Resumo: O presente artigo analisa o direito de greve do servidor público, inserido no art. 37, inciso VII da CF/88, antes e após a decisão do STF em 2007, quando se supriu a lacuna legislativa por meio dos Mandados de Injunção 670, 708 e 712. Através de uma pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, examina-se a mudança de posicionamento da Suprema Corte, ao decidir declarar a omissão do legislativo, assim como aplicar, por analogia, ao setor público, no que couber, a lei de greve da iniciativa privada (Lei. 7.783/89). Primeiramente, discorre-se acerca do direito de greve no ordenamento jurídico brasileiro. Posteriormente, verificam-se as controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais quanto ao exercício do direito de greve no setor público, anteriormente à decisão da Suprema Corte, diante da falta de regulamentação infraconstitucional. Por fim, avalia-se como o Supremo Tribunal Federal, visando a concretizar um direito constitucionalmente garantido, conciliou a Lei 7.783/89 com as peculiaridades do serviço público.
Palavras-chave: Direito de greve, Servidor público, Mandado de injunção.
Abstract: The present work analyses the right to strike in the public sector laid out in the Federal Constitution of 1988 in its article 37, section VII, before and after The Supreme Court decided to close the legislative gap through the Writs of Injunction 670, 708 and 712. Through a bibliographical and jurisprudential research, this paper examines the shift of positioning of the Court, on declaring the omission of the Legislative Power and applying, when possible, the Law 7.783/89, which refers to the private sector. Firstly, the paper presents the right to strike in the Brazilian legal system. Subsequently, due to the infraconstitutional gap, doctrine and jurisprudence controversies are verified so as to clarify the opinions concerning the right to strike in the public sector before the Court’s decision. Last but not least, the paper evaluates how the Supreme Court, with a view to accomplish a constitutional right, reconciled the law 7.783/89 with the subtleties of the public service.
Keywords: Right to strike, Public sector; Writ of injunction
Sumário: 1.Introdução; 2. O Direito de Greve no Ordenamento Jurídico Pátrio;2.1 Limitações Constitucionais;2.3. Demais limitações trazidas pela lei 7.783/89; 3 O Direito de Greve do Servidor Público à Luz da doutrina e da Jurisprudência: O Cenário Anterior à Decisão Histórica do STF; 3.1 Eficácia e aplicabilidade do art. 37, VII da CF/88: o modelo de José Afonso da Silva;3.3 Competência;3.3.1 Para a edição da lei (lei complementar X lei específica);3.3.2 Para a solução dos conflitos de greve; 3.4 Por que a Lei nº. 7.783/89, em princípio, não se aplicaria à greve do servidor público?;3.5 Remuneração durante a greve; 3.6 A questão da Negociação coletiva; 4 Direito de Greve Do Servidor Público: O STF Frente à Omissão Do Legislativo; 4.1 O mandado de injunção como instrumento ao exercício dos direitos fundamentais; 4.2 A mudança de posicionamento do STF quanto à greve do servidor público; 4.2.1 Qual a eficácia do art. 37, VII segundo a atual posição do STF?; 4 .2.2 Quais os Efeitos da Decisão?; 4.2.3 A solução para suprir a lacuna do legislativo; 4.2.4 Justificativas apresentadas para a concretização; 4.2.5 Quanto à possibilidade de negociação coletiva; 4.2.5 Quanto à possibilidade de negociação coletiva; 4.2.6 A questão dos serviços essenciais e o princípio da continuidade do serviço público; 4.3 Análise da decisão: o STF atropelou a competência do legislativo?; 4.4 Recentes posicionamentos do STF; 4.4.1 Quem não pode fazer greve?;4.4.2 Pode haver punição aos grevistas?;5.Conclusão; Referências.
Como todo direito conquistado por uma sociedade, o direito de greve no Brasil nem sempre foi concedido ao servidor público. Na história das constituições brasileiras, ora se proibiu a greve, como ocorreu na Carta de 1937, ora se permitiu seu gozo apenas ao trabalhador da iniciativa privada. Foi somente com o advento da Constituição de 1988, que se deu a positivação do direito de greve do servidor público civil.
