Resumo: Ao longo da história, muitas foram as tentativas de se atribuir à pena finalidades que pudessem legitimar a sua existência e aplicação. O presente trabalho tem como propósito rediscutir as finalidades da pena à luz do funcionalismo moderado (racional teleológico) de Claus Roxin, cuja premissa básica reside na idéia de que a construção do sistema jurídico-penal deve se orientar aos fins próprios do Direito Penal, os quais se resumem na exclusiva proteção de bens jurídicos essenciais e na garantia do cidadão frente ao arbítrio do poder estatal.
Palavras-chave: Teorias da pena; finalidades; funcionalismo; prevenção.
Abstract: Throughout history, there were many attempts in order to confer some purposes to penalty which were able to legitimate its existence and application. This work aims at (re)discussing the penalty purposes by the light of the moderated functionalism (rational teleological) of Claus Roxin, in which the basic premise is based in the idea that the penal juridical system construction must be orientated toward the Penal Law purposes themselves, meaning the exclusive protection of essential juridical values and the citizen guarantee against the discretion power of the Estate.
Key words: Penalty theories. Purposes; functionalism; prevention.
Sumário: 1. Considerações preliminares. 2. Teorias da pena. 3. Teorias absolutas ou retributivas. 4. Teorias relativas ou preventivas. 4.1 A prevenção especial e o problema da ressocialização. 4.2 A prevenção geral. 5. Teorias ecléticas, mistas ou unificadoras. 6. A prevenção geral positiva. 7. A teoria dialética unificadora de Claus Roxin uma perspectiva possível ao sistema jurídico-penal brasileiro. 8. Considerações finais. 9. Referências bibliográficas.
1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
A discussão acerca das finalidades da pena tem ocupado o cenário jurídico-penal desde os primórdios do surgimento da Ciência Penal. Isto porque, à sombra do problema dos fins das penas, é no fundo toda a teoria do Direito Penal que se discute e, com particular incidência, as questões fulcrais da legitimação, fundamentação, justificação e função da intervenção penal estatal. Assim, o problema da justificação da pena, ou seja, o poder de uma comunidade política qualquer de exercitar uma violência “programada” sobre um de seus membros, coloca-se talvez como o problema mais importante a ser resolvido na atualidade, já que o Direito Penal dentro do contexto de um Estado Social e Democrático de Direito, não pode mais ser entendido apenas como meio de resolução de conflitos e controle social, mas sim e primordialmente, como meio de promoção da dignidade humana.
Buscar-se-á, para tanto, traçar um breve panorama das teorias que objetivaram delinear tais finalidades – teorias absolutas, relativas e mistas – contextualizando-as historicamente e apontando os seus pontos positivos e negativos. Por conseguinte, se promoverá a discussão de tais pontos tendo como fundamento as contribuições teóricas da corrente funcionalista do Direito Penal, em especial a moderada, estabelecendo as finalidades que devam ser atribuídas à pena a fim de fiquem em consonância com o atual contexto jurídico-político e social.
2. TEORIAS DA PENA
Antes de discorrer sobre as “teorias da pena” faz-se necessário ressaltar que a justificação da pena provoca dificuldades e controvérsias quanto ao seu conteúdo, extensão e até mesmo existência. Quanto a este último aspecto, não faltaram defensores das chamadas teorias “negativas” ou abolicionistas[1], as quais não reconhecem justificação alguma ao Direito Penal, e, portanto, à pena, almejando, desta forma, a sua eliminação, quer porque contestam seu fundamento ético-político[2], quer porque consideram as suas vantagens inferiores aos seus custos sociais[3]. Importa salientar, todavia, que, tais concepções, a despeito de terem o mérito de orientar-se rumo a uma radical separação entre instâncias éticas de justiça e direito positivo vigente, ainda não constituem um modelo aceitável para a nossa realidade.
