Resumo: Trata-se de um ensaio pautado nas questões do ser, da verdade e da justiça, tratadas pelo filósofo “pré-socrático” Parmênides de Eléia, em seu poema. A partir dos fragmentos do texto grego, busca-se no estudo compreender a transição de tais questões, desde a passagem do mito ao “lógos”, até o ponto de vista da “pólis”, pelo ângulo supostamente apreendido pelo filósofo.
Nos fins do século VII a.C, quando a estátua deixa de ter um signo religioso e passa a ser imagem, um signo figurado que procura evocar ao espírito do homem uma realidade exterior, o poeta se reconhece através da palavra, cuja especificidade descobre por intermédio da pintura e da escultura. Quando reflete sobre a poesia, sua função, seu objeto próprio, consuma-se a ruptura com a tradição do poeta mergulhado na Alétheia, de modo que a esta se sobrepõe Doxa. Na Doxa, encontra-se o traço principal que caracteriza, no plano mítico, as Musas, as Sereias, as mulheres-abelhas, em suma, todas as potências duplas, ambíguas, potências que são “verdadeiras e falsas”, (aletheis e pseudeis). E Alétheia, num sistema de pensamento que se separa das formas míticas, ou, ao menos, da lógica do mito, torna-se uma potência estritamente definida e mais abstratamente concebida. Parece ser a primeira vez que Alétheia se opõe à Doxa; e desta oposição parece nascer um conflito decisivo que pesará sobre toda a história da filosofia grega. O plano do real que simboliza Alétheia, a partir de então, não mais se define apenas pelas qualidades religiosas de um tipo de homem do qual é inseparável, mas apresenta-se com mais objetividade, concebido de um modo mais abstrato; está radicalmente eliminado dos outros planos do real, para os quais se torna um padrão; tende a cada vez mais se tornar uma espécie de prefiguração religiosa do Ser, e até mesmo do Um, na medida em que se opõe de maneira irredutível, ao mutante, ao multiforme, a tudo que é duplo[i].
O “mestre da verdade” das seitas filosófico-religiosas toma consciência, cada vez mais, da distância que o separa, ele que sabe, que vê e diz Alétheia, dos outros, os homens que não sabem nada, os desgraçados cambaleantes no incessante decorrer das coisas. E neste mundo o novo “mestre da verdade” sente, necessariamente, aquilo que o separa dos outros homens, tudo aquilo que faz dele um indivíduo de exceção; daqueles que não sabem, os “Homens de duas cabeças”, cegos, surdos. E é neste contexto que Parmênides de Eléia [cerca de 530-460], filho de Pires, parece extrair suas raízes filosóficas e as expor em seu poema. Isso porque, um indício, Parmênides fora discípulo de Xenófanes, mas a este não seguiu, parece ter preferido juntar-se ao pitagórico Amínias, filho de Dioquetas, que o converteu à vida contemplativa. Seu poema, após o proémio, divide-se em duas partes. A primeira expõe “o ânimo inabalável da rotenda verdade”. Na seção final da primeira parte, explorará o filósofo a única via segura, o que “é”, e tentará provar dedutivamente que, se alguma coisa existe, não pode nascer ou perecer, transformar-se ou mover-se, nem estar sujeita a qualquer imperfeição. Já na segunda parte do poema, Parmênides dá-nos uma relação das “opiniões dos mortais, nas quais não há verdadeira convicção”[ii].
Ao se mergulhar na primeira parte do poema parmenídico, se poderá já ver que as Heliádes recomeçam a correr à frente da parelha fabulosa, já o galope das éguas prosseguem o imaginário e eis que, enfim, no início da entrada, erguem-se as portas do Dia e da Noite. Parece ser aqui que se dá a surpreendente aparição da deusa. A deusa que recebe o viajante em seu abrigo e que lhe dirige a palavra. É a verdade quem parece falar. A deusa de Parmênides não é somente uma deusa da verdade, parece ser ela a própria, melhor, ela é Verdade. Verdade que aparece como sagrada e divina, sagrada e divina no lugar que lhe é próprio, no domínio da fortaleza onde não pode atingi-la nenhum dos caminhos comumente seguidos pelos homens. Além disso, como na análise de Jean Beaufret, a Verdade parece se apresentar como sendo por si própria uma fortaleza, posto que não somente é a deusa que se esconde, mas a voz pela qual se manifesta, refere-se a uma reserva superior, pois, por várias vezes, designa enigmaticamente Anánke ou Moîra, cuja onipotência nunca cessa de se subtrair, o que desdobra o mistério de sua abstenção sobre a própria força dos deuses[iii]. Em Anánke (segundo a expressão de Prometeu de Ésquilo) se oculta a força silenciosa do possível, de que tudo depende finalmente, de acordo com a conveniência e a moderação do destino[iv].