Contudo, o legislador constituinte de 1988 deixou o legislador ordinário incumbido de regulamentar o inciso VII do art.37 da CF/88, devido à necessidade de conciliar o direito de greve com os princípios da Administração Pública. Coube, portanto, ao Congresso Nacional editar lei complementar (conforme a redação original do dispositivo) e, posteriormente, lei específica (como determinou a EC n. 19/98), restando claro que tanto o legislador constituinte, assim como o reformador diferenciaram o direito de greve dos trabalhadores privados, do direito de greve do servidor público.
Descumprindo o que fora determinado pela Constituição de 1988, o Poder Legislativo não só se constituiu em mora, como sua omissão gerou uma problemática social, haja vista que os movimentos grevistas deflagrados, perduram, não raro, por meses, causando imenso prejuízo à economia. Ademais, a própria sociedade, por sofrer com a alta carga tributária imposta não necessariamente apoia a greve no setor público. Nas palavras de Ives Gandra Martins “tem-se falado muito, nos Tribunais, em direito dos servidores. Infelizmente, não se tem falado no direito da sociedade de receber serviços públicos, principalmente quando paga a mais alta carga tributária dos países emergentes em todo o mundo (…)” [1].
Frise-se, ainda, que há verdadeiros embates doutrinários e jurisprudenciais concernentes à eficácia do direito de greve do servidor público e, consequentemente, um questionamento quanto à eficácia das normas constitucionais. Afinal de contas, qual o valor das mesmas?
Ocorre que a inércia de quase vinte anos do Congresso Nacional em regulamentar o direito de greve levou o STF, em decisão tomada em 2007, a conhecer dos Mandados de Injunção (MIs) 670, 708 e 712 e aplicar por analogia a Lei nº. 7783/89, que cuida do exercício do direito de greve no setor privado. Em princípio, essa lei não poderia ser aplicada ao serviço público, conforme prescreve seu art. 16. Merece destaque o voto do Ministro Gilmar Ferreira Mendes nos autos do MI 708, onde foi proposta a aplicação da Lei. nº.7.783/89, no que couber, sendo facultado ao juízo competente impor um regime mais severo à greve do servidor público, devido aos serviços e atividades essenciais desempenhados.
O atual entendimento do STF (desde 2007) se fundamentou no Mandado de Injunção, cujo objetivo é suprir a omissão do legislador, quando a falta de norma impede o exercício de direitos e liberdades constitucionais. Anteriormente, o STF assumia atitude tímida quanto a esse remédio jurídico constitucional, declarando apenas a mora do poder responsável pela omissão.
Em face do exposto acima, objetiva-se responder as seguintes questões: a) Como a doutrina e a jurisprudência se posicionavam anteriormente à decisão de 2007 do STF? ; b) Qual a solução encontrada pelo STF para adequar a Lei n. 7.783/89 às peculiaridades do serviço público; c) Houve usurpação de competência por parte do Supremo, ou a Corte agiu nos limites que o princípio da separação dos poderes impõe?
2. O Direito de Greve no Ordenamento Jurídico Pátrio
2.1 Limitações Constitucionais
O direito de greve está inserido na Constituição Brasileira de 1988 no Título II, que trouxe o gênero DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS, do qual derivam as seguintes espécies, quais sejam, a) DIREITOS INDIVIDUAIS E COLETIVOS, b) DIREITOS SOCIAIS (art. 7 a 11, onde se encontra o direito à greve), c) DIREITOS À NACIONALIDADE (art. 12) e os d) DIREITOS POLÍTICOS (art. 14 a 17).
Visto que o direito de greve é um direito fundamental, e que a Constituição preconiza o direito à igualdade, poder-se-ia argumentar que o direito de greve não permite distinção entre o trabalhador do setor privado e o do setor público. Contudo, o princípio da igualdade deve ser visto com cautela, pois a constituição pode dispor em contrário. Nesse sentido, Celso Antônio Bandeira de Melo[2]enumera critérios para que seja possível discriminar sem ferir os interesses constitucionais.