3. TEORIAS ABSOLUTAS OU RETRIBUTIVAS
As teorias absolutas ou retributivas partem de uma exigência de justiça e se encaminham para a realização do justo na retribuição na pena. Fundam-se na retribuição, expiação, reparação ou compensação do mal do crime e nesta essência se esgota. Arrancando do princípio do talião, tendo se deixado penetrar durante a Idade Antiga de representações mitológicas e durante a Idade Média, fundamentalmente, de racionalizações religiosas, tais teorias louvam-se basicamente na idéia de que a realização da justiça no mundo, como mandamento de Deus, conduz à legitimação da aplicação da pena retributiva pelo juiz, como representante terreno da justiça divina. Nas Idades Moderna e Contemporânea, porém, o sustentáculo desta doutrina assenta-se na filosofia do idealismo alemão.
Viram-se relançadas no séc. XIX graças a duas versões laicas: por Kant, que entende ser a pena uma retribuição ética que se justifica por meio do valor moral da lei penal violada e do castigo que lhe é imposto, devendo ser aplicada tão somente porque houve a infringência da lei, sendo concebida, portanto, como um “imperativo categórico”; e, por Hegel, que entende, por sua vez, que a pena é uma retribuição jurídica, justificada pela necessidade de restaurar o direito, por meio de uma violência, em sentido contrário, que restabeleça o ordenamento legal violado, pois ao considerar o crime como a negação do direito toma a pena como a negação da negação, como anulação do crime e por isto, como restabelecimento do direito.
As teorias absolutas concebem a pena como um fim em si mesma, ou seja, como uma retribuição do crime “justificada por seu intrínseco valor axiológico”, um “dever ser” metajurídico que possui em si seu próprio fundamento”[4] , que ao atuar quia peccatum, dizem respeito apenas ao passado, não se ocupando, por conseqüência, dos efeitos que dela podem advir, ou seja, os seu efeitos “empíricos”[5].
Pertinentemente observa Figueiredo Dias que, como teoria dos fins da pena ela deve ser recusada porque o que se pretende é justamente o contrário, ou seja, a pena como entidade independente de fins. Além disso, clara se apresenta sua inadequação à legitimação, à fundamentação e ao sentido da intervenção penal, haja vista que um Estado Democrático, pluralista e laico não pode se arvorar numa entidade sancionadora do pecado e do vício, mas deve se limitar à proteção de bens jurídicos essenciais[6]. Roxin, por seu turno, entende que a teoria da retribuição não é suficiente para justificar a pena estatal porque, em primeiro lugar, fica por resolver a questão de se saber sob que pressupostos a culpa humana autoriza o Estado a castigar, fracassando na tarefa de estabelecer um limite, quanto ao conteúdo, ao poder punitivo do Estado, sendo possível, por isto, a incriminação de qualquer conduta; em segundo, é questionável a existência de uma autêntica liberdade de vontade e, ainda que se pudesse afirmar sua existência, não se sabe se o homem em dado momento poderia ou não agir de modo diverso.[7]
Não obstante as críticas, ultrapassado o talião, acabou-se reconhecendo que a pretendida igualação não podia ser fática, mas sim normativa. Então, passou-se a postular que a compensação de que a retribuição se nutre só pode ser em função da culpabilidade do agente. É justamente nesta construção que reside o mérito das doutrinas absolutas: “o mérito irrecusável de ter erigido o princípio da culpabilidade em princípio absoluto de toda aplicação da pena e, deste modo, ter levantado um veto incondicional à aplicação da pena criminal que viole a dignidade da pessoa humana”[8]. Desta feita, o moderno pensamento jurídico-penal de orientação preventiva acabou por abandonar a idéia de retribuição, mas não o conceito de culpabilidade.
Como se observa, o número e o conteúdo das críticas direcionadas a tais teorias é muito superior aos pontos defensáveis, sendo possível ademais, afirmar que as teorias absolutas sejam inaceitáveis do ponto de vista da política criminal, na medida em que se configuram idôneas para justificar modelos não liberais de Direito Penal máximo[9], incompatíveis com os valores insculpidos na Constituição Federal de 1988.
