A questão da responsabilidade do Estado por atos praticados por juízes constitui matéria controvertida na doutrina brasileira, em face da idéia de que cabe a responsabilização apenas nas hipóteses em que há expressa previsão legal, excluindo-se da proteção constitucional demais erros decorrentes da atividade jurisdicional, os quais, dizia-se, eram escusados pela falibilidade humana.
A responsabilidade civil do Estado evoluiu de forma tão significativa que, em pouco mais de um século, a teoria da irresponsabilidade absoluta passou para a teoria do risco, ou seja, a da responsabilidade direta e objetiva da Fazenda Pública, resguardado o direito de regresso contra o agente que ocasionou a lesão(1).
E, de fato, uma vez assegurada a responsabilidade objetiva do Estado por atos praticados por seus agentes, não há argumento irrefutável que justifique a exclusão da esfera da teoria do risco os atos danosos de uma certa classe de agentes(2). A norma constitucional, aqui, interpretada extensivamente, deve ampliar o rol das possibilidades de indenização por atividade judiciária danosa – seja por erro, fraude, dolo, culpa e, principalmente, pela demora na prestação jurisdicional, ainda que persistam, na doutrina e jurisprudência, posicionamentos contrários.
No ordenamento jurídico brasileiro, algumas hipóteses de responsabilização do Estado por atos dos magistrados são elencadas, tais como nos casos de erro judiciário criminal, ou quando o réu ficar preso por tempo superior ao fixado na sentença (art.5º, LXXV, CF/88); na revisão criminal (art.630 CPP); e nas hipóteses do artigo 133 do CPC e artigo 49 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LC nº35/79), os quais estabelecem a responsabilidade pessoal do magistrado por seus atos somente quando agir com dolo ou fraude. Por fim, o artigo 37, § 6º, da Constituição Federal de 1988 contempla a responsabilidade objetiva do Estado por atos danosos praticados por seus agentes, cabendo ação de regresso nos casos de dolo ou culpa.
O primeiro argumento contrário à responsabilização estatal diz respeito à soberania da jurisdição, no sentido de que a função jurisdicional está acima da lei, sob a égide da máxima “the king can do no wrong”.
No entanto, os Poderes Executivo e Legislativo emanam, igualmente, da manifestação da soberania do Estado, e nem por isso são isentos do dever de indenizar. Nesse sentido salientou Rui Stoco, em seu Tratado de Responsabilidade Civil:
“[…] A atividade jurisdicional é exteriorização do poder do Estado, razão pela qual sujeita-se à mesma obrigação e responsabilização atribuída às demais atividades exercidas pelos dois outros poderes, quando, qualquer deles, através de seus agentes, causarem danos a terceiros.” (2001, p. 807).
Portanto, soberania nunca significou irresponsabilidade ou infalibilidade, e, ademais, é atributo do Estado de Direito, cujo poder é uno e indivisível, e não de qualquer de seus poderes, em si mesmo(3). Além disso, o próprio Estado, muito se sabe, também submete-se ao Direito.
Outro argumento utilizado para defender a irresponsabilidade estatal aduz que, se o Estado fosse responsabilizado pelos atos dos magistrados, haveria manifesta afronta e redução de sua independência. Porém, na realidade, a independência do juiz resulta incólume quando há a responsabilização do Estado, apenas atingindo sua esfera pessoal nos casos em que agir com dolo ou fraude, ou seja, quando preenchidos os pressupostos necessários.
E, como bem salientou Lair da Silva Loureiro Filho, a responsabilidade por atividade judiciária não restringe a livre atuação do julgador e apreciação das provas na formação de seu juízo de convencimento, uma vez que a decisão deverá ser motivada e embasada no próprio ordenamento jurídico(4). De fato, se, por um lado, a independência do juiz não é plena, por outro a irresponsabilidade do Estado por seus atos não seria, de forma alguma, uma garantia à livre apreciação do caso concreto.