“a) Que a desequiparação não atinja de modo atual e absolutamente um só indivíduo;
b) Que as situações ou pessoas desequiparadas pela regra de direito sejam efetivamente distintas entre si, vale dizer, possuam características, traços, nelas residentes, diferenciados;
c) Que exista, em abstrato, uma correlação lógica entre os fatores diferenciais existentes e a distinção de regime jurídico em função deles, estabelecida pela norma jurídica
d) Que, in concreto, o vínculo de correlação supra-referido, seja pertinente em função dos interesses constitucionalmente protegidos, isto é, resulte em diferenciação de tratamento jurídico fundamentada em razão valiosa -ao lume do texto constitucional- para o bem público.”
Ao se diferenciar a greve do setor público do setor privado, não se considera um indivíduo isolado, mas um grupo (servidores públicos) que, por sua vez, possui características distintas dos trabalhadores da iniciativa privada. Ademais, o ordenamento prevê, em abstrato, um regime jurídico distinto (servidor público/ regime do cargo público (estatutário) X empregado / regime celetista). Por fim, a ideia de tratamento jurídico diferenciado repousa na supremacia do interesse público.
Não raro, defende-se que os direitos fundamentais são absolutos. Todavia, aceitam-se limitações aos mesmos, mormente quando conflitam com outros também fundamentais. Nesse caso, a solução pode vir expressa, como prescreve o art. 5, XLVII, ou caberá ao intérprete decidir qual direito deve prevalecer, seguindo a regra da máxima observância dos direitos fundamentais envolvidos, julgando-a com a sua mínima restrição.[3] Assim, conforme o magistério de Walber de Moura Agra[4]
“Nenhum direito fundamental é absoluto (…) eles são limitados pelas demais prerrogativas constantes na Constituição e pelas normas infraconstitucionais que delimitam o seu sentido. As leis infraconstitucionais não podem cercear os direitos fundamentais, mas funcionam como regulamentações para sua concretização, expressando o modo de aplicá-los, como no caso das normas de eficácia limitada e de eficácia contida.”
Com efeito, o direito de greve é passível de limitação por estar inserido no mesmo título da Constituição que assegura outros direitos e garantias fundamentais, como o direito à vida, à liberdade, à igualdade, entre outros. Nesse sentido, assevera Alice Monteiro de Barros, in verbis:[5]
“A regulamentação é um imperativo, cujo objeto é garantir a efetividade do conteúdo essencial desses direitos (…). Impõe-se, portanto, sejam compatibilizados tais direitos e liberdades. A greve, mormente nos serviços essenciais, deverá ser exercida em harmonia com os interesses da coletividade, para evitar que os interesses de grupos determinados se sobreponham ao direito coletivo difuso, que se refere a toda comunidade.
Entretanto, consideramos que as condições impostas pela regulamentação devem ser razoáveis, de tal natureza que não constituam uma limitação às possibilidades de ação das organizações sindicais, sendo aceitáveis a obrigação de dar um prévio aviso, a obrigação de recorrer a procedimentos de conciliação e arbitragem, a adoção de medidas para respeitar os regulamentos de segurança e prevenção de acidentes, a obrigação de garantir um serviço mínimo à coletividade, limitado às operações estritamente necessárias, para não comprometer a vida, a segurança ou a saúde das pessoas no conjunto ou em parte da população”.
Em face do exposto acima, vê-se que as primeiras limitações ao direito de greve encontram-se na própria constituição, independentemente desse direito ser exercido pala iniciativa privada ou no serviço público. Seguindo, a ordem constitucional, a Lei 7.783/89, que regulamentou a greve no setor privado, corrobora algumas dessas restrições. Está expressamente previsto no art. 6º§ 1º que nem empregados nem empregadores poderão usar meios que violem ou constranjam os direitos e garantias fundamentais inseridos na Constituição.
