subsidiariamente aos procedimentos especial, sumário e sumaríssimo as disposições do procedimento ordinário. (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).”
A partir do disposto no transcrito § 4o, houve o surgimento de duas correntes interpretativas.
A primeira defende que os procedimentos criminais especiais, dentre os quais o rito processual eleitoral, devem observar obrigatoriamente as disposições dos artigos 395 a 397 do Código de Processo Penal[33] e, somente ultrapassada essa fase do procedimento, o Código Eleitoral será aplicado.
Além da literalidade da norma, argumenta-se que as regras introduzidas pela Lei nº 11.719/2008 são mais benéficas ao réu e, ademais, dotadas de boa técnica processual. Não bastasse tudo isso, coadunam-se melhor com os princípios do devido processo legal e da ampla defesa (GOMES, 2015, p. 306), mormente porque o artigo 400 do Código de Processo Penal, com a redação dada pela Lei nº 11.719/2008, fixou o interrogatório do réu como o último ato da instrução penal[34], ao contrário do que dispõe o artigo 359 do Código Eleitoral.
Por outro lado, parte da doutrina entende que se deve considerar o princípio da especialidade, razão pela qual deveriam prevalecer as regras processuais insculpidas na legislação eleitoral.
Logo após o advento da Lei nº 11.719/2008, o Tribunal Superior Eleitoral adotou a segunda corrente, exatamente pela especificidade do rito processual eleitoral[35].
Contudo, posteriormente, o órgão máximo da Justiça Eleitoral alterou seu entendimento, determinando, pois, a aplicação das alterações introduzidas pela Lei nº 11.719/2008 ao Código de Processo Penal, por serem mais benéficas ao réu. Confira-se a ementa respectiva:
“HABEAS CORPUS. DENÚNCIA RECEBIDA PELO MAGISTRADO DE PRIMEIRO GRAU QUANDO O ACUSADO ESTAVA AFASTADO DO CARGO DE PREFEITO, EM VIRTUDE DA CASSAÇÃO DO MANDATO EM SEDE DE AIME. REASSUNÇÃO POSTERIOR AO CARGO. CONVALIDAÇÃO DOS ATOS. INTERROGATÓRIO DO RÉU NA AUDIÊNCIA DE INSTRUÇÃO E JULGAMENTO. ATO FINAL DA FASE INSTRUTÓRIA. ADOÇÃO DO RITO MAIS BENÉFICO DOS ARTS. 396 E SEGUINTES DO CPP AO PROCESSO PENAL ELEITORAL. ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA.
1. Não padece de nulidade a decisão do magistrado eleitoral que recebe denúncia contra o acusado que, à época, estava afastado do cargo de prefeito, em razão da procedência de ação de impugnação de mandato eletivo.
2. A posterior diplomação em cargo com prerrogativa de foro, que importe em modificação superveniente de competência, não invalida os atos já praticados no processo, nem exige a respectiva ratificação. Precedente.
3. Ainda que o acórdão regional que anulou a sentença de procedência da AIME tenha sido proferido antes do recebimento da denúncia pelo juiz de primeiro grau, a Corte Regional não determinou a execução imediata do julgado, o que afasta a competência por prerrogativa de foro, que somente veio a incidir após a concessão de liminar que determinou a recondução do ora paciente ao cargo de prefeito.
4. Sendo mais benéfico para o réu o rito do art. 400 do Código de Processo Penal, com a redação dada pela Lei nº 11.719/2008, que fixou o interrogatório do réu como ato derradeiro da instrução penal, o procedimento deve prevalecer nas ações penais eleitorais originárias, em detrimento do previsto no art. 7º da Lei nº 8.038/90. Precedentes do STF e desta Corte.
5. Ordem parcialmente concedida para determinar que seja obedecida a disciplina do art. 400 do CPP, em harmonia com o rito dos arts. 396 e seguintes.”[36]
Aliás, o tema encontra-se pacificado no âmbito da Corte Superior Eleitoral, tanto que ao expedir a Resolução nº 23.396/2013, que dispõe sobre a apuração de crimes eleitorais, o Tribunal nela fez consignar expressamente, em seu artigo 13, que
“Art. 13. A ação penal eleitoral observará os procedimentos previstos no Código Eleitoral, com a aplicação obrigatória dos artigos 395, 396, 396-A, 397 e 400 do Código de Processo Penal, com redação dada pela Lei n° 11.971, de 2008. Após esta fase, aplicar-se-ão os artigos 359 e seguintes do Código Eleitoral.”
