Por ser a pena a sanção mais violenta que o Estado pode aplicar, esta deve ser a menos aplicada. Só haverá a aplicação da pena quando houver a violação de bens jurídicos considerados mais importantes e quando houver comprovada culpabilidade.
Quando ocorre o fato criminoso, o comando que a norma penal dá para proteger os referidos de bens jurídicos é violado, portanto a pena marginaliza o significado do crime. É essa marginalização executada tem lugar como violência.
É crucial assinalar a influência do Direito Canônico diante do pecado, aplicava-se a penitência, era o pecador recolhido numa cela e devia confessar. Era esse o mandamento da Igreja Católica e ainda vigente.
Ao termo “pena” se atribui vários significados e origens etimológicas. Para alguns deriva do latim poena que significa sofrimento, e outros entendem que deriva do grego ponos que significa dor, e ainda há que atribua ao sânscrito punya que significa purificação (de um mal).
De toda forma esta importa em um mal e implica na perda de bens jurídicos do condenado. Para Soler a pena é traduzida em mal porque representa a diminuição de bem jurídico e ao castigar o Direito retira do indivíduo o que lhe é valioso. Francesco Carnelutti[1] forneceu boa definição in verbis: “a pena do mesmo modo que o delito, é um mal, ou em termos econômicos, um dano.”
O conceito de pena baseia-se firmemente no princípio da legalidade[2] e os fins da pena[3] é objeto de estudo da Filosofia do Direito principalmente ao analisar o porquê o Direito adota a pena como sanção distinta das demais.
Os fundamentos da pena não se confundem com as finalidades da pena posto que se relacionem com os motivos que a justificam tanto a existência como a imposição de uma pena. Apontam-se seus principais fundamentos da pena: retribuição, reparação, denúncia, incapacitação, reabilitação e dissuasão.
Pena é espécie de sanção penal consistente na privação ou restrição de determinados bens jurídicos do condenado (liberdade, vida, patrimônio), aplicada pelo Estado em decorrência do cometimento de uma infração penal, com as finalidades de castigar seu responsável, readaptá-lo ao convívio em comunidade e, mediante a intimação endereçada à sociedade, evitar a prática de novos crimes ou contravenções penais.
O Direito Penal que se tem hoje, como sói, é filho de seu tempo, ou seja, do século XIX, da modernidade penal. Onde se identifica a superação do medievo, o indivíduo ganhou status de cidadão e, por princípio, o Direito Penal é a última ratio da sua proteção, justo porque encampa o bastião mais longínquo de penetração, pelo Estado, na esfera individual. Ortega y Gasset[4] cogitou da substituição do príncipe pelo princípio, como devem recordar todos.
Pelo menos aparentemente, o Direito Penal hoje ainda em construção e recebeu modernidade e o lastro da Filosofia da consciência após o giro linguístico e enfrenta pelo menos três problemas que desafiam a inteligência e a democracia.
O primeiro problema é o fato do Direito Penal estar destinado à tutela de bens jurídicos. Onde todos são iguais perante a lei e, portanto, protegidos.
O direito penal positivo pela crença na completude da relação sujeito-objeto objetivava-se excessivamente ao ponto que simplesmente acreditar que a previsão legal é capaz de definir a aplicação da lei penal.
A reserva da lei, tipicidade e taxatividade como princípios, garantiriam, de modo fidedigno, o cidadão, um sujeito de direitos e colocado debaixo pela força de subjectionis, tudo com o escopo de garantir a proteção prometida.
Ainda há a desculpa de que os tempos atuais exigem posições diferenciadas principalmente no combate à criminalidade e, resultado na renegação da taxatividade[5], lançando-se mão de conceitos indeterminados, vagos, opacos e que protegem interesses e não propriamente bens jurídicos.
O segundo problema é sobre a culpabilidade como juízo de censura e, um ultima ratio marcada pelo livre arbítrio.
Surgem complicadores como a descoberta de Freud: o inconsciente. Aceite-se ou não a sobredeterminação que este produz sobre o agir do agente, a descoberta do inconsciente é matéria para longas investigações, não podendo mais ser negado, e nem se permite “fazer de conta” de não exista.
