1.Introdução
O Brasil, fruto de seus atributos geopolíticos e de sua cooperação com os demais países, é país que se credencia como importante interlocutor junto à sociedade internacional[1]. Conduz suas ações à luz do previsto na Constituição[2]: observância aos princípios da independência nacional, prevalência dos direitos humanos, autodeterminação dos povos, não-intervenção, defesa da paz, igualdade entre os Estados e solução pacífica dos conflitos.
As Forças Armadas (FFAA) brasileiras se ajustam às tendências da política de relações exteriores em curso. Devem “manter-se em condições de atender às solicitações para participação em missões internacionais de paz”, ao mesmo tempo em que necessitam preparar-se para o “aumento dos contenciosos, de pressões internacionais, inclusive com a participação em Forças Conjuntas multinacionais, e o início da capacitação para operações autônomas, com efetivos limitados, em outras partes do mundo”, almejando, num futuro mais distante, estarem em condições de manter a segurança nacional com “estrutura e capacitação para ampla participação internacional ”[3]. Verifica-se que ter uma sólida estrutura de Defesa Nacional – o que inclui a existência de um arcabouço jurídico-legal que dê sustentação às ações desenvolvidas, quer na área militar, quer nas áreas diplomáticas, econômicas, etc. – é condição sine qua non para sustentar o posicionamento de um País no contexto das relações internacionais, em especial quando este País deseja ver suas ações pautadas pela independência e pela defesa da paz.
Coerente com os anseios da sociedade brasileira, capitulados na Carta Magna, a liderança do Poder Executivo tem implementado, no âmbito externo, diversas ações. No campo do poder militar, ainda que com fortes reflexos sociais junto à população do local de atuação, é exemplo o deslocamento de militares isolados, observadores, ou frações constituídas, ditas “Força de Manutenção da Paz”[4], para atuação em território estrangeiro, quer sob a égide da Organização das Nações Unidas (ONU) (Moçambique/94, Angola/95-97, Timor Leste/99, etc.) quer constituindo organismos multilaterais, como a Missão de Observadores Militares Equador-Peru (MOMEP), ocasião em que o Brasil liderou grupo de países garantes ao tratado de cessar-fogo estabelecido entre tais países beligerantes.
A vontade nacional em fazer respeitar-se no plano das relações internacionais, a visão futura e a orientação dos comandantes de mais alto escalão no seio das Forças Armadas, bem como a realidade dos fatos – a existência de militares profissionais representando o Brasil nos mais distantes pontos do globo terrestre – são os fatores que levam ao interesse pela abordagem do tema em curso, o qual busca desenvolver o debate acerca da especificidade inerente à aplicabilidade das leis a estes brasileiros que, com sacrifício pessoal, cooperam de forma ímpar para a projeção do Brasil. É texto que busca despertar os operadores de direito brasileiros, civis e militares, para a complexidade do assunto, o qual carece de abordagem interdisciplinar, em especial os conteúdos de “Direito Internacional”, “Direito Constitucional”, “Direito Penal”, “Direito Militar” e “Direito Humanitário”[5].
2.Direito Internacional e Direito Constitucional
O estudo destes campos da ciência jurídica tem sido impulsionado, modernamente, pela prevalência da democracia como opção dos Estados e pela internacionalização crescente das relações entre estes (globalização). No Brasil, em complemento, há a reformulação das bases do Estado, pós-Constituição de 1988, bem como o incremento da dinâmica das relações exteriores nacionais, provocando o aumento da inserção brasileira nos cenários regional, continental, e, também, internacional. A importância do estudo conjunto destas disciplinas reside na necessidade de harmonizar a aplicabilidade da norma internacional, com a qual o Brasil se compromete, a priori, através da adesão a um Tratado[6], com a norma interna, elaborada sob os limites oriundos da Constituição, norma suprema no âmbito do Estado. Em termos práticos: Qual norma deve prevalecer em havendo conflito entre a norma internacional e a norma interna? A qual Tribunal deverá ser apresentada a questão acima? Na busca internacional por resposta para tais questões surgiram referenciais teóricos que são reunidos em três vertentes, denominadas “Dualismo”, “Monismo” e “Teorias Conciliadoras”.