Desta feita, em linhas gerais, o rito processual aplicado aos processos penais eleitorais é o seguinte:
a) concluído o inquérito policial, a denúncia é oferecida em até 10 dias (artigo 357 do Código Eleitoral);
b) o juiz eleitoral verifica se a denúncia não padece dos vícios enumerados no artigo 395 do Código do Processo Penal; caso apresente algum deles, será rejeitada liminarmente;
c) hígida a denúncia, será recebida e o acusado citado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 dias (artigo 396 do Código de Processo Penal);
d) o acusado poderá arguir preliminares e “tudo o que interesse à sua defesa”, juntar documentos e justificações, especificar provas e arrolar testemunhas (artigo 396-A do Código de Processo Penal);
e) o juiz absolverá sumariamente o acusado na hipótese de verificar uma das situações descritas no artigo 397 do Código de Processo Penal; caso contrário, designará audiência de instrução[37];
f) encerrada a instrução, as partes disporão do prazo sucessivo 5 dias para apresentarem suas alegações finais, a começar pela acusação (artigo 360 do Código Eleitoral);
g) os autos, então, serão conclusos no prazo de 48 horas ao magistrado, que terá 10 dias para proferir a sentença (artigo 361 do Código Eleitoral);
h) da decisão absolver ou condenar o réu, cabe recurso ao Tribunal Regional, a ser interposto no prazo de 10 dias (artigo 362 do Código Eleitoral).
Com relação ao procedimento nos crimes eleitorais de competência originária – para aqueles acusados detentores de foro por prerrogativa de função –, será, como visto, o da Lei nº 8.038/1990, por força da Lei nº 8.658/1993. Ei-lo:
a) apresentada a denúncia, o acusado será notificado para respondê-la no prazo de 15 dias (artigo 4º, caput, da Lei nº 8.038/1990);
b) na hipótese de juntada de novos documentos com a resposta, o Ministério Público Eleitoral será ouvido no prazo de 5 dias (artigo 5o, caput, da Lei nº 8.038/1990);
c) o Tribunal deliberará acerca do recebimento da denúncia, com a possibilidade de sustentação oral pelas partes pelo prazo de 15 minutos (artigo 6º, caput e § 1º, da Lei nº 8.038/1990); caberá ao Tribunal receber ou rejeitar a denúncia, ou ainda julgar improcedente a acusação (artigo 6º, caput, da Lei nº 8.038/1990);
d) segundo o artigo 7º, caput, da Lei nº 8.038/1990, recebida a denúncia, será designada data para o interrogatório do réu, que deverá ser citado para o interrogatório – o Ministério Público Eleitoral será intimado; no entanto, consoante o entendimento atual do Tribunal Superior Eleitoral, já mencionado, o interrogatório passou a ser realizado ao final da instrução, à luz do artigo 400 do Código de Processo Penal[38];
e) apresentada a defesa prévia (artigo 8º da Lei nº 8.038/1990), proceder-se-á à à instrução, conforme artigos 9º e 10;
f) as partes, então, apresentarão alegações finais no prazo sucessivo de 15 dias, começando pela acusação (artigo 11, caput, da Lei nº 8.038/1990), sem prejuízo de o relator determinar a realização de provas reputadas imprescindíveis para o julgamento da causa (artigo 11, § 3º, da Lei nº 8.038/1990);
g) encerrada a instrução, o Tribunal procederá ao julgamento, assegurada às partes a sustentação oral no prazo de uma hora, assegurado ao assistente um quarto do tempo da acusação (artigo 12 da Lei nº 8.038/1990);
h) do acórdão do Tribunal Regional Eleitoral caberá recurso especial eleitoral dirigido ao Tribunal Superior Eleitoral e, do acórdão deste, é cabível o recurso extraordinário, ambos no prazo de 3 dias, a teor do que dispõe Súmula nº 728 do Supremo Tribunal Federal[39].
4. Casuística
4.1. O posicionamento do Tribunal Superior Eleitoral ante casos concretos
Estabelecidos os fundamentos do crime de corrupção eleitoral, esquadrinhado o tipo penal, diferenciando-o do ilícito cível-eleitoral da captação ilícita de sufrágio, e destacadas algumas das questões processuais pertinentes mais relevantes – em todos os casos, com referências à doutrina e à jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral –, o leitor certamente disporá de maiores subsídios para analisar criticamente as decisões emanadas da Corte Superior Eleitoral, proferidas exclusivamente a partir de casos concretos[40].
Como se verá, o domínio sobre o arcabouço teórico do artigo 299 do Código Eleitoral é de suma importância para sua aplicação, a qual ocorre, não raras vezes, em situações limítrofes, que exige, sobretudo do julgador, além de conhecimento técnico, sensibilidade para o deslinde de cada causa e suas peculiaridades.
A inventividade do ser humano faz com que a dinâmica da vida jamais seja alcançada em sua plenitude pela lei penal em sentido estrito. Essa situação não é diferente na seara penal-eleitoral, que, como visto anteriormente, sequer possui autonomia disciplinar. A corrupção, em especial, denota “crescente expansão, tomando aspectos cada vez mais engenhosos, prejudicando, em larga escala, a austeridade do processo eleitoral” (RIBEIRO, 1998, p. 634).
Contudo, assim como no Direito Penal comum, ainda que o legislador não tenha a capacidade de positivar todas as relações do mundo fenomênico, o julgador, ao deparar-se diante de um caso concreto, tem o dever de resolver a lide, a partir do ordenamento jurídico como um todo e da interpretação que a ele se conferirá.
