Resumo: O artigo objetiva analisar empiricamente as principais consequências do superendividamento familiar nas relações de consumo, tendo como metodologia a pesquisa bibliográfica. O mesmo apresenta o superendividamento como um fenômeno jurídico-social pertinente à sociedade consumerista. Destaca os pressupostos da relação de consumo, por meio do conhecimento dos elementos e principais princípios dispostos na Lei 8078/90. Analisa historicamente o surgimento e evolução das relações de consumo no âmbito familiar. O comportamento da sociedade consumerista é ponderado sob a perspectiva jurídica e social, e o comportamento dos fornecedores e consumidores frente ao crédito é discutido. O superendividamento e seus desdobramentos são apresentados de forma multidisciplinar, bem como a proteção ao consumidor superendividado. Por fim trata das consequências do superendividamento para a vida dos consumidores e traz a baila as possíveis alternativas para a prevenção e tratamento deste.
Palavras chave: Direito. Consumo. Família. Superendividamento.
Abstract: The article aims to empirically analyze the main consequences of family debt distress in consumer relations, with the methodology literature. The same features over-indebtedness as a relevant legal and social phenomenon to the consumerist society. Highlights the assumptions of consumer relations, through the knowledge of the main elements and principles set forth in law 8078/90. Historical analysis of the emergence and evolution of relationships within the family. The behavior of the consumerist society is weighted in the legal and social perspective, and the behavior of suppliers and consumers against credit is discussed. The indebtedness and its developments are presented in a multidisciplinary way, as well as protecting the consumer superendividado. Finally comes the consequences of indebtedness to the lives of consumers and brings up the possible alternatives for the prevention and treatment of this.
Keywords: Right. Consumer. Family. Indebtedness.
Sumário: Introdução; 1 As consequências do superendividamento familiar nas relações de consumo. 1.1 Aspectos históricos das relações de consumo. 1.2 Elementos e princípios integrantes da relação de consumo. 1.3 A evolução das relações de consumo das famílias brasileiras. 2. O surgimento da concepção de uma sociedade consumerista e do superendividamento. 3. As causas e consequências do superendividamento familiar. 4. A proteção do consumidor superendividado. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
O presente estudo aborda o tema: as consequências do superendividamento familiar nas relações de consumo. Estas afetam diretamente a qualidade de vida dos consumidores e de suas famílias e se apresentam como um emergente problema jurídico e social, que atinge toda a cadeia produtiva da sociedade.
Nesse sentido, o problema científico a ser identificado trata-se das principais consequências do superendividamento no âmbito familiar, na amplitude das relações de consumo. Com base neste problema, a pesquisa tem como objetivo analisar, empiricamente, os fatores geradores e as consequências do superendividamento das famílias e propiciar a discussão acerca das soluções jurídicas para a prevenção e tratamento do mesmo.
Os objetivos específicos, inicialmente, serão apresentados nos tópicos que versão sobre: os conceitos e pressupostos da relação de consumo na doutrina brasileira; aspectos históricos das relações de consumo; e, em seguida, os elementos e princípios integrantes desta, sob uma perspectiva jurídica. Será analisado também o surgimento das famílias e os fatores que contribuíram para a evolução destas, fazendo um paralelo entre o passado e o presente. Além disso, o artigo analisará o nascimento da sociedade consumerista e do superendividamento, bem como sua inter-relação e principais consequências do mesmo. Por fim, será explanado o papel da família, dos poderes públicos e da legislação consumerista na proteção do consumidor superendividado.
Em virtude dessas considerações, a relevância da pesquisa se dá pelo fato do fenômeno do superendividamento se multiplicar rapidamente na sociedade consumerista, trazendo várias consequências para o cidadão consumidor e não ser plenamente tutelado pelo Direito Brasileiro. O papel das famílias e dos órgãos de proteção e defesa do consumidor na prevenção e tratamento deste fenômeno social será analisado sob o ponto de vista jurídico. Dessa forma, a doutrina, a jurisprudência, o Código de Defesa do Consumidor – CDC e o PL 283/2012, darão subsídios para o entendimento da necessidade de tutela do consumidor superendividado.
1. PRESSUPOSTOS DA RELAÇÃO DE CONSUMO NA DOUTRINA BRASILEIRA
1.1 ASPECTOS HISTÓRICOS DAS RELAÇÕES DE CONSUMO
As relações entre consumidores e fornecedores, ditas relações de consumo, existem desde o surgimento das sociedades. Contudo, aponta Lucca (2003), que a preocupação com o consumidor tem uma longa história, mas, a proteção jurídica, na verdade, é muito recente.
O Código de Hammurabi (2300 a.C.), consoante Giancoli (2008), já regulava as relações de consumo da antiguidade e se destacou como um conjunto de normas consagradas sobre litígio entre devedores e credores, no qual a usura era proibida e coibida com a perda da própria vida. Enquanto que na Índia, no século XIII a.C., conforme versa Filomeno (2012, p.28), "o Código de Manu previa multa e punição, além de ressarcimento de danos àqueles que adulterassem gêneros, entregassem coisas de espécie rebaixada àquela acertada ou vendessem bens de igual natureza por preços diferentes."
Na Grécia antiga, também havia uma preocupação manifesta com a defesa do consumidor, para sanar vícios ocultos e nas operações que envolviam a concepção de credito, em especial empréstimos, conforme assinala Kosteski (2004). Quando o individuo tomador não conseguia quitar o empréstimos realizado, o credor lhe tomava as terras, casas e, até mesmo, a vida do devedor e da sua família que passavam ao jugo mesmo, podendo este vendê-los como escravos. Hoje em dia a legislação brasileira, coíbe qualquer tipo de prática deste tipo, inclusive a prisão do depositário infiel, conforme a Súmula nº 25 do STF, para que o devedor pague suas dívidas de qualquer natureza até o limite dos seus bens ao invés de pagar com a própria vida ou ainda a sua dívida passar para herdeiros.
No Brasil, a evolução do direito do consumidor se deu de forma lenta, contudo, documentos da época colonial, encontrados no Arquivo Histórico de Salvador, demonstram que também era uma preocupação das autoridades coloniais do século XVII a punição dos infratores, em consonância com as normas de proteção aos consumidores, conforme aponta pesquisas de FILOMENO (2012 apud TALENTO, 2000, p. 20).
A defesa do consumidor também se revelou como uma preocupação supraestatal nos séculos XIX e XX, conforme aduz Filomeno (2012), e em especial, no século XX, o direito do consumidor se fortaleceu juntamente com o desenvolvimento industrial das cidades, estendendo-se a vários países, conforme declara Kosteski (2004). Em 1914, nos Estados Unidos, conforme aduz Viegas (2011), foi criada a primeira legislação de proteção ao consumidor, nos Estados Unidos, a Federal Trade Comission, que tinha como objetivo aplicar a lei antitruste para proteger os interesses dos consumidores.
No Brasil, só no último século, a preocupação com a temática consumerista foi amplificada permitindo que a coação ao fornecedor propiciasse a proteção do consumidor. Aguiar (1995) defende que o direito brasileiro permaneceu formalista e positivista durante os séculos XIX e XX, e que o princípio da pacta sunt servanda permanecia arraigado ao dogma liberal da vontade, enquanto Viegas (2011) aponta também que no código de 1916 não havia a cláusula geral de boa-fé de forma expressa, que só apareceu no código comercial de 1950 e de forma interpretativa, o que dificultava a aplicação pelos magistrados.
Todavia, com a aceleração do fenômeno creditício nos EUA, a partir dos anos vinte, em razão da multiplicação das formas de crédito, o nível de endividamento das famílias aumentou consideravelmente, já que, conforme alega Viegas (2011, p.1), “Os Estados Unidos, foi o país que dominou o capitalismo, e, portanto, sofreu as consequências do marketing agressivo da produção, da comercialização e do consumo em massa”.
Nas décadas de 40 e 60, percebem-se no Brasil preocupações com a tutela do consumidor, por conta disso, foram criadas diversas leis para tutelar o tema, dentre as quais podemos aludir a Lei nº. 1221/51 (lei de economia popular), a Lei Delegada nº. 04/62 e a emenda nº. 01 de 1969 feita á Constituição de 1967, que consagrou as relações de consumo (KOSTESKI, 2004).
