Resumo: Este artigo apresenta breve conceituação dos complexos elementos relacionados aos atores inseridos no processo do cumprimento da efetividade da educação superior brasileira, com enfoque no papel do Supremo Tribunal Federal como um dos órgãos de controle responsável pela fiscalização dos direitos contidos na Constituição Federal de 1988, o que reflete na implementação efetiva de políticas públicas para esse fim, o caso das cotas raciais. Foram utilizadas para a confecção do presente artigo, definições dispostas na própria Constituição Federal de 1988, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 e considerações de autores de diversas áreas do conhecimento. Conclui-se que a implementação das políticas públicas não é de competência única do Estado, mas de um complexo elenco de atores, sobretudo aqueles que são responsáveis pela ação de controlar a efetividade das políticas direcionadas a um dos direitos primordiais das pessoas: a educação.
Palavras chave: Estado. Educação. Direito Constitucional. Políticas Públicas.
Abstract: This article presents a brief conceptualization of complex elements related to actors engaged in the process of compliance with the effectiveness of Brazilian higher education, focusing on the role of the Supreme Court as one of the control bodies responsible for enforcement of the rights contained in the Constitution of 1988, reflecting the effective implementation of public policies for this purpose, the case of racial quotas. Definitions laid out in the Federal Constitution of 1988, in the Law of Guidelines and Bases of National Education of 1996 and considerations of authors from different areas of knowledge were used in this contex. We conclude that the implementation of public policies is not the exclusive responsibility of the State, but of a complex cast of actors, especially those who are responsible for action to control the effectiveness of policies aimed at one of the key rights of people: education.
Keywords: State. Education. Constitutional law. Public policies.
Sumário: 1. Introdução. 2. Políticas públicas e o estado democrático constitucional brasileiro. 2.1 Histórico e evolução. 3. Da importância das organizações judiciais na democracia atual. 4. Autonomia universitária e fomento ao ensino superior. 5. Atuação do supremo tribunal federal nas políticas públicas educacionais. 6. Conclusão. Referências.
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo possui como meta desenvolver uma análise acerca da atuação das organizações, em especial as judiciais, na efetivação do acesso ao Ensino Superior no Estado Democrático Brasileiro.
Pretende-se, deste modo, verificar as motivações dos formuladores de políticas públicas e legisladores na concretização do direito à educação superior no país, bem como analisar um caso de atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) no controle da política pública de criação de cotas nas instituições públicas de ensino superior.
Para tanto, inicia-se com uma análise do panorama constitucional e normativo, a fim de situar o problema apresentado na realidade do ordenamento jurídico brasileiro.
Posteriormente, pretende-se tratar da importância das organizações judiciais na democracia contemporânea. Visa-se a realizar um paralelo entre as políticas públicas e a educação superior, demonstrando as ligações existentes entre as decisões dos atores envolvidos mais diretamente no acesso ao ensino superior, o que envolve o protagonismo universitário.
Objetiva-se, ainda, analisar o caso da implementação de cotas para acesso às universidades, cuja política acabou por ser judicializada no âmbito do STF.
2 POLÍTICAS PÚBLICAS E O ESTADO DEMOCRÁTICO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO
2.1 Histórico e evolução
A palavra “constituição” remete à ideia de base, de criação de algo, de organização, formação. Existem várias definições para o termo, como, por exemplo, aquela dada por José Celso de Mello Filho[1]:
“Constituição é o ‘nomen juris’ que se dá ao complexo de regras que dispõem sobre a organização do Estado, a origem e o exercício do Poder, a discriminação das competências estatais e a proclamação das liberdades públicas”.
José Afonso da Silva[2], por sua vez, ensina que a Constituição é:
“Um sistema de normas jurídicas, escritas ou costumeiras, que regula a forma do Estado, a forma de seu governo, o modo de aquisição e o exercício do poder, o estabelecimento de seus órgãos e os limites de sua ação.”
Infere-se, portanto, que a Constituição é o conjunto de normas mais importante de um Estado, pois ela fornece as diretrizes de toda a sua organização, funcionamento e indica quais pontos devem ser abrangidos por outras fontes normativas.