Os dualistas entendem que direito interno e direito internacional (DI) são realidades distintas e independentes. Admitem que o primeiro representa a vontade de um único Estado, que legisla para homens (pessoa natural) e organizações (pessoas jurídicas), num ordenamento jurídico pautado pela subordinação, onde as normas se estruturam hierarquicamente. Enquanto o segundo, DI, consubstancia a vontade coletiva dos Estados, expressa em Tratados ou costumes, numa estrutura jurídica de coordenação e onde os atores admitidos são apenas os Estados, ainda que, ao excluir o homem como sujeito ativo deste processo social surja o aspecto mais “vulnerável” desta teoria.
Os monistas, por outro lado, entendem que o direito interno e o DI são uma única realidade e fracionam-se em duas vertentes: os que crêem haver predominância do direito interno e os definem a primazia do DI. A primeira vertente não teve maior expressão, à época, visto opinar pela sujeição da coletividade – demais nações – à vontade do titular do direito interno. Todavia, como potência hegemônica, têm os EUA agido em acordo com tal teoria, como na instalação de Tribunais próprios para o julgamento dos “combatentes ilegais”[7] capturados nas ações militares no Afeganistão; Ou nas ações políticas desencadeadas contra o Iraque no início de 2003, ocasião em que os EUA citaram a necessidade de mandado das Nações Unidas para o desencadear de ações bélicas contra um estado soberano como sendo dispensável, em potencial ofensa a Princípios da Carta das Nações, entre eles a solução pacífica de conflitos e vedação de ação armada entre países-membros sem manifestação do Conselho de Segurança. Já os que advogam a primazia do DI sobre o direito interno têm contribuído para o surgimento da lei internacional, a qual alcança o nacional sem a necessidade de ter sido transformada em lei interna, como visto em vários dos países europeus que se colocam sob a égide da Comunidade Econômica Européia (CEE).
As “Teorias Conciliadoras” são as que se posicionam entre “Dualistas” e “Monistas”. Visam, de forma geral, ressaltar os aspectos positivos, contornando os negativos, das duas concepções anteriores. Sugerem o Direito Natural[8] como sendo o elemento harmonizador entre as duas realidades existentes: direito interno e DI. Porém, em essência, se pautam pela superioridade do DI, visto que defendem a responsabilidade do Estado quando o direito interno deste viola a ordem jurídica internacional.
O legislador constituinte observou as diferentes teorias do DI e definiu como sendo do Executivo a responsabilidade por ”manter relações com Estados estrangeiros” e “celebrar tratados, convenções e atos internacionais”[9]. Porém, como bem ressalvado por CACHAPUZ, “permitir que o Executivo possa assumir compromissos externos sem a intervenção do Legislativo é renunciar à soberania nacional e ao direito da Nação de controlar seu próprio destino”[10]. Neste sentido, o legislador determinou como sendo de competência exclusiva do Congresso Nacional “resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional”[11]. Finalmente, em coerência com o sistema de “freios e contrapesos” que rege a relação entre os poderes, o legislador instituiu a competência exclusiva, genérica, para o Congresso Nacional “fiscalizar e controlar (…) os atos do Poder Executivo”[12], reservando a este, em última instância, a vontade nacional. Em complemento, inseriu no rol das cláusulas pétreas[13], “que os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes (…) dos tratados internacionais”[14].
Chega-se ao conceito de que o Executivo, após negociar e celebrar compromissos com outros Estados – ou com Organizações Internacionais[15] – levará o assunto ao Legislativo o qual, através de Decreto Legislativo[16], tornará pública sua deliberação. A partir deste momento, tem o Presidente da República, através Decreto[17], a faculdade de ratificar o Tratado ou Ato deliberado, o que tornará tal instrumento parte integrante do arcabouço legal brasileiro. Surge a questão: qual o posicionamento, no âmbito da hierarquia das leis nacionais, do tratado formalmente apreciado e tornado público?
Pela doutrina, CANOTILHO diz que “as normas de direito internacional público vigoram na ordem interna com a mesma relevância das normas de direito interno, desde logo quanto à subordinação à Constituição – sendo pois inconstitucionais se infringirem as normas da Constituição ou os seus princípios”[18]. DALLARI expõe que “as regras constitucionais não podem ser contrariadas por nenhuma lei, nenhum tratado, nenhuma decisão judicial, nenhum acordo entre particulares e, em última análise, por nenhum ato que pretenda produzir efeitos jurídicos no País”[19]. A questão de obediência à Constituição, no entender de FERRARI, é um preceito decorrente da existência de uma ordem jurídica, a qual “repousa numa norma hipotética fundamental, que é uma norma pressuposta, cujo enunciado é: devemos nos conduzir como a Constituição prescreve”[20].