É importante salientar que a proteção ao consumidor, citada nos estudos sociológicos de Max Weber e Karl Marx, no fim do século XIX, de uma forma geral, ganhou força total nos anos 60 e 70 do século XX, quando as indústrias passaram a fabricar produtos em grande escala e precisavam de compradores para os mesmos, conforme defende Viegas (2011). Em consonância com o mesmo autor, entende-se que as grandes guerras mundiais foram as propulsoras do surgimento da sociedade de consumo, através do aumento da produção.
Viegas (2011), entende que um grande marco para o reconhecimento do consumidor como sujeito de direitos ocorreu em 1962, quando John Kennedy, o então presidente dos Estados Unidos da América – EUA, em um discurso, enumerou os direitos dos consumidores e os considerou como um desafio necessário para o mercado.
Conforme aduz Viegas (2011), em 1973, foram reconhecidos nos EUA, os direitos fundamentais do consumidor e declarados como direitos humanos de nova geração, direitos sociais econômicos, diretos de igualdade material do mais fraco e, por fim, direitos dos cidadãos civis nas relações privadas frente aos fornecedores de produtos e serviços. Só em 1975 foi editada a resolução 39/248 de 1985, na Assembleia Geral da ONU sobre a proteção ao consumidor, quando o princípio da vulnerabilidade foi infrafirmado no plano internacional, a partir daí, vários países passaram a oferecer a proteção ao consumidor nas suas legislações internas, produzindo assim com a regulamentação, produtos de maior qualidade e aceitação internacional.
Marques (2010, p. 112), aduz que “o direito privado brasileiro se caracterizou até os anos 70 pela defesa da manutenção do individualismo e do liberalismo do Código Civil de 1916, tornando-se um direito disponível para todos, com a promulgação da Constituição Federal de 1988”, fator que ocorreu por meio do artigo 48º do ADCT que determinou a criação do Código de Defesa do Consumidor. Garcia (2013) aduz que a mesma, de forma inovadora, introduziu a figura do consumidor como agente econômico e social, estabelecendo, de forma expressa, a defesa do consumidor (art. 170, V do CDC), como princípio da ordem econômica.
A Constituição de 1988 veio para tutelar os direitos dos consumidores e possibilitar, inclusive, a intervenção do Estado nas relações privadas, de modo a garantir os direitos fundamentais dos cidadãos. De acordo com o Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro (1997, p.1: “O Código de Defesa do Consumidor veio amparar a parte mais fraca nas relações jurídicas. (STJ, REsp. 90366/MG, Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro. Dj 02/06/1997)”
Como apregoa Nishiyama (2002), a Constituição de 1988, consagrou a proteção ao consumidor no ordenamento jurídico interno, como também a tratou com importância ímpar, uma vez que, se antes as relações de consumo eram regidas por leis civis e comerciais, a partir dela o legislador constituinte constituiu um novo ramo do direito nas relações de consumo.
De fato, conforme ensinamentos de Bruno Miragem (2008), o legislador constituinte não apenas garantiu os direitos do consumidor como direito e princípio fundamental, mas também determinou a edição de um sistema normativo que assegurasse a proteção estabelecida pela Constituição.
1.2ELEMENTOS E PRINCÍPIOS INTEGRANTES DA RELAÇÃO DE CONSUMO
As relações de consumo, ora protegidas pela Constituição Federal de 1988 e pelo Código de Defesa do Consumidor – CDC possuem elementos e princípios multidisciplinares que norteiam sua forma de atuação e que também tem o objetivo de resguardar os direitos dos consumidores superendividados.
De acordo com Viegas (2011), o CDC é um microssistema jurídico multidisciplinar, onde se encontram normas de direito penal, civil, constitucional, processuais penais, civis e administrativas, com caráter de ordem pública. Interpretado por muitos autores de forma interdisciplinar, o CDC, segundo Garcia (2013), tem o objetivo de tutelar os desiguais, tratando de maneira diferente fornecedor e consumidor, com o fito de alcançar a igualdade, ou seja, tutelar os desiguais observando os princípios da vulnerabilidade e hipossuficiência do consumidor, por meio de normas coordenadas entre si que regulam aspectos importantes de proteção do consumidor.
Grinover, Watanabe e Nery (2011) explanam que a inspiração do Código de Defesa do Consumidor Brasileiro sofreu influência dos modelos da Itália, Bélgica, Estados Unidos, Espanha, Alemanha e México, e principalmente do código Francês. Após a sua criação, o CDC foi considerado uma legislação ampla e moderna para a sua época. Positivado pela Constituição Federal de 1988, conforme versa Viegas (2011), o CDC foi reconhecido pelos países-membros do Mercosul, tendo assim reconhecimento internacional e tornado-se inclusive modelo para a formalização de códigos de proteção e defesa do consumidor semelhantes, em outros países.
As normas presentes no Código de Defesa do Consumidor possuem importância relevante para toda a sociedade. Nos dizeres de Marques (2005), as leis consumeristas são “leis de função social” que assegura novos direitos aos consumidores, tornando a sociedade mais equilibrada e harmônica, nas relações jurídicas.
César Fiúza (2012, p.439) esboça um parâmetro para a aplicabilidade do CDC e defende a necessidade da identificação de uma relação de consumo:
“É fundamental, para que possamos traçar um parâmetro de aplicabilidade para o Código do Consumidor, que saibamos identificar uma relação de consumo. Para que haja relação jurídica de consumo, é necessária a presença de três elementos. O elemento subjetivo, que se refere aos sujeitos da relação: de um lado o consumidor; de outro, o fornecedor. O elemento objetivo, representado por aquilo que o fornecedor vai ao mercado oferecer aos consumidores: produtos e serviços. E, por último, o elemento teleológico ou finalístico, que consiste, em linhas gerais, na necessidade de que o adquirente do produto ou utilizador do serviço seja destinatário final da prestação”.
Em consonância com a explanação acima, o CDC traz em seus artigos 1º e 2º a definição de consumidor e fornecedor. O primeiro trata de toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produtos ou serviços como destinatário final, ou seja, o consumidor – aquele indivíduo que compra bens e adquire serviços de modo a satisfazer as suas necessidades e desejos. O segundo, por sua vez, define o fornecedor como toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços, ou seja, o ente que fornece o produto ou serviço que será utilizado pelo consumidor, formando uma cadeia entre ambos, denominada relação de consumo.
Consoante noção cedida por Garcia (2013), o objetivo da política nacional das relações de consumo, disposta no art. 4º do CDC, preza pela harmonização dos interesses dos consumidores e dos fornecedores, compatibilizando a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico com a defesa do consumidor. Tal política é composta pelos Órgãos de Proteção, Defesa e Proteção do Consumidor, contemplada no princípio da ação governamental e implícita no mesmo ordenamento.
Para Soares (2010), os princípios norteadores das relações de consumo, oferecem importante norte hermenêutico para a compreensão do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. Assim, alguns princípios de destacam com de vital importância para o equilíbrio das relações de consumo no que tange a proteção do consumidor superendividado.Ainda no artigo 4º do CDC, encontram-se os princípios da boa-fé e o do equilíbrio das relações de consumo. A boa fé, frente ao superendividamento, destaca-se como categoria jurídica de aplicação imediata e observância obrigatória. Todavia, em face da vulnerabilidade do consumidor e da dificuldade de fazer prova dos elementos de base que geram o estado de superendividamento, a aplicação da boa-fé deve materializar-se sob uma vertente presumida, permitindo, desde logo, sua incidência num eventual litígio. Daí porque a carga da prova em contrário pertence aos credores dos consumidores superendividados (GIANCOLI, 2008).Quanto ao princípio do equilíbrio das relações de consumo, Garcia (2013, p.61), defende que o mesmo é um dos valores fundamentais presentes na proteção contratual e que deve sempre nortear o magistrado no caso concreto. Desta forma são vetadas pelo legislador as obrigações iníquas, abusivas, que ofendam o princípio da boa fé objetiva e a equidade nas relações e consumo.