Os princípios são regras básicas e fundamentais que estão presentes em determinada ordem jurídica. Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Araújo[3] definem:
“Os princípios são regras-mestras dentro do sistema positivo. Devem ser identificados dentro da Constituição de cada Estado as estruturas básicas, os fundamentos e os alicerces desse sistema. Fazendo isso estaremos identificando os princípios constitucionais.”
Para Celso Ribeiro Bastos[4]:
“Os princípios constitucionais são aqueles que guardam os valores fundamentais da ordem jurídica. Isto só é possível na medida em que estes não objetivam regular situações específicas, mas sim desejam lançar a sua força sobre todo o mundo jurídico. Alcançam os princípios esta meta à proporção que perdem o seu caráter de precisão de conteúdo, isto é, conforme vão perdendo densidade semântica, eles ascendem uma posição que lhes permite sobressair, pairando sobre uma área muito mais ampla do que uma norma estabelecedora de preceitos. Portanto, o que o princípio perde em carga normativa ganha como força valorativa a espraiar-se por cima de um sem-número de outras normas.”
Entende-se, portanto, que o princípio possui uma carga de valor, de ponto de partida, e não de norma. E esse caráter é essencial para que ele possa atingir a todos, uma vez que não fica restrito a determinado assunto, mas é abrangente a um ilimitado número de dispositivos legais.
Cláudio Gonçalves Couto e Rogério Bastos Arantes[5] consideram:
“Por fim, mas não menos importante, esse tipo especial de Constituição tende a causar impacto significativo sobre o funcionamento do sistema de justiça, na medida em que o Judiciário, e especialmente seu órgão de cúpula – o Supremo Tribunal Federal (STF) –, passa a ser mais acionado para controlar a constitucionalidade das leis e demais atos normativos (Arantes, 1997; Arantes e Kerche, 1999), nem sempre relativos a princípios constitucionais fundamentais, mas frequentemente relativos a políticas públicas”.
Nesta seara, destaca-se a importância, em especial, de uma instituição judiciária nacional, o STF. Sobre ele, Oscar Vilhena Vieira[6] dispõe:
“Por outro lado, a ciência política, depois de longo período de desatenção em relação às instituições, despertou para a necessidade de compreender melhor o papel do direito e das agências responsáveis pela sua aplicação. Neste novo amanhecer da ciência política, com viés mais institucionalista, o Supremo tem se tornado objeto privilegiado de muitos autores. Até os economistas passaram a analisar as consequências, não raramente tomadas como externalidades pouco desejáveis, das decisões judiciais.”
Neste ponto, cabe explanar que as organizações, principalmente aquelas públicas, têm um importante papel em todo o processo do ciclo de política pública. Por ser a maior responsável pelas primeiras fases do ciclo de política pública, a Administração Pública apresenta-se como um importante ator no procedimento.
Sobre o assunto, tem-se o disposto a seguir por Saravia et al[7]:
“Em toda política pública, as instituições desempenham um papel decisivo. Com efeito, delas emanam ou elas condicionam as principais decisões. Sua estrutura, seus quadros e sua cultura organizacional são elementos que configuram a política. As instituições impregnam as ações com seu estilo específico de atuação. […] Os estudos de política pública mostram a importância das instituições estatais tanto como organizações, pelas quais os agentes públicos (eleitos ou administrativos) perseguem finalidades que não são exclusivamente respostas a necessidades sociais, como também configurações e ações que estruturam, modelam e influenciam os processos econômicos com tanto peso, como as classes e os grupos de interesse. […]
[…] exatamente pela enorme presença do Estado, as análises sobre políticas públicas devem considerar aspectos da representação de interesses. No Brasil, a presença absoluta do Estado sobre a sociedade importou no direcionamento de todas as demandas ao seu interior. “
Eloísa de Mattos Höfling[8] define Estado, Governo e Políticas Públicas:
“[…] é possível se considerar Estado como o conjunto de instituições permanentes – como órgãos legislativos, tribunais, exército e outras que não formam um bloco monolítico necessariamente – que possibilitam a ação do governo; e Governo, como o conjunto de programas e projetos que parte da sociedade (políticos, técnicos, organismos da sociedade civil e outros) propõe para a sociedade como um todo, configurando-se a orientação política de um determinado governo que assume e desempenha as funções de Estado por um determinado período.”