4. TEORIAS RELATIVAS OU PREVENTIVAS
O denominador comum das correntes que integram as teorias relativas é a idéia de que a pena serve como um meio para a obtenção de fins úteis, fins preventivos, fundamentando-se na sua necessidade para sobrevivência do grupo social. A idéia de prevenção remonta à filosofia grega mais antiga, nas elaborações de Platão e Aristóteles, mas tomam concretude com Feuerbach com sua “teoria da coação psicológica”. É elemento constante e essencial de toda a tradição penal liberal da Ilustração, em razão do pensamento jusnaturalista e contratualista do século XVII. Assim, pode-se dizer que a raiz ideológica de tais teorias está nas teorias políticas da Ilustração, pois o utilitarismo é pressuposto necessário para toda e qualquer doutrina penal sobre os limites do Estado.
Elas também reconhecem que a pena se traduz num mal, mas, “como instrumento político-criminal destinado a atuar no mundo”, não pode se bastar com essa característica, “em si mesma destituída de sentido social-positivo” [10] . Assim, para como tal se justificar, tem ela de usar desse mal para alcançar a finalidade precípua de toda a política criminal, precisamente a prevenção ou a profilaxia criminal. A crítica mais expressiva que se faz a tais teorias seria na linha kantiana de que nenhum homem pode ser tratado como um “puro meio” para fins que não são seus, ou seja, aplicando-se penas a seres humanos, em nome de fins utilitários ou pragmáticos, elas transformariam a pessoa humana em objeto, atentando assim, a sua própria dignidade.
As funções preventivas da pena dividem-se em duas direções bem definidas: a da prevenção especial e a prevenção geral.
4.1 A PREVENÇÃO ESPECIAL E O PROBLEMA DA RESSOCIALIZAÇÃO
As teorias da prevenção especial, ainda que remontem aos primórdios do pensamento filosófico penal, tiveram um próspero desenvolvimento graças à cultura penalista da segunda metade do século XIX e do século XX, por força da escola positiva sociológica italiana e a alemã. Para tais teorias a pena é instrumento de atuação preventiva sobre o delinqüente com o fim de evitar que cometa novos crimes, variando apenas a maneira como ocorre tal prevenção, ou seja, se positivamente ou negativamente. Assim, tem-se a prevenção especial positiva ou da correção, e a prevenção especial negativa, da incapacitação ou intimidação, que lhe dá a função de eliminar ou pelo menos neutralizar o réu. Ambas não se excluem entre si, mas concorrem cumulativamente para a definição do objetivo da pena dependendo da personalidade corrigível ou incorrigível dos condenados.
As doutrinas da emenda são de origem mais remota. Respaldadas por uma concepção espiritualista do homem e inspiradas no livre-arbítrio na sua forma mais abstrata e indeterminada, desenvolveram a idéia de poena medicinalis[11]. A concepção da pena como remédio da alma vai orientar, na época medieval, todo o direito canônico chegando ao século XIX num sentido pedagógico de reeducação e a recuperação moral do condenado. Por outro lado, as doutrinas positivistas da defesa social partem de princípios opostos, conferem à pena a dupla finalidade de curar o condenado, partindo do pressuposto de que ele seja um doente. Contrariamente às mencionadas anteriormente, negam o livre-arbítrio do homem, visto este como inteiramente sujeito às leis da necessidade natural, constituindo, portanto, a versão penalista e criminológica do determinismo positivista.