Esse exercício, no entanto, não se dá sem esforço, o que pode ser notado a partir da análise de casos concretos, como os a seguir descritos.
Esclareço, por fim, que não é a pretensão deste trabalho – e nem poderia sê-lo – assentar a correção ou a incorreção das decisões do Tribunal Superior Eleitoral (embora por vezes analisadas criticamente), senão, como afirmado alhures, buscar pontos de convergência entre julgados aparentemente contraditórios e, na medida do possível, traçar balizas sobre as diversas matizes conferidas pela prática. O objetivo, pois, coincide com a procura de parâmetros minimamente precisos, sob o pálio da segurança jurídica em matéria penal-eleitoral.
4.1.1. Bingo: distribuição de brindes
No afã de angariar apoio político, os postulantes ao exercício de mandato eletivo empenham-se sobremaneira. Todavia, muitas vezes, lançam mão de artifícios que geram dúvidas até mesmo para o julgador.
Uma dessas hipóteses remete à realização de bingos, com distribuição de brindes e pedidos de voto ou apoio político.
Ao apreciar casos semelhantes, o Tribunal Superior Eleitoral decidiu de modo diametralmente oposto.
No julgamento do REspe nº 4454-80, o Colegiado concluiu, à unanimidade, que a realização de bingos, com distribuição gratuita de cartelas e cujos vencedores foram contemplados com bicicletas, televisores e aparelhos de “DVD”, caracterizou o crime de corrupção eleitoral, haja vista que o candidato fomentador dos eventos neles discursou, com referência direta à candidatura e com pedido de voto[41].
Por outro lado, o mesmo Tribunal, ao apreciar o AgR-REspe nº 4453-95, consignou, por maioria, que a promoção de bingos, “com a distribuição de brindes e pedido de apoio político aos presentes, apesar de não ser conduta legalmente autorizada, não se adéqua ao tipo do art. 299 do Código Eleitoral.”[42]
Curiosamente, neste caso, os fatos ensejadores dos recursos especiais eleitorais foram os mesmos. As conclusões diametralmente opostas, no entanto, resultaram de dois fatores: a composição do Tribunal (apenas dois dos sete Ministros participaram de ambos os julgamentos) e a análise da prova.
Sobre esse segundo aspecto, destaca-se que, no primeiro julgado, o Tribunal assentou, com esteio nos fatos e provas descritos no acórdão regional, que houve a distribuição de brindes com o fim específico de obter votos – inclusive com referência à candidatura e o pedido respectivo. Ademais, a Corte firmou o entendimento de que, sendo o crime formal, a aferição da capacidade eleitoral ativa do destinatário da ação criminosa seria irrelevante. Logo, seria desnecessária a identificação do eleitor a que se pretendeu corromper.
Lado outro, extrai-se da fundamentação do voto condutor do segundo precedente que “não houve a descrição na denúncia do oferecimento, da doação, solicitação ou do recebimento de dinheiro ou de vantagem a determinado eleitor, para obter ou dar voto”. Além disso, assinalou-se que sequer teria havido a identificação dos eleitores corrompidos.
Assim, a par das diferentes composições nos dois julgamentos e de resultados a princípio absolutamente contrários, é possível identificar uma premissa comum, qual seja, a distribuição de benesses com o fim de obter votos subsume-se ao artigo 299 do Código Eleitoral.
Tal conclusão decorre do fato de um dos motivos que levou o Tribunal Superior Eleitoral a manter a condenação do primeiro réu foi justamente a análise soberana da instância ordinária que confirmou a entrega de bens em troca de voto, fatos que não teriam sido descritos na denúncia da segunda ação. Contrario sensu, se o fossem, a conduta se amoldaria ao tipo penal.
Não se olvida, no entanto, que os julgados divergiram acerca de questão essencial para a solução da contenda, a saber, a necessidade de identicação do eleitor supostamente corrompível.
Frisa-se, pois, que a análise verticalizada de duas decisões com desfechos contrários pode indicar a existência de pontos comuns.
4.1.2. Candidatura frustrada
No tópico 2.1.6.1 vimos que, na corrupção eleitoral ativa, o sujeito ativo poderá ser qualquer pessoa; na passiva, ao menos para a doutrina dominante, apenas o eleitor.
Apesar disso, em ambos os casos, a doutrina inclina-se a afirmar a necessidade da existência de uma candidatura a ser beneficiada pela conduta criminosa, sem a qual não há crime, na medida em que o bem jurídico tutelado não seria atingido (GOMES, 2008, p. 248). Existe, inclusive, precedente do Tribunal Superior Eleitoral a respeito, datado de 1990. Confira-se a respectiva ementa:
“REPRESENTACAO CONTRA FUTURO CANDIDATO A PRESIDENCIA DA REPUBLICA PELO PARTIDO MUNICIPALISTA BRASILEIRO – PMB.
