As uniões homoafetivas e seu status de entidade familiar

Resumo: O Presente estudo tem por escopo analisar a condição das uniões homoafetivas como entidade familiar, sob a ótica social e do direito positivo brasileiro em especial o tratamento constitucional dispensado a esse modelo de relação afetiva.

A discussão central do presente estudo é tema que gera na doutrina e jurisprudência pátria inúmeros debates. No entanto, antes de analisarmos com maior cuidado a natureza jurídica e a regulamentação legislativa das uniões afetivas entre pessoas do mesmo sexo, imprescindível fazermos algumas considerações acerca do direito de família brasileiro e o direito positivo, bem como quais as espécies de entidades familiares compõem a nossa sociedade para finalmente, entendermos esse fenômeno social das uniões afetivas entre homossexuais.  

1. O DIREITO DE FAMÍLIA, O CÓDIGO CIVIL E A CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988

O direito de família é um ramo do direito civil composto por normas que visam regular as relações jurídicas familiares, sendo orientado pelo Código Civil de 2002 que procurou fornecer um novo entendimento sobre a família, estabelecendo a igualdade jurídica dos cônjuges e dos companheiros, bem como a igualdade jurídica entre os filhos havidos ou não no âmbito do relacionamento conjugal.

O Código Civil foi bastante criticado por alguns juristas como os Professores Francisco José Cahali e Caio Mário da Silva Pereira, que afirmaram, entre outras coisas, que entraria em vigor uma Legislação defasada em relação às normas que disciplinam o direito de família, pois não teriam sido observadas pelo Congresso Nacional as significativas mudanças havidas no comportamento social da família, especialmente no que se refere à fertilização assistida.

Apesar das críticas negativas, o Direito de Família partindo da Constituição da República de 1988, passou a ser pautado sob o prisma de valores supremos como a dignidade da pessoa humana avançando certeiramente em determinados temas como, por exemplo, a pesquisa da identidade genética na investigação de paternidade e maternidade.

No entanto, o Código Civil vigente, no âmbito do Direito de Família, não pode ser considerado como um código moderno e atualizado com as mudanças sociais e o os novos arranjos familiares ocorridos ao longo das últimas décadas que foram se materializando, se concretizando sem que a legislação tivesse tempo para antever e proteger os direitos delas decorrentes.

Diante da complexidade de transformações verificadas na sociedade brasileira, surge a proposta de descodificar o Direito de Família e transformar a sua disciplina em uma consolidação de leis. É com este intuito que o IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família trabalhou na construção do Projeto de Lei 2.285/07 apresentado perante a Câmara dos Deputados pelo Deputado Federal Sérgio Barradas Carneiro, visando criar o Estatuto das Famílias.

O Estatuto das Famílias incorpora diversos projetos de lei específicos já em tramites perante o Congresso Nacional e tem por finalidade promover a solução dos conflitos familiares a partir de valores jurídicos inovadores como o afeto, a solidariedade, o cuidado e a pluralidade, bem como busca proteger os vários entes familiares presentes atualmente na sociedade brasileira.

É certo que a Constituição da República de 1988 consagra e o Código Civil codifica o Direito de Família sob os aspectos da Pluralidade de Famílias, bem assim entendidos o Casamento, a União Estável e a Família Monoparental, da igualdade de filiação, ausente de preconceitos e da igualdade entre homens e mulheres. Deste modo, houve um avanço em relação a situação anterior, já que o conceito de família foi expandido e possibilitou-se um reconhecimento de outros modelos de relação familiar.

Com o reconhecimento de novos valores nas relações familiares, como a consecução do afeto, o Estado Democrático de Direito fundado na preservação absoluta e indiscriminada da Dignidade da Pessoa Humana (Art. 1º, III, CF) não pode restringir sua proteção estatal apenas ao casamento, união estável e família monoparental, mas deve assegurar em um sistema democrático a felicidade de qualquer tipo de ente familiar inserido na realidade social.

