Aspectos controversos do instituto da união estável. Do preconceito histórico à atual insegurança jurídica

Resumo: Este trabalho trata dos aspectos controversos do instituto da União Estável, a serem abordados por meio de uma análise histórica, estabelecendo um paralelo entre as uniões informais e a entidade matrimonial. O estudo versa sobre questões patrimoniais referentes à união estável, com ênfase à ausência de isonomia e  insegurança jurídica que permeiam as relações informais, o que inclui a análise dos instrumentos utilizados na legitimação e regulamentação destas uniões. Desta forma,, ainda que a Carta Constitucional trate de equiparar o instituto da União Estável ao Casamento Civil, as uniões não matrimonializadas ainda encontram restrições, principalmente no tocante à atribuição de efeitos jurídicos. Desta feita, torna-se imprescindível a ampliação do alcance das normas positivas, destinando-as a sujeitos concretos, considerando o direito como um instrumento de adequação social.

Palavras-chave: União Estável; Partilha; Outorga.

Sumário: Introdução 2. Histórico do reconhecimento das uniões informais 3. Os efeitos patrimoniais da união estável: da prova de esforço comum 4. União estável x casamento: inexigibilidade de outorga do convivente e insegurança jurídica 5. O contrato de convivência e necessidade de registro imobiliário. Considerações finais. Referências bibliográficas

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1) INTRODUÇÃO

Na história da humanidade, a diversidade sempre se fez presente, ainda que coberta sob o véu da invisibilidade social.

Não obstante o reconhecimento do afeto como valor jurídico, o presente estudo demonstra sua importância ao revelar as diversas facetas assumidas pelo preconceito e a flagrante desigualdade sexual que estigmatizou a figura da mulher, privando-a de seus direitos e inadmitindo quaisquer efeitos jurídicos às relações informais.

Nesta senda,  propõe-se a realização de um percurso histórico do instituto da União Estável, desde a época anterior à Constituição de 1988, em que as uniões informais eram caracterizadas como “concubinato”, até o recente reconhecimento das uniões informais como entidade familiar, enaltecendo a importante atuação da jurisprudência ao admitir a presunção de esforço comum na aquisição do patrimônio adquirido onerosamente durante a convivência, legitimando a partilha igualitária entre os companheiros.

Não obstante a Carta Magna de 1988  reconheça a união estável como entidade familiar, equiparando-a ao casamento civil, o presente estudo visa demonstrar as flagrantes desigualdades existentes entre os dois institutos, que se fazem presentes principalmente na esfera patrimonial, ante a inércia do legislador na regulamentação de um complexo de direitos e deveres atinentes aos companheiros, fazendo com que, em relação aos efeitos patrimoniais da união estável, impere a insegurança jurídica.

Por derradeiro, objetiva-se o esclarecimento da importância do contrato de convivência não somente como prova de existência da união estável e pactuação do regime de bens, mas como um instrumento de preservação dos negócios jurídicos efetuados pelos conviventes, legitimado pelo registro imobiliário do referido contrato.

2) HISTÓRICO DO RECONHECIMENTO DAS UNIÕES INFORMAIS

A família, reconhecida como a mais arcaica das instituições, sofreu inúmeras mutações no decorrer dos tempos, ainda que, quando dissociada do modelo historicamente valorado, restasse condenada a desenvolver-se no âmbito da ilegalidade.

Conforme observa Luís Paulo Cotrim Guimarães:

“É de se concluir que a união concubinária nos moldes em que fora concebida no antigo direito romano, assim tratada no Digesto, era tida como uma possibilidade de constituição familiar a todos aqueles que se encontravam impedidos às justas núpcias, sendo estas destinadas apenas aos homens livres e honrados”. (GUIMARÃES, 2003, p.71)

Neste contexto, a expressão “concubinato”, utilizada na estigmatização das uniões não matrimonizalizadas, é utilizada desde os primórdios visando estabelecer uma diferenciação entre o matrimônio e as relações ilícitas, além de instigar o tratamento desigual entre os sexos, com o enaltecimento da figura masculina em prejuízo da mulher, rotulada como “concubina”:

“Remonta a milênios a noticia da existência de concubinas na vida dos homens, mesmo no tempo em que a poligamia era o regime natural dos casados, podendo-se afirmar que possuir apenas uma mulher representava comportamento vergonhoso, desonroso para o homem. Não bastasse a existência de várias mulheres, não eram poucos os homens que ainda mantinham suas concubinas” (NOGUEIRA apud FRIGINI, 1998, p. 73).