CRIME ELEITORAL (CE, ART. 299). CASO EM QUE NAO SE VERIFICA: O REQUERIDO SEQUER VEIO A SER CANDIDATO.
ARQUIVAMENTO.”[43]
A discussão, entretanto, não se encerra neste ponto. Há que se determinar o exato momento a partir do qual o chamado pré-candidato torna-se candidato de fato, para o este fim específico.
Para Joel J. Cândido (2006, p. 183), a condição de candidato, “para este fim, dá-se com o encerramento da ata da convenção que o escolheu para concorrer, e não com o pedido de registro de sua candidatura. E, muito menos, com o eventual deferimento desse pedido”. No mesmo sentido, Antônio Carlos da Ponte (2008, p. 104).
Lado outro, José Jairo Gomes (2012, p. 240-241) – embora verse sobre a questão em contexto extrapenal – entende que o postulante a concorrera mandato eletivo torna-se candidato somente com a efetivação de seu registro de candidatura, ainda que vulgarmente seja tratado como candidato bem antes disso. Vale a transcrição:
“A qualidade de ‘candidato’ só é alcançada com a efetivação do registro, o que ocorre com o ‘trânsito em julgado’ ( = preclusão) da decisão que defere o respectivo pedido. Nesse diapasão, Soares da Costa (2006, p. 403) salienta que a ‘candidatura e a condição de candidato são efeitos jurídicos do registro, operados em virtude de sentença constitutiva prolatada no processo de pedido de registro de candidatos’.
Desde a indicação na convenção partidária até a efetivação da candidatura, o cidadão goza do status de pré-candidato, encontrando-se investido em uma situação que lhe assegura o gozo de alguns direitos. Entre outros, tem o direito de ver requerido seu registro pelo partido perante a Justiça Eleitoral, pena de fazê-lo ele próprio, conforme lhe autoriza o § 4o do artigo 10 da LE; é que sua candidatura não poderá ser retirada sem motivo e sem sua anuência (TSE – AC. no 12.774, de 25-9-1992 – juristse 7:73). Note-se, porém, que na linguagem comum já é tratado como ‘candidato’.”
Ocorre que a aludida contradição é apenas aparente, porquanto independentemente da denominação que se dê àquele que pretende concorrer a mandato eletivo, este já faz as vezes de candidato a partir do momento em que é escolhido por seu partido político, o qual detém o monopólio do lançamento de candidaturas – artigo 14, § 3o, V, da Constituição Federal.
Entendimento contrário levaria à intepretação que beira ao absurdo, qual seja, a inexistência do crime praticado por candidato que venha a ter seu registro de candidatura indeferido, com trânsito em julgado, somente após às eleições – fato, inclusive, corriqueiro.
Ademais, reitere-se que o arrazoado articulado por José Jairo Gomes não se dá no âmbito penal eleitoral. A despeito disso, seu registro é necessário para que eventuais dúvidas acerca do momento a partir do qual o filiado passa a ser candidato não interfiram na configuração do crime de corrupção eleitoral.
Assim, conclui-se que o crime de corrupção eleitoral somente ocorrerá se houver um candidato – entendido como aquele indicado na ata da convenção partidária – a cuja candidatura procura-se beneficiar. Em outras palavras, aquele que eventualmente tenha praticado a descrição típica do artigo 299 do Código Eleitoral antes da convenção partidária não terá incorrido em crime na hipótese de seu nome não ter sido escolhido nessa convenção, frustrando seu intento de se lançar como candidato a mandato eletivo, pois não houve ofensa ao bem jurídico tutelado pela norma.
4.1.3. Compra de apoio político
Dúvida não há sobre a configuração da corrupção eleitoral diante do oferecimento de uma vantagem monetária em condicionamento ao voto ou abstenção. Desse modo, se diante da compra de um único voto perfaz-se o ilícito, o que dizer da negociação havida de modo difuso?
Trata-se da compra de apoio político, existente há tempos e cada vez mais comum. Marcelo Ribeiro de Oliveira (2012, p. 509) tratou da questão tendo como ponto de partida os seguintes exemplos: em uma disputa eleitoral, certo candidato renuncia em favor de outro, que, em contrapartida, oferece-lhe determinadas vantagens; ou ainda, determinada pessoa vende seu apoio a um candidato, com a promessa de que este nomear-lhe-á para um cargo público, se eleito.
As situações fáticas descritas, ambas, amoldam-se perfeitamente ao tipo penal em apreço, tal como decidiu o Tribunal Superior Eleitoral em mais de uma ocasião.
Certa feita, mais precisamente no julgamento do REspe nº 28.396, concluiu que caracterizou corrupção eleitoral a promessa de manter pessoas em seus cargos na Prefeitura Municipal se estas votassem em determinado candidato, dando-lhe, ainda apoio político eleitoral[44].
Já no exame do RCED nº 671, julgado de grande repercussão (que levou à cassação do mandato de Jackson Lago, então Governador do Maranhão), o Tribunal assentou que o oferecimento de cargo no governo também se subsumia ao crime previsto no artigo 299 do Código Eleitoral[45].
