Sumário: 1) Introdução. 2) Interpretação e aplicação de normas pelos agentes públicos. 3) Imposição de penas: 3.1) concurso real de normas; 3.2) concurso aparente de normas; 3.3) tentativa de infração administrativa; 3.4) co-autoria e participação. 4) Conclusões. 5) Bibliografia.
1) Introdução.
Um dos temas de Direito Administrativo que não tem sido objeto de análises e discussões jurídicas, no país, é o das penalidades ou sanções administrativas. Dada a inexistência de lei específica, bem como a insofismável aproximação com princípios e fundamentos do Direito Penal, a doutrina tem encontrado dificuldades, às vezes insuperáveis, para manejar, adequadamente, tópicos concernentes às infrações e sanções administrativas.
Este pequeno trabalho estuda aspectos jurídicos relevantes da imposição das penalidades administrativas, pelas autoridades publicas (administrativas), comparando a sistemática das normas e princípios de Direito Penal com os do Direito Administrativo. Analisaremos, sucintamente, o concurso aparente e o real de normas, a co-autoria e a participação, no âmbito do Direito Administrativo.
Antes, porém, ingressamos na análise, perfunctória, da interpretação e aplicação de normas pelos agentes públicos, pois, a fim de que haja imposição de penalidade administrativa, deve o agente público, proceder, necessariamente, à interpretação da norma jurídica.
2) Interpretação e aplicação de normas pelos agentes públicos
Na relação jurídico-administrativa, Administração é parte interessada, para regular a conduta do particular. A rigor, o Estado decide, depois de prévio processo administrativo, a conduta dos indivíduos, ampliando, ou restringindo, os respectivos direitos, de acordo com o ordenamento. Com essa finalidade, o agente público analisa as normas do sistema jurídico.
Conforme explica Cameo,[1] a importância da interpretação do ordenamento jurídico, pelo administrador público, resulta de dois fatores fundamentais: a especial autoridade e a particular publicidade.
(a) Sob o primeiro aspecto, o Estado tem funcionários especializados; pessoas preparadas, tecnicamente, para auxiliar os diversos órgãos no cumprimento das tarefas cotidianas.
Para resolver os problemas dos particulares, o Poder Público considera não apenas o pedido ou a defesa deles, mas igualmente, analisa, nos termos da lei, o pedido de retratação, dirigido à mesma autoridade que proferiu o ato, bem como o recurso hierárquico, por meio do qual o particular pede à autoridade superior reveja a decisão proferida. Tudo isso com a observância dos direitos e garantias fundamentais, como o contraditório, a ampla defesa, o devido processo legal etc.
(b) Quanto à particular publicidade, acentua o referido autor italiano, as declarações de vontade e os fatos materiais da Administração devem ser conhecidos do povo. Nesse sentido, a motivação é circundada de específico valor lógico, é mecanismo de aplicação e interpretação da ordem jurídica.
Na busca do sentido, alcance e conteúdo da norma jurídica, o intérprete –seja ele quem for, inclusive o agente público – deve conciliar ação eficaz dos ‘serviços públicos’ e o respeito das liberdades públicas; isto é, nas palavras de H. Berthélemy, “para os administradores, uma autoridade mais forte e mais respeitada; para os administrados, liberdades mais amplas e melhores garantias.”[2]
Os governantes exercem funções, ou seja, deveres, cumpridos em prol de outrem. Logo, o intérprete deverá saber, de antemão, os deveres dos agentes públicos, identificados nas respectivas competências, vinculadas à lei, bem como os correlatos poderes, os quais são meramente instrumentais. Acentua Celso Antônio Bandeira de Mello:
“Destarte, ditos poderes têm caráter meramente instrumental; são meios à falta dos quais restaria impossível, para o sujeito, desempenhar-se do dever de cumprir o interesse público, que é, a final, o próprio objetivo visado e a razão mesma pela qual foi investido nos poderes atribuídos…”[3]