Sergio Pinto Martins[6] ressalta que é evidente a regra do art. 4º, VII da Constituição, que adota a solução pacífica dos conflitos nas relações internacionais, ser empregada no direito interno. No mesmo sentido, o art. 2º da Lei n. 7.783/89 prescreve que o movimento grevista deve ser pacífico, vedando qualquer forma de violência (art. 5º, III, da CF/88).
Igualmente, a greve não pode violar o direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, pois se estaria afrontando o art. 5º, caput da Lei Maior. Para que não haja excessos aos limites constitucionais, o art. 6º§ 3º da Lei 7.783/89 dispõe que não poderão ser empregados quaisquer atos que causem ameaça ou dano à propriedade ou pessoa.
O exercício do direito de greve também deverá respeitar a liberdade de pensamento (art. 5º, VI da CF/88), e, portanto, veda-se coagir aqueles que não queiram aderir ao movimento. De igual monta, deve-se preservar a moral e a imagem das pessoas, assim como seu direito de livre locomoção (art. 5º, XV, da CF/88).
2.3. Demais limitações trazidas pela lei 7.783/89
Dispõe o art. 4º da lei n. 7.783/89 que cabe à “entidade sindical” instaurar a greve, devendo essa ser precedida de assembleia, com o quórum previsto nos estatutos. Assim, em se tratando de categoria ou profissão não organizada em sindicato, terá legitimidade a federação, e na sua falta, essa legitimidade transfere-se à confederação. Ressalte-se que, somente se não existir entidade sindical, caberá aos trabalhadores interessados constituir uma comissão para deliberar sobre a greve e representar, ou seja, substituir o sindicato nas negociações e no dissídio coletivo.
Antes da deflagração da greve, as partes deverão tentar a solução pacífica do conflito através da negociação direta ou da arbitragem. Somente após a frustração desses meios é facultada a cessação coletiva de trabalho (art. 3º da Lei 7.783/89). A negociação coletiva materializa-se através de acordo ou convenção coletiva.[7] Por sua vez, a arbitragem é conduzida por alguém alheio às partes.Nesse sentido, assevera Amauri Mascaro do Nascimento [8]que “tanto a negociação como a arbitragem suspendem o início da greve, porque a paralisação só poderá começar depois de verificada a impossibilidade de composição do conflito, através de um desses meios.” O artigo em comento mostra, portanto, que as duas situações postas à disposição são alternativas, e não simultâneas.
O mesmo art. 3º, em seu parágrafo único, também condiciona a deflagração do movimento à notificação da greve feita à entidade patronal correspondente, assim como aos empregados interessados. Ao sindicato patronal e ao empregador o aviso prévio deve ser de 48 (quarenta e oito) horas e, em se tratando de atividades essenciais, de 72 (setenta e duas) horas, para que sejam tomadas as providências necessárias.
É de bom alvitre ressaltar que, caso não sejam observadas as exigências formais, quais sejam, falta de realização de assembleia sindical, quórum mínimo previsto no estatuto da entidade sindical para a deliberação do movimento, tentativa de negociação prévia e devidas notificações, tornar-se-á a greve ilegal ou abusiva.
Por sua vez, o art. 6º preceitua os direitos e os deveres dos grevistas. Como visto, o direito de greve é um direito fundamental do trabalhador, mas que para ser exercido deve coexistir com os interesses dos empregadores e da sociedade. Por conseguinte, os grevistas deverão observar, no exercício do direito de greve, os direitos e garantias fundamentais de outrem. Dessa forma, por exemplo, os piquetes serão permitidos “desde que não ofendam as pessoas ou se cometam estragos em bens, ou venham a impedir que o trabalhador ingresse no trabalho[9]”.
Além do exposto, a lei de greve assegura aos grevistas o direito de arrecadarem fundos, que se destinam ao pagamento das despesas decorrentes do movimento, assim como para dar sua publicidade.