Nesta senda, cabe referir a conceituação de Sílvio Rodrigues, que considera a união estável como uma união “que implica numa presumida fidelidade da mulher ao homem” ( NOGUEIRA apud RODRIGUES, 1998, p. 93).

O matrimônio, tido como uma forma de manter os meios de produção, não privilegiava a tendência natural dos indivíduos de unir-se entre si com a finalidade de partilhar sentimentos, ideais e projetos de vida em comum, ou seja, vislumbrava-se somente o desenvolvimento da economia familiar, em prejuízo à realização pessoal dos membros da instituição familiar.

Ainda que a desconsideração de outras formas de se constituir família não detenha efetividade na inibição do afeto, tido como base de qualquer instituição familiar, na esfera jurídica, a omissão do legislador constitui uma afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana, evidenciando a eterna dificuldade do direito em adequar-se à incontrolável evolução social.

É no âmbito da responsabilidade civil que se encontram as primeiras referências à união não matrimonializada, ainda que amplamente preconceituosas.

Como uma das mais gritantes demonstrações de preconceito, tem-se o fato de que o concubinato (conforme se denominavam as uniões informais até o surgimento da CF de 88), mesmo que constituído entre pessoas desimpedidas de contrair matrimônio, era equiparado a “prestação de serviços sexuais”.

Nesta senda, nascia uma relação sui generis, originada por um ato ilícito, passível de ensejar uma indenização à mulher, como forma de remuneração pelos serviços sexuais prestados (sendo este entendimento posteriormente ampliado aos serviços domésticos realizados pela concubina, como lavadeira, cozinheira, costureira, etc), ou seja, nas palavras de Adahyl Dias, “loca-se o serviço doméstico, a direção e gerência do lar, e se a locadora se transforma em concubina do locatário, nem por isso se desvirtua a finalidade da locação…” (NOGUEIRA apud DIAS, 1998, p. 83).

Mais tarde, com o surgimento da Lei do Divórcio, há um grande progresso na adequação das normas positivas à realidade social, com a permissão da dissolução definitiva do vínculo matrimonial e a consequente possibilidade de se contrair novo casamento, que surge em resposta às relações extramatrimoniais mantidas entre os desquitados.

Assim ditava o art. 45 da referida Lei do Divórcio:

“Quando o casamento se seguir a uma comunhão de vida entre os nubentes, existente antes de 28 de junho de 1977, que haja perdurado por 10 (dez) anos consecutivos ou da qual tenha resultado filhos, o regime matrimonial de bens será estabelecido livremente, não se lhe aplicando o disposto no art. 258, parágrafo único, n. II, do Código Civil.”

Observa-se, também, um avanço no reconhecimento da união estável,  ainda que condicionado à existência de filhos advindos da união informal e a observância de lapsos temporais, que já eram exigidos desde 1973, perante a Lei Orgânica da Previdência Social- pioneira na tutela legislativa das uniões informais- que admitia a concessão de benefício previdenciário à companheira, desde que houvesse comprovação de que a união perdurava por mais de cinco anos.

Para Maria Berenice Dias:

“A união estável, porém, não dispõe de qualquer condicionante. Nasce do vínculo afetivo e se tem por constituída a partir do momento em que a relação se torna ostensiva, passando a ser reconhecida e aceita socialmente. Não há qualquer interferência estatal para sua formação, sendo inócuo tentar impor restrições ou impedimentos. Tanto é assim que as provas da existência da união estável são circunstanciais, dependem de testemunhas que saibam do relacionamento ou de documentos que tragam indícios de sua vigência.” (DIAS, s.d., p.1)

Desta forma, as tímidas evoluções foram marcadas por grandes movimentações tradicionalistas, influenciadas pela religião, ao passo que a igreja católica deteve grande influência na estagnação da sociedade.

