Resumo: Este artigo propõe uma problematização da Lei Federal 13.260/15, conhecida como Lei Antiterrorismo. Para tanto, observa alguns aspectos micrológicos deste dispositivo legal, evidenciando alguns discursos e problemas emergentes com a tipificação do crime de terrorismo no Brasil. A hipótese aventada é de que a referida Lei, com seu ímpeto punitivo, reflete o expansionismo penal que toma a cena na realidade contemporânea. Por certo, a cultura punitiva que prolifera atualmente traz consigo novas maneiras de lidar com a atitude criminosa, deflagrando um mecanismo criminal de “gestão das probabilidades”, ou seja, um dispositivo de antecipação de base legal que prepara o “terreno” para a emergência eventual do terrorismo.
Palavras-chave: Lei antiterrorismo; cultura punitiva; direito penal; dispositivo de segurança.
Resumen: Este artículo propone una problematización de la Ley Federal 13.260 / 15, conocida como Ley Antiterrorismo. Para ello, observa algunos aspectos micrológicos de este dispositivo legal, evidenciando algunos discursos y problemas emergentes con la tipificación del crimen de terrorismo en Brasil. La hipótesis aventada es que la referida Ley, con su ímpetu punitivo, refleja el expansionismo penal que toma la escena en la realidad contemporánea. Por cierto, la cultura punitiva que prolifera actualmente trae consigo nuevas maneras de lidiar con la actitud criminal, desencadenando un mecanismo criminal de "gestión de las probabilidades", es decir, un dispositivo de anticipación de base legal que prepara el "terreno" para la emergencia Posible del terrorismo.
Palabras clave: Ley antiterrorista; Cultura punitiva; derecho penal; Dispositivo de seguridad.
Sumário: Preliminares; I. Terrorismo: conceito amplo e neutro?; II. Equiparação desarrazoada; III. Violação ao Princípio da Legalidade Penal; IV. Lei Antiterrorismo: da ofensa à liberdade de expressão; Considerações (in)conclusivas; Referências
I. Preliminares
A título de abertura, convém situar que, muito antes da Lei 13.260 tratar especificamente do terrorismo, a Magna Carta já tinha feito referência ao termo, mesmo que de forma um tanto tímida. No Art. 4º da Carta Constituinte, tem-se uma vedação expressa à promoção do terror. Diz o Legislador: “Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: (…) VIII – repúdio ao terrorismo e ao racismo[1]”. Mais à frente, o terrorismo foi incluído no rol dos crimes inafiançáveis:
“Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XLIII – a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”; (Grifo nosso).
Por oportuno, necessário registrar que, antes da Constituição Federal de 1988, a própria Lei de Segurança Nacional[2] já havia observado a questão, ao dissertar que:
“Art. 20 – Devastar, saquear, extorquir, roubar, seqüestrar, manter em cárcere privado, incendiar, depredar, provocar explosão, praticar atentado pessoal ou atos de terrorismo, por inconformismo político ou para obtenção de fundos destinados à manutenção de organizações políticas clandestinas ou subversivas. (Grifo nosso)
Pena: reclusão, de 3 a 10 anos.”
Da imersão nos dispositivos acima pode-se retirar que o terrorismo é apreciado como uma aversão à segurança pública nacional; ou ainda, os dois vocábulos, segurança e terrorismo, se existentes precipuamente comprometeriam a coesão e a harmonia buscada pela nação. Na Magna Carta a segurança parece ter sido concebida como um direito fundamental, ao lado de outros direitos igualmente relevantes, tais como a liberdade, a igualdade e a propriedade.
Vale lembrar que, conforme a Teoria dos Direitos Fundamentais construída por Robert Alexy (1999), não se pode creditar a nenhum dos direitos essenciais o caráter de absoluto. Ao contrário, os direitos fundamentais devem ser pensados e tutelados de maneira conjunta, de modo que um constitua o limite do outro. Contudo, na dinâmica da vida ordinária, Alexy não deixa de ressalvar que um direito poderá subsistir sobre o outro, salvo contrário, sua teoria seria possuída por uma espécie de “paralisia retórica”.