Importante o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF)[21] de que o tratado, no âmbito do direito interno, é norma infraconstitucional. E, do estudo dos pronunciamentos reiterados da Corte Constitucional brasileira, depreende-se que o tratado incorporado ao direito interno tem hierarquia legal equivalente à legislação ordinária[22].
Neste sentido, surgem dois grandes aspectos a considerar: as hipóteses de controle de constitucionalidade e a solução de conflitos entre normas de mesma hierarquia. O controle de constitucionalidade a que se sujeita a norma incorporada é decorrente da própria supremacia e rigidez da Constituição Cidadã, a qual determina processo e quorum especiais para a alteração de seus dispositivos internos e, mesmo, fruto da proteção consignada pelo legislador aos direitos fundamentais, institui as cláusulas pétreas (já consideradas acima). Subdivide-se, em linhas gerais, considerando a norma questionada já ter sido incorporada ao ordenamento jurídico, em controle de inconstitucionalidade difuso, controle de inconstitucionalidade concentrado e declaração de constitucionalidade. Os conflitos entre tratado e lei ordinária, ou vice-versa, serão resolvidos à luz do previsto na “Lei de elaboração das leis”[23], a qual prevê a revogação expressa como regra. Em não sendo suficiente o disposto anteriormente aplicar-se-á o fundamento existente na Lei de Introdução ao Código Civil (LICC): “a lei posterior revoga a anterior quando (…) seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior” [24]. Finalmente, destaca-se a necessidade de estudar diplomas legais conflitantes com apoio do princípio da especialidade, o qual distingue as normas em comum e especial, quer se destinem a toda a sociedade ou a segmento específico e, em seqüência, estabelece que a norma comum somente revoga outra de igual espécie, o mesmo ocorrendo com a norma especial.
3.Direito Penal e Direito Militar
De início, cabe destacar o ponto de vista da Comissão de Direito Internacional da ONU, para quem, segundo RAMELLA “toda pessoa que execute um ato que constitua crime perante o direito internacional é responsável por isso e fica sujeita a castigo”[25]. O legislador brasileiro, explicitando seu posicionamento, apresentou algumas limitações ao poder punitivo do Estado, os princípios da legalidade, da anterioridade da lei, da humanidade, bem como considerações relativas à territorialidade e à especificidade da aplicação da lei penal.
Por legalidade entende-se o princípio que estabelece nullum crimen, nulla poena sine lege, ou seja, exige que exista norma prévia proibindo um determinado comportamento humano e cuja transgressão ensejará a possibilidade de aplicação do direito punitivo do Estado, visando assegurar a harmonia social. Tal imperativo possui o aspecto jurídico de fixar o conteúdo das normas ditas incriminadoras e também encontra amparo constitucional, consubstanciado na exigência de lege praevia, inserida no ordenamento em momento anterior ao de ocorrência dos fatos apreciados. De outra forma não poderia ser em função do caráter educativo na norma penal, a qual indica aos indivíduos os bens jurídicos tutelados e quais as condutas consideradas passíveis de reprovabilidade por parte da sociedade. O aspecto da humanidade no tratamento penal é decorrência do respeito à dignidade humana, enquanto a territorialidade, regra no direito penal[26], que entende como sendo da esfera de aplicação da lei penal todo o espaço em que o Estado exerça sua soberania. Num entendimento jurídico do que vem a ser território e que inclui, por exemplo, o espaço aéreo[27] e marítimo[28], bem como as aeronaves e embarcações brasileiras, assim reconhecidos pela bandeira que portam, quer sejam civis ou militares.
A especificidade é fruto do órgão encarregado de aplicar o direito objetivo. No caso brasileiro, tem-se que o direito penal militar constitui-se, por força de previsão constitucional, em direito especial, a ser aplicado pela Justiça Militar, instituída pela Carta Magna[29] e sendo, portanto, justiça especializada.
As Forças Armadas brasileiras, cuja estruturação é estabelecida, na mais alta esfera, através de norma constitucional[30] e de norma complementar à Constituição[31], são instituições destinadas à Defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem, sendo organizadas com base na hierarquia e disciplina. Sendo das mais antigas existentes no mundo, a “profissão das armas” funde sua história com a própria história das civilizações.