Portanto, na visão de Höfling, as políticas públicas são tarefas do Estado no que tange à implementação de projetos de governo, por meio de ações voltadas para setores específicos da sociedade.
Mas, para que sejam efetivamente colocadas em prática, há a necessidade de instrumentos, pois apenas a vontade de atuar não se mostra suficiente para a sua efetiva implantação.
E o complexo conjunto de conceitos e definições perpassa pela ideia de que a vigência do princípio da lei, segundo O'Donnell[9]: […] acarreta certeza e accountability”, conceito que assumiu o lugar de um consenso organizador da democracia como destaca Filgueiras (2011). A obrigação dos atores envolvidos em prestarem conta de suas responsabilidades perante aos seus credores, os cidadãos. O'Donnell (2011, pág. 48) menciona a obrigatoriedade da aplicação da lei pela autoridade competente e que “o princípio da lei não é apenas um amontoado de normas legais, mesmo que elas tenham sido adequadamente promulgadas; ele é um sistema legal, um conjunto de normas que possuem várias características além do fato de terem sido adequadamente promulgadas.”
Filgueiras (2011) argumenta que o processo de accountability deve acompanhar a transparência, dado que sem ela, não há como aferir àquela. Defende ele que a publicidade demanda que as ações do governo ocorram por meio de processos abertos quanto às decisões, além do controle das instituições por outras instituições e pelos próprios cidadãos. Essa publicidade vincula as decisões do governo à autoridade da cidadania, por meio das instituições ou pela participação da própria sociedade nos processos de escolhas e decisões públicas.
Colabora para este consenso o fato de que, depois que são aprovadas por amplas maiorias legislativas, os tribunais ampliam o leque de atores influentes nesse processo, haja vista que incrementa a chamada venueseeking, conceito que sugere que os atores procuram as vias, instâncias institucionais, que mais lhes convêm – administrativa, legislativa ou judiciária (TAYLOR, 2007 apud VIECELLI, 2012).
3 DA IMPORTÂNCIA DAS ORGANIZAÇÕES JUDICIAIS NA DEMOCRACIA ATUAL
O Direito Constitucional é a parte do Direito Público que tem por objetivo regular as ações básicas do Estado. Estuda e interpreta a norma maior de nosso ordenamento jurídico, que é a Constituição Federal.
O texto “Judiciário: entre a Justiça e a Política”, de Rogério Bastos Arantes[10], aborda, primordialmente, o histórico de construção do Poder Judiciário, englobando a expansão das funções judiciais e levantando hipóteses sobre o seu futuro.
É realizada uma análise do Judiciário na França e nos Estados Unidos, mais valorizada neste último. Neste ponto, Montesquieu[11] desenvolveu um modelo de separação dos poderes desenvolvido com foco no princípio da supremacia da lei, compreendendo o Judiciário como um poder praticamente nulo.
Por tal razão, um controle jurisdicional de constitucionalidade das leis foi posto de lado na França. Neste sentido, Mauro Cappelletti[12] explica que “Na França, a ideia que está na base de tal exclusão é, principalmente, a da separação dos poderes e a consequente inoportunidade de qualquer interferência do poder judiciário na atividade legislativa das assembleias populares”.
Todavia, temos que tal concepção não se coaduna com os Estados democráticos de direito atuais, em razão da mudança nas competências institucionais, principalmente no que se refere ao Poder Judiciário.
No texto de Rogério Arantes, verifica-se que foi apontado que o Poder Judiciário passou por um processo de expansão no século XX em suas duas funções principais, quais sejam: prestação da justiça (prestação jurisdicional) e controle de constitucionalidade das leis e atos normativos.
Antoine Garapon[13], ao analisar a questão da ampliação de poderes do Judiciário, ensina que “A posição de um terceiro imparcial compensa o ‘déficit democrático’ de uma decisão política agora voltada para a gestão e fornece à sociedade a referência simbólica que a representação nacional lhe oferece cada vez menos”.
Mauro Cappelletti[14] afirma que o crescimento do Poder Judiciário é necessário ao equilíbrio dos Poderes, o que pode contribuir para o aperfeiçoamento da democracia, em razão da independência do Judiciário resistir a decisões da maioria que possam violar a Constituição.