É certo que o Artigo 226, da Constituição da República consagra a proteção da família, bem assim entendidas a família natural, a família fundada no casamento, a família de fato e a família adotiva, bem como consagra a igualdade de tratamento constitucional entre os filhos e entre o marido e da mulher como princípios normativos fundamentais do direito de família.

Além dessas inovações, é notório que o Artigo 226 da CR/88 e seus parágrafos sagram diversos princípios constitucionais de direito de família, como por exemplo, a proteção de todas as espécies de família (art. 226, caput); o reconhecimento expresso de outras formas de constituição familiar ao lado do casamento (art. 226, §§ 3º e 4º), dentre outros.

2. DOS DIVERSOS MODELOS DE FAMILIA

Os modelos de família que conhecemos na atualidade nem sempre existiram, pois é certo que antigamente a família era formada sob interesses de ordem econômica, patrimonial e políticos, em que muitos casamentos eram firmados por conveniência sem qualquer preocupação com o afeto.

Em que pese a evolução trazida pela Constituição da Republica em reconhecer mais de um modelo de família, seu texto não traduz a diversidade familiar contemporânea presente em nossa sociedade que criam seus vínculos através do afeto representado pelo sentimento especial havido entre duas pessoas.

O Professor Sérgio Resende de Barros afirma que “O afeto é o que conjuga…. o fato é que não é requisito indispensável para haver família que haja homem e mulher, nem pai e mãe. Há famílias só de homens ou só de mulheres, como também sem pai ou mãe.”[1]

No entanto, historicamente a família sempre teve por base o patriarcalismo que sempre dificultou que se pensasse no afeto como base para a formação familiar. Embora a CR/88 tenha suplantado o patriarcalismo é certo que na sua evolução ainda exige para a existência de entidade familiar a parentabilidade, a biparentabilidade ou a monoparentabilidade.

Ocorre que a realidade social demonstra que o afeto tem superado tais conceitos de entes familiares, bem como denota a necessidade de se atualizar o texto constitucional para adequá-lo inclusive aos seus valores fundamentais, em especial a dignidade da pessoa humana que não pode ser afetada com a imposição de normas de conduta que não se coadunam com a íntegra ampliação da personalidade humana.

É de se comentar que o Art. 1511, do Código Civil ao disciplinar que a comunhão plena de vida é principio geral para o desenvolvimento pleno e pessoal dos integrantes dos diversos entes familiares, está entre outras palavras querendo demonstrar que valores como o afeto, a solidariedade, interdependência econômica e a intenção de constituir um núcleo familiar são muito mais relevantes do que o elo hereditário.

Dessa forma, importante atribuir-se razão aos Professores Renata Barboza de Almeida e Walsir Edson Rodrigues Júnior quando ensinam que deve ser dada ao indivíduo

a liberdade de constituir ou não a sua família, sem nenhuma imposição, pois tolerar tal limitação seria o mesmo que retroceder no tempo em o casamento era a única forma de se constituir uma família.[2]

Nesse passo, cumpre conhecer e comentar cada uma das modalidades de família verificadas na sociedade, bem como analisar sua formação e seqüelas. 

2.1. DA FAMILIA FORMADA PELO CASAMENTO

O casamento durante bom período de tempo foi reconhecido como uma legítima entidade familiar, marginalizando e excluindo-se de regulamentação legal quaisquer outros vínculos informais.

Definir um conceito do que seja casamento não é tarefa fácil, sendo certo que a própria doutrina diverge em suas definições de casamento, esse instituto que passou por várias transformações ao longo do tempo e que por esta razão não possui uma definição imutável. A natureza jurídica do casamento sempre foi motivo de conflito doutrinário, pois alguns autores o vêm como um ato contratual e outros como institucional, no entanto, tal discussão não será objeto de análise no presente estudo que possui seu foco direcionado aos vários modelos de família existentes na sociedade brasileira contemporânea.

