Resumo: O autor trata das questões relacionadas à perícia médica no contexto securitário, onde o preenchimento do Aviso de Sinistro por parte dos médicos assistentes sempre foi motivo de contenda. São discutidos, ainda, os reflexos para o médico, segurados e segurador, da recente resolução do Conselho Federal de Medicina (Resolução CFM 2003/2012), que veda ao médico assistente o preenchimento de formulários elaborados por seguradoras. Conclui que a resolução do CFM 2003/2012 constitui-se num dos avanços periciais mais importantes dos últimos tempos.
Palavras chave: Seguros; Seguradoras; Perícias Médicas; Aviso de Sinistro.
INTRODUÇÃO
Já há muito se discute esse assunto, no qual médicos, segurados e seguradores frequentemente entram em conflito. A princípio, no que respeita a legislação securitária, têm-se os artigos 50 da resolução CNSP 117/04 e 70 da circular SUSEP 302/05, transcritos a seguir:
“Art. 50. Os procedimentos e o prazo para liquidação de sinistros deverão constar das condições gerais, com especificação dos documentos básicos previstos a serem apresentados para cada tipo de cobertura, facultando-se às sociedades seguradoras, no caso de dúvida fundada e justificável, a solicitação de outros documentos.
Art. 72. Deverão ser informados os procedimentos para liquidação de sinistros, com especificação dos documentos básicos previstos a serem apresentados para cada tipo de cobertura, facultando-se às sociedades seguradoras, no caso de dúvida fundada e justificável, a solicitação de outros documentos.”
Nesse sentido, cabe à seguradora fornecer as orientações necessárias para o segurado quanto à comunicação da ocorrência do evento coberto pelo contrato de seguros. Ao segurado compete prover a seguradora dos dados necessários para análise do sinistro, o que permitirá à mesma analisar a regularidade do sinistro e sua dimensão.
Os seguros de danos corporais, na prática, e para efeito didático deste artigo, compõem-se de 06 tipos básicos, ainda que existam outros tipos de cobertura oferecidos pelas empresas seguradoras. São eles:
1) Morte: cuja cobertura garante a indenização aos beneficiários em caso de morte por qualquer causa, natural ou violenta, incluindo o suicídio após 02 anos de vigência de contrato.
2) Morte Acidental: que se refere às causas de morte violenta, incluindo o suicídio, nas mesmas condições descritas acima.
3) Invalidez Permanente parcial ou total por Acidente: cuja cobertura abrange as sequelas decorrentes de acidente pessoal coberto.
4) Invalidez Funcional Permanente e Total por Doença: cuja cobertura garante uma indenização em caso de perda da existência independente do segurado, caracterizada por um quadro clínico incapacitante que inviabilize o pleno exercício de suas relações autonômicas.
5) Doença Grave: prevê o pagamento de indenização em caso de ocorrência de uma doença caracterizada e especificada nas condições contratuais.
6) Diárias Por Incapacidade Temporária: que garante uma indenização na impossibilidade contínua e ininterrupta do segurado exercer a sua profissão ou ocupação, durante o período em que se encontrar sob tratamento médico.
Nota-se que, para cada uma destas coberturas, será necessária uma análise cuidadosa por parte da seguradora quantos aos elementos presentes no sinistro, o que naturalmente irá requerer por parte do segurado o encaminhamento de documentação médica pertinente e adequada. Com este objetivo, a seguradora solicita ao segurado o preenchimento de um Aviso de Sinistro, formulário que contém campos a serem complementados pelo segurado e seu médico, no intuito de permitir à seguradora iniciar a análise do sinistro.
Quanto à parte do formulário sob a responsabilidade do segurado não há o que se discutir. Constam de campos destinados a confirmar os dados pessoais do segurado ou beneficiário, além de subsídios básicos sobre o evento ocorrido. O campo destinado ao preenchimento pelo médico é que sempre suscitou dúvidas e reclamações.
DESENVOLVIMENTO
Num primeiro momento, as discussões se dirigiram à questão da cobrança de honorários para a realização do procedimento, estabelecendo o CFM (Conselho Federal de Medicina), àquela época, que o médico poderia preencher o formulário e receber a devida remuneração pela prestação de tal serviço. Trata-se da resolução CFM 1.076/1981, publicada no D.O.U. de 29 de janeiro de 1982, Seção I, p. 1770.
“RESOLUÇÃO CFM nº 1.076/1981
(Publicada no D.O.U. de 29 de janeiro de 1982, Seção I, p. 1770).
O CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA no uso das atribuições…
RESOLVE:
1) O médico poderá preencher o formulário para concessão dos benefícios do seguro, desde que tal lhe seja solicitado diretamente pelo paciente ou seus responsáveis, ou, em caso de falecimento deste, a pedido da pessoa beneficiária de seguro de vida ou de acidentes pessoais.
2) O médico pode pela prestação de tal serviço receber a devida remuneração.
Rio de Janeiro, 30 de dezembro de 1981.
MURILLO BASTOS BELCHIOR – Presidente”
Acertava o CFM na questão referente à cobrança dos honorários, conforme argumentações descritas na própria resolução, principalmente, considerando que o seu preenchimento além de acréscimo de responsabilidade civil e penal para o médico, exige também gasto de seu tempo e atividade.
A esta época, o cerne da discussão devia-se à cobrança ou não de honorários, tendo em conta o argumento de que o formulário de aviso de sinistro consistia de um simples atestado médico e, portanto, vinculado à assistência médica prestada.
Sendo assim, o médico teria a obrigação de fornecê-lo ao paciente, não podendo cobrar honorários à parte para tal serviço. Ocorre que, acertadamente, o CFM entendeu que o preenchimento destes formulários não tem qualquer vínculo com a atestação médica relativa à assistência ou ao óbito. E assim esta resolução prevaleceu até recentemente, quando uma nova questão se fez presente.
Importante notar que esta resolução data de 1981, época em que a SBPM (Sociedade Brasileira de Perícias Médicas) dava seus primeiros passos. E questões como competências periciais tinham pouco espaço nas mesas de discussão. Somente a partir da criação dos cursos de pós-graduação em Perícias Médicas (2003/2004) e da divulgação dos congressos afins a esta matéria é que assuntos desta natureza foram amplamente discutidos. Demorariam mais de 30 anos para que o óbvio fosse explicitado na resolução CFM 2003/2012.
Mais do que não ter qualquer vínculo com a atestação médica relativa à assistência ou ao óbito, o Aviso de Sinistro constitui-se numa verdadeira atividade médica pericial, pois se trata de um rol de quesitos destinado a conhecer a natureza, grau e extensão de eventos relacionados a danos corporais com clara e evidente finalidade jurídica, no caso, administrativo-securitária.
As questões presentes ao Aviso de Sinistro são de cunho exclusivamente periciais, como por exemplo, estabelecer a exclusão de causas estranhas ao traumatismo, analisar a influência do estado anterior nas consequências de um evento traumático, confirmar o nexo topográfico e temporal das lesões, avaliar a natureza adequada do trauma para produzir as lesões e a natureza traumática destas, estimar percentuais de grau de sequelas, estabelecer períodos de incapacidade, caracterizar doenças especificadas contratualmente e muitas outras.
Assim, a resolução do CFM 2003/2012, embora tarde, chegou à boa hora, tal qual um farol a iluminar caminhos dantes escabrosos e pedregosos.
“RESOLUÇÃO CFM Nº 2.003/2012
(Publicada no D.O.U. 14 dez. 2012. Seção I, p. 255)
Revoga a Resolução CFM nº 1.076/1981
Veda ao médico assistente o preenchimento de formulários elaborados por empresas seguradoras, revoga a Resolução CFM nº 1.076/81 (publicada no D.O.U. de 29 de janeiro de 1982, Seção I, p. 1770) e demais disposições em contrário.” (grifos nossos).
DISCUSSÃO
Os reflexos desta resolução são vários e, embora a princípio possa parecer o contrário, vêm trazer soluções a todos os envolvidos, médicos, seguradoras e, principalmente, segurados.
Aos médicos assistentes retira a incumbência do preenchimento do Aviso de Sinistro, documentação que lhe demandava acréscimo de tempo e responsabilidades sem qualquer relação com a assistência prestada. Além de prejuízos financeiros, pois raramente estes procedimentos eram cobrados, alterava-se a rotina ambulatorial assistencial produzindo atrasos nas demais consultas, já que era necessário rever todo o prontuário do paciente e responder questões para as quais o médico não estava devidamente preparado. Ademais, pela falta de preparo, com frequência os Avisos de Sinistros eram preenchidos com erros técnico-periciais, motivo de reiteradas solicitações de esclarecimentos complementares ao médico assistente do segurado. E todo o processo se repetia. A lista dos possíveis aborrecimentos que o procedimento poderia causar ao médico assistente é ainda maior que as mais frequentes descritas acima.