Sartori[15] considera que a democracia pode ser considerada uma invenção ocidental, mas não quer dizer que seja uma má invenção ou um produto adequado apenas para consumo ocidental.
O voto é, na opinião de Sartori, condição necessária para qualquer política livre. Porém, o direito ao voto, por si só, não é indicador de democracia, ainda que seja fator mínimo, mas não mede adequadamente a democracia plena. Pode-se considerar um erro impor a votação em países onde o sistema de voto não se encaixa, ou seja, países que não possuem condições mínimas para implantação da democracia.
Atualmente, seria necessário considerar a acepção ampla de Sartori[16], que recomenda que qualquer definição de democracia deve abranger tanto o sentido prescritivo quanto o sentido descritivo do termo, pois caso contrário será apenas uma definição parcial e incompleta.
Chauí[17] argumenta que as eleições simbolizam o essencial da democracia e não apenas a rotatividade de governos ou alternância no poder. Explana que os cidadãos são sujeitos de direitos e por esses devem lutar e exigir, estando aí o cerne da democracia. Segundo a autora:
“Dizemos que uma sociedade (e não um simples regime de governo) é democrática quando, além de eleições, partido políticos, divisão dos três poderes da república, respeito à vontade da maioria e das minorais, institui algo mais profundo, que é condição do próprio regime político, ou seja, quando institui direitos”.
A questão da democracia relacionada ao controle de constitucionalidade resta demonstrada na medida em que é indicado que após a 2ª Guerra Mundial, a retomada do regime democrático passou a admitir o princípio liberal de controle de constitucionalidade das leis.
Sabe-se que o Estado não é capaz de manter o bem estar social sem uma estrutura de normas e regulamentos, pois mesmo que a maioria da sociedade queira viver baseando-se em usos e costumes, muitas pessoas entrariam em conflito para viver em comunidade, necessitando das normas para que se possa manter um equilíbrio, regulando as ações básicas e punindo quem as infrinja.
Dada a dinâmica e constante mutação das características do Estado, nem todos os seus objetivos estão dispostos na legislação, uma vez que seria impossível conhecer todos os objetivos a serem alcançados em situação futura.
Assim, a Constituição Federal de 1988 trouxe para o Brasil o sistema híbrido de controle de constitucionalidade, apresentando os controles difuso e concentrado, possibilitando maior acessibilidade também pela via direta, por meio do acréscimo de legitimados para propor ação direta de inconstitucionalidade no STF.
Denota-se do texto um aumento da quantidade de recursos extraordinários e ações diretas de inconstitucionalidade perante o STF, levando o Brasil a possuir um sistema de controle de constitucionalidade no qual as minorias políticas podem exercer poder de veto contra decisões políticas majoritárias.
Quanto à dignidade da pessoa humana, base do Estado brasileiro, tem-se que o ser humano e sua integridade, física e moral, devem ser preservadas, por todos. Neste sentido, José Afonso da Silva[18] ensina que “Dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida”.
A fim de proteger o ser humano e cumprir os ditames constitucionais, notadamente se verificou uma possibilidade maior de acesso ao Poder Judiciário também às minorias, seja de forma direta pela existência de legislações específicas como a Lei nº 9.099/1995, que trata dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais (antigos Tribunais de Pequenas Causas), ou de forma indireta pela maior atuação dos legitimados extraordinários, dentre eles Ministério Público e Defensoria Pública, para a propositura de ações civis públicas.
A questão do jus postulandi na Justiça do Trabalho, disciplinada no artigo 791 da Consolidação das Leis do Trabalho[19], ou seja, a possibilidade de o trabalhador ingressar com ação trabalhista sem necessidade de assistência de advogado, embora muito criticada no âmbito do Direito, também demonstra a maior facilidade de acesso ao Judiciário e uma forma de manutenção da ordem social e política.
Embora tenha havido grande progresso na seara jurisdicional nas últimas décadas, é notável que também estão sendo realizadas mudanças para uma melhor gestão do futuro do Poder Judiciário.
A inserção dos processos digitais, que traz maior celeridade à prestação jurisdicional, além da criação de órgãos de controle externo, caso do Conselho Nacional de Justiça, são exemplos dessas mudanças.