O abuso na concessão de crédito pelas instituições financeiras que agem de má-fé, por exemplo, viola o princípio da boa-fé e causa desequilíbrios nas relações de consumo. Viola também o princípio da informação quando leva o consumidor a erro por meio de contratos confusos e informações incompletas e tendenciosas.
Cada vez mais a jurisprudência tem reconhecido nas suas decisões os direitos dos consumidores lesados por estes tipos de instituições conforme exemplo a seguir.
“APELAÇÃO CÍVEL. NEGÓCIOS JURÍDICOS BANCÁRIOS. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. RETENÇÃO DA INTEGRALIDADE DO SALÁRIO DA AUTORA PARA PAGAMENTO DE EMPRESTIMOS. SUPERENDIVIDAMENTO. ABUSO DO DIREITO DE CONCESSÃO DE CRÉDITO. LIMITAÇÃO A 30% DOS VENCIMENTOS BRUTOS MENSAIS. ANALOGIA. DANO MORAL IN RE IPSA. I – Uma vez demonstrado que os diversos empréstimos concedidos pela instituição financeira repercutem em prestações cujo montante total é muito superior aos rendimentos mensais do consumidor, acarretando a dedução da íntegra de seus vencimentos, tem-se a hipótese de superendividamento gerado em razão de abuso na concessão de crédito pela instituição financeira, violação à boa-fé objetiva e prática comercial abusiva contra o consumidor, e, como tal, nula de pleno direito a cláusula contratual que autoriza tal dedução automática. Retenção mensal limitada a 30% dos vencimentos brutos, após a dedução dos descontos obrigatórios, por aplicação analógica. II – Ainda que expressamente ajustada, a retenção integral do salário de correntista com o propósito de honrar débito deste com a instituição bancária enseja a reparação moral. APELO PROVIDO EM PARTE. UNÂNIME”. (Apelação Cível Nº 70056268857, Décima Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Liege Puricelli Pires, Julgado em 03/10/2013). (RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Apelação Cível nº 70056268857 RS, 17ª Câmera Cível. Relator: Liege Puricelli Pires. Porto Alegre, 2013). (grifo nosso).
Em conformidade com o exposto, o princípio da educação e informação dos consumidores mostra-se crucial para que os consumidores se familiarizem com os seus direitos e detenham conhecimento para exercê-los com clareza e segurança, principalmente na hora de assumir empréstimos e fazer novas dívidas. Os citados devem ser difundidos pelo Estado, pelos órgãos de proteção aos consumidores e até pelos fornecedores, tendo em vista que quanto maior for o grau de informação existente, menos será o índice de conflitos nas relações de consumo (GARCIA, 2013). Cabe principalmente a estes órgãos, a missão de desenvolver programas de prevenção e tratamento da situação de superendividamento.De acordo com Giancolli (2008), no princípio da cooperação, o ato de cooperar significa um dever comportamental dos parceiros contratuais que agem com boa-fé. A ideia de cooperação surge como uma consequência jurídica que tem como referencial teórico a revolução de 1980, que gerou como frase histórica o axioma “compro, logo existo”. Da leitura deste brocado, como versa Giancolli (2008), verifica-se a solidificação de uma superficialidade de alguns consumidores modernos, materializada e manifestada numa identidade social massificada, que impõe obrigatoriamente o ato de consumo, mais conhecido como cultura do consumismo, pautada pelo desejo e necessidade insaciável de consumir.Além dos citados, há também o princípio basilar da dignidade da pessoa humana, tutelado pelo art. 1º, inciso III da CF/88. O conteúdo jurídico do princípio da dignidade da pessoa humana se relaciona com os direitos humanos, pois, de fato, uma pessoa para ter dignidade precisa que suas necessidades mínimas de sobrevivência sejam atendidas. Se o indivíduo não dispuser de acesso aos bens de consumo – os quais são viabilizados, via de regra, através do crédito de consumo – é tratado, como um ser indigno pela sociedade consumerista. Isso ocorre justamente porque o crédito é um veículo ao mínimo existencial do consumidor, ou seja, trata-se de mecanismo econômico que permite a materialização de uma parcela de consumo sem a qual ele não sobrevive com dignidade.Por isso, já existem várias decisões jurisprudenciais que tratam da necessidade do respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana nos contratos bancários e do respeito da consideração da margem 30% nas modalidades de empréstimos, em especial os consignados para que o consumidor possa atender as suas necessidades mínimas, conforme será exemplificado nas jurisprudências abaixo:
“Agravo interno na apelação cível. Decisão do relator que deu provimento ao recurso, fundada em jurisprudência dominante desta Corte. Inteligência do § 1º-A do art. 557 do CPC. Ação de obrigação de fazer. Relação de consumo. Superendividamento. Sentença de improcedência. Aplicação por analogia do art. 6º § 5º da Lei 10.820/2003 que aponta que os descontos e as retenções financeiras não poderão ultrapassar o limite de 30% do valor dos rendimentos líquidos do devedor. Aplicação da Lei 8078/90. Lesão e onerosidade excessiva que colocam o consumidor vulnerável em manifesta posição de desvantagem. Inteligência dos arts. 6º V c/c 51 IV e § 1º III CDC. Preservação do mínimo existencial. Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III CF/88). Boa fé objetiva nas relações de consumo que impõe conduta de lealdade e cooperação com o hipossuficiente. Art. 4º III CDC. Verbas de natureza alimentar que são impenhoráveis. Inteligência do art. 649 IV CPC. Prática proibida pelo ordenamento. Inaplicabilidade do Decreto Estadual nº 25547/99, que prevê o limite de 40% de descontos para servidores públicos estaduais. Precedentes jurisprudenciais. Sentença que se reforma. Desprovimento do agravo interno”. (RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça. Apelação nº 02674569220118190001 RJ 0267456-92.2011.8.19.0001. 5ª Comarca Cível. Relatora: Cristina Tereza Gaulia, 2013).(grifo nosso).
“CAUTELAR INOMINADA. LIMINAR DEFERIDA. 'FUMUS BONI IURIS' E 'PERICULUM IN MORA' CARACTERIZADOS. PARCELAS DE MÚTUOS CONSIGNADAS EM FOLHA DE PAGAMENTO. DESCONTO SUPERIOR A 60% (SESSENTA POR CENTO) DOS PROVENTOS DE APOSENTADORIA DO AGRAVADO. COMPROMETIMENTO DA SUA SUBSISTÊNCIA. LIMITAÇÃO DOS DESCONTOS AO PATAMAR DE 30% (TRINTA POR CENTO) DOS RENDIMENTOS DE APOSENTAÇÃO DO ACIONANTE. DECISÃO EM CONSONÂNCIA COM ENTENDIMENTO CONSOLIDADO NO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. INSURGÊNCIA RECURSAL NÃO PROVIDA. 1 Válida é, nos contratos de mútuo, a pactuação de desconto das parcelas mensais diretamente dos proventos de aposentadoria ou salário do devedor, desde que o valor do desconto não supere o patamar de 30% (trinta por cento) dos seus rendimentos líquidos, pena de, em se admitindo situação diversa, impor-se ao obrigado encargo excessivo que venha a comprometer gravemente a sua própria subsistência. 2 Em respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, erigido pela nossa Constituição Federal (art. 1º, inc. III), como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, há que se garantir ao devedor a sua própria sobrevivência, resguardando-se-lhe, assim, o mínimo existencial para poder subsistir com alguma dignidade, ao menos. Obviamente, não há que favorecer o Judiciário os maus pagadores, mas não há como o julgador perder de vista os vetores constitucionais da razoabilidade, da proporcionalidade e da dignidade da pessoa humana, valores esses que, sopesados em conjunto com a situação socioeconômica do devedor, estariam a obstar, também, a manutenção dos descontos das parcelas de mútuo em fração superior a 30% (trinta por cento) de seus rendimentos líquidos.” (SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça. Agravo de Instrumento nº 20120346570 (Acórdão) , 2ª Câmera Cível, Relator: Trindade dos Santos, 2013). (grifo nosso).