Por fim, existe uma terceira orientação correcionalista, a teleológica e pragmática, desenvolvida por Franz Von Liszt, que confia a função de prevenção especial das penas às suas individualizações e diferenciações. Para ele, a pena deveria concretizar-se em defesa da sociedade, pois o delito não é apenas a violação à ordem jurídica, mas é antes de tudo, um dano social. Liszt elaborou um modelo de Direito Penal concebido como instrumento “flexível e polifuncional” de ressocialização, neutralização ou intimidação, dependendo dos diversos tipos – adaptáveis, inadaptáveis ou ocasionais – de delinqüentes tratados[12]. Alguns méritos são reconhecidos a tais teorias, quais sejam, uma explicação com bases mais científicas do fato delitivo e a colocação do indivíduo no centro da problemática regulada pelo Direito Penal. Além disso, a prevenção especial desempenha um papel relevante na medição da pena, especialmente no momento de se examinar as agravantes e as atenuantes que concorrem em um fato determinado, pois, ao concentrar seus efeitos na concreta personalidade do delinqüente, permite conhecer as circunstâncias pessoais que levaram o indivíduo a cometer o fato delitivo, facilitando assim, uma melhor consideração sobre as possibilidades de lhe aplicar um substitutivo penal evitando-se, dentro do possível, o encarceramento. Todavia, e por outro lado, ela é incapaz de demonstrar, uma delimitação do poder punitivo do Estado quanto ao seu conteúdo, não permitindo, além disso, que se examine a delimitação temporal de uma pena fixa, na medida em que para obter resultados deveria prosseguir até a correção do condenado.
Desta forma, é que para Roxin[13],
“[…] a teoria da prevenção especial não é idônea para fundamentar o Direito Penal, porque não pode delimitar os seus pressupostos e conseqüências, porque não explica a punibilidade de crimes sem perigo de repetição e porque a idéia de adaptação social cativa, mediante a pena, não legitima por si
própria, necessitando de uma legitimação jurídica que se baseia noutro tipo de considerações. “
A expressão mais acabada da ideologia de tratamento no campo da política criminológica é a chamada Défense Sociale Nouvelle, ou “nova defesa social”[14], que defende a finalidade de ressocialização e reeducação da pena. A idéia ressocializadora da pena, em virtude das deficiências relacionadas com seu conteúdo concreto merece alguns apontamentos. A primeira dificuldade relaciona-se com sua terminologia, que não é unânime. Fala-se de reeducação, readaptação social, socialização, reinserção social, ou ainda simplesmente, inserção social, porque, para alguns, trata-se de alguém que desde sempre foi um dessocializado.
Uma grande parte da doutrina entende que a prevenção especial positiva ou de socialização,
além de consagrada legalmente por muitos ordenamentos jurídico-penais modernos (art. 1º da Lei n° 7.210, de 11 de Julho de 1984 – Lei de Execução Penal), é indispensável, devendo o Estado oferecer e não impor ao condenado os meios necessários à sua (re)inserção. Contudo, há de se indagar: até que ponto é legítimo exigir-se a ressocialização do delinqüente, que nada mais é do que produto desta mesma sociedade? O Estado não tem legitimidade para impor aos cidadãos determinados tipos de valores morais, sob pena de se incorrer numa perigosa manipulação da consciência individual, um verdadeiro dirigismo intelectual.
É neste sentido que Ferrajoli diz que as ideologias correcionistas, na suas variantes “reeducação”, “ressocialização”, “reabilitação”, ou ainda, “recuperação social”, contradizem o princípio da liberdade, da autonomia da consciência e da igualdade sendo incompatíveis, portanto, com o respeito à dignidade da pessoa humana.[15] Logo, deve-se recusar uma acepção da prevenção especial no sentido da emenda moral ou “metanóia”, bem como o paradigma médico e clínico da prevenção especial, sempre que ele tome como tratamento coativo das inclinações e tendências do delinqüente para o crime, atuação incompatível com uma sociedade pluralista.[16]
Os criminólogos críticos e radicais, por sua vez, entendem que, sendo a própria sociedade que produz e define a criminalidade, a idéia de ressocialização serve unicamente para assegurar a dominação dos homens pelo poder, pela manutenção do status quo, em função do caráter seletivo do sistema penal.