Rogério Arantes aponta que a criação de órgãos externos de controle teria levado a uma crise no Judiciário. Todavia, como o texto data de 2004, ano de criação do Conselho Nacional de Justiça, realmente havia discussão no meio jurídico a respeito de uma suposta “amarração” do Poder Judiciário pelo órgão de controle.
Neste ponto, note-se, inclusive, a opinião mais contemporânea de Ivan Cândido da Silva de Franco e Luciana Gross Cunha[20]: “[…] se o CNJ tem um papel já proeminente hoje, pode ter sua atuação ainda mais qualificada se a academia auxiliá-lo na difícil tarefa de constantemente (re)pensar as instituições postas”.
Assim, passada mais de uma década de sua instituição, não se verificou o “fim do Judiciário” como temido por muitos, mas a atuação de um órgão externo que surgiu para complementar e fomentar as diretrizes constitucionais de ampliação de acesso e maior qualidade na prestação jurisdicional no Brasil.
Observa-se dos textos que atualmente o STF tem chamado a atenção dos cientistas políticos não apenas por ser um Tribunal sui generis, com características próprias, mas também por ser o principal responsável, no Poder Judiciário, pelo controle de políticas públicas.
Verifica-se ainda que o autor Oscar Vilhena Vieira, ao estudar o fenômeno da “Supremocracia”, não opina de forma negativa ou positiva quanto a tal fenômeno, concluindo que: “O ponto aqui não é, portanto, avaliar se as decisões tem sido progressistas ou não, mas, sim, verificar a posição que vem ocupando o Supremo em nosso sistema político.[21]”
Assim, ainda que haja a necessidade de mudanças no STF, tem-se que sua função constitucional de guarda da Constituição e, por consequência, de ator no controle de políticas públicas, mostra-se de extrema importância para o país.
Segundo Ranieri, o direito à educação não é ideologicamente neutro, consequentemente a educação possui um aspecto político-democrático (RANIERI, 2009, p. 359).
Contudo, mesmo diante de escolhas ideológicas opostas, não podem os programas políticos se furtar aos mandamentos constitucionais: “[…] a implementação de políticas públicas que assegure o acesso universal e qualidade da educação é uma necessidade diante da força normativa da Constituição” (RANIERI, 1994, p. 127).
A autora afirma que, segundo pesquisas (Ranieri, 2000), não se percebe o direito à educação, em sua dimensão democrática, mas que esse quadro vem se alterando ao longo do tempo, tendo em vista que sua efetivação por via jurisprudencial vem apresentando novos campos de afirmação do Estado Democrático de Direito, em benefício dos direitos de cidadania e da participação popular. Fato esse bastante importante em um país com baixa crença nas instituições democráticas e pouco conhecimento da força normativa constitucional. Conclui a autora que os mecanismos de tutela judicial dos direitos sociais podem ser efetivos quando a política pública se extrai diretamente da Constituição (RANIERI, 2013).
O cientista político norte-americano Matthew Taylor explica que o tema do papel político dos tribunais e seu impacto em políticas públicas confirma o real funcionamento do sistema, que “é altamente majoritário quando se trata do processo de deliberação de políticas públicas, mas tende para a forma consensual durante o processo de implementação das políticas.” (TAYLOR, 2007 apud VIECELLI, 2012, )
Vicielli (2012, pág. 57) alega que as decisões dos tribunais impactam de forma mais contundente quando a política pública não é responsiva às reivindicações populares: “É judicializando os conflitos sociais que os tribunais adquirem mais poder, principalmente quando são noticiados pela mídia, caso em que a influência sobre o Executivo e Legislativo torna-se extremamente relevante. […]”. Exemplifica o autor com as políticas públicas educacionais que sofreram efeitos indiretos proporcionados pelas decisões do STF relativas, por exemplo, à constitucionalidade das cotas raciais e das cotas para egressos de escolas públicas. Crê o autor que os efeitos dessas decisões, promulgadas no final de abril de 2012, obtiveram tamanha repercussão na mídia que foram incorporados pelo Executivo e Legislativo e institucionalizados na forma da Lei nº 12.711, sancionada em 29 de agosto de 2012.
4 AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA E FOMENTO AO ENSINO SUPERIOR
A Constituição Federal disciplinou de forma primordial a Educação no Brasil, tendo a incluído como um direito social, nos termos do caput de seu artigo 6º: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. Verifica-se, ainda, do disposto em seu artigo 205, que: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.