De acordo Rolf Hanssen Madaleno, “fazia um eco em um país de forte convicção religiosa, o temor da proliferação de divórcios, tanto que o texto original do art. 38 da Lei do Divórcio autorizava um único pedido de divórcio”. (MADALENO, 2004, p.214)

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Por conseguinte, conforme se é possível visualizar nitidamente ainda nos dias de hoje, o direito restava dissociado do contexto social, destinado a sujeitos abstratos, a uma homogeneidade ilusória que não condiz com o pluralismo existente em nossa sociedade.

 Neste sentido, Guilherme Calmon Nogueira da Gama, traz o histórico exemplo dos imigrantes italianos que, embora constituam grande parcela de nossa sociedade, nos tempos remotos em que chegaram ao Brasil, restaram obrigados a conviver no âmbito da ilegalidade, dada a irrelevância jurídica de seus casamentos, porque realizados no exterior. (GAMA, 1998, p. 108)

Desta forma, assim como outros institutos jurídicos, a união estável, para ser reconhecida como entidade familiar, percorreu um árduo caminho, marcado pelo preconceito, mas que não fora o bastante para calar a vontade soberana do povo, legitimada com o surgimento da Carta Constitucional de 1988.

Conforme observa Sumaya Saadi Morhy Pereira:

“As grandes modificações, conquistadas por meio da jurisprudência e também introduzidas no ordenamento jurídico por leis dispersas, foram centralizadas e incorporadas definitivamente com a Constituição de 1988, que acrescentou, às transformações já consolidadas, aquela que pode ser considerada a mais profunda alteração no vértice do Direito de Família: a mudança de valores”. (PEREIRA, 2006, p.517)

A CF de 1988 traz uma nova nomenclatura às relações informais, substituindo a pejorativa expressão “concubinato” por “união estável”, reconhecendo-a como entidade familiar, digna da proteção estatal (art. 226, § 3º), ou seja, ao mesmo tempo em que o princípio da Dignidade da Pessoa Humana é alçado como Fundamento da República Federativa do Brasil, a família, instituição que tem a finalidade de servir para a promoção dos direitos fundamentais, passa a exigir uma inequívoca atuação do Estado, na concessão de proteção especial.

Neste sentido, bem salienta Adahyl Lourenço Dias:

“A mulher torna-se concubina, não porque seja imoral, mas porque é um ser humano, dotada dessas mesmas exigências morais e materiais que a vida tem aumentado, não podendo fugir ao drama da sua geração e do seu mundo. O direito não pode ser insensível a fatos dessa ordem, de extrema repercussão social, bastando considerar que o concubinato, muitas vezes, desvia o homem, a mulher e a criança dos caminhos malsãos, a que o abandono e a solidão os poderiam atrair, criando a família, a paz individual e social, a felicidade e a harmonia, mesmo fora das convenções.” (NOGUEIRA apud DIAS, 1998, p. 82).

Neste contexto, os direitos fundamentais assumem uma dupla faceta, exigindo do poder estatal não somente a observação do direito de liberdade de constituição familiar, mas também uma conduta positiva, de modo a propiciar às entidades familiares as devidas condições para que  possam acolher seus membros em um ambiente guarnecido pelo afeto, facultando-lhes o desenvolvimento de todas suas potencialidades.

Conforme evidencia Rolf Madaleno:

“O princípio da liberdade se faz muito presente no âmbito familiar, pela liberdade de escolha na constituição de uma unidade familiar, entre o casamento e a união estável, vedada a intervenção de pessoa pública ou privada (CC, art. 1.513); na livre decisão acerca do planejamento familiar (CC, art. 1.565, § 2º), só intervindo o Estado para propiciar recursos educacionais e informações científicas, na opção pelo regime matrimonial (CC, art. 1639), e sua alteração no curso do casamento (CC, art. 1.639, § 2º)”. (MADALENO, 2004, p.90)

Somente após seis anos da promulgação da Carta Magna de 1988, tem-se a regulamentação infraconstitucional da união estável, por meio da lei 8.971, de 29 de dezembro de 1994, de autoria do Senador Nelson Carneiro.