Como cediço, a interpretação refere ao sentido, alcance e conteúdo da norma jurídica. Explica Franco Montoro, duas normas podem ter o mesmo sentido, mas extensão ou alcance diferentes. É o caso do Estatuto dos Servidores Públicos Federais e da Consolidação das Leis do Trabalho, quanto ao descanso semanal remunerado. Ambas as legislações têm o mesmo sentido; porém, alcances diversos: o primeiro, refere-se aos servidores públicos federais; a segunda, empregados das empresas.[4] No tocante ao conteúdo da norma jurídica, ensina Karl Engisch [Introdução ao Pensamento Jurídico, p.102], citado por Maria Helena Diniz, é feito por meio de “uma definição, ou seja, pela indicação das conotações conceituais.”[5]
Depois da tarefa interpretativa, realizada, muitas vezes, com auxílio de técnicos ou especialistas da área do Direito, o administrador aplicará a norma jurídica, isto é, enquadrará o caso concreto à norma jurídica. De regra, ensina Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, “a aplicação da lei realiza-se através de um silogismo, do qual a lei é a premissa maior, a relação de fato é a premissa menor, e a aplicação concreta daquela neste a conclusão…”[6]
Para aplicar a norma jurídica ao caso concreto, o agente deverá observar o caso concreto e suas circunstâncias, ou seja, a ‘quaestio facti’. Ele deve considerar os reflexos da aplicação da norma no meio social, no mundo circundante. Numa palavra: o interesse público protegido pela norma aplicada. Nesse sentido, ao impor as sanções administrativas, por conta da infração cometida pelo particular, a autoridade administrativa deve valer-se dessas experiências, advindas da realidade empírica, do mundo dos fatos.[7]
3) Imposição das penas.[8]
Uma vez interpretadas as normas jurídicas, o agente público as aplicará, de acordo com o fato concreto, em vista do interesse público que lhe cabe proteger. No caso de penalidades administrativas[9] ocorre imposição delas, isto é, a autoridade administrativa declara a direta e imediata conseqüência jurídica acometida ao infrator ou responsável.[10]
Neste trabalho analisam-se temas estudados, a rigor, no Direito Penal: (a) matérias específicas do Direito Penal, estabelecidas pelo legislador, sem similaridade, contudo, no Direito Administrativo, devido ao regime distinto desses ramos jurídicos: concurso real de normas, tentativa, co-autoria e participação; (b) concurso aparente de normas, aplicável, em princípio, no Direito Administrativo, por conta de dogmas ou valores universais, a fim de evitar o denominado ‘bis in idem’.
3.1) Concurso real de normas.
Fala-se em concurso real de normas, quando o particular, por meio de uma ou várias ações ou omissões, comete duas ou mais infrações administrativas. O concurso real de normas pode ser material, formal ou continuado.
No concurso material, o infrator, mediante duas ou mais ações ou omissões (condutas distintas), comete mais de uma infração. Por exemplo, o sujeito, falsificando dado documento, importa mercadorias sem o pagamento dos tributos exigidos pelo Estado, ficando sujeito à multa punitiva; depois de realizada a importação do produto, ao transportá-lo para o destino no interior do País, há um acidente, por culpa do administrado, em virtude do qual a mercadoria causa sérios danos ambientais, ficando, o sujeito-infrator, submetido à sanção administrativo-ambiental.
No concurso formal, o infrator, por meio de uma só ação ou omissão (uma só conduta), comete mais de uma infração. É o caso da pessoa que falsifica dado documento, a fim de importar mercadorias, deixando de pagar tributos devidos ao erário, bem como, devido àquela falsificação, livra-se da exigência de autorização do órgão sanitário para proceder à importação. Na espécie, há dois deveres jurídicos (tributário e sanitário), violados por meio de única conduta: falsificação de documento.
Na continuidade, por meio de mais de uma ação ou omissão, o indivíduo comete infrações administrativas, as quais, considerando-se as circunstâncias de tempo, de lugar de maneira de execução etc., são havidas como praticadas num único contexto ou em situações repetidas. O comerciante que não observa o ‘tabelamento de preços’ de seus produtos, imposto pelo Governo, pratica infrações continuadas.
No Direito Penal brasileiro há regras explícitas sobre o concurso real de normas[11]; mas, como devemos encarar o problema sobre o prisma do Direito Administrativo? Simplesmente, aplicaremos as normas daquela seara do Direito?