Por meio da CF, dos princípios elencados no CDC, das legislações consumerista e da doutrina, é possível unificar alguns entendimentos jurisprudenciais. Nestes casos são levando em consideração, principalmente, os princípios da dignidade da pessoa humana e da boa fé nas relações de consumo, para que sejam impostas condutas de lealdade e cooperação com o consumidor hipossuficiente e vulnerável promovendo assim a harmonização e o equilíbrio das relações de consumo.
1.3 A EVOLUÇÃO DAS RELAÇÕES DE CONSUMO DAS FAMÍLIAS BRASILEIRAS
O ato de consumir tem sido uma constante na história da humanidade, sendo a família a principal célula deste órgão. De acordo com Farias; Rosenvald (2010), o ser humano, ao receber o dom da vida, está ligado de alguma maneira ao seio familiar, considerado como “estrutura básica social”. A mesma passou por vários ciclos de desenvolvimento ao longo dos séculos, modificando inclusive a sua forma de consumir. De acordo com Maurer (2012, p.7), “o consumo é parte indissociável do ser humano em todos os períodos de sua existência, independente de idade, gênero, casse social ou faixa etária”.
No Direito antigo, a família primitiva tinha como característica principal a mútua proteção e segurança. Entende Siqueira (2010), que a formação da família era determinada pela necessidade de subsistência, a qual regulava as uniões e o número de filhos. Nesta época, as diferenças sociais eram incomensuráveis e a maioria das famílias tinha como ideal consumir para a satisfação das necessidades básicas para a sobrevivência.
Ariés (1978), entende que as era moderna, as diferentes concepções de famílias estiveram pautadas no modelo de família patriarcal verticalizada, na qual o pai ocupava o lugar central e os filhos e a mulher ficavam em segundo plano. Contudo, na sociedade contemporânea emergiu outro tipo de família, introduzindo mudanças radicais nos laços entre as pessoas; a mulher e as crianças ganharam novas posições. A luta pela igualdade de direitos tornou-se uma das características da era moderna, se consolidando com a edição do Decreto nº. 181 de 1890, que introduziu no Brasil o casamento civil.
Com a Revolução Industrial, as famílias deixam de produzir para a sua subsistência nas lavouras e passam a trabalhar dentro das fábricas. No século XX, conforme aduz Siqueira (2010), a sociedade deu grandes saltos em termos de desenvolvimento principalmente a partir dos anos 60 quando se iniciou a liberação dos costumes, a revolução feminina, o rompimento do ciclo casamento/sexo/ reprodução e a evolução da genética, que possibilitou novas formas de reprodução e uma perspectiva mais igualitária entre homens e mulheres e entre outros fatores contribuíram para redefinição do conceito de família.
Nos dois últimos séculos, houve uma evolução na função social da família. A proteção a esta se expandiu e a mesma passou a ser concebida pelos laços da afetividade conforme versa Dias (2009), visando à felicidade dos seus membros. Com o advento da Constituição Federal de 1988, e a tutela do divórcio, a sociedade reconheceu novos núcleos familiares e os papéis foram modificados com a inserção da mulher no mercado de trabalho, podendo agora ser o provedor tanto o homem quanto a mulher. A expectativa de vida também se ampliou, graças aos avanços da ciência que melhoraram a qualidade de vida das pessoas.
Contudo, para atender aos anseios e necessidades individuais e coletivas desta nova geração, motivada pelo desejo de liberdade, independência e reconhecimento ocorrem gastos em excesso, que podem ser voluntários e involuntários e que geram desequilíbrios financeiros podendo levar as famílias a uma situação de endividamento até de superendividamento.
2. O SURGIMENTO DA CONCEPÇÃO DE UMA SOCIEDADE CONSUMERISTA E DO SUPERENDIVIDAMENTO
O século XIX um marco para o início do desenvolvimento da sociedade de consumo. Enquanto a Primeira Revolução Industrial utilizou como fonte de energia o vapor, a segunda Revolução Industrial encontrou novas formas de energia: a eletricidade e o petróleo, que proporcionaram a invenção do motor e possibilitaram a construção de máquinas menores com eficiência energética, em comparação às máquinas utilizadas durante a primeira Revolução. Ensina Barbosa (2004) que as grandes guerras mundiais, ocorridas no século XX, provocaram uma desestabilidade econômica, que resultou na mudança do eixo financeiro mundial da Europa para os Estados Unidos, e propiciaram, também, grandes avanços tecnológicos e a disseminação da globalização.
A revolução tecnológica do final do século XX, o advento da Internet e a difusão dos meios de comunicação em massa, para Menezes (2008), trouxeram um potencial inovador ímpar, pois permitiu a superação das paredes dos escritórios e das salas de aula e o intercâmbio de ideias entre pessoas de outras cidades ou países, ou seja, uniram os povos em uma aldeia global, que busca acelerar o crescimento econômico a qualquer custo, impondo um padrão de comportamentos e atitudes nas relações de consumo das pessoas, das famílias e das culturas.
As facilidades geradas pela tecnologia de ponta norteiam, hoje, os diferentes modos de vida das famílias na sociedade. Houve uma evolução na forma de consumir produtos e serviços, principalmente nas últimas décadas, nas quais grandes invenções dantes imagináveis se tornaram cotidianas como, por exemplo: assistir TV no ônibus; fazer uma reserva para um hotel localizado no outro lado do mundo via Internet; ouvir música pelo televisor; utilizar o celular para filmar e tirar fotos; se corresponder instantaneamente via e-mail, guardar imensos arquivos em minúsculos chips, entre outras invenções facilitadoras da vida moderna.
De acordo com dados recentes da Pesquisa de Educação Financeira realizada pela empresa SPC Brasil, em fevereiro de 2013, sobre o comportamento dos consumidores, 43% dos entrevistados compram por impulso devido a motivos emocionais, enquanto 85% dos consumidores fazem alguma compra sem planejamento prévio e 42% dos mesmos não guardam nada de seus rendimentos.
Bauman, (2008), caracteriza a sociedade de consumo pela aquisição excessiva e pela rápida substituição dos bens disponíveis no mercado. Na sociedade consumerista as pessoas são impelidas a consumir em curtos espaços de tempo para a satisfação dos desejos. Na sociedade em que o “ter” está sendo mais valorizado que o “ser”, os objetos de desejo passam a ter um valor simbólico de acordo com Marimpietri (2009). Motivados pela necessidade de reconhecimento exterior e apoiado pelo crédito fácil, muitos consumidores são levados a acreditar que consumir é sinônimo de felicidade.
Em consonância com a professora Flávia Marimpietri (2009, p.69) “as pessoas procuram cada dia mais a satisfação de desejos, sem perceber que tal movimento conduz a uma escalada infinita. Consumir deveria significar preencher necessidades, e não preencher desejos.” Aduz ainda que “os sujeitos vivem na era do consumismo, ou seja, consumir por consumir, por prazer, status, por vaidade, por ansiedade, por recompensa”. Concordando com o entendimento acima, Maria Stella Gregori (2008, p.249) explana que: “os consumidores passam a consumir de acordo com os seus desejos, o modo de vida centrado em valores materialistas, caracterizando a sociedade hedonista, sociedade do desejo”, ou seja, as pessoas passaram a se preocupar apenas com o prazer imediato e o constante bem estar. Com isso, ocorre uma deturpação dos princípios e valores sociais que fazem do ato de consumir uma das necessidades básicas de sobrevivência e reconhecimento social.
Maurer (2012, p. 16), afirma que “na sociedade de consumo a felicidade está diretamente ligada à aquisição de mercadorias, as quais serão determinantes, para que o indivíduo integre, ou não, determinada classe ou grupo social”. Ao ponto de muitas pessoas, consumistas natas, para não deixar de saciar seus desejos adquirem dívidas que, não raras vezes, não conseguem honrar, e por isso enfrentam uma situação de superendividamento. Este fenômeno social é tão grave que também gera aumento da violência e da delinquência, quando alguns indivíduos não possuem os recursos financeiros necessários para consumir o que deseja e encontram na criminalidade como um caminho mais fácil para atender ao apelo do consumo.