Do ponto de vista técnico-jurídico, no plano das Constituições Estaduais, a exemplo daquela formulada para o Estado da Bahia, o terrorismo não foi mencionado, mas há, no entanto, a indicação da segurança como uma obrigação do Estado: “Art. 11. Compete ao Estado, além de todos os poderes que não lhe sejam vedados pela Constituição Federal: (…) III – manter a ordem jurídica democrática e a segurança pública[3]”.
Espelhando essa proposição mais utópica, há um argumento bastante corrente no Brasil que assimila a busca por segurança e o combate à violência urbana. Trata-se de um modus discursivus que, guardadas as devidas proporções, parte de uma lógica global e é extensivo aos contextos mais periféricos das pequenas e médias cidades brasileiras. Em contrapartida, há a explosão nos índices de violência física e simbólica, potencial e real, ideológica e estrutural (ZALUAR, 1999; IANI, 2002).
Ocorre que, nas sociedades da comunicação, todo esse mosaico de violências públicas e privadas tende a ser projetado pela mídia nacional e internacional, passando a circular de maneira veloz e descentralizada pelas redes digitais da Internet. No âmbito de tais efeitos, vários Estados-nação vêm entrando numa estranha espécie de “preparação” para a recepção de eventuais ataques.
A força discursiva do efeito “terrorismo” parece se aplicar a realidade brasileira, tal como passaremos a demonstrar. Dito de maneira direta: o que faz o ordenamento jurídico brasileiro é fotografar a dinâmica de terror que assola as comunidades européia, estadunidense e oriental, incluindo o arquivo no panorama politico-jurídico nacional.
II. Terrorismo: conceito amplo e neutro?
Como dito alhures, um argumento reiterado desta pesquisa é conceber a Lei Antiterrorismo como um dispositivo de segurança nas sociedades atuais. A propósito disso, a interpretação caminha no sentido de conhecer alguns[4] mecanismos engendrados por esta Lei, buscando averiguar possíveis intenções do aparato estatal, assim como intentando verificar de que modo a lei abre margem para uma série de novos riscos para a jovem democracia brasileira.
Uma avaliação preliminar da Lei Federal 13.260 já identifica algumas questões que necessitam ser problematizadas. De logo, é importante voltar o olhar para o conceito de terrorismo tal como foi delineado no art. 2º:
“O terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública”[5]. (Grifos nossos).
Inicialmente, pode-se perceber que o tipo penal informa que a conduta do suposto terrorista não é movida por simples dolo, há, outrossim, a existência de um dolo especifico, ou seja, o crime pode ser ocasionado pelas razões retro mencionadas, mas com a finalidade de proporcionar a aterrorização dos civis[6].
Salta aos olhos que o Legislador projetou um conceito bastante ampliado de terrorismo, assimilando num mesmo discurso um universo plural de questões motivadoras da conduta criminosa, unindo-as apenas pelo suposto objetivo: provocar o terror social. Se o conceito de terrorismo é aberto em demasia, talvez o Legislador esteja oportunizando uma série de interpretações confusas e desarrazoadas por parte dos aplicadores da Lei Penal. O problema é justamente
“a larga margem de subjetividade que se dá ao agente e à autoridade policial primeiro, ao membro do Ministério Público depois, e finalmente ao juiz para avaliar a ocorrência ou não das motivações e finalidades elencadas (PILATTI, 2016)”. (Grifos do entrevistador)
Ao colocar as questões de raça, etnia e religião num mesmo plano de apropriação, o artigo da Lei ignora que alguns abusos ao bem jurídico alheio, a exemplo do crime de racismo, já encontra tutela no Código Penal Brasileiro[7]. Nesse caso, uma preocupação nos pega de assalto, podendo ser indicada com a seguinte situação hipotética: se um grupo de ativistas do movimento negro, na busca por transformar suas demandas em direito, protestam na via pública e, a contrapelo de suas reivindicações, são recepcionados com agressões verbais e físicas, quem pode garantir que o dispositivo legal não funcionará como manto de proteção para a atuação desarrazoada do aparelho policial estatal[8]?