Obedecendo ao comando da Constituição de 1988, a Lei 7.783/89, em seu art. 9º e 10, trata dos serviços e atividades essenciais, sendo esses assim considerados, pois se não atendidos, colocam em perigo iminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população, conforme dispõe o art. 11. Portanto, não se proíbe a greve nessas atividades, mas deve-se manter uma equipe de empregados com o fim de assegurar a continuidade dos serviços, evitando, assim, prejuízos irreparáveis à comunidade.
Os serviços e atividades essenciais encontram-se listados no art. 10, sendo eles: tratamento e abastecimento de água, produção e distribuição de energia elétrica, gás e combustíveis; assistência médica e hospitalar; distribuição e comercialização de medicamentos e alimentos; funerários; transporte coletivo; captação e tratamento de esgoto e lixo; telecomunicações; guarda uso e controle de substâncias radioativas; equipamentos e materiais nucleares; processamento de dados ligados a serviços essenciais; controle de tráfico aéreo e compensação bancária.
Ademais, o art. 7º determina que a greve é considerada hipótese de suspensão do contrato de trabalho. Consequentemente, via de regra, não poderá haver rescisão contratual pelo empregador, admissão de empregados substitutos, nem pagamento de salários. Contudo, o parágrafo único do art. 7º abre a exceção de serem contratados trabalhadores substitutos, em caso de serviços necessários para a manutenção de máquinas e equipamentos. O mesmo ocorre se houver abuso do direito de greve.
Segundo Sérgio Pinto Martins,[10] alguns tribunais têm determinado o pagamento dos dias parados, independentemente da greve ser abusiva ou não, condicionando a volta imediata ao trabalho. Entretanto, o citado autor não concorda com esse posicionamento.
“A todo direito corresponde um dever e também um ônus. O direito de fazer greve está caracterizado na Constituição (art. 9º), porém o ônus é justamente o de que, não havendo trabalho, inexiste remuneração. Um dos componentes do risco de participar de greve é justamente o não-pagamento dos salários relativos aos dias parados. Mandar pagar os dias parados seria premiar e incentivar a greve. As consequências da greve devem ser suportadas por ambas as partes: pelo empregador, que perde a prestação de serviços durante certos dias e, em consequência, deixa de pagar os dias não trabalhados pelos obreiros; pelo empregado, que participa da greve, ficando sem trabalhar, mas perde o direito ao salário dos dias em que não prestou serviço”.
Há a possibilidade das partes acordarem o pagamento de salários durante a greve, caracterizando interrupção do contrato de trabalho, e não suspensão. Inexistindo acordo entre as partes, caberá a Justiça do Trabalho decidir. Além disso, se a greve é considerada abusiva, os salários não devem ser pagos, como assevera o autor supracitado. Nessa linha, tem -se posicionado o TST.[11]
Por fim, merece comentário a questão da responsabilidade pelos atos praticados durante a greve. Ensina Alice M. de Barros[12] que o sindicado, por ser pessoa jurídica de direito privado, deve responder pelo ilícito civil que cometer. Contudo, visto que as responsabilidades trabalhista e penal são de caráter individual, limitam-se aos autores.
3 O Direito de Greve do Servidor Público à Luz da doutrina e da Jurisprudência: O Cenário Anterior à Decisão Histórica do STF.
3.1 Eficácia e aplicabilidade do art. 37, VII da CF/88: o modelo de José Afonso da Silva
Muito já se debateu acerca da classificação das normas constitucionais. Nessa esteira, aduz José Afonso da Silva[13] que, apesar de não haver norma constitucional destituída de eficácia, nem toda norma positivada na Lei Maior goza de aplicabilidade imediata, eis que algumas dependem de regulamentação infraconstitucional.
Definir a eficácia e, consequentemente, a aplicabilidade do art. 37, VII da CF/88 é de suma importância, pois dependendo da interpretação dada, o direito de greve do servidor público pode ser exercido sem regulamentação infraconstitucional. Para tanto,
escolhemos o modelo proposto por José Afonso da Silva.