O terceiro busilis é perceber que o Direito Penal não é autoaplicável e, portanto, o preceito secundário nele tipificado só encontra aplicação através do processo ou, como recomenda que fosse a Constituição de República de 1988 (art. 5º, LIV) do devido processo legal.
Não há pena sem processo, assim como não há sanção sem transgressão. E não há pena sem juiz o que resulta em princípios lógicos que situam a relação mútua de complementariedade funcional entre o Direito Penal e o Direito Processual Penal. Este existe, sobretudo, para poder ter vida aquele, o qual, por sua vez só se realiza por meio deste.
Ao Direito Penal incumbe a tarefa de proteger os bens vitais fundamentais do indivíduo e da comunidade. Esses bens são elevados pela proteção das normas do Direito Penal, à categoria de bens jurídicos.
Welzel destacou que o conteúdo do delito varia, um objeto psíquico-físico (a vida, a integridade corporal) um objeto espiritual-ideal (a honra), uma situação real (a paz do domicílio) uma relação social (o matrimônio, o parentesco) ou uma relação jurídica (a propriedade).
Ao precisar o objeto do Direito punitivo coloca-se o alicerce que permite justificar racionalmente o poder de punir[6] e, em consequência dessa justificação, o Direito Penal tem condições de se legitimar.
O objeto de Direito Penal é, pois, a tutela de bens jurídicos. Mas não ser realizada de qualquer modo e a qualquer preço. Somente poderá ser legítima se forem cumpridos os requisitos impostos pelo Estado de Direito (ou seja, legalidade, culpabilidade, intervenção mínima) E dele a pena guarda proporcionalidade se o bem jurídico tutelado tiver guarida constitucional, quer sejam de natureza individual ou supraindividual.
Posto que o Direito Penal encerre em si o uso estatal da violência, e sua compreensão somente pode ser efetuada através da união de seus elementos técnico-dogmáticos com o seu significado político.
Com efeito, a face política do Direito Penal aflora tão fortemente que ele é apontado como o mais sensível termômetro da feição política do próprio Estado, isto é, se a violência da pena for aplicada de forma ilimitada, sem resguardar a dignidade da pessoa humana, estaremos diante de um Estado arbitrário; de outro lado, se a violência da pena for aplicada dentro dos parâmetros de proporcionalidade de modo que respeite a dignidade da pessoa humana, estar-se-á diante de um Estado Democrático.
Portanto, conclui-se que o Direito Penal possui duplo viés: a aplicação e interpretação constitucional. No primeiro viés, o da aplicação constitucional, condiciona-se o objeto do Direito Penal; já no segundo exerce-se a interpretação constitucional consagrada como método.
Podemos dividir o Direito Penal em dois grandes períodos o do terror e o período liberal. O primeiro período onde não existiu a preocupação com a humanização da repressão penal, onde há o emprego de violência desmedida e ilimitada, não oferecendo nenhuma garantia ao ser humano em face do direito de punir do Estado.
O segundo período, o período liberal, inaugura a fase científica do Direito Penal, e começou com a formulação do princípio da legalidade e, portanto, começou tardiamente.
Esse período é pós-iluminista e põe como centro a pessoa humana e se preocupa com o fundamento e a legitimidade do direito com a pena[7].
Zaffaroni[8] destacou que a história do direito penal em sua fase primitiva nos mostra um dos mais sangrentos períodos e que custou muitas vidas e propôs os mais cruéis castigos. Tais punições eram vinculadas as especialíssimas superstições e odiosas práticas. Somente com a humanização o Direito Penal experimentou evolução positiva.
O que caracteriza a sociedade primitiva é a hipertrofia da norma penal. As normas, por mais duras e desagradáveis que sejam eram normalmente obedecidas pelos integrantes da sociedade primitiva.
Por isso que se diz que “o selvagem se converteu não só em um modelo de cidadão cumpridor da lei, mas também se tornou um axioma que, ao submeter-se a todas as regras e limitações de sua tribo”, o selvagem não faz mais do que seguir a limitação natural de seus próprios impulsos.