No direito italiano, ao menos durante a vigência da Lei 689/81, o artigo 8º, 1º, regula o concurso formal de infrações, mas não a continuidade delas. Por isso, neste caso, ocorre o cúmulo das sanções, ou seja, “sem qualquer desconto decorrente de eventual unidade de desígnio”, na expressão de Pasquale Cerbo.[12]
Expõe Carmine Pepe, ao comentar o fato de a legislação previdenciária e de assistência italiana prever a continuidade nas respectivas infrações administrativas:
“A proibição da extensão analógica da norma de natureza penal é explicada, mais do que com a natureza excepcional da legislação, com o impedimento em face do princípio da continuidade à só hipótese constituída da matéria previdenciária e assistencial.”[13]
Portanto, perfilha-se entendimento segundo o qual, na falta de texto expresso, ocorre o cúmulo material, pois nas palavras de Zanobini, “se a pessoa tinha um duplo dever de não cometer o fato, cometendo-o, viola duas diversas obrigações e deve suportar as conseqüências da dupla transgressão”.[14]
O Direito Penal é especial, contém princípios, critérios, fundamentos e normas particulares, próprios desse ramo jurídico; por isso, a rigor, as regras dele não podem ser estendidas além dos casos para os quais foram instituídas. De fato, não se aplica norma jurídica senão à ordem de coisas para a qual foi estabelecida; não se pode pôr de lado a natureza da lei, nem o ramo do Direito a que pertence a regra tomada por base do processo analógico.[15] Na hipótese de concurso de crimes, o legislador escolheu critérios específicos, próprios desse ramo de Direito. Logo, não se justifica a analogia das normas do Direito Penal no tema concurso real de infrações administrativas.
A ‘forma de sancionar’ é instituída pelo legislador, segundo critérios de conveniência/oportunidade, isto é, discricionariedade. Compete-lhe elaborar, ou não, regras a respeito da concorrência de infrações administrativas. No silêncio, ocorre cúmulo material.
Aliás, no Direito Administrativo brasileiro, o legislador tem procurado determinar o cúmulo material de infrações, conforme se observa, por exemplo, no artigo 266, da Lei nº 9.503, de 23.12.1997 (Código de Trânsito Brasileiro), segundo o qual “quando o infrator cometer, simultaneamente, duas ou mais infrações, ser-lhe-ão aplicadas, cumulativamente, as respectivas penalidades”. Igualmente o artigo 72, §1º, da Lei 9.605, de 12.2.1998, que dispõe sobre sanções penais e administrativas derivadas de condutas lesivas ao meio ambiente: “Se o infrator cometer, simultaneamente, duas ou mais infrações [administrativas, pois o disposto está inserido no Capítulo VI – Da Infração Administrativa] ser-lhe-ão aplicadas, cumulativamente, as sanções a elas cominadas”. E também o parágrafo único, do artigo 56, da Lei nº 8.078, de 11.9.1990, que regula a proteção do consumidor: “As sanções [administrativas] previstas neste artigo serão aplicadas pela autoridade administrativa, no âmbito de sua atribuição, podendo ser aplicadas cumulativamente, inclusive por medida cautelar antecedente ou incidente de procedimento administrativo”.[16]
3.2) concurso ‘aparente’ de normas
O conflito ou concurso aparente de normas tem os contornos jurídicos básicos estruturados pela doutrina do Direito Penal. Há concurso aparente de normas, quando o sujeito viola mais de um dever, normalmente estabelecido em normas jurídicas diferentes, no qual somente a penalidade estabelecida numa dessas normas é imposta, pela autoridade, no sujeito-infrator, por conta de princípios estabelecidos por motivo de eqüidade e justiça.
No concurso aparente de normas, como o nome indica, não há efetiva concorrência de sanções, porque princípios específicos, por motivo de eqüidade e justiça, justificam a imposição de somente uma das penalidades estabelecidas nas leis.
Esses dogmas refutam a aplicação simultânea de penalidades cominadas em diversas leis, atendendo ao princípio non bis in idem.