Assim, a função da prevenção especial penal, nestes casos, deve ser a de diminuir a vulnerabilidade do criminalizado ao próprio sistema penal. A ‘tomada de consciência’ do papel que assume o criminalizado por parte dele mesmo, para que perceba que o condicionamento o leva a ‘expor a cara’ ao controle social institucionalizado e a ser tomado como exemplo do que ‘não se deve fazer’, para contenção do setor social do qual é selecionado, significará em tais hipóteses, o cumprimento do objetivo da pena e o fim último da prevenção especial penal.[17]
Defronta-se, ainda, com o que se pode chamar de paradoxo das teorias modernas, ou seja, a (im)possibilidade de se educar para liberdade pela privação da liberdade; a socialização pela privação de todos os contatos sociais do indivíduo, pela sua dessocialização. A realização de uma “terapia social emancipadora” pressupõe mudanças radicais, tanto no sistema penitenciário, como na maneira da sociedade tratar o delinqüente, pois o tratamento custodial a que se submetem os indivíduos, dentro de instituições totais como as prisões[18] contradizem os conceitos de emancipação e autonomia, além de macularem toda a vida do egresso.
Assim, as próprias dificuldades teóricas e práticas do conceito e conteúdo da ressocialização têm levado grande parte da doutrina a postular pela redução de seu âmbito, a fim de se evitar a referida dessocialização e procurar prejudicar o menos possível a sua futura reinserção social.
4.2 A PREVENÇÃO GERAL
A teoria da prevenção geral desloca o foco de atuação, do delinqüente para a comunidade. Assim, o denominador comum da prevenção geral radica na concepção da pena como instrumento político-criminal destinado a atuar (psicologicamente) sobre a generalidade dos membros da comunidade, afastando-os da prática de crimes através da ameaça penal contida na lei, da realidade da aplicação judicial das penas e da efetividade da execução. A prevenção geral pode ser entendida sob duas formas, a prevenção geral negativa ou de intimidação e, a prevenção geral positiva ou de integração, a ser analisada em momento oportuno.
A primeira vertente tem, como uma primeira versão, a prevenção baseada na eficácia do exemplo fornecido com a aplicação da pena, a “pena exemplar”, trazida em geral, pelos pensadores jusnaturalistas dos séculos XVII e XVIII (Grócio, Hobbes, Locke, Beccaria, Bentham). A prevenção geral negativa foi de fato desenvolvida por J. Anselm Feuerbach em sua “teoria da coação psicológica”, a qual conecta a função da pena em relação à generalidade dos associados não imediatamente ao caráter exemplar da imposição da pena, mas sim, e mediatamente, à ameaça contida na lei penal que ela representa.
O primeiro problema subjacente a tal teoria é o de que o delinqüente se converte em um objeto de demonstração, em interesse ao bom comportamento de outros, ocorrendo assim, sua instrumentalização. Ademais, ela apresenta outros problemas empíricos[19]. Em primeiro lugar, para que surta efeitos, os destinatários da norma devem conhecê-la, conhecer os fatores que vão desencadear um efeito preventivo geral. Como se sabe, as normas sociais nem sempre são um reflexo perfeito das normas jurídico-penais, dificultando, portanto, o seu conhecimento pleno. Em segundo lugar, ainda que conheçam as normas, os destinatários devem se sentir motivados em seu comportamento conforme o direito. A teoria supõe um delinqüente potencial, que pondere os inconvenientes e as vantagens de seu ato, um homem que se caracteriza por sua racionalidade e capacidade de cálculo, o homo oeconomicus, que geralmente não existe. Por fim, supondo que haja a referida motivação, ainda, é imprescindível que haja uma idoneidade dos meios preventivos. É neste sentido, que como argumento tradicional se acusa tal teoria de ser uma porta aberta, sem os freios do princípio da culpabilidade ou de um critério de proporcionalidade que limite a gravidade da pena a ser imposta, o que poderia levar a uma política criminal do “terror” [20].
Ferrajoli, ao analisar a prevenção geral negativa pelos seus aspectos positivos, entende que tal teoria, justamente em razão de seu caráter formal, é a única capaz de assegurar um fundamento racional a três princípios garantistas essenciais que implica como condições necessárias, e que em diversos modos, delimitam o poder punitivo do Estado, quais sejam, os da legalidade, materialidade dos delitos, da culpabilidade e responsabilidade pessoal. Contudo, não deixa de reconhecer que o objetivo da eficácia das proibições penais não condiciona, de nenhuma forma, a quantidade e a qualidade das penas, sendo, portanto, inidônea para conter as tendências de Direito Penal máximo[21].