O selvagem sente uma profunda reverência pela tradição e aos costumes, assim mostrava uma submissão automática aos seus mandatos. Os obedece como escravo, ou seja, cegamente e espontaneamente, devido a sua inércia mental, combinada com o medo de opinião pública ou de um castigo sobrenatural.
Na sociedade primitiva, o Direito Penal tinha um caráter sacerdotal e teocrático. A confusão entre Direito Penal e religião é própria da cultura da época, na qual todos os valores, quer sejam os políticos, quer os religiosos, bem como todas as normas da ética e da honrabilidade popular formavam um conjunto entrelaçado.
Assim, a aplicação da pena era feita pelos sacerdotes, visto que o crime era sempre a violação das normas sagradas. Deve-se salientar que o sacerdote gozava de ampla competência penal, porque funcionava como intermediário entre os homens e a divindade; ao aplicar a pena o sacerdote evitaria a ira desta, elidindo o seu castigo sobre o grupo humano.
A pena privativa de liberdade era ligada à violação de tabu. A referida palavra de origem polinésia, significava a um só tempo o sagrado e o proibido. Os tabus, enquanto proibições de caráter religioso, correspondiam às leis dos deuses que não deveriam ser infringidas para não retirar o poder protetor da divindade.
A sociedade primitiva acreditava que a violação do tabu seria punida neste mundo, e não no mundo após a morte. Quando um tabu era violado a ira da divindade poderia recair sobre a tribo, causando malefícios sobre todos os seus membros.
A punição tinha a função de afastar a ira da divindade e garantir a continuidade do bem-estar dos habitantes da tribo que se abstinham de violar o tabu.
Todos os ritos que acompanhavam a execução de uma condenação à morte na sociedade primitiva pode-se encontrar um traço evidente da transformação de um sacrifício humano em uma punição jurídica: os deuses ameaçadores, dos céus, castigarão não somente aquele que cometeu o crime, mas toda a tribo, tornando-se um meio de sua defesa em face do perigo comum.
O criminoso, portanto, por ser um inimigo dos deuses da tribo, tornava-se ipso facto, um inimigo de toda tribo. A pena tinha caráter sacramental sendo um sacrífico expiatório oferecido à divindade.
Radbruch registrou que, entre os germanos, uma forma comum de apenar, era o sepultamento com vida nos pântanos, aplicado como pena aos homens que tivessem atitudes afeminados ou praticassem atos homossexuais, ou ainda, às mulheres que fossem adúlteras ou licenciosas; tais suplícios eram sacrifícios expiatórios oferecidos às divindades subterrâneas.
A morte por enforcamento, de outro lado, era um sacrifício ao deus Wotan[9], o deus das tempestades enquanto a profanação de um santuário ou roubo de seus tesouros era punido com uma morte expiatória peculiar: o criminoso era levado para a praia, durante o período da maré alta, tinha suas orelhas rasgadas, depois era castrado e, em seguido, sacrificado em expiação às divindades do templo profanado ou roubado.
Outro instituto peculiar do Direito Penal primitivo é o sacrifício da roda. Essa pena representava um sacrifício à divindade solar sendo comum, depois do referido sacrifício expor a roda para alto, inclusive com o corpo, em oferta aos deuses.
Em estágio superior e posterior da evolução alguns instrumentos eram utilizados para superar os membros do corpo como, por exemplo, a marreta e o porrete.
Na sociedade primitiva quando alguém violava uma norma penal havia um grande clamor da tribo, que reagia energicamente. A pena primitiva, era realmente uma pena social não se identificando com uma vingança individual.
O Direito Penal da sociedade primitiva não está vinculado à razão, mas está vinculado à superstição e à teologia da época.
O Direito Penal em Roma não conhecia o princípio da legalidade e o direito romano durou aproximadamente dez séculos, e sagrou-se uma evolução milenar.
Na melhor dicção de Celso: “o Direito é a arte do bem e do equitativo”. O pretor, em cada caso, deveria construir a decisão boa que realizasse a justiça naquela situação concreta. O Direito romano era essencialmente consuetudinário.
A lei existia somente como guia, como esquema de interpretação que o prudente arbítrio de julgador poderia afastar, tendo sempre a decisão boa e justa.