A doutrina, no Direito Penal, enuncia quatro princípios que resolvem o conflito aparente de normas: especialidade, consunção, alternatividade e subsidiariedade. Preferimos dividi-los em três, por razões práticas.
1) Princípio da especialidade: “lex specialis derogat legis generali” – Com efeito, uma norma é especial, quando contém todos os requisitos de outra norma (geral), mais os requisitos ou elementos ‘especializantes’, fazendo com que a primeira (especial) prevaleça diante da segunda (geral). Seguem hipóteses em que isso ocorre.
(a) As causas de aumento de penalidade administrativa (norma especial) prevalecem perante o ‘tipo fundamental’ (norma geral). Por exemplo, o art. 43, caput, do Decreto 3.179, de 2.9.1999[17], estabelece várias condutas protetoras do meio ambiente (tipo fundamental); já o § 2º dispõe: “Se o produto ou a substância [tóxica, perigosa ou nociva à saúde ou ao meio ambiente] for nuclear ou radioativa, a multa é aumentada ao quíntuplo” (norma especial), O sujeito responde às penas do parágrafo segundo.
(b) Pode ser que determinada conduta infracional, contida numa norma “A”, seja, ao mesmo tempo, qualificadora (circunstâncias que demandam maior cominação) de outra infração descrita na norma “B”, mais severamente punida.
Assim, a lei pode estabelecer penas administrativas à simples conduta “posse de substância tóxica nociva à saúde”; mas, essa conduta pode ser qualificadora do ilícito cujo tipo fundamental é atear fogo nas matas ou florestas. O infrator responderá, apenas, pelo fato ‘qualificado’ pela ordem jurídica.
Esquematicamente:
-Infração ambiental “A” (autônoma): possuir substância tóxica nociva à saúde. Pena: multa de R$ 500,00;
-Infração ambiental “B” – tipo fundamental: atear fogo em floresta. Pena: multa de R$ 5.000,00.
– qualificadora da infração “B”: se a infração é cometida por meio de substância tóxica nociva à saúde, a multa é aumentada de um terço.
No exemplo, o infrator responderá somente pela infração “B”, na forma qualificada, pois esta prevalece sobre a infração “A”.
Assim, um dos requisitos para aplicação do princípio da especialidade é a ofensa à mesma “ordem administrativa”; vale dizer, a conduta do infrator deve ofender ao mesmo bem jurídico, protegido pela norma. No exemplo, a conduta do infrator viola a proteção do meio ambiente (infração administrativo-ambiental). Se o sujeito violar deveres de ordens administrativas diversas (por exemplo, tributária e ambiental), o referido princípio não será utilizado.
Além disso, há necessidade de a infração imposta ao infrator (com a qualificadora) ter maior gravidade punitiva do que o ilícito anterior (infração “A”); caso isso não ocorra, ou seja, se a primeira infração (“A”) tiver maior gravidade punitiva do que a ‘forma qualificada’ da outra infração (“B”), aquela deverá prevalecer (“A”), pois funciona como “soldado de reserva”.
(c) A norma jurídica pode conter, a par do tipo fundamental, circunstâncias que atenuem penalidade administrativa. Em casos tais, prevalecem estas.
Esquematicamente:
– Infração (“caput”): construir muro fora dos padrões determinados pelos órgãos municipais. Pena: multa de R$ 500,00
– Parágrafo: a pena será reduzida de um sexto, na hipótese de o infrator, uma vez notificado pela autoridade competente, destruir o muro.
2) Princípio da consunção: “lex consumens derogat legis consumptae” – Ocorre a consunção quando o fato previsto por uma norma está compreendido em outra de âmbito maior e, portanto, só esta se aplica.
a) É o que acontece com a tentativa e a consumação do ilícito: se o sujeito pratica infração (infração consumada), não responderá por tentativa (se prevista no ordenamento jurídico-administrativo), pois esta ficaria absorvida.
b) O mesmo ocorre quanto aos atos preparatórios de infrações administrativas, em relação à infração consumada.
(1) A norma jurídica pode estabelecer constituir infração administrativa o singelo fato de alguém manter artefatos de fogo nas proximidades de florestas.