A preocupação, portanto, não recai somente sobre os novos efeitos que podem se desdobrar com a ampliação desmedida do dispositivo legal, mas e, sobretudo, por todos os problemas de aprisionamento das liberdades que marcam a sabidamente autoritária sociedade brasileira. Neste condão, vale lembrar que a história dos movimentos sociais indica, com um registro empírico bastante razoável, que a marginalização das manifestações populares constitui um modus operandi do enganoso Estado democrático brasileiro (GOHN, 2011).
Neste cerne, é oportuno contar com as lições de Selma Santana:
“A dificuldade de se aceitar uma definição geral sobre terrorismo reside, primeiramente, no fato de que esse fenômeno possui uma longa história dos usos e significados do termo; por outro lado, a dificuldade decorre também de inexistir uma forma singular de terrorismo, mas várias, geralmente com poucos traços comuns. Por conta disso, há tantas definições de terrorismo quanto autores que se preocupam com tal fenômeno. No âmbito penal, a sua tipificação tornou-se um tormento, sem paralelo, se comparado às outras figuras típicas “(SANTANA, 2015, p. 379).
Noutro aspecto, percebe-se ademais que o art. 2º faz referência aos conceitos de incolumidade pública e paz social, contudo, há de se salientar que as duas noções, ladeadas como sinônimas, são igualmente abertas e, de certo modo, vagas, pois em certos casos podem funcionar como retórica instrumental para legitimar a dominação de uma classe sobre outras, ou ainda, a imposição de certas culturas a despeito de outras (WOLKMER, 2006).
Quando isso ocorre, a Teoria Crítica acusa que o direito foi utilizado como um mecanismo ideológico de mascaramento das relações sociais e, enquanto tal, funcionando como mola reprodutora de assimetrias e iniqüidades. Portanto, a conceituação por demais generalista do terrorismo traz consigo alguns perigos entranhados, criando uma disposição para o livre exercício discricionário do Estado e da polícia em interpretações que podem ensejar uma confusão perante os atos de exercício de direitos fundamentais e as eventuais práticas terroristas (SANTANA, 2015).
O bem jurídico tutelado com a novatio legis é, à primeira vista, a segurança nacional. É em nome dela que se busca, curiosamente, evitar ou conter a emergência do terror social. Mas, como bem percebeu Barbosa (2016, s/p)
“o Legislador aterrorizou com o termo terror social de conteúdo vago e impreciso, totalmente contrário à teoria constitucional do delito ou teoria funcional racional do crime, deixou de forma indeterminado o bem jurídico que se pretende proteger, principalmente porque criou um crime de perigo, ao que nos parece, quis que fosse abstrato”.
Um crime de perigo abstrato é, como bem considera Alice Bianchini, uma forma de enxergar o direito penal que se traduz em forte preocupação para os indivíduos tutelados pelo Estado, pois:
“Até que ponto merece sanção de natureza penal uma conduta que apenas exponha a perigo um bem jurídico? Uma tal conduta, legitimamente, poderia integrar uma lei de conteúdo repressivo oriunda de um Estado democrático de direito? Não seria mais razoável, em qualquer hipótese, exigir-se a comprovação do perigo a que a conduta expôs o bem jurídico?”
Nesta linha, caberia pensar que uma compreensão escancaradamente abstrata de terrorismo pode alavancar, indubitavelmente, uma espécie de efeito contrário à segurança prometida. Se é assim, não há exagero em considerar a indefinição do terrorismo como um desserviço ao Estado Democrático, pois, se tudo é terrorismo, fica difícil dizer o que ele não é; ou ainda, se tudo é terrorismo, se toda manifestação pode vir a ser enquadrada como tal, talvez a própria segurança, por tantas vezes prometida de forma espetacular, não seja mais que um discurso mitológico utilizado como linha de força para a manutenção do status quo e da passividade nas relações sociais. Nos dois casos, para que um projeto como esse possa estender suas teias de captura, o medo estará funcionando como uma matéria prima para a reprodução da neutralidade, não raro inspecionado através da lógica falaciosa de “quem não deve, não teme”.