Foi no declínio do Direito Romano que surgiu a famosa compilação do imperador Justiniano, posteriormente Corpus Juris Civilis[10] que tinha como parte importante o Digesto (que era a reunião da opinião dos doutrinadores).
No Direito Penal romano a lei não poderia ser obstáculo para a construção da boa e justa no caso concreto. Mesmo existindo as leis penais em Roma não ficou abolido de maneira alguma o arbítrio do magistrado. Ainda porque poderia este castigar fatos não definidos como delitos pela lei, sem atender a prévio procedimento determinado de antemão pela mesma, fixando a medida da pena ao seu arbítrio.
A maioria dos institutos penais foi construída pela contribuições pretorianas. A formulação dos conceitos do dolo e culpa, por exemplo, surgem de através da atividade interpretativa dos julgadores, não das leis.
O Direito Penal na Idade Média também muito se distanciou do princípio da legalidade. Na Idade Média, o julgador gozava de ampla competência penal, tanto podendo incriminar condutas, sendo a existência de lei escrita expressa quanto podendo aplicar penas não cominadas na legislação.
Ao julgador era permitido utilizar-se da tortura durante o curso processual. E a tortura utilizada não era considerada pena, posto que um instituto processual destinado à obtenção de confissões e da verdade em torno dos fatos relevantes no processo. Mas a tortura era tão bárbara que antecipava a sentença condenatória mesmo para os inocentes.
Dentre as modalidades de torturas existentes no período medieval se destacaram as seguintes: 1) o trato da corda: consistiria em amarrar as mãos da pessoa atrás das costas; o que sobrava da corda era amarrado a uma roldana presa no teto do local da tortura. Ao sinal convencionado, o torturador puxava a corda e o torturado ficava suspenso no ar; 2) suplício do fogo: untava-se a planta dos pés do acusado com gordura e acendia-se fogo. Frequentemente o acusado perdia os pés; 3) língua caipira: amarrava-se o torturado em uma cadeia, enquanto o torturador borrifava seus pés com água salgada, após, trazia-se para junto do torturado uma cabra, que primeira lambia o sal, depois roía a pela, a carne e até os ossos do torturado.
É relevante ainda salientar o papel da Inquisição, instituição que marcou a repressão penal da Idade Média. Registrou a história que a Inquisição[11] se utilizou o Direito Penal para acomodar certas situações desagradáveis à manutenção da ordem pública, vinculando os suplícios e as penas oriundas do poder penal da época ao afastamento de fenômenos naturais, que se apresentavam como produto da “ira de Deus”.
Um exemplo concreto pode bem ilustrar o referido papel: depois do terremoto que devastou cerca de três quartos da cidade de Lisboa[12], fora decidido pela Universidade de Coimbra que o espetáculo de queima de pessoas vivas seria um eficaz instrumento para se evitar novos terremotos.
A Inquisição vestiu os condenados com vestes penitenciais e os levava em procissão para a praça pública, os fazia ouvir sermão a entregaram-nos para serem queimados vivos.
Convém mencionar que no mesmo dia de execução das penas capitais a terra voltou a tremer, frustrando as expectativas dos inquisidores em vincular as penas rituais transcendentes, hábeis para aplacar a ira divina.
O Direito Penal medieval nunca se preocupou coma dignidade humana do réu criminal e se registrou, por exemplo, a extração de glóbulos oculares, a castração, a extirpação das orelhas, a amputação das mãos e dos pés[13], o corte do nariz e a marcação da face com ferro em brasa.
Durante a Alta Idade Média com o esvaziamento das cidades, a população concentrou-se nos feudos e o Direito Romano deixou de ser aplicado. A história jurídica registrou poucos dados deste período, tendo o Direito Penal[14] sido principalmente costumeiro assim como os demais ramos jurídicos. Os únicos registros foram os foros e as façanhas, as primeiras normas eram de auto-organização; as segundas eram sentenças memoráveis invocadas para solucionar casos semelhantes aos dela.
Nesse panorama também não surge para a efusão do princípio da legalidade, e o Direito Penal costumeiro era um eficaz instrumento do controle do povo que vivia sob o jugo feudal.