Por quê Parmênides, o filósofo do Ser, apega-se à imagem da deusa? Creio que o filósofo quando quer definir a natureza de sua atividade espiritual, delimitar o objeto de sua busca, recorre ao vocabulário religioso das seitas e das confrarias. Assim o tema da viagem de carro: objeto de prestígio social, veículo aristocrático, o carro leva as almas à viagem escatológica; também o tema das divindades “psicopompas”: abandonando a morada da Noite, as Filhas do Sol abrem-lhe o caminho da luz. Ao galope de seus “eloqüentes jumentos”, Parmênides se lança numa espécie de além: passa da Noite ao Dia, das Tenebrosas à luz. Por trás das pesadas portas da Justiça, obtém a visão direta da deusa, que lhe confere – como fazem as Musas com Hesíodo – a revelação da máscara do Eleito, do homem de exceção: ele “é” aquele que sabe. A Alétheia é o seu privilégio. Esta o faz “mestre das verdades”. O caminho da “Verdade” não se confunde com as vias que seguem os homens “de olhar desvairado, de ouvidos zumbidores”. Solidária a um dom de vidência análogo aos dos adivinhos e dos poetas inspirados, a Alétheia de Parmênides parece se desenvolve, além de tudo, no centro de uma configuração de potências perfeitamente semelhante àquela que domina o pensamento religioso mais antigo. Como a Alétheia de Hesíodo, como a Alétheia de Epimênides, a “Verdade” de Parmênides articula-se à Diké, que não mais se apresenta apenas como a ordem do mundo, mas, agora, como a correção, o rigor, do pensamento Em Parmênides, a questão do “Ser” é central. Toda a reflexão parmenídica sobre a linguagem como instrumento de conhecimento do real se desenvolve em torno de um centro minúsculo, o verbo “ser”. Para o filósofo, Alétheia define-se como o “simples” que se opõe ao “duplo”, tudo aquilo que é ambíguo, “de duas cabeças”[v].
Mas é antes Díke quem detém as chaves que abrem as portas aos caminhos. E é Díke quem indica ao jovem percorrer os caminhos rumo ao âmago da verdade. E é ainda Díke, quem mantém o ser firmemente em seus laços. Díke parece permanecer uma figura que controla, que guia e que amarra, companheira de Alétheia. Quando ao encontrar Díke a guardar os portões que conduzem à morada da deusa, as Heliádes a ela pronunciam palavras doces e persuasivas em favor do jovem, e Díke permite sua passagem para o domínio do divino, onde lhe revela a “Verdade”. Díke está presente também em virtude do contexto maior da cultura arcaica na qual o filósofo se arraiga. O fato de Díke estar personificada, mostra que o discurso filosófico é atravessado pelo discurso religioso; mas, mesmo que carregue ainda resíduos de potência divina, a Díke de Parmênides já não é mais como a divindade hesiódica, que se torna presente, de forma mágica, pela mera invocação de seu nome, pois o filósofo, ao inserir-lhe no caminho do jovem, busca rearranjar a cultura tradicional religiosa, para que esta mesma cultura passe a aceitar novas práticas discursivas e novas significações, isto é, Parmênides parece não abandonar a cultura tradicional, mas nela se inserir para modificá-la de dentro[vi].