Nesta senda, a referida legislação limita-se ao tratamento da questão dos alimentos e legitimidade sucessória dos conviventes, mantendo, ainda, a necessidade de observância de prazo temporal para a configuração da união estável, configurando o relacionamento pelo seu tempo de duração e não pela solidez dos vínculos afetivos, restando a questão patrimonial no âmbito do esquecimento.

Assim, ainda que o advento da Constituição Federal tenha constituído um grande avanço, não somente em relação ao reconhecimento de outras formas de constituição familiar, mas também no que tocante a promoção da igualdade entre os cônjuges e filhos de qualquer natureza, a concessão de proteção especial às crianças e adolescentes, entre outras normas de caráter programático, os aspectos mais relevantes e controversos do reconhecimento da União Estável como entidade familiar restaram a cargo da apreciação dos tribunais, sendo que apenas em 1994 tem-se a completa regulamentação das uniões informais, incluindo a polêmica questão da partilha de bens, que será objeto de estudo a seguir.

3. OS EFEITOS PATRIMONIAIS DO RECONHECIMENTO DA UNIÃO ESTÁVEL COMO ENTIDADE FAMILIAR: DA PROVA DE ESFORÇO COMUM

Conforme vimos, as uniões informais, fruto da inconformidade da sociedade com a imposição de uma rigorosa padronização de relações, percorreram um árduo caminho na obtenção de seu reconhecimento, porém, não fora o suficiente para garantir a produção de seus efeitos jurídicos.

Desta feita, ante a impossibilidade do legislador de acompanhar as mudanças sociais, o judiciário viu-se obrigado a fornecer uma resposta às consequências patrimoniais advindas das relações não matrimonializadas, ainda que  relegando-as à esfera do direito obrigacional:

“Como primeira orientação protetiva, a Súmula 380 do Supremo Tribunal Federal, sob a égide do direito das obrigações, reconheceu, com fundamento na vedação do enriquecimento sem causa, que a união estável e duradoura de homem e mulher poderia configurar uma sociedade de fato, impondo a divisão dos bens adquiridos a título oneroso – fruto da colaboração mútua – na sua constância”. (GAMA, 2007, p.166)

Conforme se observa, a negação dos direitos patrimoniais da concubina, uma vez condicionados à comprovação de colaboração mútua, revela-se como um dos artifícios utilizados na incessante tentativa de desconsideração do principal componente que solidifica as relações familiares: o afeto.

Neste contexto, o “esforço comum” caracterizava-se por atividades de caráter lucrativo e estritamente econômicas, ou seja, a exteriorização do afeto, por meio do apoio moral e psicológico prestado pela concubina, de seu zelo com os filhos e com o lar não bastavam para assegurar-lhe seus direitos.

Por conseguinte, a verdadeira “função social” da família, instituição destinada a servir a promoção da dignidade da pessoa humana, era renegada à marginalidade jurídica, em uma histórica tendência à padronização humana:

“…vemo-nos membros de uma instituição, por educação ou pelas circunstâncias da vida. Ela não exige, pois, nenhuma vontade formal, nenhuma declaração explícita, e no entanto o fato de existir um regulamento submete os membros a um aparelho de constrangimento. Este tipo de estrutura existe na família, nas organizações políticas de conjunto, como a tribo, a comunidade, o Estado, ou ainda nas organizações religiosas, como uma igreja.” (WEBER apud GLANZ, 2005, p.90)

Com o surgimento da lei 9.278/96, estabeleceu-se à união estável o regime da comunhão parcial de bens, admitindo-se a presunção de esforço comum em relação ao patrimônio adquirido onerosamente, por qualquer um dos conviventes, na constância da relação.

Em verdade, a considerável evolução trazida pela referida lei consiste na permissão da estipulação de regime de bens diversos por meio de contrato de convivência, vez que, a referida presunção de esforço comum há muito já era admitida pela jurisprudência pátria, que assume importante papel na “criação do direito”, de acordo com Guilherme Calmon Nogueira:

“As soluções das lides instauradas no âmago das relações de tal sorte, somente foram encontradas devido à sensibilidade dos julgadores, prontos a reconhecerem a realidade fática existente na sociedade e, baseados em princípios jurídicos voltados a realização da justiça, prestaram efetivamente a jurisdição, não assumindo postura tradicional e retrógrada aos anseios sociais.” (NOGUEIRA, 1998, p. 78)

Nesse sentido, a jurisprudência atual, alterando sua posição no que diz respeito às uniões iniciadas e findas anteriormente ao surgimento da Carta Magna, passa a reconhecer a força normativa da Constituição, concedendo ao companheiro o direito à meação dos bens adquiridos durante a comunhão, ignorando algumas aspectos intertemporais.