Com a queda do Império Romano e o surgimento do feudalismo houve o esfacelamento e fragmentação do Direito Penal, podendo-se falar em um Direito Penal para cada feudo.
Assim diante do esfacelamento do Direito Penal passou, segundo o magistério de Ricardo de Brito Freitas, “a ser aplicado nos delitos comuns pelo próprio senhor feudal através de critérios largamente arbitrários que redundavam com frequência na aplicação de penas cruéis”.
Na baixa Idade Média, voltou o Direito a evoluir, as escolas jurídicas dos glosadores e dos comentaristas que surgiram na Itália, a primeira a reestudar o direito romano fundamentalmente pelo método chamado trivium que era composto de gramática, retórica e dialética; a segunda, criando o Direito Comum, produto da união do Direito Romano e o Direito Canônico.
É durante baixa Idade Média que foi promulgada a Magna Carta, assinada pelo rei João sem Terra, em 1215. Essa carta estabelecia em seu art. 3º, que nenhum homem livre poderia ser condenado senão em virtude de um processo legal efetuado por seus pares, segundo a lei da terra.
Eis então a origem do princípio da legalidade e a Magna Carta é um instrumento limitador do poder penal do rei. Assim, a Magna Carta foi voltada para common law, sendo portanto, incompatível com o da maioria dos países, seu conteúdo limitativo do poder estatal é o mesmo do princípio da legalidade.
É merecedora de menção a obra Tiberius Decianus do século XVI a quem se deve a divisão do Direito Penal em duas partes: a geral e a especial.
Já na obra Tractatus Criminalis, o autor elaborou uma obra abertamente teórica, especialmente porque contém uma parte geral onde se desenvolveu o conceito de crime, explicitando princípios, causas, fontes, natureza, elementos acidentais, e uma parte especial, a qual foi formulada segundo a sistematização racional dos crimes com base do objeto violado pela ação criminosa.
A frase de Deciano “nullum potest cognosci delictum, nisi praecedat lex, quae ilud prohibeat et puniat” produz o efeito de uma antecipação da regra nullum crime sine lege.
Os sofrimentos causados por um Direito Penal sem a limitação do princípio da legalidade foram muitos. Os monarcas utilizavam-se do direito Penal com o fim de asseverar a continuidade do absolutismo, pois, quanto maior fosse o terror penal, maior seria o temor de rebelar-se contra o regime.
Assim segundo o pensamento da época, o crime deveria ser punido da forma mais brutal possível, porque este representava uma ofensa à própria pessoa do soberano.
Parafraseando Michel Foucault[15], enxergava-se no carrasco executor da pena uma engrenagem entre o príncipe e o povo, posto que vingasse a pessoa do soberano aplicando o suplício em quem perpetrou a ação criminosa.
É na Idade Moderna que tivemos o nascimento propriamente do princípio da legalidade, em 1764, através do Marquês de Beccaria, Cesare Bonesana[16], na obra intitulada “Dos Delitos e das Penas”.
Beccaria[17] enxergou no princípio da separação dos poderes outro requisito para se evitar o terror penal, devendo-se distinguir o legislador do magistrado, a quem cabe decidir se a lei foi ou não violada.
O legislador[18] representa toda a sociedade unida pelo contrato social e tem atribuição de fazer as leis. Enquanto que o magistrado não pode ser mais severo que a lei, pois desta forma seria injusto, porque infligiria castigo superior ao que estava determinado.
A tarefa do magistrado era simplesmente elaborar um silogismo perfeito sendo a lei, a premissa maior, e a ação em julgamento a premissa menor, e a consequência seria a pena ou a liberdade.
Outra ideia criada a partir da legalidade é a utilidade. Segundo Beccaria, as vantagens decorrentes da união dos homens em sociedade devem ser repartidas igualmente entre todos.
As leis penais não devem ser cruéis, porque essa crueldade é inútil, por isso esta é dita, odiosa e revoltante. Assim é por conta do princípio de utilidade que as penas que ultrapassem a necessidade de conservar o depósito de salvação pública são injustas porque sua natureza; é tanto mais justas serão quanto mais sagrada e inviolável for a segurança que o soberano conserve aos súditos.