É notório observar, por exemplo, nas casas de algumas pessoas de parcas condições financeiras, uma TV de plasma com 3D, e/ou um aparelho de som potente, quando muitas vezes não há uma cama, fogão ou geladeira em bom estado de uso. Quantas são as famílias que possuem um carro importado e não possuem casa própria, sem falar daquelas que compram um celular de ultima geração, dividindo o pagamento em várias vezes no cartão de crédito e não têm condição de pagar por créditos pré-pagos, e ainda tem aquelas que não dispõem de uma cédula de dois reais na carteira, mas possuem mais de uma dúzia de cartões que, somados os limites, o valor total ultrapassa a renda familiar mensal.
Viver de aparências está se tornando uma regra. As pessoas são mais valorizadas pelo que tem e pelo que vestem do que pelo conhecimento e experiências acumuladas. No meio coorporativo e jurídico estas discrepâncias podem ser facilmente percebidas, é só observar o tratamento que é dado, por exemplo, a dois advogados bem vestidos, só que o primeiro com roupas de marca e o segundo não. Para se sentirem excluídas do meio em que vivem ou querem viver, os sujeitos assumem dívidas além das suas receitas e extrapolando até a capacidade financeira familiar e se endividam cada vez mais, tornando isso um ciclo vicioso.
Para Soares (2010), o aparecimento da sociedade de consumo engendrou, assim, uma nova concepção de relações jurídicas, baseada na desigualdade fática entre os sujeitos de direito. Aproveitando-se da vulnerabilidade e hipossuficiência do consumidor, muitos fornecedores, em prol do lucro a qualquer custo, promovem publicidade enganosa e abusiva contra os consumidores, deixando de cumprir ofertas, de prestar informações seguras sobre os produtos e serviços, atuando de má fé e de forma desleal, contrariando, assim, o Código de Defesa do Consumidor que versa que o consumidor tem o direito de exigir que tudo que for anunciado seja cumprido, conforme o que ressaltam os artigos nº. 30, 31,36 e 37 do Código de Defesa do Consumidor.
3. AS CAUSAS E CONSEQUÊNCIAS DO SUPERENDIVIDAMENTO FAMILIAR
Na sociedade consumerista, o crédito é mecanismo sócio-jurídico, disponibilizado ao consumidor moderno para proporcionar a realização de seus sonhos e desejos como um verdadeiro catalisador da felicidade humana.
A oferta de crédito direcionado ao consumo teve sua origem nos Estados Unidos, expandindo-se posteriormente para a Europa e de modo recente a outros países menos favorecidos economicamente. (LIMA, 2006). Já no Brasil, para Lima (2006), a oferta de crédito tornou-se mais expressiva a partir da estabilidade da moeda, ou seja, com o advento do Plano Real (1994), quando o crédito tornou-se um dos mecanismos de gestão do orçamento familiar e componente das economias de mercado. Desta forma, com a estabilidade econômica, as instituições financeiras mudaram o foco passando a privilegiar as operações de crédito antes as aplicações em conta poupança. Fato individual com consequências sociais, incentivado pelo desejo de obter produtos e serviços sem o prévio planejamento dos gastos, o endividamento se apresenta nas diversas classes sociais. A economia de mercado desenvolvida no Brasil é voltada para o incentivo ao consumerismo, no qual os consumidores são impulsionados a consumir para manter a economia aquecida.
Para Bolade (2012), a concessão de crédito ao consumidor está associada ao desenvolvimento econômico, uma vez que, proporciona o acesso das classes mais pobres a bens e serviços de consumo, sendo, desde logo um fator de inclusão social.
Em consonância com Lima (2006, p. 09) “o consumo e crédito são duas faces de uma mesma moeda, de tal modo que controlar a primeira significa fazer o mesmo com a segunda”, Desta forma, entende-se que o crédito é capaz de propiciar a inclusão social das famílias, como também de levá-las à exclusão social, dependendo do mecanismo e da proporção de sua aquisição, ou seja, ele pode gerar o endividamento dos indivíduos, quando os rendimentos das famílias não comportam seus compromissos financeiros vitais básicos e ocorre o inadimplemento das dívidas. No prisma de Costa, o crédito se revela “um flagelo que provoca a pobreza e a miséria”.
De acordo com a Pesquisa Nacional de Intenção de Consumo das Famílias (ICF-Nacional) medida em abril de 2014, o percentual de famílias com dívidas ou contas em atraso apresentou alta na comparação mensal, passando de 20,8% em março de 2014 para 21,0% em abril de 2014. Enquanto o percentual de famílias que declararam não ter condições de pagar suas contas em atraso, foi de 8,3% em abril de 2014 e 7,7% em relação a abril de 2013. Entre as famílias endividadas, a parcela média da renda comprometida com dívidas aumentou na comparação anual, passando de 29,9% para 30,9%, e 22,6% delas afirmaram ter mais da metade de sua renda mensal comprometida com pagamento de dívidas. Pelos percentuais relacionados é possível notar que o nível de endividamento da população está crescendo anualmente e mensalmente. Na atual sociedade consumerista, os empresários costumam por meio do crédito fácil, criar facilidades para que o consumidor não pare de consumir, sejam elas pelo fornecimento e/ou aumento de crédito, fornecimento de cartões e boletos de loja, aumento do limite de cheque especial, empréstimos consignados e os facilitados sem burocracia (com juros elevados), ofertas, promoções, entre outras formas, levando o consumidor a consumir por impulso, sem fazer uma reflexão prévia se haverá saldo suficiente para adimplir as novas obrigações. De acordo com Martinex (2010, p.3), “as taxas de juros no Brasil estão entre as maiores do mundo e as modalidades que representam as maiores facilidades de acesso ao crédito, como o cartão de crédito e o cheque especial, são as que possuem os maiores encargos de financiamentos”. Apesar de existir alguma regulamentação sobre a temática, não há um controle efetivo e contundente do Estado.
O crédito possibilita a modalidade de compra no presente para pagamento futuro. Para o crédito cedido ao consumidor ser utilizado, o valor é pago pela prestadora de serviço direto ao fornecedor, e o consumidor faz o pagamento na data do vencimento acordado com a Financeira ou Banco. Contudo, muitas vezes o consumidor se excede nos seus gastos e não consegue pagar o valor devido ou deixa de pagar o valor total ou parcial de alguma prestação. Como são cobrados juros elevados e cumulativos sobre o valor atrasado, o valor da dívida cresce rapidamente e se não for paga ou negociada compromete boa parte da renda dos consumidores.
Este problema se torna ainda maior quando são fornecidos diferentes canais de crédito e o consumidor não consegue pagar a soma das dívidas advindas desses créditos. O cartão de crédito, por exemplo, foi apontado pela Pesquisa Nacional CNC – Endividamento e Inadimplência do Consumidor, medida em abril de 2014, como um dos principais tipos de dívida por 74,8% das famílias endividadas, seguido por carnês para 16,9%, e, em terceiro, por financiamento de carro, para 13,8%.
O abuso do direito na concessão de crédito é apontado como um grande problema da sociedade de consumo, principalmente quando a modalidade de crédito é precedida de uma pratica abusiva e atentatória ao princípio da dignidade da pessoa humana, conforme jurisprudência abaixo:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO DO CONSUMIDOR. SUPERENDIVIDAMENTO. ABUSO DO DIREITO DE CONCESSÃO DE CRÉDITO. VIOLAÇÃO AOS DEVERES ANEXOS. Decisão agravada que, abriu vistas às rés para que, adéqüem os valores dos empréstimos, contratados pelo agravado aos parâmetros, estabelecidos pelos cálculos do Contador do Juízo, sob pena de multa de R$ 100,00 (cem reais) por cobrança em desconformidade com a decisão anterior, que antecipou os efeitos da tutela antecipada. Limite de 30% do valor da parcela de cada banco réu. Impossibilidade de confisco integral de renda, prática abusiva e atentatória à dignidade da pessoa humana. (…).” (RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça. Agravo de Instrumento nº 005695158 20138190000 RJ 0056951-58.2013.8.19.0000, 6ª Câmara Cível, Relatora: Claudia Pires dos Santos Ferreira, 2014). (grifo nosso).