Assim, revela-se que a educação no Brasil é um direito de todas as pessoas e um dever conjunto do Estado, entendendo-se a cooperação entre Municípios, Estados e União, cada um em sua área de competência definida em lei, e da própria família, a qual deverá fomentar o acesso à educação.
Muito embora exista a disposição constitucional de que o dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, é certo que também existe a obrigatoriedade de o Estado garantir o acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um. Neste aspecto é que se verifica a importância das universidades.
Sobre a relação entre as políticas públicas constitucionalizadas em normas, Cláudio Couto e Rogério Arantes[22] expõem:
“Considerando-se as dimensões de polity, politics e policy tal como estabelecidas anteriormente, seria possível distinguir, no interior de uma determinada Constituição escrita, os aspectos fundamentais do ordenamento político relativos à estrutura do regime (polity) daqueles outros que, embora se refiram ao conteúdo material de ações estatais prováveis ou desejáveis (policies), foram abrigados pelo texto constitucional e equiparados formalmente aos princípios da polity. […]
De modo geral, os textos constitucionais modernos preocuparam-se com o estabelecimento dos princípios fundamentais do Estado, ao mesmo tempo em que procuraram definir os limites da ação estatal da maneira mais rigorosa possível.”
A Constituição Federal pode ser definida, como já o fizemos ao início deste artigo, como sendo o conjunto de normas mais importante de um Estado, pois fornece as diretrizes de toda a sua organização, funcionamento e indica quais pontos devem ser abrangidos por outras fontes normativas.
Quanto à educação, a Carta Magna é clara ao expor que ela deverá ser também incentivada pela sociedade, visando a garantir o princípio maior da Constituição, que é a dignidade da pessoa humana, ou seja, possibilitar ao ser humano uma vida digna, em todas as searas da sua vida.
Neste ponto, a Constituição Federal, ao normatizar princípios e diretrizes que deverão ser observadas pela coletividade, acaba por tratar de políticas públicas em seu texto. Sobre o assunto, Cláudio Couto e Rogério Arantes instruem[23]:
“Nosso argumento principal é de que a Carta Brasileira de 1988 se caracteriza por ter constitucionalizado formalmente diversos dispositivos que apresentam, na verdade, características de políticas governamentais com fortes implicações para o modus operandi do sistema político brasileiro”.
Por se tratar de um processo, o procedimento de formulação das políticas públicas envolve diversos atores, tanto membros da Administração Pública, como cidadãos e demais interessados.
Neste aspecto, Saravia et al[24] explanam:
“Como locus por excelência de realização das políticas públicas, o relacionamento Estado/sociedade é determinado pelas condições histórico-estruturais de desenvolvimento de uma dada formação social. […] Já o plano de formulação de políticas públicas requer outras condições, que residem em um nível mais singular e são dadas pela organização sociopolítica específica onde se formula a política pública. Nessa são relevantes as organizações social e política vigentes (regime político e padrão de organização da sociedade), as condições econômicas e, em maior ou menor grau, as condições tecnológicas e culturais.”
A Constituição Federal, em seu artigo 207, dispõe acerca das universidades: “As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.”
De Plácido e Silva[25] conceitua “autonomia” da seguinte maneira:
“Palavra derivada do grego auto nomia (direito de se reger por suas próprias leis), que se aplica para indicar precisamente a faculdade que possui determinada pessoa ou instituição, em traçar as normas de sua conduta, sem que sinta imposições restritivas de ordem estranha”.
Observa-se, deste modo, que a Constituição Federal outorgou as autonomias didática, científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial às universidades.
Destarte, cabe expor os ensinamentos de Nina Beatriz Ranieri[26]:
“[…] no direito público, a autonomia pode ser conceituada como poder funcional derivado, circunscrito ao peculiar interesse da entidade que o detém e limitado pelo ordenamento que lhe deu causa, sem o qual ou fora do qual não existiria. Não é, portanto, soberania, mas poder derivado; e, quando atribuído a uma instituição pública, não implica liberdade absoluta, uma vez que a autonomia é restrita ao peculiar interesse da entidade.”