5. TEORIAS ECLÉTICAS, MISTAS OU UNIFICADORAS
As dificuldades oriundas de considerações unilaterais por parte dos defensores das teorias já aventadas fizeram com que surgissem teorias que procuraram unificar tais finalidades da pena. Elas tentam agrupar em um conceito único os fins da pena, captando os aspectos mais destacados das teorias absolutas e relativas. Sustentam que a unidimensionalidade das teorias monistas mostra-se formalista e incapaz de abranger a complexidade dos fenômenos sociais. Assim, elas aceitam a retribuição e o princípio da culpabilidade, como critérios limitativos da intervenção da pena como sanção jurídico-penal. A pena não pode, pois, ir mais além da responsabilidade decorrente do fato praticado, além de buscar a consecução dos fins de prevenção geral e especial. De modo geral, pode-se dizer que elas se limitam a justapor os fins preventivos, especiais e gerais.
Tal complicação insere-se no que Hassemer denominou de “la antinomia de los fines de la pena”[22], pelo que os diferentes fins da penas não só perseguem objetivos diferentes, como também provêm de mundos distintos, descansados em pressupostos político-filosóficos diversos. Por esta razão, a simples justaposição de três ou até duas concepções distintas, tem forçosamente que fracassar, pois a mera adição não só destrói a lógica imanente à concepção de cada uma delas, como também aumenta o âmbito de aplicação da pena, que se converte assim, em meio de reação apto a qualquer emprego.
6. PREVENÇÃO GERAL POSITIVA
Diante dos inconvenientes constatados em relação às teorias unificadoras ou mistas, a doutrina, em especial a alemã, dedicou-se a investigar alternativas para a teoria dos fins da pena. O choque entre princípios, idéias, finalidades e fundamentos absolutamente distintos era inevitável, pois o que poderia resultar aconselhável em termos de prevenção geral negativa poderia contrariar o princípio de culpabilidade ou de proporcionalidade. Tais especulações resultaram no surgimento da teoria da prevenção geral positiva, de integração ou estabilizadora não só com pretensões de aclarar os fins da pena, como também em muitos casos legitimar a própria intervenção do Direito Penal[23].
De acordo com a teoria de prevenção geral positiva chamada fundamentadora, inspirada nas idéias sistêmicas de Niklas Luhman e defendida por Günther Jakobs, tal legitimação ocorrerá com a confirmação da vigência da norma, em que ao Direito Penal cumpre garantir a função orientadora das normas jurídicas.
“La pena es prevención-integración en el sentido que su función primaria es “ejercitar” el reconocimiento de la norma y la fidelidad frente al derecho por parte de los miembros de la sociedad.[…] El delito es una ameaza a la integridad y la estabilidad sociales, en cuanto constituye la expresión simbólica de una falta de fidelidad al derecho. Esta expresión simbólica hace estremecer la confianza institucional y la pena es, a su vez, una expresión simbólica opuesta a la representada por el delito. Como instrumento de prevención positiva, ella tiende a restabelecer la confianza y a consolidar la fidelidad al ordenamiento jurídico, em primero lugar en relación com terceros y, posiblemente, también respecto del autor de la violación”.[24]
A pena serve para destacar com seriedade para o infrator, que a sua conduta não impede a manutenção da norma. Assim, enquanto o delito é negativo, na medida em que infringe a norma, fraudando expectativas, a pena por sua vez, é positiva na medida em que se afirma a vigência da norma ao negar sua infração. Tal entendimento acaba por dar ensejo a muitas críticas no sentido de que poderá ser utilizada a pena ainda que não haja a demanda de proteção de bens jurídicos, aproximando-se de uma realidade neorretribucionista e distante de um garantismo. Havendo, portanto, a supressão dos limites de punir do Estado, o que levaria à uma política criminal carente de legitimação democrática[25].