É certo que o casamento estabelece um vínculo jurídico entre um homem e uma mulher, com vistas ao convívio comum, criação e sustento da prole. Uma característica fundamental do casamento no direito brasileiro é a diversidade de sexos, sendo impossível a existência de casamento senão entre pessoas de sexos opostos.

Essa diversidade de sexo exigida como elemento natural do matrimonio é um preceito constitucional disciplinado na norma do Artigo 226, § 3º da Constituição da República, que se aplica também à União Estável, excluindo, de outra sorte os relacionamentos homoafetivos que certamente no futuro haverão de possuir um melhor tratamento legislativo.

O Código Civil regula o casamento, bem como sua forma de dissolução, proteção dos filhos, impedimento, etc., nos Artigos 1.511 a 1.590, estabelecendo desde o início a necessidade de haver a comunhão plena de vida entre os cônjuges como sendo uma condição de validade de todo o casamento.

Dessa forma, o casamento inaugura o Direito de Família do Código Civil ao ensinar que o casamento institui a comunhão plena de vida com base na igualdade de direitos e deveres entre os cônjuges, sendo, portanto, muito difícil imaginarmos a manutenção de um casamento sem que haja a comunhão plena de vida entre os cônjuges.

Com relação a esta modalidade de família exige-se uma conduta moral a ser respeitada, qual seja, a monogamia das relações conjugais, estabelecida no Art. 1.521, inciso VI, do CC, impedindo que pessoas que estejam casadas possam constituir novo matrimônio, o mesmo é exigido pelo legislador ao disciplinar a União Estável que com o avançar do tempo e evoluções sociais passou a ser constitucionalmente igualada ao casamento para fins de constituição de família.

2.2. DA FAMLIA DE FATO: UNIÃO ESTÁVEL

A União Estável existe paralelamente ao casamento e por muitos e muitos anos esse modelo de união conjugal sem casamento não era bem visto pela sociedade tampouco era disciplinado pelo ordenamento jurídico.

Apenas o casamento era visto como regra de conduta única capaz de instituir e construir uma família, negando o legislador efeitos jurídicos às uniões estáveis. Essa rejeição se deu, sobretudo, pela grande influencia da Igreja Católica. No entanto, não podemos deixar de argumentar que a união entre pessoas é um fato social e natural que preexiste ao casamento.

Dessa forma, a evolução social e cultural aconteceu, como era de se esperar, e a União Estável passou a ser reconhecida pela sociedade e obrigou o legislador a promover consideráveis alterações legislativas.

Com efeito, a Constituição da República em seu art. 226, §3º e o Código Civil de 2002 nos Artigos 1.723 a 1.727, trouxeram o reconhecimento legal desta entidade familiar que deverá ser formada pela união entre um homem e uma mulher, bem como se submeterá, no que couber, às normas que regulamentam o casamento, inclusive aos impedimentos do casamento e a monogamia.

A união estável, assim como o casamento possui um conceito variável, mas de forma singela e de fácil compreensão, pode ser entendida como a convivência more uxório entre o homem e a mulher sob o mesmo teto ou não, ou seja, como se casados fossem. Nesse sentido, a união estável é um fato jurídico e social, com conseqüências inclusive patrimoniais.

Deste modo, para que se configure a união estável nos termos da lei, haverão de estar presentes certos elementos mínimos que a constituem, qual sejam, a diversidade de sexos, convivência duradoura, contínua, pública e com objetivo de constituir família.

2.3. DA FAMÍLIA MONOPARENTAL

As famílias monoparentais são aquelas formadas pelo pai ou pela mãe e seus filhos biológicos ou adotivos. Esse modelo de família pode advir de vários fatores, por exemplo, a maternidade ou a paternidade biológica ou adotiva unilateral, em função da morte de um dos genitores, do divorcio do casal, da ruptura da união estável, produção independente da mãe solteira sem vínculo conjugal ou por inseminação artificial.