(2) Mas, se o sujeito, com esses instrumentos, põe fogo na mata, pode estar sujeito a outra infração hipotética,– atear fogo na floresta.
Ocorre absorção do primeiro “ilícito” (1), pois se trata de “antefactum não punível”; o infrator responderá somente pelas penalidades administrativas referentes ao fato de ter colocado fogo na mata (2). Os atos anteriores restam absorvidos.
c) Uma pessoa (A) instiga outra (B) a colocar fogo na floresta; – “A” é mero “partícipe” da respectiva infração administrativa, praticada por “B”- autor da infração (foi este quem ateou fogo na floresta).
“A” responde pela participação, apenas quando esta for pressuposto de penalidade administrativa, isto é, se norma jurídica estabelecer a conduta do partícipe como infração administrativa.[18]
Entretanto, se “A”(partícipe), depois de instigar “B”(autor), resolver ajudá-lo, efetivamente, na prática ilícita, também pondo fogo na mata, será considerada “autora”, pois executa o comportamento descrito na norma jurídica como infração (colocar fogo na floresta). A conduta inicial, isto é, a mera participação, fica absorvida pela autoria; “A” responde apenas pela infração pôr fogo na mata.
d)Suponham-se dois comportamentos, estabelecidos em normas jurídicas diferentes: infração “A”: o sujeito, sem autorização do agente competente, em horário proibido, entra em imóvel, pertencente ao poder público; infração “B”: o sujeito, sem autorização do agente competente, em horário proibido, entra em imóvel, pertencente ao poder público, com a finalidade de destruir artefatos que ali estariam depositados, sob a responsabilidade do Estado. No exemplo hipotético, ambas as condutas constituiriam infrações administrativas distintas, estabelecidas em normas diferentes.
No caso concreto, se, para praticar a segunda infração (b), o infrator tiver de, necessariamente, cometer a primeira (a), esta restará absorvida, pois é meio necessário ao cometimento daquela.
3) Princípio da alternatividade – Ocorre o princípio da alternatividade quando uma norma jurídica prevê diversas condutas, alternativamente, como modalidades de uma mesma infração administrativa; mesmo que o infrator cometa mais de uma dessas ‘condutas alternativas’, isto é, se, acaso, violar mais de um dever jurídico, será apenado somente uma vez.[19]
É comum no Direito Ambiental a norma jurídica determinar várias modalidades de conduta para a mesma infração. Por exemplo, o artigo 11, do Decreto 3.179, de 21.9.1999, que regulamenta a Lei 9.605/1998, estabelece: “Art. 11. Matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre , nativos ou em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou em desacordo com a obtida: multa de (…).”
O infrator será apenado apenas uma vez, ainda que realize diversos comportamentos estabelecidos na norma. Por exemplo, se a pessoa caça e depois mata determinado animal silvestre, sofrerá uma reprimenda, a que for cominada à infração.
Assim dispõe o artigo 193, da Lei 9.503, de 23.9.1997, que institui o Código de Trânsito Brasileiro: “Art. 193. Transitar com o veículo em calçada, passeios, passarelas, ciclovias, ciclofaixas, ilhas, refúgios, ajardinamentos, canteiros centrais e divisores de pista de rolamento, acostamentos, marcas de canalização, gramados e jardins públicos: Penalidade: multa (…)”.
Ao menos em linhas gerais, se a pessoa transita com o veículo na calçada, na ciclovia e depois no acostamento, não cometerá tantas infrações quantos forem os deveres violados; trata-se de ilícito administrativo de “condutas múltiplas”, e ele sofrerá única sanção, em face do princípio da alternatividade.
3.3) tentativa de infração administrativa
De acordo com o Código Penal Brasileiro (art. 14, II), diz-se tentado o crime, quando, iniciada a execução, ele não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente. Assim, são elementos da tentativa: 1) início da execução; 2) a interrupção dela, não vinculada à vontade do agente, por fatores alheios a esta.
Logo, não se pode admitir, sequer em tese, a tentativa de infração administrativa culposa. Na culpa, o infrator não deseja praticar a infração, mas ela subsiste, por imprudência, negligência ou imperícia; na tentativa, ao contrário, o infrator envida todos os esforços para cometer (dolo) a infração administrativa, a qual não se efetiva, devido a circunstâncias alheias à sua vontade.