Quanto à seguradora, os problemas não eram menores. Em primeiro lugar estava sempre atenta aos prováveis erros técnico-periciais presentes aos Avisos de Sinistro. Seus auditores identificavam as incoerências técnico-periciais e solicitavam esclarecimentos complementares ao médico assistente. Enquanto isto o processo de análise do sinistro ficava suspenso, e consequentemente da liberação da indenização, aguardando as informações adicionais necessárias para resolver a dúvida encontrada. Note que tal procedimento é legítimo, pois a seguradora precisa ter segurança quanto à regularidade do sinistro, sua causa, natureza e extensão, conforme dispõem os artigos 50 da resolução CNSP 117/04 e 70 da circular SUSEP 302/05 transcritos no início do artigo.
Não conseguindo resolver suas dúvidas através das reiteradas solicitações de documentações complementares e/ou esclarecimentos adicionais ao médico assistente do segurado, a seguradora optava pela realização de uma perícia médica sob sua responsabilidade, com os demais encargos decorrentes, ou seja, custo financeiro adicional, prazos curtos para sua realização, reclamações na SUSEP (Superintendência de Seguros Privados), desdobramentos em Juntas Médicas e ações judiciais. Não bastasse, ainda havia a suspeição que o perito da seguradora carregava. A perícia médica solicitada pela seguradora era sempre questionada quanto à sua lisura e imparcialidade, o que, na prática, tornava sua solicitação sem efeitos práticos positivos, restando os negativos. E ainda, durante as décadas de 90 e início dos anos 2000 proliferaram empresas agenciadoras de perícias médicas “quarteirizando” irresponsavelmente os serviços solicitados pelas seguradoras. Tal fato produziu funestos efeitos. Sem qualquer controle de qualidade, o antes remédio tornou-se veneno.
O CFM, ao vedar ao médico assistente o preenchimento do Aviso de Sinistro, indiretamente contribuiu para a solução de um grave e oneroso problema das seguradoras e de todo o instituto do Seguro de Pessoas.
Ao transferir esta responsabilidade a um médico perito, a seguradora tem a oportunidade de receber documentações mais adequadas, com menor probabilidade de erros, dúvidas e incoerências, com nítidos reflexos no processo de regulação do sinistro, ou seja, de verificação de sua regularidade, natureza, grau e extensão.
O médico perito, devidamente preparado, e para isto existem dezenas de cursos de pós-graduação ministrados no país, tem melhores condições de analisar quais são os documentos necessários para encaminhamento à seguradora e de responder adequadamente os questionamentos presentes ao Aviso de Sinistro. Esta atividade médica pericial, buscada pelo segurado, proporciona melhores condições de lisura ao processo de regulação do sinistro e, consequentemente, maior segurança ao segurado e seguradora, do que as suspeitas perícias realizadas por empresas agenciadoras.
Algum desavisado, certamente na defesa de interesses escusos, pode questionar por que a perícia buscada pelo segurado é mais adequada do que a solicitada pela seguradora. É simples. As seguradoras dispõem de mecanismos de auditoria e controle internos, médicos especializados em perícias securitárias, capazes de identificar qualquer incoerência, discrepância ou inconsistência de informações técnico-periciais e, a partir destas constatações, proporem os mecanismos para solucionar as eventuais dúvidas suscitadas, seja através de solicitações de esclarecimentos adicionais ou mesmo através da recomendação de uma Junta Médica. O segurado não dispunha destes mecanismos, mas agora sim, tem seus direitos garantidos, pois será representado por profissional capacitado a esclarecer as questões securitárias envolvidas em seu processo e a discutir em pé de igualdade com a seguradora os assuntos de seu interesse. O segurado, leigo nos temas médicos, e seu médico assistente, sem preparo na matéria pericial, dependiam da boa-fé inquestionável da seguradora e seus representantes, pois não possuíam os instrumentos apropriados para contestar suas conclusões.
CONCLUSÃO
Não se trata de questionar antecipadamente a probidade da seguradora e seus contratados, numa atitude leviana e preconceituosa, mas antes, de defender um melhor equilíbrio nas relações entre segurado e seguradora a ser proporcionado pela admirável resolução CFM 2003/2012, marco e conquista pericial dos mais importantes dos últimos anos.
Informações Sobre o Autor
Wagner Fonseca Moreira da Silva
Especialista em Medicina Legal – ABML, Máster of Science en Medicina Forense – UV/ES, Mestre em Ciências Forenses – UP/PT