Este quadro se agrava pelo fato do Brasil não permitir a falência da pessoa física, como em outros países, o crédito ao consumidor, pessoa física, torna-se um problema quando o consumido tem que abrir mão até do mínimo existencial para quitar as suas dívidas.
O endividamento gerado na maioria das vezes pelo fácil acesso ao crédito pode levar à exclusão das pessoas da sociedade consumo. O mesmo em demasia pode levar o consumidor a uma situação de superendividamento que, para Marques (2010), pode ser definido como impossibilidade global do devedor-pessoa física, consumidor, leigo e de boa-fé, de pagar todas as suas dívidas atuais e futuras de consumo em um tempo razoável com sua capacidade atual de rendas e patrimônio. O fenômeno do superendividamento pode atingir uma esfera macro quando uma gama de consumidores passa a enfrentar a mesma situação.
Na lição da autora portuguesa, Maria Leitão (2000), o superendividamento ocorre quando o consumidor devedor se vê impossibilitado, de uma forma durável ou estrutural, de pagar o conjunto de suas dívidas, ou mesmo quando existe uma ameaça séria de que o não possa fazer no momento em que elas se tornem exigíveis.
Giancoli (2008, p.08) aduz que o superendividamento é um fenômeno tanto social quanto jurídico:
“O superendividamento do consumidor surge como a face negra da democratização do crédito ao consumo. Tão antigo como a história do crédito, esse fenômeno tornou-se um problema coletivo relevante quando da massificação do crédito. Por isso, ele deve ser encarado tanto como um problema social, como um problema jurídico, justamente porque a ideia de ser devedor sempre esteve associada ao sentimento de fracasso, de infelicidade, de pobreza, de indignidade humana.”
De acordo com Filomeno (2012), a lei especial francesa de 1989 define superendividamento como a circunstância caracterizada pela impossibilidade manifesta pelo devedor de boa-fé de fazer face ao conjunto de suas dívidas não profissionais exigíveis e não pagas. Já para a doutrina europeia, o superendividamento é uma espécie de falência do homem comum e é considerado um fenômeno estrutural devendo ser tratado de forma global. A natureza jurídica do superendividamento do consumidor, de acordo com Giancolli (2008), decorre da necessidade de cooperação social dos agentes da ordem econômica, para garantir a manutenção digna da capacidade de crédito do consumidor, crédito este visto como um instrumento de acesso aos bens para sua sobrevivência social mínima. Desta forma, o superendividamento pode ser considerado com um standart jurídico que permite a correção da assimetria de uma ou diversas relações jurídicas contraídas pelo consumidor, em razão da existência de um conjunto de dívidas estruturais ajustadas de boa-fé, capazes de ameaçar ou lesionar sua dignidade pessoal.
Neste prisma, é relevante denotar que são variadas, as causas geradoras das situações de superendividamento, subdividindo-se em fatores externos e imprevistos, tais como desemprego, morte, acidente, redução de salário, doença, divórcio, entre outros, e fatores previsíveis, advindos como consequência da má administração das finanças e/ou falta de educação financeira.
O descumprimento do dever de informação, a negligência na concessão de crédito, a publicidade excessiva, a falta de incentivo à educação financeira e ao planejamento dos gastos, o crédito facilitado, crises econômicas, altos índices de inflação, desequilíbrio econômico do país, exclusão social, entre outros, também são fatores que impulsionam o crescimento do nível de superendividamento da população.
Contudo, ao consumidor superendividado de boa-fé, ou seja, aquele que não se endividou com a ambição de lesar os credores, mas por inexperiência, despreparo ou falta de orientação e tem o desejo de quitar as suas dívidas, é pertinente a proteção jurídica. Quanto ao consumidor que age de má-fé, que deliberadamente assumiu novas despesas sabendo que não teriam como pagar, e não tendo a intenção de fazê-lo, se esta for comprovada, a legislação brasileira não tenderá a proteger este indivíduo.
O estímulo ao consumo por parte do Governo por meio de incentivos fiscais, também pode ser considerada uma das causas do superendividamento e sempre ocorre quando o país atravessa situações de crise e precisa manter a economia aquecida por meio do consumo. Em 2008, por exemplo, com o objetivo de amortecer os efeitos da crise econômica, o Brasil adotou medidas para manter nível de consumo e atenuar os efeitos da crise econômica, dentre elas a redução do Imposto Sobre Produtos Industrializados – IPI e o aumento de crédito e subsídios (CORONEL, 2010). A consequência destas medidas, entretanto, para Silva (2012), foi o forte crescimento do consumo no país o que, contudo, vem trazer para esses consumidores o que se pode chamar de “ilusão monetária”, isto é, quando não ocorre a percepção, por parte do indivíduo, da sua real capacidade de pagamento, o que, na maioria dos casos, pode vir a culminar na inadimplência.
Pelos diversos motivos citados anteriormente o nível de endividamento das famílias brasileiras aumenta a cada ano, de acordo com a Pesquisa Nacional de Intenção de Consumo das Famílias (ICF-Nacional) medida em abril de 2014, o percentual de famílias endividadas que ganham até dez salários mínimos foi de 64,1% em abril de 2014, ante e 63,8% em abril de 2013, ou seja, no comparativo o nível aumentou de um ano para o outro. O número de pessoas físicas inadimplentes na base de registros do Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil) aumentou 5,54% em fevereiro de 2014 na comparação com o mesmo mês de 2013. A alta foi maior do que a verificada em fevereiro de 2013 (5,34%), de forma que em março de 2014, o país registrou 52 milhões de consumidores inadimplentes, ou seja, os dados demonstram que o percentual dos números de famílias aumentou, bem como o nível de inadimplência.
Para Andrade et al. (2008), o não cumprimento das obrigações é decorrente da situação econômica do país, o que faz com que os indivíduos, na hora de honrar seus compromissos financeiros, deem prioridade às suas necessidades básicas, não conseguindo cumprir com outras obrigações.
O consumo em excesso tem um preço que é imposto pelo sistema capitalista. Tudo que o consumidor compra, seja à vista ou a prazo, em algum momento terá que ser pago. Nos casos em que não houve um planejamento para o pagamento da nova dívida, o consumidor, terá que pagar com o dinheiro que seria relocado para dívidas fixas ou variáveis já existentes; recorrendo a algum tipo de empréstimo ou estará fadado a ficar inadimplente. O problema é que na medida em que o sujeito fica inadimplente, o seu nome fica "sujo", ou seja, passa a fazer parte da lista dos maus pagadores nos serviços de proteção ao crédito e quando isso acontece, as mesmas portas que se abriram para incentivá-lo a consumir e forneceram crédito se fecham para ele.
Com o nome “sujo” e endividado, segundo versa Marimpietri (2009), o consumidor perde, paulatinamente, a capacidade de sair deste estado de inadimplência. Instala-se um ciclo vicioso – as dívidas impedem a concessão de novos créditos para pagamento das antigas dívidas, passando a acumular estas com o aparecimento de outras. Se continuar consumindo na mesma proporção, facilmente enfrentará uma situação de superendividamento, e parando de consumir se tornará um ser inativo e descartável para a sociedade de consumo.
O superendividamento pode provocar consequências de ordem multidisciplinar, atingindo os consumidores e suas respectivas famílias, na medida em que o sentimento de incapacidade de sanar suas pendências com os credores afeta a estrutura e rotina familiar como um todo. Conforme defende Cerbasi (2009), Estes fatores, aliados ao acúmulo de preocupações, geradas pela busca de soluções para a situação de superendividamento podem gerar ainda desentendimentos, mudança de comportamento dos indivíduos, agressividade, impaciência e até situações de violência doméstica e divórcio entre outros. Ainda mais porque, a principal preocupação da maioria dos credores é apenas com a quitação do débito, pouco importando se o consumidor possui meios para isso ou se terá que dispor só de seu mínimo vital para tanto.