Do mesmo modo, não se admite a tentativa nas infrações administrativas omissivas. Assim, “na condução do veículo, deixar de sinalizar para ingressar na via direita ou esquerda” não há forma tentada.
Apesar dessas considerações ontológicas, é preciso verificar se a tentativa é possível no âmbito jurídico-administrativo brasileiro.
De fato, a norma jurídica que prevê a tentativa tem eficácia extensiva, vale dizer, amplia o campo de aplicação da norma jurídica, que prevê a conduta e a respectiva penalidade.
Por isso, haveria menoscabo ao princípio da legalidade se houvesse ampliação temporal de norma jurídica (pressuposto de pena), sem que outra norma jurídica, de idêntica ou superior hierarquia, não a contemplasse.
Na expressão jusfilosófica, a norma jurídica da tentativa está ‘subordinada’ à norma jurídica que estabelece a conduta e a pena. É que, sem esta, aquela não se estabelece, ou não tem eficácia; a primeira é secundária em relação à segunda. O caráter coercitivo da norma jurídica da tentativa depende de outra norma jurídica. Uma é primária; outra, secundária, não autônoma. Afirma o prolífico jurista Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, citando eminente jusfilósofo:
“Como esclarece Del Vecchio, há normas jurídicas primárias que, por si mesmas, e de modo direto, exprimem uma regra obrigatória de ação, e secundárias, que não são autônomas, e, por isso mesmo, o seu caráter coercitivo depende de outras, a que se reportam. (cf. Lezione di Filosofia del Diritto, pp. 221-223, 5ª ed., Milano, Dott. A Giuffrè Editore, 1946)”.[20]
Além do mais, não se pode utilizar a norma jurídica do Código Penal Brasileiro que prevê a tentativa, pois seria analogia in malam partem, vedada em tema de penalidades.
É preciso norma expressa. Por exemplo, tentada a exportação de bens tombados, serão seqüestrados pela União ou pelo Estado em que se encontrarem (cf. Decreto-lei 25, de 30.11.1937); a Lei 8.884, de 11.6.1994, que regula a repressão às infrações contra a ordem econômica, o artigo 20 dispõe acerca dos efeitos, “ainda que não alcançados”, de atos praticados pelo infrator sob qualquer forma manifestada; e o artigo 27, IV, da mesma lei, consoante o qual, na aplicação das penas, serão levados em consideração, entre outros fatores, “a consumação ou não da infração”.
3.4) co-autoria e participação.
Denomina-se autor a pessoa que pratica, efetivamente, a infração; é quem realiza a conduta, pressuposto da penalidade; pratica a ação verbal contida na norma jurídica. Assim, o motorista que dirige o veículo sem carteira de habilitação, o indivíduo que ateia fogo na mata são autores de infrações administrativas.
Já o partícipe é a pessoa que, embora não praticando a conduta descrita na norma, de outro modo concorre para a sua realização. A pessoa que instiga o motorista a dirigir o veículo sem a carteira de habilitação; e a pessoa que fornece aparatos para que outro indivíduo coloque fogo na mata, são consideradas partícipes do ilícito administrativo, porque não realizaram a conduta, por assim dizer, “típica”, descrita na norma jurídica, ou seja, no primeiro caso, “dirigir sem a devida habilitação”; no segundo, “colocar fogo na mata”.
Dispõe o art. 29, caput, do Código Penal Brasileiro: “Quem, de qualquer modo, concorrer para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade”.
Em princípio, tanto o executor do homicídio (que mata a pessoa) quanto o indivíduo que entrega a arma ao homicida, respondem pelo tipo penal “matar alguém”, descrito no artigo 121, do Código Penal.
Entretanto, no Direito Administrativo há necessidade de norma jurídica determinar e regular a co-autoria na infração administrativa. Cuida-se de norma que expande, estende, amplia a eficácia de outra norma jurídica, a qual, por sua vez, contém a conduta ilícita e as conseqüências respectivas, isto é, as penalidades.