O utilitarismo sintetizado por Cezar Roberto Bittencourt considerando a pena um simples meio de atuar no jogo de motivos sensíveis que influenciam, a orientação da conduta humana.
Procuravam um exemplo para o futuro, mas não vingança para o passado. O primado da lei, isto é, o princípio da legalidade, é o meio eficaz para em primeiro lugar, possibilitar que as pessoas da mais alta posição social sejam punidas da mesma maneira que as pessoas da mais baixa classe; em segundo lugar, para que houvesse proporcionalidade entre o crime e a pena; e em terceiro lugar, para que houvesse a irretroatividade da norma penal e a proibição da analogia.
O princípio da legalidade foi acolhido pela Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 conforme explicita o seu artigo oitavo[19].
Contudo, a sistematização dogmática deste princípio não se deu com este documento internacional só se perfez finalmente em 1801 através da obra de Feuerbach. Para este doutrinador toda pena dentro do Estado é a consequência de uma lesão jurídica, fundamentada na preservação do Direito e de uma lei que comine um mal sensível.
Daí decorrem os seguintes princípios: toda imposição de pena pressupõe a lei penal; segundo, a imposição de uma pena é condicionada à existência de uma ação incriminada; terceiro, o mal da pena, tida como consequência necessária, será vinculada a existência de uma lesão jurídica determinada. Posteriormente condensou Feuerbach[20] a fórmula nullum crimen nulla poena sine lege. Desta forma, ganha formulação científica e guarda relações com a finalidade da pena e com o próprio Direito Penal.
Para o doutrinador, o princípio da legalidade e a lei exercem papel central do direito Penal, o que possibilita a adequada concreção de seus fins. A essência do princípio da legalidade deve ser buscada na própria ideia atual do Direito Penal (que é instrumento estatal para exercer o jus puniendi).
Ocorre que quando o Estado aplica a pena, este retira direitos do indivíduo acusado, como a liberdade, o patrimônio e, excepcionalmente, a vida, atingindo, portanto, os direitos individuais da mais alta significação para a pessoa humana.
O princípio da legalidade traça o divisor entre dois direitos em jogo dialético: os direitos pessoais, de um lado, e o direito de punir do Estado, de outro.
Afinal, o princípio da legalidade visa proteger os direitos pessoais ante o jus puniendi do Estado pois garante que a postestade punitiva não seja usada de modo arbitrário, evitando a volta ou retrocesso do terror penal.
É a legalidade que limita a intervenção penal pois que garanta ao indivíduo a delimitação da atuação estatal. A legalidade respeita o homem em sua dignidade que está presente na Constituição Federal Brasileira[21] vigente e corresponde a um dos fundamentos da República federativa brasileira.
Há a tendência cada vez mais universalizante para a afirmação dos direitos do homem como princípio basilar das sociedades modernas, bem como o reforço ético do Estado, imprimem à justiça o estatuto de primeiro garante da consolidação dos valores fundamentais reconhecidos pela comunidade, com especial destaque da dignidade da pessoa humana.
Juarez Tavares afirmou que a dignidade humana coloca o ser humano não apenas como um meio mas como o fim da própria ordem jurídica. Reconhece-se que o jus puniendi do Estado não é um poder absoluto, mas é um poder, ou seja, não pode ser exercido de modo arbitrário ou cruel pelos detentores do poder político.
O conceito contemporâneo de Direito Penal[22] é vinculado ao princípio da legalidade, o qual estabelece que pela lei não somente se protege o homem das ações lesivas aos bens jurídicos, mas eu por esta se protege o homem do próprio Direito Penal.
O Direito está umbilicalmente vinculado à política e inicialmente se pode identifica a feição liberal ou totalitária do Estado, principalmente porque este ramo jurídico traduz o uso estatal da violência formalizada e institucionalizada pela dogmática jurídica.
O princípio da legalidade surgiu como reação à tirania do Estado absolutista, tendo portanto uma origem política. Alertou Beccaria que tais princípios desagradarão aos déspotas subalternos.
Ainda nos dias atuais, constata-se que alguns Estados estão essencialmente vinculados à religião, o que pode ser comprovado através do caso do Islã.