O célebre posicionamento permite concluir que a supremacia dos princípios constitucionais admite a flexibilização de alguns institutos, em nome da proporcionalidade, como a vedação da retroatividade das leis no ordenamento jurídico brasileiro.

Neste contexto, evidencia Guilherme Calmon Nogueira da Gama:

“O tema referente ao direito intertemporal está intimamente relacionado com os princípios jurídicos que orientam o Direito. O princípio do progresso social propugna que o ordenamento jurídico necessita introduzir novas noções, estabelecendo novos preceitos, adequando-se à nova realidade, aos anseios mais próximos, observando-se a presunção de que a nova lei é melhor do que a antiga, mais aperfeiçoada, tentando responder à vontade social, no sentido de permitir a evolução jurídica. Por sua vez, o princípio da segurança e da estabilidade social impõe ao legislador o respeito às relações jurídicas constituídas sob a égide da lei antiga, passíveis de produção de seus efeitos reconhecidamente assegurados pela lei vigente à época.” (GAMA, apud PEREIRA, 1998, p. 435).

Refutando as alegações de que tal retroatividade constituiria uma afronta ao direito adquirido, acertadamente decidiram os tribunais que, “tratando-se de situação fática continuada, há subordinação ao influxo das leis novas, computando-se o período fluído perante a legislação anterior.” (TJRS, proc. 70000831446, 2000).

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Consequentemente, com a admissão da partilha de bens de forma igualitária entre os conviventes, através do reconhecimento dos frutos do esforço comum, surge a veemente necessidade de obtenção de outorga para alienação destes bens, como forma de proteção do patrimônio amealhado na constância da união, objetivando conceder ao instituto da união estável igualdade de condições em relação ao casamento, conforme veremos a seguir.

4. UNIÃO ESTÁVEL X CASAMENTO: INEXIGIBILIDADE DE OUTORGA DO CONVIVENTE E INSEGURANÇA JURÍDICA

Conforme preceitua Sumaya Saadi Morhy Pereira,

“O excesso de leis não tem demonstrado o aumento da certeza e segurança jurídicas, ao contrário, revela o esvaziamento da própria efetividade da legislação, da mesma forma que o excesso de remédios pode imunizar o paciente e tornar a terapia inócua.” (PEREIRA, 2006, pp. 511-12)

Ao observarmos os antecedentes históricos do reconhecimento da pluralidade como valor jurídico, podemos concluir que, não obstante o clamor social por uma readequação do direito, tornando-o condizente com a realidade fática, as transformações tem ocorrido de forma lenta, por meio de uma simbiose entre o moderno e o arcaico, fenômeno amplamente evidenciado pela sociologia.

Desta forma, ao mesmo tempo em que o surgimento da Constituição Federal traz a supremacia dos princípios e valores à ordem jurídica, a lei infraconstitucional parece sucumbir às ideologias preconceituosas que se prestam a estabelecer distinções entre as famílias da união estável e do casamento, conforme observa Maria Cláudia Crespo Brauner:

“Infelizmente, no novo Código Civil, a referência ao concubinato serviu exclusivamente para restringir os direitos dos companheiros. É lamentável impor aos companheiros a condição de preencher os requisitos de uma “habilitação à união estável”, nos moldes das condições impostas àqueles que querem casar, para terem seus direitos reconhecidos. Aqui reside o elemento moralizador, que desconhece situações comuns em nossa sociedade, de pessoas que vivem relações afetivas sem preencher as condições para o casamento, e, em alguns casos, vivendo duas relações estáveis concomitantemente. Como eleger uma das relações como merecedora de proteção e, simplesmente, desconsiderar a existência de efeitos a outra?” (BRAUNER, 2004, p.267)

Apenas a título de exemplificação, entre estas e outras disposições preconceituosas, travestidas de moralidade, encontra-se a facilitação da conversão da união estável em casamento – que se traduz em mais uma tentativa de padronização das relações humanas – a exclusão do companheiro da ordem de vocação hereditária no direito sucessório e a controversa inexigibilidade de outorga do convivente para alienação dos bens comuns, sendo que esta última, revela a desídia do legislador na proteção do patrimônio adquirido na constância da união, gerando, consequentemente, uma inevitável insegurança jurídica, que afeta a entidade familiar.

Neste sentido preceitua Rolf Madaleno:

“Curiosa desigualdade, pois a outorga no casamento é condição de validade do negócio jurídico, e na união estável não há similar cautela, deslocando-se a discussão para a área da indenização por perdas e danos, capaz de gerar com sua procedência o ressarcimento em dinheiro, ou a compensação com outro bem, só sendo cogitada da anulação da venda se restar demonstrada a má-fé do terceiro comprador, por haver atuado no cenário fraudulento como testa de ferro do convivente vendedor. No casamento, o negócio sequer se consolida sem o consentimento do cônjuge, enquanto na união estável a mera omissão da existência da convivência pelo vendedor, e desconhecendo o comprador a união estável, convalida a venda em detrimento do parceiro ludibriado pela ligeireza de seu convivente em se desfazer do imóvel”. (MADALENO, 2004, p.809)

A matéria carece de normatização e são parcos os enfrentamentos jurisprudenciais.

Ainda que parte da doutrina posicione-se no sentido da impossibilidade de exigência da anuência do convivente, não se ousa desconhecer a insegurança jurídica gerada pela problemática em questão.

Neste sentido, Francisco José Cahali sugere “ao menos a ciência do convivente do proprietário no ato de disposição, admitida até na forma de assinatura como testemunha do negócio jurídico realizado”. (CAHALI, 2002, p.184)

Em recente pesquisa efetuada pelo Censo (outubro de 2012), resta evidenciado um novo perfil da família brasileira, com um considerável crescimento das uniões informais, casamentos inter-raciais, separações e divórcios.

De acordo com o IBGE, “O casamento informal era mais concentrado na região Norte, e entre casais de baixa renda. Agora, está mais disseminado. É comum a decisão de passar por uma experiência antes de contrair matrimônio…” (ZERO HORA, 2012, p.40)

Neste contexto, tem-se que:

“… a família, por mais livre que seja, e que tenha existência natural, reclama o regramento do complexo de direitos e deveres, que dela nasce, para que, ao lado dos sentimentos próprios as união fática, exista um clima de responsabilidade, indispensável à segurança dos conviventes e de sua prole”. (OLIVEIRA, p.74. 1995)

Felizmente, o afeto vem logrando reconhecimento como valor jurídico, o que exige um reexame das inúmeras questões controversas, à luz dos pressupostos da Constituição Federal de 1988, conforme tem sido realizado por nossos tribunais.

Neste égide, recentes decisões jurisprudenciais, prosseguem na legitimação da presunção de esforço comum,  dispondo que

“…afirmada a união estável, e não existindo pacto escrito em sentido diverso, incidem as regras do regime da comunhão parcial de bens, havendo presunção de que os bens adquiridos na constância da relação e a título oneroso são considerados frutos do trabalho e da colaboração comum. (TJRS, proc. 70049043920).

Por esta razão, ainda que a União Estável dispense qualquer tipo de contrato para seu reconhecimento jurídico, por tratar-se de união de fato, este revela imprescindível à garantia dos direitos dos conviventes em relação ao patrimônio comum, pois, uma vez existente, o registro imobiliário deste contrato de convivência atribui eficácia erga omnes à pactuação estabelecida, conferindo- por meio da publicização da relação- a tão almejada segurança jurídica, não somente aos companheiros, estendendo-se aos terceiros contratantes.

5) O CONTRATO DE CONVIVÊNCIA E NECESSIDADE DE REGISTRO IMOBILIÁRIO:

Historicamente, a valorização do casamento como a única forma legítima de entidade familiar não constituiu um óbice para que as famílias informais – condicionadas a viver à margem do preconceito – buscassem instrumentos hábeis à legitimação de seus direitos: os contratos de convivência.