Não havendo norma jurídica, estabelecendo a co-autoria, se acaso diversos autores praticarem o ilícito, ainda que estejam previamente ajustados, com identidade de vontades, cada qual sofrerá a respectiva sanção, independentemente da conduta dos outros – isto é, as condutas serão consideradas ‘autônomas’ uma das outra: cada autor responderá na medida de sua conduta, considerada isoladamente. Assim, se duas ou mais pessoas deixarem de cumprir as normas sanitárias, embora com desígnios de propósitos e ajustados, cada uma delas responderá pelo ilícito administrativo, autonomamente.
No Direito Tributário italiano, Lorenzo Del Federico explica:
“Todavia, a questão é mais complexa do que possa parecer. Na realidade, na falta de uma disposição que consinta a direta aplicação do artigo 11 [o autor refere-se à Lei 689/81], não pareceria exato falar de lacuna normativa, pois em tal caso deveria operar o esquema naturalístico, segundo o qual cada transgressor, que realiza por inteiro o ilícito, responde pela sanção autonomamente aplicável; portanto, não deveria encontrar espaço algum o princípio da solidariedade do artigo 11, e nem o princípio da concursualidade, do artigo 5º (…)” [21]
O tema tem especial relevo na participação: se determinada pessoa, embora não praticando a infração, isto é, não executando o tipo da norma, instiga ou induz alguém à prática do ilícito administrativo, na falta de texto expresso, não responderá por seus atos. Apenas os autores (executores) da infração administrativa serão punidos.
Os conceitos jurídicos de autor e de partícipe não se confundem. Como são diversas as categorias conceituais, somente por norma expressa pode-se atribuir à participação idênticas conseqüências jurídicas da autoria.
Acrescente-se, se houvesse aplicação da norma do Direito Penal relativa à co-autoria (art.29), haveria analogia in malam partem, vedada em tema de sanções administrativas.
Assim, sem norma expressa, não se admite a co-autoria no ilícito administrativo.
Por exemplo, a citada Lei 9.605, de 12.2.1998, que dispõe sobre sanções penais e administrativas referidas ao meio ambiente, no artigo 3º estabelece: “As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade. Parágrafo único. A responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, co-autoras ou partícipes do mesmo fato”.[22]
4)Conclusões
1) A interpretação da norma jurídica pelo agente público tem especial importância prática, pois os problemas dos particulares, em face do Estado, resolvem-se por meio de processos ou expedientes administrativos, providos de defesa e contraditório, e dirigidos por pessoas técnicas, capacitadas. Esse processo administrativo deve ser motivado, com ampla publicidade, servindo como mecanismo de controle da atividade pública.
2) A fim de aplicar a lei, o agente público, deve interpretá-la, adequadamente, isto é, conhecer o sentido, alcance e conteúdo da norma jurídica, os deveres-competências e os instrumentos-poderes de atuação do Estado. Ao aplicar a norma, o servidor deve verificar as circunstâncias do caso concreto, a questão fática, o interesse público protegido pela norma.
3) O concurso real de normas (material, formal e continuado), estudado no Direito Penal, em princípio, é próprio desse ramo jurídico, não se afeiçoando aos ditames do Direito Administrativo. Este ramo do Direito deve estabelecer normas específicas a respeito do concurso real de normas; no silêncio da lei, há o cúmulo material de infrações administrativas.
4) O mesmo não ocorre no concurso, ou conflito, aparente de normas, no qual os dogmas ou princípios do Direito Penal podem ser aplicados no Direito Administrativo, por motivo de eqüidade e justiça, evitando-se punições severíssimas, ou bis in idem.
5) A tentativa, a co-autoria e a mera participação, institutos, a rigor, conhecidos e estudados no Direito Penal, quanto às infrações e penas dessa seara do Direito, não se aplicam, automaticamente, no Direito Administrativo, na medida em que este ramo jurídico deverá estabelecer as respectivas regras. No silêncio da lei, não há punição na tentativa e na mera participação de infrações administrativas; quanto à co-autoria, cada um dos agentes responderá autonomamente, isto é, sem levar em conta a conduta do outro sujeito que praticou a infração.
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