Desta forma, tem-se que a autonomia das universidades não é irrestrita, mas deve obediência às normas e princípios acerca da matéria. Não é, assim, uma soberania absoluta, mas um poder limitado por quem lhe outorgou tal possibilidade.
A Lei nº 9.394/1996 (LDB) dispõe, in verbis: “No exercício de sua autonomia, são asseguradas às universidades, sem prejuízo de outras, as seguintes atribuições: […]” e conforme artigo 56: “As instituições públicas de educação superior obedecerão ao princípio da gestão democrática, assegurada a existência de órgãos colegiados deliberativos, de que participarão os segmentos da comunidade institucional, local e regional”.
Assim exposto, nota-se a importância do papel das universidades no desenvolvimento do Ensino Superior no país, tendo elas atuado como mecanismo para a implementação de diversas políticas públicas e sociais.
Observe-se, porém, que a implementação de políticas públicas por parte das universidades não se restringe ao ensino, mas também ao próprio acesso à educação, como se deu, por exemplo, com a criação do sistema de cotas nas universidades públicas.
Desta maneira, ao dispor de forma específica sobre as universidades, garantindo, ainda, certa margem de autonomia, o legislador constitucional pretendeu a implementação e a efetivação de políticas públicas que transcendem apenas o ato educacional.
A valorização dos direitos sociais e impulso à sua universalização, a descentralização de competências, os novos parâmetros para alocação de recursos e a redefinição das relações público-privadas no que diz respeito ao financiamento e oferecimento de bens e serviços sociais, particularmente, no campo da educação devem-se às condições promovidas pela Constituição. (RANIERI, 2013). E em assim sendo, faz-se extremamente necessário órgãos que possam garantir que essas condições serão efetivadas.
5 ATUAÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NAS POLÍTICAS PÚBLICAS EDUCACIONAIS
O STF é o órgão de cúpula do Poder Judiciário, com a competência principal da guarda da Constituição, exercendo o controle das normas não apenas por intermédio de sua função de Tribunal recursal, mas também como parte do mecanismo de controle de constitucionalidade das normas, conforme se verifica do próprio texto constitucional:
“Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: […]
I – processar e julgar, originariamente:
a) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal; […]
II – julgar, em recurso ordinário: […]
b) o crime político;
III – julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida: […]”
Composto por onze Ministros, escolhidos dentre cidadãos de notável saber jurídico e reputação ilibada (art. 101 da CF/1988), nomeados pelo Presidente da República, após aprovação da escolha pela maioria absoluta do Senado Federal.
Um caso a ser considerado no presente artigo refere-se à questão das cotas raciais, cuja validade de reserva para estudantes negros no Brasil foi votada no STF em 2012, gerando unanimidade quanto a sua constitucionalidade.
A Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012, garante a reserva de 50% das matrículas por curso e turno nas 59 universidades federais e 38 institutos federais de educação, ciência e tecnologia a alunos oriundos integralmente do ensino médio público, em cursos regulares ou da educação de jovens e adultos. Os demais 50% das vagas permanecem para ampla concorrência.
Porém, dessas vagas, deverá haver o preenchimento, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas, em proporção no mínimo igual à de pretos, pardos e indígenas na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).[27]
O dilema encontrado nesse exemplo tornou-se polêmico, tendo em vista que se trata de um benefício concedido a uma determinada parcela social em detrimento do todo. Se a Constituição Federal estabelece igualdade para todos, sem distinção de cor, raça, religião; ao determinar cotas nas universidades, seja de qual nível for, resulta em conflito entre os direitos individuais dos que não foram beneficiados e os direitos cedidos a essa parcela, esbarrando no princípio constitucional da igualdade, isonomia.
Sendo assim, para reequilibrar as desigualdades são necessárias atitudes por parte dos governantes, atuando nas diferentes situações. O princípio da igualdade, assim, não deve ser interpretado simplesmente como tratamento igualitário de todos, mas possibilitar que todos sejam iguais na medida da desigualdade de cada um.
No Brasil, diversas universidades brasileiras, incluindo a Universidade Federal do ABC, adotaram uma reserva de cotas de vagas para o ingresso da população afrodescendente, com o propósito de atender a legislação vigente e contribuir com a solução do problema das desigualdades raciais no ensino superior.