Com isso, o grande argumento que sempre se repete contra tais doutrinas é de que comandadas por considerações pragmáticas e eficientistas, elas fazem da pena um instrumento que viola a dignidade humana.
Rebatendo tal crítica, Figueiredo Dias traz que tal argumento em nada será procedente, porém, se a prevenção geral positiva se perspectivar na sua vertente positiva (como prevenção de integração, de tutela da confiança geral na validade e vigência das normas do ordenamento jurídico), ligada à proteção de bens jurídicos essenciais. Isto porque, em primeiro lugar, este critério permite que à sua luz se encontre uma pena, ou melhor, não uma pena exata, mas uma moldura punitiva que, em princípio, se revelará uma pena justa e adequada à culpabilidade do delinqüente; em segundo lugar, a pena deve ter seu limite inultrapassável ditado pela culpabilidade. Nesta perspectiva, a doutrina da prevenção geral oferece um entendimento racional e político-criminalmente fundado no problema dos fins das penas[26].
Numa outra direção inclina-se outro setor da doutrina, desenvolvendo a prevenção geral positiva num sentido limitador da intervenção penal que se funda na consciência da norma. Hassemer, aceitando que a cominação penal e a execução da pena seguem mantendo seu valor como meio de prevenção geral, as entende como instrumentos de que se utiliza o Direito Penal para afirmar e assegurar as normas básicas, pelo convencimento de que são idôneas e indispensáveis para melhorar a convivência em sociedade, dando esta a prerrogativa de delimitar o âmbito do punível.
Assim,
“[…] el sistema juridicopenal, a través de la conminación penal y de la ejecución de la pena, afirma y asegura las normas que en cada sociedad respectiva se consideran indispensables. […] Este aseguramiento de las normas se puede producir a través de criminalización o de la agravación de las sanciones ya existentes, pero también con la descriminalización o con la atenuación de las penas”.[27]
7. A TEORIA DIALÉTICA UNIFICADORA DE CLAUS ROXIN UMA
PERSPECTIVA POSSÍVEL AO SISTEMA JURÍDICO-PENAL BRASILEIRO
Sabe-se que o sistema jurídico-penal brasileiro adotou a doutrina finalista de Hans Welzel, a qual inspirou de forma bastante intensa a reforma do Código Penal de 1984, sendo, por esta razão seguida pela maioria dos doutrinadores pátrios. No entanto, uma nova doutrina denominada “Funcionalismo Penal” [28], vem integrando os mais recentes debates junto à moderna dogmática penal, aos quais a cultura jurídica brasileira não pode ficar indiferente.
Nada obstante as divergências entre as suas variadas vertentes, é importante salientar que para os seus adeptos, o funcionalismo, em especial para a sua doutrina racional-teleológica, busca despertar a idéia de que a formação do sistema jurídico-penal não pode se vincular à realidade ontologista pregada pelo finalismo, devendo de outra parte, guiar-se pelos fins do Direito Penal. Logicamente que se deve diferenciar entre os fins da pena que há de se impor no caso concreto e a missão do Direito Penal e, portanto, das disposições penais. Contudo, o sentido, o fundamento e as finalidades da pena criminal são determinações indispensáveis para decidir de que forma deve aquela atuar para cumprir a função do Direito Penal, devendo sempre a ele se referir. Logo, a teoria dos fins da pena adquire valor basilar no sistema funcionalista, pois, se o delito é o conjunto de pressupostos da pena, devem ser eles construídos tendo em vista sua conseqüência, e os fins desta.
É a partir de tal entendimento que se faz imprescindível a análise da “teoria dialética unificadora” de Claus Roxin, funcionalista moderado ou racional-teleológico, para quem a idéia de mera justaposição de fins da pena não responde à problemática aludida. Roxin parte da análise de todas as fases em que se insere a pena, ou seja, na cominação, imposição e execução, de modo que cada uma destas etapas deverá acolher em si os princípios das precedentes.