Em muitos países a existência de Tribunais especializados para tratar dos ilícitos militares decorre do entendimento de que se trata de um servidor estatal a quem a Nação tão pouco oferece ao mesmo tempo em que tanto exige, ou, como dito por Clemenceau, pois “assim como há uma sociedade civil fundada sobre a liberdade, há uma sociedade militar fundada sobre a obediência, e o juiz da liberdade não pode ser o da obediência”[32]. Em outros Estados, e abandonando quaisquer concepções sócio-filosóficas, tem-se a existência da Justiça militar como decorrência da vontade do Povo, o qual reconhece os militares como servidores do País, dignos de atendimento personalíssimo. É, por exemplo, o caso do Brasil, onde, porque o legislador constitucional assim estabeleceu, os militares estão sujeitos à jurisdição da Justiça Militar, a quem “compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei”.[33]
O estudo das atribuições da Justiça Militar, estabelecidas através norma constitucional de eficácia contida[34], complementada por Lei de Organização[35] própria, nos leva à necessidade de consultar o Código Penal Militar[36](CPM) e o Código de Processo Penal Militar[37](CPPM). Além destes, e para melhor qualificar o jurisdicionado, faz-se mister o exame do Estatuto dos Militares[38], instituto próprio daqueles que têm as Armas por profissão.
Com relação às transgressões disciplinares, cuja fronteira com o direito penal militar é tão tênue “que países como a Suíça (CPM 1927) e Israel (LJM n. 5715/55) contemplam suas normas [disciplinares e penais] em um único diploma legal”[39], cabe destacar que não são objeto de conhecimento do Judiciário, salvo nos casos, personalíssimos, em que ocorra cerceamento à liberdade de locomoção, quando este poderá apreciar o assunto quanto à legalidade[40], e não quanto ao mérito[41]. Portanto, a punição disciplinar, inclusive a prisão, aplicada em acordo com o Regulamento Disciplinar, e com as normas jurídicas hierarquicamente superiores, em especial o princípio constitucional da ampla defesa, é entendida como ato administrativo da autoridade militar. Contrario sensu, deixando de atender a requisitos formais e/ou materiais de aplicação, e conforme já decidido pelo STF, e também pelo próprio Superior Tribunal Militar, quando a ele submetido o assunto, trata-se de ato ilegal, passível de anulação tão logo apresentado à análise.
Do estudo da legislação chega-se, inicialmente, ao crime dito propriamente militar, que são aqueles apenas possíveis de serem imputados a militar e, portanto, evidenciam o critério de especificidade do agente ou do conteúdo do crime. Como exemplo de crimes militares ratione personae et material tem-se a deserção, a insubordinação, a violência contra inferior, entre outros. No dizer de Esmeraldino Bandeira: “crimes propriamente militares são os que consistem nas infrações específicas e funcionais da profissão de soldado”[42]. No que é confirmado pelo STF, para quem “Crime propriamente militar é o que só por militares pode ser cometido, isto é, o que constitui uma infração específica e funcional da profissão do soldado”[43]. Também se põem ao alcance da lei penal militar os crimes que são cometidos em área sujeita à administração militar, aqueles que a própria lei, manifestando a vontade do legislador, assim estabeleceu, e, também, os ocorridos em condição especial de tempo – guerra ou conflito declarado. Recorrendo novamente a BANDEIRA, tem-se que os crimes ratione loci, ratione legis ou ratione temporis, “são aqueles que, pela condição de militar do culpado, ou pela espécie militar do fato, ou pela natureza militar do local, ou, finalmente, pela anormalidade do tempo em que é praticado, acarretam dano à economia, ao serviço, ou à disciplina das Forças Armadas”. Tais crimes têm previsão legal tanto no Código Penal quanto no Código Penal Militar e, por isso, são também denominados crimes impropriamente militares, visto que podem ser imputados, também, a civis.
Estabelecida a idéia de que a legislação penal militar pode ser aplicada a civis e militares e de que a Justiça Militar traduz a manifestação da autoridade do Poder Judiciário para proceder ao julgamento do caso concreto, surge a necessidade de caracterizar a aplicação da lei penal no espaço. A leitura do CPM leva à percepção de que ”aplica-se a lei penal militar, sem prejuízo de convenções, tratados e regras de direito internacional, ao crime cometido, no todo ou em parte, no território nacional, ou fora dele, ainda que, neste caso, o agente esteja sendo processado ou tenha sido julgado pela justiça estrangeira”[44]. Com relação aos aspectos de direito internacional incluído no caput do artigo transcrito relembre-se que tais institutos somente ganham efeito imperativo, erga omnes, após a devida apreciação do Congresso Nacional, seguida da promulgação presidencial. E destaque-se que a expressão “ou fora dele” faz com que a lei penal militar tenha, como regra, a extraterritorialidade.
Sendo poucos os autores nacionais – destaca-se RODRIGUES[45] e TEIXEIRA[46] – que se debruçaram sobre o tema, cita-se D`AMELIO, que em 1926 definiu que “o soldado, como se costuma dizer, carrega na mochila o princípio da extraterritorialidade de seu estatuto penal militar”.[47] O alcance da lei penal militar em função do princípio da extraterritorialidade é tão grande que, per si, dispensava os comandos derivados[48] com que o legislador pretendeu estender a soberania nacional às aeronaves e embarcações, influenciado talvez pelo Código Penal e em posição criticada pelos penalistas militares. Da mesma forma se entende que as considerações sobre o “lugar do crime” – “considera-se praticado o fato, no lugar em que se desenvolveu a atividade criminosa, no todo ou em parte, e ainda que sob forma de participação, bem como onde se produziu ou deveria produzir-se o resultado” [49] – não têm razão no que concerne ao alcance da lei, sendo úteis tão somente naquilo que exige o princípio do juízo natural. Ou seja, o “lugar do crime” não influi quanto à aplicação ou não da lei penal militar e sim, visto que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente” [50], quanto à designação do juízo competente para apreciar o caso concreto. Neste mesmo sentido se posiciona o legislador, ao estabelecer a competência em função do lugar da infração, do lugar de domicílio ou residência do acusado, por prevenção ou, de modo especial, pela sede do lugar de serviço[51].
ROMEIRO expõe que o legislador pátrio, coerente com as necessidades daquele que na Defesa da Pátria forçosa e rotineiramente estará em contato com o estrangeiro, quer seja pessoa ou local, optou por submeter aos ditames da lei penal militar os nacionais de qualquer País, civis ou militares, independente de lugar e da existência ou não de processo em juízo estrangeiro. Logo, “não é entregue a justiça estrangeira o processo e o julgamento dos crimes militares” [52].
4.Direito Humanitário
É também denominado “Direito dos Conflitos Armados”, destacando-se que conflito é vocábulo que permite ampla interpretação, indo desde a simples “escaramuça” até a guerra declarada. Tal ramo da Ciência Jurídica encontra seu ordenamento próprio no âmbito do Direito Internacional e, portanto, oferece tratamento equivalente entre as normas escritas (Direito positivo) e o costume (Direito consuetudinário), entendido este como sendo a prática reiterada, constante, uniforme e com sensação de obrigatoriedade legal (opinio iuris et necescitas). Aliás, para o Direito Humanitário a regra é a “prevalência dos fatos”, muito mais do que a formalidade destes. Como exemplo, cita-se o caso do Vietnã, envolvendo forças internacionais dos EUA e França, bem como o ocorrido no Afeganistão, na década passada, envolvendo forças da ex-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Em ambos os episódios não havia declaração formal de guerra – assunto que é de alçada política e de direito interno dos países – porém, sem sombra de dúvida, havia um conflito armado em curso e, sob a ótica do Direito Humanitário, deveriam ter sido observadas determinadas regras.
Dentre as normas escritas que servem de arcabouço ao Direito Humanitário destaca-se a Convenção de Haia (1899, revista em 1907), que estabelece princípios a serem observados ao longo de operações militares, incluindo os direitos e deveres dos militares em combate; a Convenção de Genebra e seus Protocolos Adicionais (1949 e 1977, respectivamente), que visam estabelecer normas de proteção aos não-combatentes, aí incluídas as vítimas de guerra, os náufragos, os militares fora de combate (feridos e prisioneiros de guerra), etc.; e as Regras de Nova Iorque (1968), as quais buscam obter o respeito aos direitos humanos em período de conflito armado e que deu origem, num exemplo atual, à convenção de banimento do uso de minas terrestres antipessoal[53].
Óbvio é que o direito internacional humanitário (DIH) foi desenvolvido visando salvaguardar indivíduos e, nesta intenção, surge certa distensão em relação ao Direito Internacional em si, o qual insere em seu campo de ação, numa abordagem tradicional, apenas os Estados, como descrito por Pedro Dallari, citando Rezek, para quem “sujeitos de Direito Internacional Público – ou pessoas jurídicas de DIP – são os Estados soberanos (aos quais se equipara, por razões singulares, a Santa Sé) e as Organizações Internacionais. (…) Não têm personalidade jurídica os indivíduos, e tampouco as empresas, privadas ou públicas.”[54]. Coerente com a atribuição de personalidade jurídica internacional apenas aos Estados tem-se a própria Carta da Organização das Nações Unidas, a qual, ainda que fomentando diversos projetos em prol de indivíduos, só emite seus comandos a países, ditos membros.
Tem-se um ramo do direito em desenvolvimento, e, ainda, com diversas lacunas a serem preenchidas, tanto por legisladores, doutrinadores e tribunais quanto por organizações especializadas, a exemplo da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho, organizações internacionais que se dedicam ao atendimento dos preceitos humanitários aqui descritos.
5.Tribunais Internacionais
Tribunais internacionais são organismos existentes, originariamente, para resolver conflitos entre Estados. Todavia, após a II Guerra Mundial surgiram os primeiros tribunais internacionais destinados a exercer ação sobre indivíduos: o Tribunal de Nuremberg e o Tribunal de Tóquio. Mais recentemente, observou-se, já sob a égide da ONU, o funcionamento dos tribunais destinados a julgar as ações empreendidas na ex-Iuguslávia, em Ruanda e em Serra Leoa, este, com a competência, fruto de acordo ONU-País, para julgar crimes de direito interno, “domésticos” por assim dizer, e crimes considerados internacionais. Também merece destaque a cooperação da ONU no sentido de reorganizar e desenvolver o sistema jurídico de Timor Leste – ação que contou, inclusive, com a participação do eminente Dr. Flávio Flores da Cunha Bierrenbach, Ministro do STM – e do Kosovo, ainda que se trate da criação de tribunais com jurisdição nacional, e não internacional.
Observando os objetivos destes tribunais, é necessário definir que “Crime de guerra se refere aos excessos cometidos pelos beligerantes em prejuízo das pessoas ou de seus bens e que não estão conectados à condução da guerra. Crimes contra a humanidade são os crimes que podem cometer-se durante uma guerra, mas não necessariamente nela, e que, por sua atrocidade, comovem mais intimamente os sentimentos profundos do homem. Em definitivo, é uma distinção de grau e lugar”[55].
Nuremberg – instituído por decisão dos países vencedores do conflito, a saber: EUA, França, Inglaterra e União Soviética – foi estabelecido em 08 Ago 1945, tendo por documento regulador de suas ações a “Carta do Tribunal Militar Internacional”, a qual estabelecia como objetivo a ação penal em face de delitos denominados “Crimes contra a Paz”, “Crimes de Guerra” e “Crimes contra a Humanidade”. Tóquio, com conceito bastante similar, foi instituído no mesmo ano, sob os auspícios dos vencedores do confronto no Pacífico, capitaneados pelos EUA.
Os tribunais de Ruanda e ex-Iuguslávia foram implementados sob mandado da ONU, havendo, portanto, séria discussão com relação à classificação dos crimes julgados. Em análise direta, ambos foram conflitos internos, motivados por questões diversas, notadamente étnicas, e, em conseqüência, não houve, tecnicamente, guerra, visto ter ocorrido em área de soberania de um único Estado. Portanto, estes deveriam atuar em face de violações da ordem dos crimes contra a humanidade, devendo reverter os crimes “de guerra” à jurisdição interna do país, visto serem delitos criminais comuns, a serem enquadrados, em tese, no rol das “associações criminosas”, “grupos paramilitares”, etc.
Na atualidade, o ordenamento jurídico brasileiro entende a gravidade dos crimes contra a humanidade, entre os quais a tortura, o genocídio e o terrorismo, porém apresenta sérias restrições ao funcionamento de um tribunal como os acima descritos, visto que estes colidem com diversos princípios constitucionais e, como já visto, a norma internacional é aceita como norma subordinada à Constituição brasileira. Há ofensa aos princípios da legalidade e da irretroatividade[56] da lei penal, visto que as leis utilizadas foram redigidas após o término da guerra. Afronta-se a proibição de funcionamento de tribunais excepcionais[57], criados a posteriori em relação aos eventos sobre os quais se pronunciarão. Ou seja, direito de vencedor contra vencido, direito da força.
a. O Tratado de Roma e o Tribunal Penal Internacional (TPI)
Distinta é a questão no que concerne ao Tribunal Penal Internacional, com funcionamento previsto no Tratado de Roma, de Jul 1998. Como Tribunal pré-estabelecido e de funcionamento permanente, imagina-se, a primeira vista, afastada a caracterização como juízo de exceção. Porém, isso só não basta, visto que “um verdadeiro tribunal internacional (…) deve ser competente [grifei] para conhecer de todos os crimes de guerra que se cometam”.[58] Como organismo não subordinado à ONU, e sim instituído através acordo de vontade entre Estados soberanos, expressa com a assinatura do Tratado de Roma, o tribunal foge, ainda que existam nuances nesta questão, ao direito que se reservaram as potências vencedoras da II Guerra Mundial – membros permanentes do Conselho de Segurança – de impor veto às resoluções da Assembléia Geral da ONU. A decisão de não se posicionar na esfera da ONU é opção de peso no cenário internacional. Por um lado restringe sua jurisdição – os EUA[59], a China e a Rússia, por exemplo, se recusam a ratificar o Tratado de Roma. Por outro ângulo evita sua subordinação ao interesse de nações mais poderosas, fruto do poder de veto do Conselho de Segurança, como visto na ausência de reprovação à invasão da Nicarágua e ao embargo econômico a Cuba, ambos sob ação norte-americana, ou à invasão do Afeganistão, forçada pela União Soviética, na década passada.
Destaca-se, sob a ótica formal, em função do texto do tratado, e sob a ótica material, em face de ser acordo de vontade entre Estados soberanos, que o Tribunal em questão, fruto de característica denominada complementaridade, “tem caráter excepcional e complementar, e sua jurisdição, além de aplicar-se apenas aos crimes de extrema gravidade nele definidos, somente será admissível (art.17) nos casos em que se verifique claramente a incapacidade ou a falta de disposição dos Estados em processar os responsáveis”[60]. Recordando, tais crimes compreendem o genocídio, a agressão, os crimes de guerra, aí incluído o uso de armas proscritas (minas terrestres antipessoal, determinadas armas químicas e biológicas, etc.), a tortura e os crimes contra a humanidade.
Surge a questão da jurisdição do Tribunal, a qual é relevante para o debate sobre a “entrega” ou “extradição” de (em tese) criminosos nacionais. Alguns entendem ser a jurisdição do TPI como sendo extensão da jurisdição nacional, visto o instituidor do mesmo ter sido o próprio Estado-Soberano. É o posicionamento do embaixador SABÓIA[61], representante brasileiro nas negociações para o estabelecimento do TPI. Para estes, não há qualquer conflito que obste o TPI de vir a processar e julgar brasileiros natos. É a tese da “entrega”, a qual apresenta todas as características da “extradição” porém, enquanto esta se refere à relação Estado-Estado, aquela ocorre entre Estado-Tribunal. Outros crêem, fruto de não integrar a organização prevista na Carta Magna para o Poder Judiciário, que o TPI é órgão externo à soberania do País. Neste sentido, há sérias restrições a que brasileiros venham a ser efetivamente julgados pelo Tribunal, face à vedação constitucional de extradição de brasileiros natos[62], cláusula pétrea que não pode ser olvidada.
Em complemento à questão anterior, também deve ser considerado o rol de penas passíveis de serem cominadas pelo TPI. A leitura do Tratado de Roma leva ao entendimento de que a jurisdição estrangeira pode sujeitar indivíduos a penas que não encontram acolhimento na Constituição da República. É o caso, por exemplo, das penas de banimento[63], que consiste, em breves linhas, no ato de remeter brasileiro para o exterior, compulsoriamente, e de prisão perpétua, a qual tem aplicação vedada no Brasil, visto o sistema penal nacional ser estruturado (ainda que a realidade dos fatos não demonstre!) com base na recuperação e reintegração do apenado à sociedade.
Para chegar a irrestrito grau de integração com o sistema legal brasileiro também há que ser debatida a questão recursal – qual o nível hierárquico do TPI em relação aos Tribunais nacionais? – bem como a aplicabilidade do TPI em relação à previsão legal de foro privilegiado, com rito processual próprio, para as Altas Autoridades da República, em todos os Poderes constituídos.