Neste ponto, temos que a principal razão da polêmica ocorre porque alguns consideram tal política como uma redução da exclusão, enquanto outros como sendo uma segunda forma de discriminação.
O primeiro julgamento de grande repercussão na gestão do Ministro Ayres Britto envolveu a questão da reserva de vagas em universidades públicas para alunos negros – as chamadas cotas raciais. Em 26 de abril de 2012, o Plenário concluiu o julgamento para considerar constitucional a política de cotas étnico-raciais para seleção de estudantes da Universidade de Brasília (UnB). Por unanimidade, os ministros julgaram improcedente a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186-2 Distrito Federal, ajuizada na Corte pelo Partido Democratas (DEM).[28]
A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental supramencionada, em sua descrição, apontou conceitos complexos de discussão como valores sobre a liberdade e a igualdade, valores estes fundados no Estado Constitucional. Defendem, no texto em tela que não dúvidas sobre a simbiose existente entre esses valores, sobretudo em sociedades construídas nos fundamentos democráticos, porém resta a polêmica questão acerca da constitucionalidade das ações afirmativas que tentam reparar desigualdades históricas nos aspectos étnico-sociais, na intenção de promover a justiça social. A partir desse ponto, a ADFP 186-2 argumenta que há um paradoxo na própria definição de igualdade, que gera problemas dos mais complexos para o exame da constitucionalidade das ações afirmativas em sociedades plurais.
Ao fim, mesmo com toda análise realizada pelo STF, considerando os aspectos históricos e sociais em uma sociedade democrática, indeferiu-se o pedido interposto pelo DEM, declarando-se a constitucionalidade da lei cotas, até hoje aplicada em muitas das instituições públicas de ensino superior.
6 CONCLUSÃO
O ordenamento jurídico brasileiro possui como um de seus princípios a proteção e a promoção do direito à educação, direito esse garantido pela Constituição de 1988. A importância desse tema para o Estado Democrático de Direito constitui-se relevante na medida em que a educação representa, em visão micro, direito individual e, ao mesmo tempo, em sentido macro, direito coletivo, tornando-se a educação como um dos instrumentos fundamentais para o exercício da democracia.
Ainda que esteja evidente que o direito seja essencial para consolidação da democracia brasileira, seu efetivo papel acerca da implementação das políticas públicas é modesto. Conforme se verificou na realização deste artigo, os debates acerca do direito à educação, nos últimos anos, nas áreas educacional e jurídica, enfatizaram a análise de determinados aspectos conjunturais que a uma abordagem mais estrutural, envolvendo temas como equidade, qualidade e eficiência assegurada na Constituição Federal.
Denota-se que a atuação do Poder Judiciário como organização e também ator envolvido no processo de políticas públicas atua no sentido de assegurar os aspectos estabelecidos na literalidade das normas, mas terá a força para avaliar sua aplicação em determinado contexto, como o que ocorreu com o caso do estabelecimento das cotas raciais com o STF.
Neste caso, fundamentou-se que todas as pessoas são iguais, sem distinção de todos os aspectos, mas levou-se em consideração que nem todos partiram do mesmo ponto e, portanto, cabe uma interpretação que pode fugir dessa literalidade em sua essência. Ademais, considerando a não neutralidade das leis, quando os tribunais são acionados acabam por exercer poder de influência política.
Em um país, onde paira o desconhecimento da força normativa da Constituição, percebemos que as ações dadas por jurisprudências, em decorrência de mais acesso às instituições, torna-se possível efetivar políticas públicas, sobretudo as que estão claramente estabelecidas ali.
Como citamos, em exemplo, a questão das cotas raciais, levantada pela UnB, foi uma ação afirmativa que, por decisão do STF, foi consolidada de tal forma que se editou a norma.
Conclui-se que a complexidade da implementação de políticas públicas, sobretudo nas questões que envolvem a educação superior, deve contar com o protagonismo ativo das universidades e a independência e o acesso ao Poder Judiciário, constituindo-se ambos em atores atuantes no avanço efetivo da democracia.
Informações Sobre o Autor
Gustavo Di Cesare Giannella
Advogado. Bacharel em Direito pela Universidade Metodista de São Paulo. Especialista em Direito Tributário e Processual Tributário pela Escola Paulista de Direito. Mestre em Políticas Públicas pela Universidade Federal do ABC