Na fase da cominação, a função da pena será a de prevenção geral, que não será passível das objeções anteriormente colocadas quando tiver em conta a dupla restrição contida no princípio da proteção subsidiária dos bens jurídicos[29]. Tal não poderia ser de outra maneira, pois ela precede temporalmente o sujeito ao qual se poderiam impor reações retributivas ou de prevenção especial. Na segunda fase, a de aplicação e graduação da pena, a prevenção geral conserva sua validade, incluindo-se nela também um elemento de prevenção especial.
Contudo, tal orientação não é suficiente para escapar da objeção ao uso da prevenção geral como instrumento de terror. Desta forma, “a aplicação da pena estará justificada se conseguir harmonizar a sua necessidade para a comunidade jurídica com a autonomia da personalidade do delinqüente, que o direito tem de garantir” [30], de modo que a pena não poderá ultrapassar a medida da culpa[31]. Neste caso, a culpa deverá ser tomada numa perspectiva de limitação e não de fundamentação do poder penal do Estado.
Assim, em resumo, a aplicação da pena serve para a proteção subsidiária e preventiva, tanto geral quanto individual, de bens jurídicos e de prestações estatais, através de um processo que salvaguarde a autonomia da personalidade e que, ao impor a pena, esteja limitado pela medida da culpa. Pode ver-se que assim se conserva o princípio da prevenção geral, reduzindo às exigências do Estado de Direito e completado com as componentes de prevenção especial da sentença, mas que simultaneamente, através da função limitadora dos conceitos de liberdade e culpa e, em consonância com a nossa lei fundamental, se desvanecem as observações que se opõem a que aquele princípio seja levado em conta na graduação da pena [32].
Finalmente, na terceira e última fase da realização do Direito Penal, a fase da execução, deverá se ter em conta uma execução ressocializadora que apenas serão legítimos e bem sucedidos dentro dos limites que foram traçados nas fases anteriores. Ela é “dialética” na medida em que acentua o caráter antitético dos diversos pontos de vista e procura reuni-los numa síntese. Assim, a idéia de prevenção geral vê-se reduzida à sua justa medida pelos princípios da subsidiariedade e da culpa, assim como a exigência de prevenção especial, que atende e desenvolve a personalidade.
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após análise crítica de todas as teorias que objetivaram dar um sentido à pena, justificando sua existência e atribuindo-lhe finalidades, foi possível perceber que nem as absolutas ou retributivas, nem as relativas ou preventivas, tanto nas suas vertentes de prevenção especial, quanto as de prevenção geral, são capazes de atender aos objetivos do Direito Penal dentro do contexto de um Estado Social e Democrático de Direito, resumidos esses na promoção da dignidade humana. As primeiras porque concebem a pena como um fim em si mesma, as segundas ou porque se diluem na própria ineficácia da chamada ressocialização, ou porque podem gerar a instrumentalização do ser humano. Pôde-se perceber da mesma forma, que nem as teorias ecléticas, mistas ou unificadoras com sua mera justaposição de fins, podem atender a tais objetivos, uma vez que não conseguem dar conta ao que Hassemer chamou de “la antinomia de los fines de la pena”.
Com isso, forçoso se faz concluir que a teoria unificadora dialética é a mais adequada no contexto jurídico-penal contemporâneo, vez que ela pretende evitar os exageros unilaterais e dirigir os diversos fins da pena para vias socialmente construtivas, conseguindo o equilíbrio de todos os princípios, mediante restrições recíprocas. Isto porque a culpa não justifica a pena por si só, podendo unicamente permitir sanções no domínio do imprescindível por motivos de prevenção geral e enquanto não impeça que a execução da pena se conforme ao aspecto da prevenção especial, vislumbrando-se com isso a atuação do Direito Penal como efetivo mecanismo de proteção social, garantia do cidadão e, por conseguinte, promoção da dignidade humana. Valores estes traduzidos pela imposição de uma pena que tenha uma “máxima utilidade possível” à custa de um “mínimo sofrimento necessário”.
Informações Sobre o Autor
Roberta Alessandra Pantoni
Professora do curso de Direito da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul – UEMS – Unidade Universitária de Paranaíba