Na esperança de reorganizar suas finanças e saldar as dívidas, muitos consumidores comprometem o patrimônio e renda familiar, para tentar saldar as dívidas e mesmo assim não tem obtido resultados satisfatórios quanto ao alcance de um equilíbrio econômico-financeiro. A liquidação do patrimônio penhorável do devedor para a satisfação dos créditos pendentes, pode ser considerada como uma das maiores consequências do supereendividamento.
4. A PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR SUPERENDIVIDADO
O Direito do consumidor pode ser considerado um dos mais recentes do ordenamento jurídico brasileiro e abarca inúmeras hipóteses de aplicabilidade, contudo com a rápida evolução social, novas e diferentes situações surgem dentro da esfera consumerista que e necessitam também da tutela do CDC.
De acordo com Paulo de Tarso Sanseverino (2012) o fenômeno do superendividamento, que tem sido uma preocupação atual do Direito do Consumidor em todo o mundo, decorrente da imensa facilidade do crédito nos dias de hoje. (BRASIL. Supremo Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Recurso Especial nº 1230748 RS 2011/0008876-0, 3ª Turma. Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, 2012).
O superendividamento é uma das matérias que ainda não é observada expressamente no CDC, a mesma está sendo apreciada pelo Senado Federal, e, portanto, ainda não virou lei, o que levanta divergências quanto à proteção do consumidor superendividado, no caso concreto. A proteção dada ao consumidor superendividado na conjuntura atual do ordenamento pátrio, como dito, é insuficiente para tutelar as mais diversas situações pertinentes ao tema. O Código de Defesa do Consumidor elenca além de princípios, alguns artigos que são utilizados por analogia pelos magistrados na tentativa de assegurar a proteção do consumidor superendividado em determinadas situações, já que ainda não há uma regulamentação própria para tutelar o mesmo. O inciso V, do artigo 6º do CDC, por exemplo, prevê a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou ainda sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas. Desta forma, o legislador pretendeu promover um equilíbrio contratual com a prevalência da defesa do consumidor, em face da autonomia da vontade.
No mesmo contexto, é importante destacar também o artigo 46º do CDC que versa que: “os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão”, neste caso, os contratos que incorrerem neste erro, serão considerados inválidos, já que podem induzir o consumidor a erro.
De acordo com Postiguilhone, Feversani e Almeida (2010), o CDC possui cláusulas expressas especificamente para o superendividamento tecer um panorama fictício da realidade, na medida em que o tema superendividamento carece de atenção pelo legislador, tendo em vista que o tema é carregado por subjetivismo, partindo-se da premissa que é necessário sempre estar caracterizada a boa-fé nas dívidas adquiridas pelo consumidor.
Marques (2005) afirma que ainda não existe ordenamento jurídico específico para o tratamento e prevenção do superendividamento, porém cita que só há apenas regulamentação administrativa (artigo 1.040ª, da Consolidação Normativa Judicial do Estado do Rio Grande do Sul), que serve de base para a atuação dos juízes nas audiências conciliatórias coletivas daquela região.
Diferentemente do Brasil, outros países já demonstram uma preocupação com a questão do superendividamento, de acordo com Marques (2005, p.46), “os direitos dinamarquês, francês, alemão, belga, holandês, luxemburguês, austríaco, norueguês, sueco, finlandês, canadense, inglês e norte-americano instituíram uma legislação vocacionada a tratar das situações de superendividamento dos consumidores”. Enquanto que na Espanha, Itália e Portugal, também já estão ocorrendo vários debates no sentido de criar soluções para a prevenção e tratamento do problema do superendividamento, de acordo com Malucelli (2008).
A carta magna de 1988 trata no artigo 5º da proteção ao consumidor no âmbito geral e estabelece também a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República, no artigo 1º, inciso III. Por isso, a proteção do consumidor superendividado recebe o amparo constitucional na medida em que a prevenção e o tratamento deste fenômeno serão formas de assegurar a dignidade dos consumidores superendividados entre outros princípios, (MARQUES, 2005).
De acordo com Marques (2005), várias ações judiciais envolvendo o tema superendividamento estão ocorrendo no Brasil. Neste caso, o superendividamento se destaca nas causas de pedir ou na fundamentação de defesa em vários tipos de ações tais como: ações revisionais, ações de cobrança, ações de insolvência civil, ações monitórias, ações executórias, entre outras. Também já são identificadas por analogia, ações denominadas de declaratórias de superendividamento, para fins de renegociação de dívidas. Quanto à tendência dos julgados, afirma Marques (2005) que ainda não se pode vislumbrar preponderância de entendimento jurisprudencial.
Para Marques (2005, p.49), “o superendividamento é uma crise de solvência e de liquidez do consumidor, crise que facilmente resulta em sua exclusão total do mercado de consumo, comparável a uma nova espécie de “morte civile”: a “morte do homo economicus”, ou seja, o superendividamento pode significar a morte econômica do indivíduo e o seu isolamento da sociedade de consumo com reflexos em todo o seu grupo familiar. Além disso, pode trazer também inúmeras restrições na vida social e profissional.Para prevenir as situações de superendividamento, além do apoio governamental, é peculiar que seja amplamente observado o princípio da informação, bem com a concessão de crédito pelas instituições financeiras deve ocorrer forma responsável com o controle e fiscalização dos Órgãos de Proteção e Defesa do Consumidor. Em consonância, na Apelação Cível, nº 2009.001.51393/ RJ, relatada pelo Desembargador Sidney Hartung fica claro na decisão proferida preocupação com o oferecimento de crédito pelas instituições financeiras:
“APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS – SUPERENDIVIDAMENTO-PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA – CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR-(…) O OFERECIMENTO DE CRÉDITO PELAS INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS DEVE SER FEITO DE FORMA RESPONSÁVEL, DESESTIMULANDO O SUPERENDIVIDAMENTO DOS CONSUMIDORES. – (….) – Razoável que os descontos sejam fixados no limite de 30% do valor do salário da autora, conforme a jurisprudência deste E. Tribunal. – Apelo da autora – Danos morais corretamente fixados. – Observância dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, bem como ao postulado da vedação ao enriquecimento sem causa. – Acerto da sentença. – Aplicabilidade do disposto no art. 557, caput do CPC. – Negado Seguimento aos Recursos”. (2009.001.51393 – Apelação, Des. Sidney Hartung – Julgamento: 01/10/2009 – QUARTA CAMARA CIVEL). (RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça. Apelação nº 2009.001.51393/ RJ. 4ª Câmara Cível, Relator: Sidney Hartung, 2009). (grifo nosso).
Em prol do crescimento e desenvolvimento econômico, muitas pessoas são sacrificadas neste percurso, por tanto se faz necessário que o estimulo ao crescimento do superendividamento seja contido e que o crescimento econômico se construa tendo como base o respeito aos direitos dos consumidores que são os destinatários finais de toda a produção econômica.
E necessário também, que se dê atenção à ampliação das políticas públicas de proteção e defesa do consumidor, em especial o superendividado, cabendo às entidades governamentais de defesa do consumidor integrantes legadas ou parceiras da Secretaria Nacional do Consumidor, elencadas por Bessa e Moura (2010), como Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor – DPDC, PROCON’s, municipais e Estaduais, órgãos por excelência destinados à proteção e defesa dos direitos dos consumidores, Ministério Público, Defensoria Pública, Delegacias de defesa do Consumidor, Juizados Especiais Cíveis e Entidades Civis de Defesa do Consumidor, desenvolver tal política.
O tratamento das situações de superendividamento no Brasil também é realizado pelos órgãos de proteção e defesa do consumidor, de forma empírica, porque a falta de estatísticas oficiais do número de superendividados dificulta a identificação dos níveis de superendividamento dos consumidores e o desenvolvimento de políticas preventivas e tratativas baseadas em dados fáticos. No país, os únicos bancos de dados disponíveis, apenas para registro dos casos de inadimplemento, são os dos serviços de proteção ao crédito, gerenciados pelas empresas SPC Brasil e SERASA Experian.