Contudo, em decisão mais recente prolatada no HC nº 31-60, o Tribunal Superior Eleitoral decidiu de maneira completamente oposta. Confira-se:
“HABEAS CORPUS. RECEBIMENTO DE DENÚNCIA ART. 299 DO CÓDIGO ELEITORAL. ATIPICIDADE. CONCESSÃO.
1. O tipo penal previsto no art. 299 do Código Eleitoral, o qual visa resguardar a vontade do eleitor, não abarca eventuais negociatas entre candidatos, visando à obtenção de renúncia à candidatura e apoio político, em que pese o caráter reprovável da conduta.
2. Ordem concedida.”[46]
Logo, não se pode afirmar que a questão encontra-se pacificada no âmbito do órgão de cúpula da Justiça Eleitoral.
4.1.4. Concurso formal imperfeito
O concurso formal imperfeito, também denominado impróprio, é a modalidade de concurso formal caracterizada pela existência de desígnios autônomos dos quais derivam os crimes concorrentes (MASSON, 2013, p. 746). Ou seja, há concurso formal imperfeito ou impróprio quando o agente, mediante uma só ação, almeja mais de um resultado (ou aceita o risco de sua produção). Nesse caso, aplicam-se as penas cumulativamente, nos termos do artigo 70, caput, parte final, do Código Penal, que assim dispõe:
“Art. 70 – Quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplica-se-lhe a mais grave das penas cabíveis ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até metade. As penas aplicam-se, entretanto, cumulativamente, se a ação ou omissão é dolosa e os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos, consoante o disposto no artigo anterior.
Parágrafo único – Não poderá a pena exceder a que seria cabível pela regra do art. 69 deste Código.” (Grifos acrescidos).
Assim, no caso de determinada pessoa ofertar, mediante ação única, a mais de um eleitor, alguma vantagem em troca de votos, configura-se a hipótese de concurso formal imperfeito, razão pela qual as penas serão aplicadas cumulativamente.
Este é o posicionamento do Tribunal Superior Eleitoral, conforme se extrai do julgamento do REspe nº 12266-97[47], cujo substrato fático indica que a ré ofereceu vantagens financeiras condicionadas à obtenção de votos de duas eleitorais por meio de uma única conduta.
Contudo, cumpre salientar a existência de voto divergente naquela assentada, sob o fundamento de se tratar de concurso formal perfeito, haja vista que a conduta teria ferido apenas o mesmo bem jurídico, alertando, ainda, para o fato de que, na hipótese de a oferta atingir vários eleitores, a penalidade seria aplicada de forma “indefinida”.
4.1.5. Incomunicabilidade entre as instâncias cível e penal
Como referido no tópico 2.2, uma mesma conduta ilícita pode ser avaliada sob diversas óticas de responsabilização, o que, notadamente, ocorre com a vulgarmente chamada “compra de votos”, cuja prática pode implicar, de forma concomitante, captação ilícita de sufrágio (artigo 41-A da Lei no 9.504/1997) e corrupção eleitoral (artigo 299 do Código Eleitoral).
A prática forense demonstra ser bastante comum a tese defensiva segundo a qual a improcedência da ação que visa apurar a captação ilícita de sufrágio obsta a instauração ou o prosseguimento da ação penal destinada ao exame dos mesmos fatos.
Contudo, a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral vem rejeitando tal alegação há, pelo menos, uma década, com fundamento da independência ou na incomunicabilidade entre as instâncias cível e penal.
A respeito, menciono três excertos de ementas que bem ilustram esse posicionamento:
“RECURSO ESPECIAL. CRIME CAPITULADO NO ART. 299 DO CÓDIGO ELEITORAL. DENÚNCIA CIRCUNSTANCIADA. AFERIÇÃO DE MATERIALIDADE E AUTORIA. IMPOSSIBILIDADE. REEXAME DE FATOS E PROVAS. ESFERAS CÍVEL E PENAL. INDEPENDÊNCIA.(…)
5. Independência das esferas cível e penal quanto à denúncia que apura os mesmos fatos objeto de ação de investigação judicial eleitoral, julgada improcedente. (…).”[48]
“HABEAS CORPUS. PEDIDO DE TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. ALEGAÇÃO DE FALTA DE JUSTA CAUSA. ART. 299 DO CÓDIGO ELEITORAL. INDEPENDÊNCIA ENTRE AS ESFERAS CÍVEL-ELEITORAL E A PENAL. ORDEM DENEGADA.(…)
3. A eventual improcedência do pedido da ação de investigação judicial eleitoral não obsta a propositura da ação penal, ainda que os fatos sejam os mesmos, tendo em vista a independência entre as esferas cível-eleitoral e a penal. Precedentes.