Referida modalidade familiar está disciplinada na Constituição da República em seu Art. 226, § 4º, embora não exista no ordenamento jurídico nenhuma legislação infraconstitucional que regulamente esse tipo de relação familiar, no entanto, é certo que muitos dos principais desdobramentos jurídicos da monoparentalidade resultem da ausência de um dos pais, seja em razão da viuvez, da separação dos pais, da produção independente, conseqüências tais que resultam do poder familiar conferido legalmente em virtude do vinculo de filiação que une pais e filhos.

Pesquisas demonstram que o crescimento dessa modalidade de família se deve, sobretudo, da liberdade com que homens e mulheres constituem e desconstituem seus relacionamentos afetivos, bem como a maior autonomia da mulher que começou a deixar o lar para passar a integrar o mercado de trabalho, aniquilando, conseqüentemente o antigo modelo sociofamiliar em que a mulher era submetida a uma dominação econômica e de poder por parte do marido.

 2.4. DA FAMÍLIA PLURIPARENTAL

A família pluriparental é também conhecida no Brasil como família reconstruída.

Esse modelo familiar ocorre através da união matrimonial ou estável entre um casal ligado afetivamente, em que ao menos um deles tenha filhos havidos de um casamento ou de uma relação afetiva precedente.

Devido ao grande aumento no número de divórcios, bem como de dissoluções das uniões estáveis, surgem na sociedade as figuras dos padrastos e das madrastas, assim como dos enteados e enteadas que passam a interagir em uma nova realidade de relação familiar originada dos novos vínculos que se formam.

No entanto, é certo que a família pluriparental também poderá se formar em virtude da viuvez de um ou de ambos aqueles que se unam pelo novo vínculo afetivo.

3. DA UNIÃO HOMOSSEXUAL

Em um breve histórico, importante informar ao leitor que a homossexualidade tem sua origem na Grécia Antiga e tinha conotação militar e pedagógica em que soldados mais velhos buscavam fazer com que os mais jovens tivessem a mesma coragem e bravura para serem valiosos militares. Posteriormente, com o crescimento do cristianismo no Ocidente, a homossexualidade passou a ser condenada socialmente e considerada pela medicina como uma doença mental ou um desvio psicológico.

Em 1992 a OMS – Organização Mundial da Saúde suprimiu a homossexualidade do CID deixando de ser diagnosticada como uma anomalia psíquica.                                               

Em que pese o histórico acima, é certo que em diversas sociedades as relações homossexuais são penalizadas e perseguidas, a própria Igreja Católica não tolera a homossexualidade, mostrando-se fervorosa a discussão social, jurisprudencial, doutrinária e política acerca do tema e, sobretudo, da legalização das uniões entre pessoas do mesmo sexo, sendo objeto principal de toda a rejeição social a natureza da homossexualidade contrária as uniões entre sexos opostos.

3.1. DA FAMILIA HOMOAFETIVA

Na órbita do Direito Positivo brasileiro, para a caracterização da União Estável exige-se a heterossexualidade, no entanto, a doutrina e jurisprudência travam caloroso debate na busca do reconhecimento das uniões homoafetivas como sendo entidade familiar.

Os que se opõe ao reconhecimento das uniões homoafetivas como entidade familiar equiparada à União Estável entre homem e mulher, aduzem que o legislador constituinte não por acaso dissuadiu e inseriu expressamente na Carta Magna a possibilidade de reconhecimento enquanto entidade familiar, tão somente a união entre um homem e uma mulher, excluindo-se inequivocamente, o reconhecimento como família, das uniões homossexuais, sendo inexistentes no ordenamento jurídico o casamento e a união estável entre pessoas do mesmo sexo, consoante normas dos Artigos 1.514, 1.517, 1.565, 1.723, 1.726 e 1.727, do Código Civil[3] c.c Art. 226, §3º, da Constituição da República[4].