III. Equiparação Desarrazoada
Mergulhando no universo mais técnico da Lei 13.260, pode-se reparar que o Legislador acaba por colocar num mesmo plano de punição os atos de preparação e o crime consumado de terrorismo, instalando um quadro de desproporcionalidade entre a conduta tentada e a conduta consumada. Vejamos o dispositivo em dois artigos combinados, demonstrando a imprecisão do texto legal indicada numa outra direção.
“§ 1o São atos de terrorismo:
I – usar ou ameaçar usar, transportar, guardar, portar ou trazer consigo explosivos, gases tóxicos, venenos, conteúdos biológicos, químicos, nucleares ou outros meios capazes de causar danos ou promover destruição em massa; (…)
IV – sabotar o funcionamento ou apoderar-se, com violência, grave ameaça a pessoa ou servindo-se de mecanismos cibernéticos, do controle total ou parcial, ainda que de modo temporário, de meio de comunicação ou de transporte, de portos, aeroportos, estações ferroviárias ou rodoviárias, hospitais, casas de saúde, escolas, estádios esportivos, instalações públicas ou locais onde funcionem serviços públicos essenciais, instalações de geração ou transmissão de energia, instalações militares, instalações de exploração, refino e processamento de petróleo e gás e instituições bancárias e sua rede de atendimento;
V – atentar contra a vida ou a integridade física de pessoa:
Pena – reclusão, de doze a trinta anos, além das sanções correspondentes à ameaça ou à violência”. (Grifo nosso).
Além de estender as possibilidades de usos de instrumentos bélicos ou não para o deslinde do guerreado terror, no inciso V retro fala-se no verbo “atentar”, ou seja, o terror social não precisa ser necessariamente alcançado, basta que o simples planejamento ou a tentativa frustrada sejam capazes de criar um chamamento à aplicação do dispositivo. Isso reflete, por um lado, que a nova lei não economiza no abstracionismo perigoso, inclusive fazendo da importante Proporcionalidade da Lei Penal um princípio subterrâneo, menor, descartável; outrossim, parece que “o Legislador quis mascarar a vagueza dos tipos penais, mas, da forma que a lei está redigida, basta atingir abstratamente a incolumidade da segurança nacional” (BARBOSA, 2016).
De outro modo, cumpre observar o art. 5º, que aduz sobre os atos preparatórios para a emergência da conduta criminosa:
“Art. 5o Realizar atos preparatórios de terrorismo com o propósito inequívoco de consumar tal delito:
Pena – a correspondente ao delito consumado, diminuída de um quarto até a metade.
planejamento, a preparação ou a execução dos crimes previstos nesta Lei:
Pena – reclusão, de quinze a trinta anos”. (Grifo nosso).
Como se vê, nos dispositivos acima, há uma intenção expressa do Legislador em exaltar o ius puniendi estatal, tratando o crime de terrorismo como conduta extremamente reprovável, mesmo que, curiosamente, não se tenha recorrência deste tipo criminoso nas cidades brasileiras. Neste cerne, é oportuno contar com a lucidez crítica do professor Adriano Pilatti, ao dissertar sobre as controvérsias da Lei Antiterrorismo:
“Uma leviandade, pois se trata de um falso remédio para um problema que simplesmente não existe em nosso país, que não se apresentou nem mesmo quando sediamos a Copa das Confederações e a Copa do Mundo, com trânsito de delegações estrangeiras por todo o território nacional”[9] (Grifos da entrevista).
O fato de não possuir um alvo preciso torna a todos suspeitos em potencial, estimulando uma disposição para a criminalização de condutas de sujeitos e grupos somente porque destoam da “normalidade aparente”. Isso confere ao dispositivo legal um poder de ativação que pode ser empregado em situações distintas, tanto para coibir atos individuais, quanto para reprimir manifestações coletivas, fazendo ecoar, nos dois casos, a firme noção de que todos são vulneráveis diante da lógica de punitiva-securitária que se instaura.
Se as palavras acima procedem em suas avaliações, então devemos colocar, mesmo que de forma um tanto parcial, que o terrorismo pode ser entendido como uma forma de violência, mas com o devido cuidado de não confundir todas as formas de violência com atos de terrorismo. Assim sendo, a Lei acaba por ampliar não só as formas de violências confundidas com atos terroristas, mas também as vitimas em potencial, sinalizando para o quadro de medo e suspeição que ronda as democracias contemporâneas (HAROCHE, 2011).
IV. Violação ao Princípio da Legalidade Penal
Martinelli (2016) observa que a Lei Antiterrorismo, com seu ímpeto desarrazoado de punição, acaba por promover uma violação ao Princípio da Legalidade no âmbito penal. Ocorre que este princípio, com sua função protetiva, pressupõe que a lei penal seja estabelecida segundo critérios bem definidos e objetivos incisivos, inclusive para não expor a população tutelada a um cenário de insegurança jurídica.
Nesta linha de argumentação, tomemos as palavras abaixo:
“Outras afirmações são extraídas da legalidade penal: a lei penal deve ser taxativa, clara, precisa e restritiva. Quer dizer, a lei penal incriminadora não pode permitir uma interpretação ampla, que alcance comportamentos aleatórios conforme a vontade do intérprete. Não pode haver dubiedade ou imprecisão, muito menos permissão para manipulação na interpretação. O legislador deve ser claro para dizer o que é proibido, pois, do contrário, a conduta será permitida.” (MARTINELLI, 2016).
Cotejando as palavras acima delineadas, observa-se que o Legislador Penal, dada a imprecisão do conceito de terrorismo (art. 2º), seguiu um itinerário de violação expressa ao Princípio da Legalidade. Ao dissertar, como dito, sobre um conceito genérico de terrorismo, a Lei 13.260 impõe uma amplitude punitiva que confere discricionariedade deliberada ao Estado, criando um rol de possibilidades para o exercício de uma política criminal ameaçadora de direitos fundamentais.
“Permitir a punição de atos preparatórios representa a maior afronta ao princípio da legalidade. Isso só é permitido se os atos preparatórios de um crime configurarem outro crime autônomo, com tipificação própria (por exemplo, o porte ilegal de arma de fogo em relação ao homicídio). Autorizar esse tipo de punição é dar ao intérprete o poder de escolher o que quiser como ato preparatório, ainda mais porque o próprio conceito de terrorismo é demasiado aberto. Uma mera reunião de pessoas pode, na cabeça do intérprete, ser considerado ato preparatório; também o sujeito que compra uma passagem aérea com destino a um país reconhecido por abrigar extremistas políticos também pode ser punido por atos preparatórios de suposto ato de terror. Ou seja, a definição de preparação para o terrorismo pode ser qualquer coisa, a depender do intuito punitivo do Estado” (MARTINELLI, 2016).
O que está em jogo, com a indefinição legal, é o direito fundamental previsto no art. 5º, II, da Carta Constituinte, que dispõe sobre a liberdade enquanto princípio orientador do Estado Democrático. Mais do que hipóteses especulativas, pensando o direito como ciência social aplicada, deve-se atentar que as palavras de Martinelli podem estar antecipando uma nova tendência de arbitrariedades tanto na aplicação da Lei Penal e processual pelo aparelho policial quanto no tipo de interpretações que podem ser desaguadas no plano jurisprudencial (CASARA, 2015).
V. Lei antiterrorismo: da ofensa à liberdade de expressão
Em artigo intitulado A utopia da liberdade de expressão num suposto Estado Democrático de Direito, Santana (2015) situa o tema do terrorismo como um fenômeno que pode incidir, transversalmente, contra as liberdades de expressão consagradas pela Magna Carta. Para tanto, a autora perfaz uma estratégia que concebe as iniciativas legais de tipificação do terrorismo como um esforço e uma dificuldade do aparato estatal brasileiro.
Por um lado, antes da emergência da Lei 13.260, outras tentativas legais já haviam sido apresentadas no Congresso Nacional. Para entrar na questão, a autora localizou historicamente o contexto em que algumas tentativas legais de tipificar o terrorismo surgiram, buscando demonstrar a dificuldade do Estado de lidar com manifestações urbanas de caráter popular, sobretudo aquelas que propõem um antagonismo ao governo. Uma lição emerge de maneira certeira no argumento empregado, qual seja, a de que o Estado Brasileiro, na busca por reprimir os virtuais ataques terroristas, avança e se projeta negativamente contra o plano das liberdades.
A propósito disso, cumpre lembrar que a Magna Carta, no art. 5º dispõe que “IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato[10]”. A preocupação de Santana (2015), que é confluente com a nossa, está refletida na dificuldade brasileira em aperfeiçoar a sua jovem democracia. Ora, quando a liberdade é aviltada, ou mesmo quando há uma disposição para tanto, muitos direitos e garantias individuais podem estar ameaçados ou, mesmo, entrar em um repugnante colapso; uma vez flexibilizadas, as liberdades mínimas de expressão cedem à truculência de uma política criminal que pode ser tudo, menos justa e simétrica.
Essa tensão que envolve os direitos fundamentais e as medidas legislativas, tal como a Lei 13.260, vem, desde os últimos meses sendo uma acusação frequente dos movimentos sociais no Brasil. Quando os populares se manifestam, eles não precisam, necessariamente, possuir um objetivo único, já que a pluralidade política e cultural pressupõe, ao contrário, o exercício democrático como fonte de produção das diferenças.
“Previsto na Constituição Federal, como um direito fundamental (artigo 5º, XVI), o direito à reunião pacífica, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido aviso prévio à autoridade competente, encontra-se correspondência no artigo 15 da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) (…) O direito de reunião pode ser considerado como instrumento da livre manifestação de pensamento, aí incluído o direito de protestar” (SANTANA, 2015, p. 369).
Como se vê, o direito à liberdade de expressão não está submisso à concordância com as práticas de qualquer governo vigente no Brasil. Caso contrário, a liberdade se distanciaria da intenção do Constituinte e, não obstante, se esvaziaria de sentidos políticos (ARENDT, 2009). Com a incidência da Lei Antiterror, curiosamente, não seria exagero arriscar que a liberdade continuaria sendo prolatada como um conceito meramente retórico, alienado dos problemas empíricos que enlaçam as cidades brasileiras (GOHN, 2011). Em muitas situações sociais, poderemos estar diante de um uso “conveniente” e “espetacularizado” da liberdade, empregada, doravante, para justificar os delírios normativos do direito de punir.
Considerações (in) conclusivas
Nos termos do até agora exposto, a Lei 13.260 pode ser entendida como um dispositivo de segurança que sugere uma tutela no gerenciamento dos riscos e ameaças, existentes ou presumidas, ocasionando fortes preocupações do ponto de vista político. Contudo, tentamos demonstrar que, por conta do seu ampliado raio de alcance, a aludida lei acaba desdobrando problemas jurídicos que não podem escapar de uma apreensão crítica.
Quer-se dizer com isso que há um processo em curso tendente a projetar indivíduos segundo uma lógica prisional que transcende os espaços carcerários, tal como se estivéssemos a observar a emergência complexa de uma cultura punitiva.
Por certo, trata-se de um tipo de cultura que instaura uma lógica de ataque em que se busca punir antecipadamente, sob a justificativa de eventual emergência criminosa. Portanto, resta saber os limites em que a Lei Antiterrorismo deve atuar, tudo isso para não se perca de vista os direitos e garantias fundamentais.
Como o debate é fervoroso e não se encerra por aqui, deixemos uma questão que poderá mover outros vetores reflexivos: (I) De que modo a cultura punitiva instaurada em nossos dias reflete a crise de legitimidade do sistema democrático brasileiro?
Como forma de ilustrar esse momento de fechamento do texto, gostaríamos de deixar um poema de nossa lavra, no qual se coloca um pouco da complexidade do problema tratado ao longo das linhas anteriores.
“Terrores, laços e crises
O discurso é um canto dilacerante,
Galga e impulsa o perigo,
Numa narrativa circundante.
Quando o terror proclama,
Um laço por vezes detona,
Anunciando uma orquestra causídica,
Com forte incidência de dor.
Quando a crise encampa,
Uma estranha sintonia se levanta,
Uma vertigem desejante,
Catalisa o processo,
Mitigando a esperança.
Quando o olhar entrosa,
A captura é implacável!”
(Eledison Sampaio, 05 de agosto de 2016).
Advogado graduado pela UFBA com Mestrado pela UEFS e Doutorando em Difusão do Conhecimento pela UFBA
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