Em resposta à inconformidade social, surgem inúmeras restrições aos instrumentos que buscavam a legitimação do concubinato, como a pioneira “orientação expressa do Tribunal de Justiça de São Paulo”, que merece transcrição pelo caráter amplamente discriminatório:

“1º) Ficam todos os Tabeliães da Comarca, quer os da sede, quer os dos distritos, expressamente proibidos de lavrarem em suas notas os chamados “casamentos por contrato” em que um homem e uma mulher impedidos ou não de contraírem casamento se obriguem a viver juntos, prestando serviços recíprocos e colocando em comunhão os seus bens, quer esses contratos revistam a forma de sociedade universal (art.1. 368 do Código Civil), quer a de locação de serviços sob desobediência e conjuntamente ao escrevente e ao Tabelião que lavrar e subscrever essas escrituras. 2º) Ficam, igualmente, expressamente proibidos os oficiais do Registro de Títulos e documentos da Comarca de transcreverem em seus livros contratos dessa mesma natureza por instrumento particular sob as mesmas penalidades do item 1º. 3º) Este juízo e seus auxiliares nas correções periódicas que procederão nos cartórios examinarão uma a uma as escrituras lavradas, a fim de verificarem se foi dado integral cumprimento às determinações contidas neste provimento. Cumpra-se, dando ampla divulgação, inclusive pela imprensa, por se tratar de ordem que visa o interesse geral”. (CAHALI, 2002, p.12).

Com o advento da Constituição Federal de 1988, diploma que concede proteção às relações informais, reconhecendo-as como um fato social e não como uma nova categoria de casamento, não mais subsiste óbice à pactuação entre os conviventes, estabelecida visando garantir seus direitos e deveres.

De acordo com Luís Paulo Cotrim Guimarães, a união estável “não pode ficar ao sabor de casuísmos, sujeita a produzir efeitos sempre a posteriori, diante de fatos consumados, sem um balizamento legal e dependendo das convicções, da formação, da ideologia de cada juiz”. (COTRIM apud VELOSO, p.87)

A princípio, parece adequada a proposta de alguns doutrinadores de que se crie perante os negociantes uma obrigação de mencionar seu estado civil ou eventual união estável em seus contratos, sob pena de responsabilização penal pelo cometimento de falsas declarações, (CAHALI, 2002, p.145), porém, em uma segunda análise, podemos inferir que os casos de omissão da existência de uma relação informal constituiriam um grande problema ao judiciário, vez que, como a união estável resulta de um fato, tanto seu início como seu fim concedem amplo espaço à subjetividade; por esta razão, o contrato de convivência se mostra importante, ainda que não registrado, ao menos para efeito de prova.

Desta forma, uma vez admitido o direito à livre convivência e sua pactuação, não se pode negar os direitos e deveres provenientes destas relações, ainda que, diante da carência de normatização (como a ausência de disposição na Lei de Registros Públicos acerca da possibilidade de registro do contrato de convivência), se revele necessária a aplicação analógica das disposições referentes ao matrimônio.

Guilherme Calmon Nogueira da Gama conclui que a referida a lacuna pode ser preenchida valendo-se da aplicação analógica dos dispositivos da lei 6.015.73 (Lei de Registros Públicos) ao contrato de convivência, admitindo-o como documento passível de registro no Cartório de Registro de Imóveis. (GAMA, 1998, p. 298).

Neste sentido, merece referência o art. 244 da Lei de Registros Públicos, que dispõe:

“As escrituras antenupciais serão registradas no livro nº 3 do cartório do domicílio conjugal, sem prejuízo de sua averbação obrigatória no lugar da situação dos imóveis de propriedade do casal, ou dos que forem sendo adquiridos e sujeitos a regime de bens diverso do comum, com a declaração das respectivas cláusulas, para ciência de terceiros”

 Ainda, importante evidenciar que, com a tendente “constitucionalização do direito privado”, os direitos fundamentais passam a deter inegável relevância nas relações entre os particulares, admitindo uma interpretação extensiva dos dispositivos legais, na incessante busca da efetividade dos direitos fundamentais, conforme aduz Tércio Sampaio Ferraz Jr:

“Na analogia, o juízo empírico de semelhança e o juízo de valor sobre a maior importância das coincidências em face das diferenças introduzem na norma um elemento de flexibilidade conotativa e denotativa, que permite ao intérprete o exercício de seu poder de violência simbólica. (FERRAZ JUNIOR, 2008, p.279-280).