Cabe destacar que não há qualquer dúvida com relação ao avanço que a implantação do TPI representa para o universo das relações internacionais, e sim a respeito dos óbices técnicos, alguns contornáveis, outros nem tanto, ao efetivo funcionamento e à total aplicabilidade deste à Nação brasileira. Nos dizeres de Guilherme da Cunha, ”a criação de um Tribunal dessa natureza é um indicador luminoso de que a comunidade internacional deseja contar com uma instituição permanente e sob o controle internacional, capaz de administrar com eficácia a Justiça para todos. Esse objetivo é compatível com a universalidade dos direitos humanos, cuja proteção efetiva supõe uma luta sem quartel contra a impunidade”[64].
Finalizando, há que se destacar, ainda que alguns advoguem a tese da “soberania limitada”, como Al Gore/EUA, François Miterrand/França, Margareth Teacher/Grã-Bretanha, entre outros estadistas, unanimemente respaldados por sólidas Forças Armadas, inclusive com disponibilidade de armas de destruição em massa (nuclear, químicas, biológicas, etc. Banidas? Violadoras de direito humanitário?), que não pode o Brasil abrir mão de exercer seu poder estatal, ainda mais sobre seus nacionais. Tal concordância tornaria o País cúmplice de doutrina nociva aos interesses mais caros da sociedade brasileira. Logo, em sendo os objetivos do TPI os mesmos do Estado Democrático de Direito[65] não há porque deixar o Estado brasileiro de exercer sua ação, em defesa de seus objetivos nacionais permanentes, entre eles a soberania e a autodeterminação, aceitando que outros o façam em seu lugar.
6.Considerações finais
Extenso se tornou o texto, porém não menos volumoso é o conteúdo a ser estudado por aqueles que desejarem aprofundar os conceitos ora apresentados. Neste sentido, colaborações, correções, acréscimos, sugestões, opiniões, etc., que possam cooperar com o aperfeiçoamento deste trabalho serão, sempre, bem-vindas.
Muito mais do que demonstrar uma tese, a intenção foi apresentar ao leitor os diversos ângulos a que está condicionado o militar quando parte, em atenção a compromissos assumidos pelo Brasil, para operar no exterior, quer como observador, quer como Membro de Força de Paz internacional. Visando consolidar o assunto apresentado, facilitando a ação do leitor de chegar a suas próprias conclusões, destaca-se:
– A subordinação da norma internacional à Constituição é ponto pacífico, podendo eventuais divergências serem sanadas em caráter preventivo, no momento em que o Legislativo apreciar o Tratado, ou em caráter repressivo, mediante apreciação do Judiciário.
– A legislação militar brasileira, ainda que possa ser “modernizada”, e neste sentido esta própria já prevê a aplicabilidade de tratados e costumes internacionais, já apresenta institutos que asseguram o combate à impunidade, dispensando, pela eficiência com que tem atuado a Justiça Castrense federal a subordinação a mecanismos alienígenas.
– Não há dúvida de que a existência de legislação internacional é componente que coopera com o desenvolvimento das nações, em especial no que concerne ao incremento do comércio, à garantia dos direitos humanos e ao desenvolvimento da paz. Porém, evitando grandes regressos históricos, não faltam exemplos de tratados “esquecidos” quando determinado país decidiu que não valia mais a pena sustentá-los.
– Também não faltam exemplos de como a “justiça dos vencedores” pode ser implacável para com os vencidos e benevolente para com os vencedores – o Japão foi condenado pelo Tribunal de Tóquio a indenizar os prejuízos de guerra causados pela sua ação agressora, enquanto jamais foi intentada ação por crime contra a humanidade com relação ao dano nuclear causado por Little Boy e Big Fat[66].
– A ordem pública interna é assegurada pela existência do Estado-Poder, o qual exerce a soberania em prol da sociedade, em nítida subordinação do interesse individual às necessidades coletivas. A ordem pública internacional é assegurada – ou tenta-se, visto que não houve sequer um mês de paz desde que a ONU foi criada – pela cooperação dos Estados, em sistema de coordenação de vontades.
Por derradeiro, tendo o Poder Nacional necessidade de empregar a ultima ratio regis, destaca-se que esta necessita ser empregada totalmente voltada a seu objetivo-fim, garantida em seu agir pelo mandado nacional, perante o qual responderá, em caso de excesso, e não, jamais, salvo se vencida, perante o julgo estrangeiro, o qual pode condicionar a justiça à política.
Informações Sobre o Autor
Eduardo Xavier Ferreira Migon
Exército Brasileiro. Mestre em Operações Militares. Especialista em Bases Geo-Históricas para a Formulação Estratégica. Bacharel em Ciências Militares e em Direito