Parece-me possível notar que Parmênides tem como objetivo principal nesses versos, reivindicar o conhecimento de uma verdade não alcançada pelo comum dos mortais. Parece que Parmênides procura deixar o mundo familiar da experiência comum, onde alteram a noite e o dia, alternância regulada pela lei ou “Justiça”, para, em troca, dirigir-se a uma via de pensamento, que conduz a uma compreensão transcendente da imutável verdade e da opinião mortal. A revelação religiosa sugere a profunda seriedade da filosofia e um apelo à autoridade, pois a deusa começa por especificar as únicas vias de investigação que deverão ser tidas em conta; vias logicamente exclusivas: se segues uma, não podes seguir a outra. Parmênides aqui se vale da metáfora dos caminhos, metáfora que consiste, antes de tudo, em estabelecer um ponto de partida e uma meta para determinada atividade, além de fazer seguir linearmente este caminho. Destarte, nesta metáfora, pode ocorrer que, antes, se tenha de encontrar, ou mesmo criar, o caminho, ou ainda, que dois pontos entre os quais se trafega não estejam unidos por um único caminho, mas por dois ou por mais, a ponto de quem o trilha se vê obrigado a refletir sobre qual deles lhe convém percorrer. E para cada marca, isto é, para cada encruzilhada, a direção é ratificada por uma possibilidade de desvio abandonada[vii]. Mas, de forma inversa, Parmênides parece iniciar já sua viagem em plena luz, como convém àquele que “sabe”, e que por isso mesmo o objetivo de sua narrativa pode ser antes sugerido pelo obstáculo que tem de ser transposto e pelo destino de sua jornada. Por isso, à cada característica firmada, um aspecto contraditório do mundo do devir é eliminado; e Diké é invocada para referendar esta ousada afirmação do cosmo enquanto “é”. Logo, a metáfora mítica em Parmênides parece avançar na direção de uma transformação em discurso lógico-argumentativo, marcada pelos signos que caracterizam “o que é”[viii]. O terceiro caminho sempre será, simplesmente, o ponto da via cujo percurso cada um há de se achar, se não tomar essa decisão por incapacidade de usar as faculdades críticas[ix].
Se Díke é transformada na medida em que se lhe convoca para referendar o caminho do filósofo, que se diferencia dos outros caminhos humanos, o novo caminho deverá aparecer como verdadeiro e justo, por oposição aos caminhos tradicionais, os dos mortais não-justos. Neste mesmo sentido, enquanto utilização crítica do material disposto pela tradição como uma polêmica contra significações de atitudes convencionais, parece que se pode apreender a passagem de Heráclito: “Justiça condenará os fabricantes de mentiras e suas falsas testemunhas”[x]. Burnet – ainda do ponto de vista da relação entre Parmênides e Heráclito – alude ao fato de ser notável que Parmênides evite o termo ‘deus’, tão livremente empregado pelos pensadores anteriores e posteriores a ele, porque a assertiva do é equivale a: “que o universo é um plenum, e que não há nada semelhante ao espaço vazio, quer dentro, quer fora do mundo. A partir disso se depreende que não pode haver nada como o movimento”. Em vez de Parmênides completar o Uno com um impulso para a mudança, como fizera Heráclito, para, assim, torná-lo capaz de explicar o mundo, preferiu rejeitar a mudança como uma ilusão; ele demonstrou que, se se levar o Uno a sério, não restará outro caminho que não negar tudo o mais[xi].
Não parece ser equivocado conceber que toda a filosofia de Parmênides parece fascinar-se pelo Ser: se se exprime por uma única palavra, este Ser deve possuir uma significação única, irredutível; se é Uno, significa, assim, necessariamente, uma coisa Una. Sua unicidade deve abolir a diversidade de significações, a pluralidade dos predicados. Por isso que no Ser de Parmênides, todas as aspirações ao Um, ao Permanente, ao Intemporal, se satisfazem a uma só vez. Quando se perguntar se o logos é o real, todo o real, e qual o ponto fixo no discorrer das palavras, Parmênides responderá: o Ser é, o Não-Ser não é[xii]. Aqui é que de fato parece residir a essência da Alétheia parmenídica: o que é, não pode nascer nem perecer; o que é, existe completa e imutavelmente, pois nunca está em vias de se gerar; o que é, é contínuo em qualquer dimensão que ocupe; o que é, não tem potencialidade para ser diferente do que é presentemente; o que é, ademais, não pode não-ser.
A argumentação de Parmênides quanto ao que não existe, sugere o “nada”. O nada, por sua vez, parece sugerir que o filósofo entende a não-existência como absolutamente nada, sem atributos; e, por isso mesmo, existir em parmênides parece efetivamente ser uma coisa ou outra. E a partir da do que não existe, Parmênides parece concluir diretamente que a via negativa é “indiscernível”, isto é, que nenhum pensamente claro pode ser expresso por uma afirmação existencial negativa. Logo, a síntese de sua argumentação contra a via negativa, em que afirma, com efeito, que qualquer objeto de pensamento deve ser um objeto real, deve vir somente a confirmar que a rejeição que faz do “não ser”, motiva-se por uma preocupação acerca do que é um conteúdo possível para um pensamento genuíno. A esta síntese segue a advertência contra um genuíno caminho errado, identificado como a via da investigação seguida pelos mortais: tendo que se evitar o caminho do “não ser”, a única esperança para a investigação reside em se seguir o caminho do que “é”[xiii].