O Prof.º Guilherme Calmon Nogueira da Gama[5] ensina: “A Constituição Federal de 1988 expressamente introduziu, ao reconhecer a ‘união estável’ como entidade familiar, o requisito objetivo de que somente a união entre o homem e a mulher pode configurar união fundada no companheirismo, excluindo, portanto, a possibilidade de se reconhecerem as uniões entre homossexuais, mesmo que desimpedidos, convivendo com lapso de tempo razoável, com o objetivo de constituição de família”. E prossegue: “Ainda que o rol constitucional em matéria de entidades familiares não seja exaustivo…”.

Para o citado professor, a união entre pessoas do mesmo sexo configuraria um casamento inexistente, assim como o casamento nulo e o anulável,  pois segundo seu entendimento “não é possível o reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo, já que tradicionalmente, o casamento entre elas é inexistente, no Direito”.[6]

Em que pese o posicionamento do Ilustre Professor não podemos perder de vista que a orientação sexual de uma pessoa é intrínseca à sua personalidade e como tal merece ser respeitada por toda a sociedade, preservando, assim a dignidade humana desse indivíduo à luz da Constituição da República de 88.

A principal oposição ao reconhecimento da união homossexual como entidade familiar a ser protegida pelo Direito de Família como ocorre com a união estável e o casamento, refere-se à impossibilidade de conversão da união homoafetiva em casamento, em razão da falta de diversidade de sexos entre os integrantes da relação.

Essa corrente não admite lacuna legislativa quando se trata desse reconhecimento, pois aduzem que a lei é suficientemente precisa ao restringir a união estável como entidade familiar à convivência entre um homem e uma mulher de maneira pública, contínua e duradoura.

Deste modo, segundo o entendimento desta corrente oposicionista ao reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo, tais uniões somente podem configurar uma sociedade de fato suscetível de gerar direitos e deveres apenas no campo obrigacional, não podendo ser disciplinadas pelo Direito de Família, embora respeite e reconheça a existência de afeto no seio desses relacionamentos amorosos.

Em direção oposta a corrente acima e, reconhecendo as uniões homoafetivas como entidades familiares temos a Ilustre Prof.ª Maria Berenice Dias[7] que afirma ser preconceito constitucional emprestar juridicidade apenas às uniões estáveis havidas somente entre homem e mulher, quando nada realmente diferencia a convivência homossexual da união estável heterossexual. 

A jurisprudência apesar de dividida começa a caminhar para um sentido mais solidário ao reconhecimento das uniões homoafetivas como entes familiares assim como já acontece com união estável entre homem e mulher. Nesse sentido é a recente decisão do E. Tribunal de Justiça de São Paulo abaixo transcrita para melhor ilustrar o posicionamento:

CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA Ação de reconhecimento e dissolução de união homoafetiva c.c. pedido de alimentos. Equiparação analógica ao regime da união estável para fins de fixação de competência Pronunciamento histórico do E. Supremo Tribunal Federal a propósito da questão. Ante o recente pronunciamento unânime do E. Supremo Tribunal Federal a propósito da possibilidade de equiparação de tratamento da união homoafetiva à união estável, não se concebe subtrair das Varas da Família e das Sucessões os litígios a tanto concernentes, porquanto fundados em relações afetivas, não passíveis de redução a mero enfoque obrigacional. Competência do Juízo Suscitado(9ª Câmara de Direito Privado Agravo de Instrumento nº 0504568-56.2010.8.26.0000 -São Paulo – p. 5 Voto nº 6.947 Câmara Especial, Conflito de Competência nº 0087090-66.2011.8.26.0000, Relator Desembargador Luis Antonio Ganzerla, j 23.05.2011).

Confesso que o meu entendimento sobre a questão é no caminho do reconhecimento da união duradoura, pública e contínua entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, assegurando a esses conviventes os mesmos direitos e deveres já garantidos à União Estável entre homem e mulher e, passo a seguir a melhor expor o ponto de vista que pauta o presente trabalho.