Afaste-se, de plano, a tese de que inexiste lei específica sobre a responsabilidade do Estado por atos judiciais, diante das disposições legais supracitadas que dispõem sobre a responsabilização nos casos de dolo, fraude, culpa, erro judiciário penal e demora na prestação jurisdicional, e ainda porque tais previsões não têm o condão de excluir da apreciação do dano e da necessidade de ressarcimento todas as demais hipóteses ali não enumeradas. Como dito alhures, a interpretação do dispositivo constitucional deve ampliar a esfera de proteção, sendo, de fato, a melhor exegese do texto legal. Trata-se, na verdade, de princípio constitucional assegurado pela Carta Magna, pelo que carece de demais explicações.
Não há que se falar, da mesma forma, que o juiz não é um funcionário público, e, por este motivo, estariam os danos por ele causados excluídos da responsabilidade civil. Da leitura do comando do artigo 37, § 6º, da CF/88, não se vislumbra qualquer restrição à idéia de que também os atos judiciários danosos ensejam a responsabilização estatal, e ainda porque tais atos são, na verdade, imputados ao próprio Estado. Ademais, o termo “agente” abarca todas aquelas pessoas que exercem atividades privativas do Estado, e, inclusive, os juízes.
Por outro lado, a falibilidade humana reafirma a responsabilidade do Estado, ao invés de afastá-la. E isso porque, em primeiro lugar, não é apenas o juiz passível de erro, e sim o são todos aqueles que desempenham qualquer atividade técnica. Com efeito, em que pese a importância da função do magistrado perante a sociedade, este não está isento da responsabilidade por seus atos lesivos, considerando-se que a irresponsabilidade plena do magistrado resulta, a bem da verdade, em uma certa displicência no adimplemento de deus deveres funcionais(5).
Há, ainda, em prol da defesa da irresponsabilidade, o entendimento de que a responsabilização pela prestação jurisdicional afrontaria a autoridade da coisa julgada. No entanto, mesmo diante das possibilidades de insurgência recursal, o próprio Direito positivo traz hipóteses de relativização deste instituto, tais como a ação rescisória, a revisão criminal, os embargos à execução, a ação anulatória de decisão homologatória e a correção de erro material, seja por requerimento das partes ou de ofício.
Com efeito, a presunção de verdade da sentença revestida pela coisa julgada é iuris tantum, admitindo, em sede de impugnação alternativa à decisão, a prevalência da justiça em detrimento de uma decisão injusta e, até mesmo, da segurança jurídica. Assim observou Maria Helena Diniz:
“A autoridade da coisa julgada não constitui um valor absoluto, pois, entre ela e a idéia de justiça, a última prevalecerá, porque, se a res judicata tem por escopo a segurança jurídica e a paz jurídica, estas estarão mais do que respeitadas, se se desfizer uma sentença injusta, reparando-se o lesado de todos os danos que sofreu.” (2001, p. 541).
Conclui-se, então, que a responsabilidade civil do Estado por atos judiciários não pode, de forma alguma, ser afastada pelos argumentos da soberania da jurisdição, da independência do juiz, da falibilidade humana, da inexistência de lei específica e da autoridade da coisa julgada.
E isso porque, repita-se, o artigo 37, § 6º, da Constituição Federal teve por escopo abranger em seu rol também os atos lesivos praticados pelos magistrados. Sendo assim, uma vez evidenciado o nexo causal entre o dano injusto e a conduta do magistrado, coexistem as hipóteses de responsabilidade pessoal do juiz – quando este agir com dolo ou fraude – e de responsabilidade objetiva do Estado – nos casos de culpa, falha anônima, ato lícito e, especialmente, morosidade excessiva da prestação jurisdicional.
Portanto, em que pese a demasiada cautela com que se tem aplicado a responsabilização do Estado por atos lesivos dos magistrados, verifica-se que a garantia constitucional do amplo acesso à prestação jurisdicional vem sendo, a cada dia, violada pela defeituosa atuação do Poder Judiciário, prejudicando de forma irreparável seus destinatários.
Busca-se, por meio da responsabilidade estatal pela atividade judiciária, a eficácia do sistema e, principalmente, da prestação jurisdicional, através de uma posição mais atuante e célere do juiz dentro da relação processual, de forma a alcançar, dentro de um prazo razoável, a solução justa do conflito.
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