Imperioso salientar que, mesmo que se reconheça a alienação de um bem comum sem outorga do convivente como uma circunstância que afeta a validade do negócio jurídico, a indenização por inoponibilidade, ainda que inapta à concessão de tratamento isonômico entre a união estável e o instituto do matrimônio, revela-se uma alternativa eficaz na garantia dos direitos do convivente.

Conforme dispõe Rolf Madaleno:

“Enquanto o ato de disposição efetuado pelo cônjuge administrador é válido e eficaz entre as partes contratantes, é ineficaz para o cônjuge que deixou de prestar o seu consentimento. Se for considerado anulável, valerá enquanto a sentença não desfizer o ato, parecendo mais prático considerar inoponível a alienação em relação ao meeiro, e colocar o terceiro a salvo da ameaça de anulação da venda, mas permitir resguardar a porção do prejudicado pela compensação com outros bens, sem ser necessário reintegrar à massa o imóvel alienado. A inoponibilidade só existe em relação ao cônjuge ou convivente cujo assentimento não foi colhido, com a vantagem adicional de ser deduzida no juízo da partilha, sem precisar mover morosa ação de anulação, a qual nem sempre resultará favorável, especialmente quando presente a boa-fé do terceiro adquirente.”

E complementa:

“Em realidade, o bem vendido retorna ficticiamente à massa partilhável, como se a disposição não tivesse acontecido e, entre o cônjuge vendedor e o terceiro comprador, o ato de alienação produz todos os seus efeitos, como se não existisse a inoponibilidade, apenas desestimando o negócio fraudulento e sem perder tempo com a sua anulação.” (MADALENO, 2004, p.811)

Por derradeiro, tem-se o registro do contrato de convivência atua preventivamente, ante a problemática que se instaura quando da alienação de bens comuns no âmbito da união estável, face à incerteza quanto aos meios hábeis para que o companheiro lesado possa garantir seus direitos patrimoniais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O fenômeno das uniões informais, como fato-social, remonta à antiguidade, porém, o reconhecimento desta espécie de família e consequentemente, de seus efeitos jurídicos, constitui uma conquista recente.

Hodiernamente, ainda que o instituto da união estável seja comparado ao casamento, verifica-se que esta comparação não se faz em igualdade de condições, vez que, não somente na esfera patrimonial, mas no âmbito dos direitos sucessórios, residem inúmeras controvérsias quanto aos efeitos jurídicos da união não matrimonializada.

Desta forma, em meio a concepções preconceituosas que renegavam os efeitos das uniões informais ao âmbito do direito obrigacional, tem-se que o reconhecimento da presunção de esforço comum na aquisição do patrimônio adquirido na constância da união estável, embora consista um grande avanço- revelando a imperiosa função que exercem os tribunais no reconhecimento de novos direitos, valendo-se da hermenêutica principiológica- carece de efetividade, dada a ausência de regulamentação acerca da outorga do convivente para alienação dos bens amelhados por ambos os companheiros.

Nesta sentido, resta imperiosa a adoção de uma interpretação analógica, equiparando-se o contrato de união estável- documento hábil à regulamentação de regime de bens diverso da comunhão parcial entre os conviventes, bem como à comprovação da referida união estável- ao pacto nupcial,  possibilitando seu registro no Cartório de Registro de Imóveis competente, dada a realidade que, ainda que a união estável constitua um fato social, esta produz efeitos jurídicos, e negá-los constitui uma afronta não somente aos direitos dos conviventes, mas de terceiros que venham a efetuar negócios jurídicos com aquele que opta por viver em uma união estável que, reconhecida como entidade familiar e digna da proteção estatal, é merecedora da mais ampla segurança jurídica.

 

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Informações Sobre o Autor

Ana Paula Pizarro Tacques

Advogada, Aluna do curso de especialização em Direito de Família e Sucessões da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul –PUCRS


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