É certo que a Constituição da República proclama no Art. 5º, o direito à vida, à igualdade, à liberdade e à intimidade, constituindo fundamento da República Federativa do Brasil a promoção do bem de todos, sem qualquer preconceito de origem, raça, cor, idade, sendo punida todas as formas de discriminação que atentem aos direitos fundamentais, além de elevar a dignidade da pessoa humana e das relações de cada um dos indivíduos como princípio basilar de toda a Constituição da República, nos termos dos seus Artigos 3º, inciso IV e 5º, inciso XLI.

É fato que o Supremo Tribunal Federal já se pronunciou no sentido de ser relevante o reconhecimento, como entidade familiar, das uniões estáveis homoafetivas (ADI 3.300/MC/DF).

Imperioso, pois reconhecer que mesmo as relações entre pessoas do mesmo sexo, são capazes de gerar direitos e deveres e produzir efeitos no mundo jurídico, especificamente, as decorrentes de comprovada União Estável.

De modo que, não aplicar as normas legais pelo princípio da igualdade seria o mesmo que aplicar o preconceito e não permitir para as pessoas que se enquadram nesse tipo relação usufruam de seus direitos fundamentais.

Faz-se tão somente necessário, sob a ótica desta autora que reste demonstrada de forma inequívoca, a presença dos elementos essenciais, à caracterização da União Estável. E isto deve ocorrer independentemente da diversidade de sexos.

Assim, restou consignado pela Ministra Nancy Andrigui, da 3ª Turma do STJ, no Recurso Especial 1026981/RJ:

"Demonstrada a convivência, entre duas pessoas do mesmo sexo, pública, contínua e duradoura, estabelecida com o objetivo de constituição de família, haverá, por conseqüência, o reconhecimento de tal união como entidade familiar, com a respectiva atribuição dos efeitos jurídicos dela advindos."

Outrossim, não podemos deixar de fazer menção para a nova definição de entidade familiar inserida no ordenamento jurídico pela Lei nº 11.340/2006,  conhecida como Lei Maria da Penha que contemplou casais formados por pessoas do mesmo sexo, quando dispôs no § único, do Artigo 5º que "as relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual".

Inegável que a sociedade evoluiu quanto à existência de outros modelos de constituição familiar, no entanto, a lei ainda é omissa na regulamentação da união entre companheiros do mesmo sexo. É certo que já existem legislações mais especificas dispensando a tais uniões o mesmo tratamento dado àquela entre homem e mulher, como, por exemplo, a legislação previdenciária e a Lei Maria da Penha citada acima.

Essa aparente ausência de regulamentação deve ser resolvida pelo operador do Direito pela analogia e pela aplicação dos princípios gerais do Direito, conforme previsão do art. 4º da Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro.

Os princípios da igualdade (art. 5º da Constituição da República) e da dignidade da pessoa humana (art. 1º) impõem, sem dúvida, que a situação seja tratada como se trata a questão da união heteroafetiva.

Apesar do ordenamento jurídico não indicar a relação homoafetiva como união estável no sentido técnico-jurídico, não se pode deixar de reconhecer a sociedade de fato formada entre homossexuais que constituem famílias e não podem experimentar discriminação.

Assim sendo, a norma do Artigo 226, § 3º, da Constituição, que facilita a conversão em casamento de união estável entre o homem e a mulher, não pode servir de obstáculo para reconhecer a existência de entidade familiar entre homossexuais. A norma constitucional deve ser interpretada, sobretudo, em consonância com os princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana.

Na verdade, ao declarar a proteção do Estado à união estável entre o homem e a mulher, não pretendeu o legislador constitucional excluir dessa proteção outras formas de união, como a homoafetiva e, inexistente a restrição, mostra-se perfeitamente cabível a aplicação analógica para situações atuais, antes não previstas expressamente.

A lacuna da lei não pode servir de obstáculo para o reconhecimento de um direito. A explicitação do casamento, da união estável e da família monoparental não exclui as demais que se constituem como comunhão de vida afetiva, com finalidade de família, de modo público e contínuo.

Esse é o brilhante ensinamento da Ilustre jurista Claudia Tome Toni:

“Na realidade, o legislador constitucional, ao se referir a essas espécies de entidades familiares, não previu qualquer proibição à instituição de outros tipos de formações familiares. Ao contrário, pela leitura do texto, podemos concluir claramente que o legislador, ao dizer que a família é base da sociedade, ressaltou sua importância em nosso meio e, portanto, a sua imprescindibilidade para nossa sociedade e para o próprio Estado, independentemente do modo como foi constituída. Esse fundamento é invocado pelos juristas que defendem que a união entre homossexuais também deve ser considerada forma legítima de constituição de família e que, por isso, pode ser equiparada à união estável, estabelecida entre casais heterossexuais, sem o formalismo do casamento" [8].

Enfim, as uniões homoafetivas constituem inequívoca realidade social e não podem ser ignoradas. Assim, do ponto de vista jurídico, o desenvolvimento sexual da pessoa humana é inerente à sua personalidade e garantido constitucionalmente, de modo que as uniões homoafetivas não podem estar associadas à procriação como ocorre com o matrimônio, uma vez que sua proteção jurídica e social está relacionada à noção de família.

Assim, se uma união heterossexual formada pelo matrimônio ou pela união estável merece proteção social, econômica e jurídica do Estado, independente da existência de prole, igual tratamento merece ser dispensado às uniões homossexuais para elevá-las ao inevitável status de Entidade Familiar com as alterações legislativas necessárias e de direito.

 

Bibliografia
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ALMEIDA, Renata Barbosa de e RODRIGUES JUNIOR, Walsir Edson. Direito Civil, Famílias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
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DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 3.ed. São Paulo: RT, 2006.
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Direito Civil Família. São Paulo: Atlas, 2008.  
LOBO, Paulo Luiz Netto. Direito Civil, Famílias. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
NADER, Paulo. Curso de Direito Civil, Direito de Família. Rio de Janeiro: Forense, 2006.
SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.
TONI, Tome Claudia. Manual de Direitos dos Homossexuais. SRS. Ed., 1" ed. 2008.
VENOSA, SILVIO DE SALVO. Direito Civil: Direito de Família. São Paulo: Atlas, 2009.

Notas:
[1] BARROS, Sérgio Resende De. A ideologia do afeto. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre: Sintese IBDFAM, v.14, p.6-7, 2002.
[2] ALMEIDA, Renata Barbosa de e RODRIGUES JUNIOR, Walsir Edson. Direito Civil, Famílias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. P. 71
[3]Art. 1.514. O casamento se realiza no momento em que o homem e a mulher manifestam, perante o juiz, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal, e o juiz os declara casados.
Art. 1.517. O homem e a mulher com dezesseis anos podem casar, exigindo-se autorização de ambos os pais, ou de seus representantes legais, enquanto não atingida a maioridade civil.
Art. 1.565. Pelo casamento, homem e mulher assumem mutuamente a condição de consortes, companheiros e responsáveis pelos encargos da família.
Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.
Art. 1.726. A união estável poderá converter-se em casamento, mediante pedido dos companheiros ao juiz e assento no Registro Civil.
Art. 1.727. As relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato”.
[4] “Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.(…)
§ 3º – Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”.
[5] GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Direito Civil Família. São Paulo: Atlas, 2008. P. 155
[6] Idem. Ob. Cit. p. 155
[7] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 3.ed. São Paulo: RT, 2006. P.43.
[8] TONI, Tome Claudia. Manual de Direitos dos Homossexuais. SRS. Ed., 1" ed., pg. 50/51


Informações Sobre o Autor

Juliana Pullino

Advogada e Professora Universitária Mestre em Direitos Difusos e Coletivos Especialista em Direito Civil e Processo Civil


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