O Direito Islâmico (Shari’a) contém as regras de organização da sociedade muçulmano e os meios de resolução de conflitos entre os indivíduos e, entre estes e o Estado. Nesse mesmo Direito, considera-se somente existe uma fonte do Direito que é Deus… a divindade através da revelação, regula as condutas humanas, bem como as demandas, através do Direito.
Para os muçulmanos, o islamismo não é uma nova religião, mas apenas a culminação de comandos espirituais e temporais de Deus, que chegaram aos homens por meio de Moisés, Jesus, os profetas e Maomé. Assim, o islamismo continuaria e terminaria a expressão da revelação judaico-cristã.
A fonte principal do Estado e do direito islâmico é o livro dado por Deus, o Qu’ram além da Sunna ou Taffir que expressam a tradição de Maomé, o que confirma o Estado islâmico como sacerdotal e o teocrático.
A doutrina islâmica preocupa-se em vincular os crimes ao princípio da legalidade posto que seja uma garantia do ser humano na qual resguarda a sua liberdade.
Os crimes de Hudud são considerados especialmente graves posto que firam os principais valores da sociedade islâmica. São apostasia, o roubo, o adultério, falsa acusação de adultério, associação armada, embriaguez e a rebelião contra legítima autoridade.
A apostasia (ridda) é cometida por apóstata que é, todo aquele que, tendo professado a fé islâmica, a rejeita por palavras, atos ou omissões. A pena imposta é a morte.
Há uma indeterminação da norma penal, o que contraria a exigência de lei certa. O roubo é outro dos crimes do Hudud[23], e a pena prevista é de natureza corporal correspondendo ao corte da mão direito, quando a coisa roubada possui valor significativo.
Se o valor for pequeno da coisa roubada, não se utiliza a pena corporal. Todavia, os juristas não estão de acordo sobre qual seja o valor mínimo para que se configure o delito de roubo.
O segundo grupo de crimes de Quesas (que significa equivalência) são cometidos contra a vida, a integridade física da pessoa humana e são: homicídio qualificado, homicídio doloso, culposo, lesão corporal dolosa e lesão corporal culposa.
Os crimes de Quesas são sempre considerados como violações aos direitos individuais da pessoa, o que faz nascer a necessidade de indenização devida à vítima ou aos seus familiares. Há suas possíveis sanções: o talião correspondendo à aplicação da mesma violação física e corporal que fora feita em face da vítima; e a segunda forma que é a indenização chamada de Diyya que é o pagamento de compensação à vítima ou aos seus familiares.
A preferência pelo Diyya traduz forma de perdão e o Islã não obriga a vítima ou seus familiares a aceitarem a indenização. Na recusa dessa aplica-se fatalmente o talião.
O sistema islâmico devido não haver taxatividade da norma, o valor entre matar um homem ou mulher, ou entre matar uma criança ou uma pessoa insana pode variar.
Assim clama alguns juristas que, a morte de uma mulher ou criança ou ainda deficiente não poderá ser tratada com a mesma severidade com que é tratada a morte de um homem muçulmano.
A derradeira espécie de crimes no sistema penal islâmico são os delitos de Ta’azir, e significa a punição criminal que não está legalmente fixada e suas respectivas penas não tem previsão legal ou normativa, ficando a determinação da conduta incriminada e a pena a ser cominada pelo arbítrio do julgador.
Tradicionalmente os crimes de Ta’azir são punidos por penas corporais que pode variar em pena de morte[24] e flagelação. Todavia, é possível aplicação de pena de prisão que cariará de prisão até um dia ou um ano ou de penas restritivas de liberdade, como banimento ou exílio.
Na sociedade islâmica tem a necessidade de exercer o controle, choca-se com o princípio da legalidade que visa proteger a pessoa humana em face dos abusos dos detentores sendo portanto incompatível com o Estado Totalitário (que instrumento comum da violência).
Na América Latina, o exemplo de Direito Penal totalitário surgiu no Chile durante a ditadura iniciada nos idos de 1970. Ainda na Alemanha nazista onde a vontade do Fürer era identificada com a lei e o seu Direito era construído com base em doutrina da Escola de Kiel[25], a qual suprimiu o princípio da legalidade para dar lugar a um indeterminado Direito Penal da luta, surgido do clamor e do sentimento popular.