4. Ordem denegada.”[49]
“ELEIÇÕES 2004. RECURSO ESPECIAL ELEITORAL. ART. 299 DO CÓDIGO ELEITORAL. COMPRA DE VOTOS. CONTINUIDADE DELITIVA (ART. 71 DO CÓDIGO PENAL). OCORRÊNCIA. CRITÉRIO TRIFÁSICO (ART. 68, CP). INOBSERVÂNCIA. MULTA. ART. 72 DO CÓDIGO PENAL. NÃO INCIDÊNCIA.
1. São independentes as esferas cível-eleitoral e a penal, de sorte que eventual improcedência do pedido, na primeira, não obsta o prosseguimento ou a instauração da ação penal para apurar o mesmo fato. Precedentes. (…).”[50]
4.1.6. Oferta de vales-combustível
Uma das formas mais corriqueiras de promover candidaturas é a distribuição de vales-combustível.
Em situações como essa, a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral demonstra que a análise dos fatos pode levar a conclusões diversas, a depender da finalidade da conduta. Por conseguinte, no campo judicial, as provas adquirem maior importância em casos como os a seguir descritos.
No julgamento do REspe nº 2-91, por exemplo, o Colegiado, por maioria, absolveu o réu por entender que a denúncia, tal como formulada, carecia da indicação do elemento subjetivo do tipo (ou do injusto; ou, ainda, segundo o acórdão, do “dolo específico”), qual seja, “para obter ou dar voto e para conseguir ou prometer abstenção”[51].
Nesse caso, o Tribunal consignou que a concessão de vales-combustível a eleitores fora condicionada à fixação de adesivo de campanha eleitoral em veículos, e não à obtenção do voto. Colhe-se, ainda, do acórdão que a vantagem ofertada deve estar vinculada “a uma promessa concreta de voto ou abstenção”, o que não se confunde com o aparelhamento da propaganda eleitoral.
Esse mesmo entendimento foi sufragado no RHC nº 1423-54, porquanto ausente o elemento subjetivo do tipo na peça inaugural[52].
Assim, contrario sensu, uma vez que o abastecimento gratuito de veículos de eleitores estiver condicionado ao voto ou à abstenção, configurado estará o tipo penal.
A corroborar essa tese, merece referência o AgR-REspe nº 35.933, em cujo julgamento – no qual, nada obstante a conduta tenha sido examinada exclusivamente sob a ótica do artigo 41-A da Lei nº 9.504/1997 –, ficou decidido que a distribuição de combustível “atrelada a pedido de votos”, configura ilícito eleitoral[53].
4.1.7. Pedido implícito de votos
Como amplamente demonstrado neste trabalho, a corrupção eleitoral ativa não prescinde do elemento subjetivo do tipo (“para obter ou dar voto e para conseguir ou prometer abstenção”).
É sabido, no entanto, que nem sempre – ou na maioria das vezes – esse pedido de voto ou abstenção é explícito. E nem há de ser, por ausência de previsão legal. Comprovada a existência de alguma oferta ao eleitor condicionada ao voto ou à abstenção a partir das circunstâncias fáticas (SILVA, 2012, p. 158), desnecessário o pedido expresso de voto (TENÓRIO, 2014, p. 364).
Para jurisprudência penal eleitoral não é diferente. Em diversas oportunidades o Tribunal Superior Eleitoral pontificou que a “verificação do dolo específico em cada caso é feita de forma indireta, por meio da análise das circunstâncias de fato, tais como a conduta do agente, a forma de execução do delito e o meio empregado”[54].
Por outro lado, importante salientar que este é o posicionamento atual do Tribunal, que, outrora, já decidira que o “pedido de obtenção de voto efetuado de forma genérica, ou meramente implícito, não se enquadra na ação descrita no artigo 299 do Código Eleitoral”[55].
Contudo, julgados mais recentes sufragam a primeira tese, como o ocorrido ED-REspe nº 582-45, no qual a Corte Superior Eleitoral consignou que o “pedido expresso de voto não é exigência para a configuração do delito previsto no art. 299 do Código Eleitoral, mas sim a comprovação da finalidade de obter ou dar voto ou prometer abstenção”[56].
Em tempo, esclarece-se que, no último julgado citado, os fatos que levaram a Justiça Eleitoral a proferir decisão condenatória pela prática criminosa consubstanciaram-se na visita de candidato a determinada eleitora, durante a qual teria lhe dito que, “caso ganhasse as eleições, a ajudaria a terminar o reboco da sua casa”, ofertando-lhe, ainda, um saco de cimento. Evidente, pois, a presença do elemento subjetivo do tipo, ainda que inexistente o pedido expresso de voto.
4.1.8. Princípio da insignificância
O princípio da insignificância está intimamente ligado à natureza fragmentária do Direito Penal e a intervenção mínima do Estado, porquanto ele, Direito Penal, só deve ser atuar diante da necessidade de proteção ao bem jurídico. Com isso, exclui-se a incidência do Direito Penal sobre condutas irrelevantes em determinado contexto, afastando-se, assim, a tipicidade material.
Segundo o Supremo Tribunal Federal, a adoção de tal princípio está condicionada à mínima ofensividade da conduta do agente, à nenhuma periculosidade social da ação, ao reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e à inexpressividade da lesão jurídica provocada[57].
Merece destaque, ainda, a advertência de Antonio Carlos da Ponte (2008, p. 79) no sentido de que
“(…) a análise de tal princípio requer comedimento e responsabilidade, posto que compete ao Poder Legislativo a eleição dos bens jurídicos passíveis de proteção, não podendo o intérprete, de maneira aleatória e indiscriminada, simplesmente ignorar condutas lesivas. A proposta do princípio da insignificância não é ignorar a ação legislativa, mas avaliar a extensão do dano efetivo e concluir pela necessidade ou não de punição.”
Por se tratar de um postulado de Direito Penal, não há, a princípio, óbice para que incida sobre os crimes eleitorais, notadamente aqueles de menor potencial ofensivo, desde que sejam observados os requisitos para sua aplicação, conforme destacado no julgamento citado.
Contudo, especificamente quanto ao ao crime tipificado no artigo 299 do Código Eleitoral, o órgão de cúpula da Justiça Eleitoral, na apreciação do AgR-AI nº 10.672, refutou a tese da aplicabilidade do princípio da insignificância.
Consta no voto condutor do acórdão que o bem tutelado pela norma penal eleitoral – o livre exercício do voto e a lisura do processo respectivo – não é ínfimo. Ademais, o grau de reprovabilidade do comportamento do agente não poderia ser considerado reduzido. Na espécie, a conduta tida por ilícita correspondeu à distribuição de cestas básicas à comunidade carente de determinado município, em troca de votos[58].
Esse entendimento não destoa da doutrina majoritária, a qual rejeita a aplicação do referido princípio em casos como os aqui estudados. Esta, por exemplo, a lição de Tito Costa (2002, p. 59):
“O art. 299 não qualifica a vantagem, dádiva ou doação pecuniária para efeito de configuração do crime. Pouco importa a expressão econômica da oferta ou dação, como, igualmente, a natureza da vantagem pessoal. A ratio da previsão repressiva assenta-se no potencial de captação volitiva que a oferta pode provocar no eleitor, produzindo a indução a votar no ofertante ou doador, ou quem este indica.”
Frise-se que, ao contrário do que possa aparentar, a discussão sobre a insignificância na corrupção eleitoral não reside no valor ou expressão da vantagem oferecida ou aceita, que se mostra absolutamente irrelevante na espécie, porquanto a “compra” ou a “venda” de um único voto ofende o bem jurídico tutelado pela norma penal eleitoral, independentemente de seu “preço”.
Assim, nada obstante a inexistência de precedentes em profusão no âmbito da mais alta Corte eleitoral, pode-se afirmar que a tendência do Tribunal é pela inaplicabilidade do princípio da insignificância em relação ao crime do artigo 299 do Código Eleitoral.
4.1.9. Promessas genéricas
É assente na jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral que promessas genéricas de campanha não configuram o crime de corrupção eleitoral. De acordo com o iterativo entendimento da Corte Superior Eleitoral, é “indispensável que a promessa de vantagem esteja vinculada à obtenção do voto de determinados eleitores”[59], conforme decidido, ilustrativamente, no AgR-AI nº 586-48.
No caso do precedente citado, a promessa em questão cuidou-se do comprometimento, por parte do candidato, de conferir isenção do pagamento de passes de ônibus, “vantagem esta que foi entregue no período entre 6 a 13 de outubro de 2008”. No entender do Colegiado, esse fato constituiu “mera divulgação de programa de governo, sem caráter pessoal, que pretendia o candidato desenvolver caso fosse eleito”, tratando-se, portanto, “de promessa genérica, tal como o calçamento de uma rua ou a construção de uma escola”.
O posicionamento predominante da doutrina converge com o esposado pelo Tribunal Superior Eleitoral. Como exemplo, cito excerto da obra de Suzana de Camargo Gomes (2008, p. 244/245):
“(…) precisa o benefício ser concreto, individualizado, direcionado a uma ou mais pessoas determinadas, não configurando o delito promessas genéricas de campanha, ocorrida em comícios ou mesmo através de televisão, quando não resulta evidenciado nem mesmo o compromisso da entrega da vantagem tendo como contraprestação o voto ou a abstenção.
O caráter negocial é indispensável para a caracterização do delito, ou seja, a vantagem, a promessa, o benefício deve visar à obtenção do voto.”
Todavia, cumpre ressaltar que, sendo a promessa articulada perante um grupo determinado de eleitores, existe o crime de corrupção eleitoral, desde que presente o elemento subjetivo do injusto, a saber, o referido caráter negocial.
É dizer, não é o fato de a promessa ser feita a diversos eleitores que descaracteriza o crime em comento, senão a ausência do elemento subjetivo do injusto. Em outras palavras, se a promessa é feita no intuito de obter voto ou a abstenção de um conjunto de pessoas identificáveis, realiza-se o tipo. Ao contrário, se o compromisso é formalizado de modo a beneficiar genericamente a coletividade, não haveria crime.
No entanto, há situações que podem ser consideradas limítrofes, cuja solução dependerá das circunstâncias fáticas, não se podendo antever uma regra objetiva e universal para tanto.
Seria o caso da promessa, hipoteticamente realizada em comício, de asfaltamento de determinada via em uma eventual comunidade rural composta de apenas uma família. A princípio, não haveria falar em corrupção eleitoral, porquanto a obra prometida estaria a beneficiar indiretamente o eleitorado como um todo – e não apenas aqueles que residem na localidade. No entanto, a depender do contexto em que se deu essa promissão – por exemplo, na casa da própria família a portas fechadas –, cogitar-se-ia da ocorrência do delito eleitoral.
Aliás, o Tribunal Superior Eleitoral já considerou que o pedido de votos atrelado ao comprometimento de pavimentar determinadas ruas de certo município consubstanciou o crime de corrupção eleitoral, haja vista ter sido formulado perante um grupo de pessoas determináveis. Transcrevo ementa do julgado:
“Recurso especial. Agravo regimental. Art. 299 do Código Eleitoral. Corrupção eleitoral. Promessa de realização de obras. Pedido de votos. Caráter não genérico. Grupo de pessoas determinadas e/ou determináveis. Reuniões. Abordagem direta. Conduta típica. Condenação. (…).” [60]
Naquele caso, comprovou-se o candidato promoveu reuniões com líderes comunitários e determinados moradores de bairros carentes do Município de Vila Velha e prometeu a realização de melhorias nos bairros, em troca de votos. Assim, como a promessa fora feita a pessoas determinadas ou determináveis, a Corte concluiu pela subsunção dos fatos ao tipo penal.
A despeito disso, essa decisão, respeitados seus substanciosos fundamentos, aparenta destoar da jurisprudência majoritária do próprio Tribunal. Ao que parece, cuida-se de promessa genérica, tanto que consta do próprio corpo do voto condutor do acórdão que houve a distribuição de panfletos de uma associação de moradores convocando interessados para participar desses encontros. Ou seja, as reuniões eram abertas a toda população, nas quais foi firmado o compromisso de melhorias que beneficiavam toda a municipalidade, o que, ao menos a priori, não configura infração, mas mero proselitismo político (PONTE, 2008, p. 104).
De todo modo, até mesmo pelos debates que pode suscitar, o registro desse julgamento mostra-se importante.
CONCLUSÃO
O crime de corrupção eleitoral jamais terá cabo enquanto houver corruptores e corrompidos. No entanto, enquanto essa conduta odiosa não é extirpada da sociedade pela própria evolução cultural e educacional das sucessivas gerações, há que se refletir acerca da matéria, sempre com vistas à melhor aplicação da lei penal.
O modus operandi de muitos postulantes ao exercício de mandatos eletivos públicos que se acercam do alambrado da corrupção deve sempre ser acompanhado pelos olhos atentos e mãos eficazes das instituições responsáveis pela higidez e legitimidade do processo eleitoral, notadamente a Justiça Eleitoral.
Nesse sentido, a posição do Tribunal Superior Eleitoral, como órgão de cúpula desta Justiça Especializada, adquire especial destaque, porquanto responsável pela uniformização da jurisprudência eleitoral, o que implica traçar diretrizes para todo o país.
Conhecer os entendimentos da Corte Superior Eleitoral – ainda que por vezes pendulares – sobre o crime do artigo 299 do Código Eleitoral constitui o ponto de partida para o aprimoramento e a correta aplicação da lei.
E, quanto mais verticalizado for esse exame, mais se perceberá uma linha de pensamento mais ou menos coerente emanada pela Justiça Eleitoral, a qual, como todas as instituições democráticas, está em constante evolução.
De certa forma, este trabalho procura contribuir com esse propósito, como afirmado em sua introdução, por meio da identificação e exposição das linhas mestras permeiam a interpretação judicial sobre a corrupção eleitoral.
Através desse arrazoado, buscou-se demonstrar, sobretudo pela indicação da jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral, a existência de parâmetros minimamente seguros para a análise de casos concretos envolvendo o crime de corrupção eleitoral, de forma a subsidiar o profissional do Direito, o agente político, o postulante ao exercício de mandatos eletivos ou ainda qualquer jurisdicionado interessado no processo eleitoral.
De todo modo, não é demais relembrar que o processo eleitoral, como a vida, é essencialmente dinâmico, o que se reflete também em diversas questões referentes à corrupção eleitoral.
Por conseguinte, este trabalho não esgota – e nem teve tal pretensão – a matéria, senão consiste em um convite à reflexão, dentro e fora da academia, sobre o crime eleitoral de maior repercussão, que ainda assola o país dos mais longíquos rincões às metrópoles.
Bacharel em Direito pela UFMG. Especialista em Direito Eleitoral pelo Centro Universitário UNI-BH e em Direito Penal e Processo Penal pela Faculdade Damásio. Analista Judiciário do TRE-MG
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