Para Postiguilhone, Feversani e Almeida (2010), a concessão desmesurada de crédito tem provocado a falência de muitos consumidores, o que gera consequências jurídicas pela insolvência, e desencadeia problemas de ordem social com a restrição ao crédito e exclusão da sociedade de consumo. Ademais como já citado, para tentar reverter esta situação muitos consumidores passam a dispor de seu mínimo existencial, vivendo, muitas vezes, em uma situação de miserabilidade com suas famílias.
Para o tratamento das situações de superendividamento seria pertinente também à adoção acordos por meio de um plano de pagamento amigável, em que as partes fossem livres para renegociar suas dívidas e estabelecer as respectivas condições de extinção dos débitos, bem como a possibilidade de o reparcelamento das mesmas; a redução, eliminação ou imputação do pagamento de juros vincendos sobre o capital devido, a suspensão das execuções judiciais em curso e moratória de até dois anos, estudo da possibilidade de eliminação (ou remissão) parcial do conjunto das dívidas por meio da análise de casos concretos, levando em consideração que alguns consumidores estão com os nomes nos Órgãos de proteção ao crédito por valores irrisórios.
A família, nesta conjuntura, exerce um papel de singular relevância no quesito superendividamento, cabe a ela o papel basilar de transmitir valores e princípios que incentivem o desenvolvimento do consumo consciente por parte dos seus membros. Cabe a ela também oferecer apoio aos mesmos no tratamento da situação de superendividamento, na qual toda a família deve permanecer unida e tentar amenizar as consequências do superendividamento, por meio do apoio social e psicológico. Através deste apoio, o indivíduo superendividado pode melhorar a autoestima, evitar depressões, brigas e desentendimentos de forma mais rápida, consciente e assertiva, tomar decisões em conjunto para conseguir reverter esta situação que atinge direta ou indiretamente a todos os membros desta.
Para atender aos anseios e necessidade de ampliação da proteção jurídica dos consumidores, presentes na política Nacional das Relações de Consumo, foi necessária a criação de projetos de leis para implantação de importantes reformas no CDC.
Trata-se dos projetos de Lei do Senado nº. 281/2012 e nº. 282/2012 e nº. 283/2012. O primeiro pretende-se inserir no CDC regras relativas ao comércio eletrônico, tais como regras para a divulgação de dados do fornecedor, a vedação de spams além da criação do direito de arrependimento, para inibir a contratação irrefletida. Enquanto o projeto de nº. 282/2012 pretende inserir no ordenamento medidas para assegurar a celeridade nas ações coletivas.
O projeto nº. 283/2012 visa estabelecer regras para regulamentar à oferta de crédito e assim prevenir o superendividamento. De acordo com Oliveira (2013), o projeto prevê a criação da conciliação em caso de superendividamento, que nada mais é do que um acordo entre o consumidor e o credor com um plano de pagamento com prazo de até cinco anos. Segundo o mesmo autor, o projeto ainda prevê a inclusão do parágrafo 4º do artigo 54-B, que versará sobre a vedação, expressa ou implicitamente, na oferta de crédito ao consumidor, publicitária ou não; e fazer referência a crédito, utilizando os termos “sem juros”, “gratuito”, “sem acréscimo”, com “taxa zero” ou expressão de sentido e entendimento semelhantes”, o que ajudará o consumidor a não ser ludibriado ou levado a erro na hora de recorrer ao crédito. Entretanto, o citado ainda não se trata do texto final, que por estar aberto a votação pode sofrer emendas e alterações que a sociedade espera que sejam benéficas ao consumidor, para garantir a harmonização das relações de consumo.
Mudanças legislativas que possam trazer regulação jurídica as situações que versão sobre a temática do superendividamento, bem como ações afirmativas desenvolvidas por entidades pública ou privada que ofereça algum tipo de orientação ao consumidor, conscientizando-os sobre a existência do fenômeno, causas e formas possíveis de tratamento, estará contribuindo positivamente com a sociedade. É possível indicar como exemplo os serviços prestados no PROCON, CODECON, Defensoria Pública, Serviços de Assistência Judiciária Gratuita das Universidades, Associações Civis (como a Associação das Donas de Casa), entre outros.
Em alguns estados, os órgãos de proteção do consumidor, desenvolvem Núcleos de Proteção ao Consumidor Superendividado. No caso da Bahia, por exemplo, o Núcleo de Educação Financeira – NEF atende aos consumidores superendividados, e também realiza diversos mutirões de renegociação de dívidas, ações educativas na capital e no interior do estado como ações, palestras, seminários e oficinas que orientam os consumidores para a prevenção do superendividamento, através da elaboração o planejamento financeiro, da planilha de orçamento doméstico, bem como realiza campanhas para o tratamento das situações consumidor que já se encontram superendividados.
CONCLUSÃO
O trabalho exposto teve o objetivo de propiciar uma reflexão a cerca das consequências do superendividamento familiar nas relações de consumo. Para tanto, o tema proposto e suas vertentes foram analisadas e discutidas sob o ponto de vista jurídico e social.
Alguns aspectos das relações de consumo foram destacados através de um levantamento histórico que pontuou a composição das primeiras relações de consumo da antiguidade em paralelo com a atualidade. Destacou-se também o início da proteção ao consumidor no Brasil e a sua evolução.
Foi observado que no Brasil, a tutela jurídica do consumidor teve um longo processo evolutivo e a Constituição Federal de 1988, foi a grande responsável pela imposição da criação de um sistema jurídico para a proteção do consumidor. O código de defesa do consumido, como um microssistema jurídico, foi pontuado como uma ferramenta multidisciplinar que tutela as relações de consumo e estabelece por meios dos seus princípios e mandamentos medidas protetivas e coercitivas para o equilíbrio e harmonização das relações de consumo.
A evolução das relações de consumo das famílias brasileiras teve um impulso nas últimas décadas com a consolidação da legislação consumerista. Entretanto o estimulo ao consumo por parte do governo e das instituições privadas aumentou progressivamente o nível de consumo entre os indivíduos.
Destacou-se que na sociedade consumerista as pessoas são impelidas a consumir para a satisfação de desejos e necessidades individuais e coletivas, motivadas pela necessidade de reconhecimento exterior e apoiado pelo crédito fácil. Para tanto, muitos consumidores gastam mais do que ganham o que gera desequilíbrios financeiros e podem levar a família a uma situação de superendividamento.
Foi observado que o superendividamento pode provocar consequências de ordem multidisciplinar, atingindo os consumidores e suas respectivas famílias, na medida em que o sentimento de incapacidade de sanar suas pendências financeiras com os credores, afeta toda a estrutura familiar. Notou-se ainda que na esperança de reorganizar suas finanças e saldar as dívidas, muitos consumidores têm comprometido todo seu patrimônio e renda e mesmo assim não tem obtido resultados satisfatórios quanto ao alcance de um equilíbrio econômico-financeiro. Desta forma, foi entendido que a liquidação do patrimônio penhorável do devedor para a satisfação dos créditos pendentes, é uma das maiores consequências do supereendividamento.
Para a minoração dos efeitos do superendividamento, foram indicadas algumas medidas. Sendo uma delas a atuação dos mais variados órgãos de defesa do Consumidor na busca da redução das consequências do superendividamento e também na promoção da proteção jurídica do consumidor superendividado.
Apesar da ser considerada uma das legislações mais jovens, com apenas 23 anos, a legislação consumerista brasileira já necessita de novas atualizações para acompanhar o desenvolvimento social do Brasil, dentre elas a tutela do consumidor superendividado.
Portanto, se torna imprescindível a aprovação da “reforma” que alterará o CDC, em especial do PLS 283/2012, para amenizar e prevenir as situações de superendividamento. Com isso, nos casos em que as medidas preventivas não sejam suficientes para evitar que as situações graves de endividamento ocorram, atingindo os consumidores e suas famílias, o CDC possa assegurar o direito do consumidor endividado e reduzir as consequências deste fenômeno.
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Deise Emanuele Lima de Menezes Ramos
Advogada Doutoranda em Direito Público Especialista em Direito do Consumidor Especialista em Direito Civil e Processo Civil; Especialista em Gestão de Pessoas e Especialista em Metodologia do Ensino Superior. Sócia do Escritório DM Advocacia e Consultoria Jurídica Professora de Direito Constitucional