No caso brasileiro[26], durante a ditadura militar iniciada na década de sessenta, o Direito Penal formalmente ligado ao princípio da legalidade, mas o arbítrio atuava de forma sub-reptícia, onde houve sequestros, torturas e demais atos violentos correlatos que não estavam previstos nas normas penais, mas foram praticados sob os “olhos vendados” das autoridades judiciárias que nada podiam fazer sobre os detentores do poder político.
A ditadura comunista que existiu na Alemanha Oriental que fora exercida pelo partido socialista unificado por quarenta anos, o Direito Penal foi usado como meio de imposição da ideologia comunista ou com meio de assegurar a vigência.
Na Alemanha Oriental o crime é relacionado com uma série de uma luta de classes, segundo a mudança de produção nas distintas épocas da evolução histórica. Se o comunismo encerra a luta de classes e as desigualdades econômicas, ele extermina da sociedade o fenômeno “crime”.
A crença que se pode fazer desaparecer o delito modificando-se os pressupostos econômicos é uma das grandes utopias que a humanidade criou para enganar o investigador sério.
Desvincular o crime da essência humana é ir de encontro à natureza e do próprio Direito Penal que está substancialmente vinculado ao homem; basta avaliar os institutos penais: o que é dolo[27] senão a vontade? O que é a consciência de antijuridicidade senão a percepção?
O Direito Penal, portanto, busca o âmago da alma humana. Por isso, o Direito Penal é o ramo jurídico mais próximo da Filosofia, pois ambos buscam a compreensão dos fatos do espírito.
Já o princípio da legalidade no Estado de Direito definido por Nelson Saldanha como aquele em que o limite e o fundamento da ação estatal se encontram na ordem jurídica e essencialmente na base desta, a Constituição.
A acepção do Estado do Direito surge com as ideias do Iluminismo que apregoava um modelo estatal diferente do Estado absoluto, ou seja, o Estado liberal. Ora o Estado intervencionista independentemente de ser capitalista ou socialista se utiliza de ações, por exemplo, regular mercados e controlar a vida social.
Santiago Puig fez interessante observação sobre o Direito Penal do Estado Moderno, apregoando que o Direito Penal é uma verdade um Direito Constitucional aplicado, para o referido autor existe o Estado Social e Democrático de Direito.
No Estado teocrático a pena representava o castigo divino, e no Estado Absolutista, como instrumento de subjugar os súditos. Somente com o advento do Estado de Direito é que o poder penal foi veramente limitado por princípios abstratos e ideais.
Somente no Estado Social e Democrático de Direito que temos modelo estatal que supera o Estado Liberal e o Estado Social. Pela fórmula, o Estado Social e Democrático de Direito, submete-se a intervenção do Estado aos limites sociais e materiais do Estado de Direito.
A Constituição Federal brasileira de 1988 já em seu primeiro artigo define o Brasil como Estado Democrático de Direito sendo efetivamente um Estado Social conforme prevê os arts. 174 e 175 que expressam a intervenção estatal em diversas esferas mas dentro dos limites fixados no Direito.
Enfim, o princípio da legalidade constitui um indissociável limite do Direito Penal peculiar do Estado Social, Democrático de Direito, posto que preserve a liberdade e a dignidade do homem e assegure que tais valores não sejam violados ou vilipendiados arbitrariamente pelo jus puniendi do Estado[28].
Concluímos que o Direito Penal[29] deve servir ao homem e a seu maior significado político em face do poder estatal principalmente pela prioritária tutela dada a dignidade humana que é garantia fundamental repetidamente reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal.
A legalidade tanto para o particular, quanto para a administração pública, é de observância obrigatória segundo os ditames constitucionais, pois, se praticado um ato relevante ao ordenamento jurídico sem levar-se em conta o princípio da legalidade, este ato esta passível de anulação, uma vez que será inválido.
Informações Sobre o Autor
Gisele Leite
Professora universitária, Mestre em Direito, Mestre em Filosofia, pedagoga, advogada, conselheira do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas.