As vertentes do liberalismo contemporâneo diante da socialização do estado e da estatização da sociedade

Resumo: Trata-se de um ensaio teórico-reflexivo, com o objetivo de analisar vertentes do liberalismo contemporâneo diante da socialização do Estado e estatização da sociedade, haja vista o papel regulador que a sociedade passou a exercer perante o Estado, com base nas conquistas liberais. Para tanto, será realizada a análise de conteúdo, segundo o entendimento de teóricos ligados ao tema, afim de promover discussões, com vistas a identificar a relação de interpenetração da sociedade e do Estado.

Palavras-chave: Liberalismo. Socialização do Estado. Estatização da sociedade.

Abstract: It is a theoretical-reflexive essay, with the objective of analyzing aspects of contemporary liberalism before the socialization of the State and nationalization of society, given the regulatory role that society has taken to the State, based on liberal achievements. In order to do so, content analysis will be carried out, according to the understanding of theorists related to the theme, in order to promote discussions, with a view to identifying the interpenetration relationship between society and the State.

Keywords: Liberalism. Socialization of the State. Statization of society.

Sumário: 1. Introdução. 2. O liberalismo contemporâneo na perspectiva de Hayek. 3. A socialização do Estado e a estatização da sociedade na visão de Habbermas. 4. Considerações finais.

1 INTRODUÇÃO

Com o advento de algumas das causas que justificaram os ideais do liberalismo, das quais se destaca o individualismo, que descaracterizou as massas e pormenorizou a relevância de cada indivíduo no meio social, além do surgimento concomitante da sociedade burguesa, verifica-se que, o Estado passou a exercer seu papel de regulação social pautado nas perspectivas da sociedade, e não mais de forma absoluta. Além do mais, pesa ainda o fato da imbricação do Estado e da sociedade, que evidenciaram um processo correlato de condensação de suas funções, justificado na socialização do Estado e na estatização da sociedade.

Nessa perspectiva, Habbermas (2003, p. 169) nos revela que “com a expansão das relações econômicas de mercado, surge a esfera do social, que implode as limitações da dominação feudal e torna necessárias formas de autoridade administrativa”.

Assim, surge uma esfera pública burguesa atrelada aos efeitos do mercado, que se constitui numa esfera de reprodução social, ocorrendo, o que Habbermas denominou de interpenetração entre as esferas pública e privada, haja vista os efeitos deletérios do mercado e da nova conjuntura da sociedade, que de uma tendência liberal passou a precisar do Estado para regulação de questões antes consideradas próprias do setor privado. Nesse sentido, Habbermas (2003, p 176):

“Através de leis e de medidas administrativas, o Estado intervém profundamente na esfera do intercâmbio de mercadorias e do trabalho social, pois os interesses concorrentes das forças sociais se transformam em dinâmica política e, intermediadas pelo intervencionismo estatal, retroagem sobre a própria esfera.”

O objetivo deste ensaio é discutir como o pensamento liberal contemporâneo se amolda perante o processo de socialização do Estado e estatização da sociedade. Nesse intuito, colacionou-se as leituras de obras basilares acerca das questões então levantadas, tais como “O Caminho da Servidão” de Hayek (1990) e “Mudança Estrutural da Esfera Pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa” de Habbermas (2003). A leitura das obras foi realizada na tentativa de compreender as vertentes que norteiam esta pesquisa, a fim de contribuir com a discussão acerca dos limites da intervenção do Estado no pensamento liberal contemporâneo, sobretudo diante da condensação existente entre o setor público e setor privado.

A aludida questão alicerçada em autores contemporâneos é fundamental para a compreensão da presente pesquisa. Todavia, nosso estudo não possui a pretensão de dirimir a temática apresentada, mas apenas a de dialogar sobre suas vertentes, a fim de delinear a forma como aludido tema é tratado na visão liberal contemporânea, o que será nosso ponto de partida.

2  O liberalismo contemporâneo na perspectiva de Hayek

O conhecido liberalismo clássico, oriundo dos ideais renascentistas, pautado na igualdade, liberdade e individualismo precisou passar por processo de evolução, haja vista a complexidade das sociedades contemporâneas. No entanto, a causa que justifica sua existência parece ser a mesma, qual seja, a necessidade a reafirmação da sociedade diante do Estado. Assim, Hayek (2003, p. 42) afirma que:

“Os princípios básicos do liberalismo não contêm nenhum elemento que o faça um credo estacionário, nenhuma regra fixa e imutável. O princípio fundamental segundo o qual devemos utilizar ao máximo as forças espontâneas da sociedade e recorrer o menos possível à coerção pode ter uma infinita variedade de aplicações.”

Hayek, em sua obra “O caminho da servidão”, pareceu preocupado com os rumos que a Inglaterra tomava em pleno século XX, que, ao seu ver, muito se assemelhavam aos caminhos percorridos pela Alemanha, a qual, de um pensamento utópico do socialismo culminou nos ideários do nazismo e facismo. Para ele, a Inglaterra passava por um processo de abandono do caminho do liberalismo, e temia que isso culminasse em um totalitarismo,  nesse sentido:

“Fomos aos poucos abandonando aquela liberdade de ação econômica sem a qual a liberdade política e social jamais existiu no passado. Embora alguns dos maiores pensadores políticos do século XIX, como de Tocqueville e Lord Acton, nos advertissem de que socialismo significa escravidão, fomos continuamente avançando em direção ao socialismo. E agora, tendo visto uma nova forma de escravidão manifestar-se diante de nós, já esquecemos de tal modo essa advertência que mal nos damos conta da possível relação entre as duas coisas.” (HAYEK, 2010, p. 39)

Embora Hayek ainda não possuísse na época de seus escritos indícios suficientes de que o socialismo pudesse, consequentemente, gerar o totalitarismo, hoje podemos analisar os caminhos traçados pela história e verificar que os exemplos de implementação do socialismo até então vivenciados prestaram-se por combinar com regimes totalitários, a exemplo da Alemanha e Rússia. Mas, ele estava certo de que o totalitarismo se manifesta na contramão das ideias liberais: “o líder nazista que definiu a revolução nacional-socialista como uma contra-Renascença estava mais próximo da verdade do que provavelmente imaginava” (HAYEK, 2010, p. 39).

Sendo assim, a ideia do socialismo, ou não foi bem compreendida na prática, ou é de fato compatível com a destituição dos ideais de liberdade, próprios do liberalismo, e, admitindo-se a segunda hipótese, pode-se concluir que as vertentes do coletivismo, característica do socialismo, esmagaram o individualismo criado pelo liberalismo, e, consequentemente, transformou os homens em massas, facilitando a tirania dos regimes totalitários.

Aludido autor entende que o “socialismo equivale à abolição da iniciativa privada e da propriedade privada dos meios de produção, e à criação de um sistema de ‘economia planificada’ no qual o empresário que trabalha visando ao lucro é substituído por um órgão central de planejamento” (HAYEK, 2010, p. 55).

De fato, na medida em que o socialismo se instala, o Estado avança com seu papel de interventor, baseado nisso, Hayek (2003, p. 39) afirma que “a tendência moderna ao socialismo não implica apenas um rompimento definitivo com o passado recente, mas com toda a evolução da civilização ocidental”.

Hayek (2003, p. 42) faz ainda uma crítica ao modo como o liberalismo continuou sendo tratado diante da evolução histórica-social das sociedades: “talvez nada tenha sido mais prejudicial à causa liberal do que a obstinada insistência de alguns liberais em certas regras gerais primitivas, sobretudo o princípio do laissez-faire”. De fato, o liberalismo parece ter enfraquecido suas forças diante dos rumos vivenciados no contexto da sociedade contemporânea, porém, seus ideais de liberdade, igualdade e individualismo estão intrinsecamente enraizados no seio social, o que nos parece ser um caminho sem volta.

3 A socialização do Estado e a estatização da sociedade na visão de Habbermas

Habbermas (2003, p. 170) reconhece que a decadência da esfera pública burguesa evidenciou um estreitamento da relação Estado e sociedade, pois segundo o aludido autor: “somente esta dialética de uma socialização do Estado que se impõe, simultaneamente com a estatização progressiva da sociedade, é que pouco a pouco destrói a base da esfera pública burguesa: – a separação entre Estado e sociedade”, o que também está relacionado com fim da era liberal no século XIX, momento no qual o Estado passa a assumir funções outrora exercidas pela sociedade ou mesmo pelo papel regulador do mercado, como por exemplo os assuntos relacionados ao trabalho, pois diante das incongruências do mercado, o Estado se fez necessário para coibir as mazelas porventura causadas pelo capitalismo sobre a massa laboral. 

Acerca desses novos moldes de intervenção do Estado na sociedade Habbermas (2003, p. 170) assevera:

“Assim, a longo prazo, ao intervencionismo estatal na esfera social corresponde também a transferências de competências públicas para entidades privadas. E à ampliação da autoridade pública a setores privados também está ligado o processo correlato de uma substituição de poder público por poder social”.

Na era contemporânea a esfera privada adquire roupagem política, mediante a delegação de atribuições públicas, o que denota maior participação da sociedade nos assuntos públicos e, consequentemente, o Estado passa a exercer suas atividades atrelado aos interesses sociais. Acerca das novas atribuições do Estado, Habbermas (2003, p. 175) entende que:

“Já aventamos a tarefa de proteger, indenizar e compensar os grupos sociais mais fracos: trabalhadores e funcionários, inquilinos, usuários, etc. (neste âmbito recaem, por exemplo, as medidas com o objetivo de redistribuir a renda). – Outra é a situação da tarefa de prevenir, a longo prazo, modificações da estrutura social ou, então, ao menos de atenuá-las, ou, no entanto, apoiá-las planejadamente, até mesmo dirigi-las (aqui pertence um complexo como a política da classe média). – O poder, repleto de consequências, de influenciar os investimentos privados e de regulamentar os investimentos públicos já caem no círculo mais amplo de tarefas de um controle e de um equilíbrio de todo o ciclo económico”.

A sociedade também assume funções outrora apenas exercidas pelo setor público, o que ocorre, por exemplo “com a transferência de tarefas da administração pública para empresas, estabelecimentos, corporações, encarregados de negócios semi-oficiais” Habbermas (2003, p. 180).

Com base nisso, pode-se constatar que houve um processo de interseção entre as esferas pública e privada, haja vista os efeitos ocasionados pelo sistema de livre produção, próprio do liberalismo econômico, que entregou as diretrizes econômicas e sociais ao poder regulamentador do mercado, que por si só não foi capaz de conter os efeitos do capitalismo sobre as massas, o que ocasionou o regresso do Estado protetor, que além de promover ações protetivas em favor da sociedade, também passou a atribuir funções públicas ao setor privado.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

     Atrelado ao objetivo desta pesquisa, qual seja, discutir como o pensamento liberal contemporâneo se amolda perante o processo de socialização do Estado e estatização da sociedade, restou evidenciado que diante das inovações experimentadas tanto no âmbito da economia, como também na esfera social, o liberalismo contemporâneo também evidenciou um processo de transformação, pois as questões que justificaram seu surgimento amoldaram-se às novas conjunturas sociais. Acerca dessas transformações, Hayek (2003, p. 40) adverte que:

“‘Liberdade’ é agora uma palavra tão desgastada que devemos hesitar em empregá-la para expressar os ideais por ela representados durante aquele período. Talvez “tolerância” seja o único termo que ainda expresse o pleno significado do princípio que predominou durante esse período, e apenas em tempos recentes voltou a declinar, desaparecendo de todo com o advento do estado totalitário”.

Todavia, o ideário básico desse sistema de regulação permaneceu inalterado, haja vista a constante necessidade de reafirmação social diante do Estado interventor. Mas, não se pode olvidar o fato do próprio liberalismo ter dado margem a necessidade contemporânea de proteção social pelo Estado, que avocou para si funções próprias do setor privado, que, por sua vez, também passou a exercer atribuições públicas.    

    

Referências
HABBERMAS, Jurgen. Mudança Estrutural da Esfera Pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Trad. Flávio R. Kotche. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.
HAYEK, Friedrich August von. O caminho da servidão. Trad. Anna Maria Capovilla et al. 5.ed. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1990.

Informações Sobre o Autor

Sara Morgana Silva Carvalho Lopes

Advogada, Pós-graduada em Direito do Estado pela Universidade Anhanguera-Uniderp, Mestranda em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Piauí (UFPI) e docente do curso de Direito da Faculdade de Tecnologia do Piauí (FATEPI)


Equipe Âmbito Jurídico

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