Não obstante possuir Parmênides o “Ser”[xiv], a “Verdade”, ser um desses homens que sabe, não dedica a exclusividade de seu poema à Alétheia, mas, por toda uma série de traços, também o consagra à Apáte, às Doxai dos mortais. E por que assim ocorre? Parmênides submete-se ao regime da Polis e, de conseguinte, à exigência de publicidade. O filósofo está forçado a abandonar o santuário da revelação: a Alétheia lhe é conferida pelos deuses, mas, não obstante, ao mesmo tempo, sua verdade deve submeter-se à verificação, ou, pelo menos, à confrontação. Diante de Alétheia inserida no Ser, Apáte expõe seus prestígios: institui um plano do real onde o Dia se mistura com a Noite. Mas a Alétheia de Parmênides deve ser o que melhor expressa a ambigüidade da primeira filosofia que “confia ao público um saber, proclamando-o, ao mesmo tempo, inacessível para a maioria”. “Verdade” pronunciada por um tipo de homem que, por vários traços, se vincula à linhagem dos “mestres da verdade”; ela é também a primeira “verdade” grega a se abrir a uma confrontação de caráter racional: “é primeiro esboço de uma verdade objetiva, de uma verdade que se institui no e pelo diálogo”[xv]. Mas, se a “Verdade” está ligada à “não-Verdade”, no lugar único de eleição é que pode radicar a salvaguarda do segredo apreendido pelo filósofo, a eleição do caminho deve mostrar-se como uma reserva enigmática de uma Palavra cuja ligação com o Oráculo não pode ser abolida. Ora, será então possível afirmar que na Alétheia parmenídica pode o elemento positivo persistir enigmaticamente dentro do seu contrário, “como a dissimetria preserva uma simetria latente, ou como o reino do sentido estende-se secretamente até os limites do não-sentido”[xvi]? Será que se pode afirmar, neste sentido, que aqui Parmênides vai de encontro ao que quer Heráclito afirmar quando proclama que o mestre cujo oráculo está em Delfos não declara, não nega, mas apenas acena?
Parmênides não pode ser considerado, para concluir, um primitivo no domínio da filosofia. Ele talvez seja primordial. E se for legítimo perceber em seus fragmentos as origens de problemas atuais, com ele a iniciativa de um olhar “moderno” aos problemas de seu tempo [e, quiçá, de todos os tempos]. Essa originalidade não pode ser desmerecida por uma projeção no passado, de maneira simplista, ou mesmo maldosa, pois o pensamento pré-socrático não coloca “pela primeira vez”, ainda que em exemplaridade um pouco rude, aquilo que se julga ser os “problemas eternos”, cujos termos o “progresso do pensamento” se incumbiria em seguida de depurar e de precisar. Ao contrário. No original, radica a origem, e origem deve aqui significar o elemento de iniciativa relativamente a que os problemas “atuais” não devem passar. Talvez, aproximando-se dos termos de Heidegger, do brilho descorado e silencioso pelo qual ainda se assinala uma tempestade, animada há tempos, de modo que talvez não se possa ser ocidentais contemporâneos, nada mais que retardatários do radioso Declínio inaugurado pelos pré-socráticos.
Informações Sobre o Autor
Carlos Henrique Pereira de Medeiros
Mestre em Filosofia, área de concentração Ética e Filosofia Política, pela Faculdade de São Bento – FSB. Professor nos cursos de Direito e Comunicação Social/Jornalismo da Universidade São Judas Tadeu – USJT, Professor no curso de Direito da Universidade Nove de Julho – Campus São Roque FAC/São Roque, Professor no curso de Direito da Faculdade Integrada Torricelli – FIT. Membro de equipe de pesquisa do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba – CCJ/UFPB. Palestrante do Instituto Parthenon. Vice-presidente da Comissão de Assuntos Legislativos e Parlamentares da 57ª Subsecção da Ordem dos Advogados do Brasil