Primeiramente, cumpre distinguir entre eficácia e aplicabilidade. Conforme leciona o autor supracitado,[14] os dois institutos estão associados, sendo a aplicabilidade corolário da eficácia. Essa diz respeito à potencialidade, enquanto aquela à realizabilidade. Assim, as normas constitucionais classificam-se em classificação: 1) Normas constitucionais de eficácia plena e aplicabilidade imediata, que são aquelas que “podem produzir todos os efeitos essenciais, relativamente aos interesses, comportamentos e situações que o legislador constituinte, direta e normativamente quis regular” Em outras palavras, são auto-aplicáveis e, portanto, não há a necessidade de regulamentação infraconstitucional; 2) Normas constitucionais de eficácia contida e aplicabilidade imediata, mas passíveis de restrição. Sua eficácia e aplicabilidade não dependem da regulamentação do legislador ordinário, porém são passíveis de limitações futuras; 3) normas constitucionais de eficácia limitada ou reduzida, que, possuindo aplicabilidade mediata subdividem-se em a) definidoras de princípio institutivo; b) definidoras de princípio programático. As primeiras são dotadas de eficácia reduzida, e “preveem esquemas genéricos de instituição de um órgão ou entidade, cuja estruturação definitiva o legislador constituinte deixou para a legislação ordinária”.[15] As últimas podem ou não indicar legislação futura e caracterizam-se por nortearem princípios a serem seguidos pelo Estado para atender aos fins sociais.
Diante da classificação exposta, passa-se a apresentar doutrinariamente as interpretações doutrinárias e jurisprudenciais dadas ao art. 37, VII da CF/88. Não há unanimidade quanto à eficácia do art. 37, VII da CF/88, defendendo uma corrente que a norma é de eficácia limitada, ao passo que outra advoga pela eficácia contida. Descarta-se a possibilidade da norma gozar de eficácia plena, visto que o dispositivo faz referência expressa à atuação futura do legislador.[16]
José Afonso da Silva[17] conclui pala eficácia limitada e, portanto, não- aplicabilidade do direito de greve enquanto não sobrevier norma regulamentadora. Aduz o autor que:
“(…) quanto à greve, o texto constitucional não avançou senão timidamente, estabelecendo que o direito de greve dos servidores públicos será exercido nos termos e nos limites definidos em lei complementar, o que, na prática, é quase o mesmo que recusar o direito prometido; primeiro porque se a lei não vier, o direito inexistirá; segundo porque vindo, não há parâmetro para o seu conteúdo, tanto pode ser mais aberta, como mais restritiva.”
Por sua vez, Maria Silvia Zanella di Pietro[18] defende que o direito à livre associação é auto-aplicável, enquanto o direito de greve do servidor público depende de lei. Nesse sentido, José dos Santos Carvalho Filho [19] argumenta que:
“O direito de greve constitui, por sua própria natureza, uma exceção dentro do funcionalismo público, e isso porque, para os serviços públicos, administrativos ou não, incide o princípio da continuidade. Desse modo, esse direito não poderá ter a mesma amplitude do idêntico direito outorgado aos empregados da iniciativa privada. Parece-nos, pois, que é a lei ordinária específica que vai fixar o real conteúdo do direito e, se ainda não tem conteúdo, o direito sequer existe, não podendo ser exercido, como naturalmente se extrai dessa hipótese.”
Defendendo a eficácia contida do artigo em epígrafe cite-se, por exemplo, Celso Antônio B. de Melo[20], esclarecendo que:
“Tal direito existe desde a promulgação da Constituição. Deveras, mesmo a falta de lei, não se lhes pode subtrair um direito constitucionalmente previsto, sob pena de admitir-se que o Legislativo ordinário tem o poder de, com sua inércia até o presente, paralisar a aplicação da Lei Maior, sendo, pois, mais forte do que ela. Entretanto, é claro que, para não decair da legitimidade da greve, os paredistas terão de organizar plantão para atender determinadas situações: as de urgência ou que, de todo modo, não possam ser genérica e irrestritamente subtraídas à coletividade sem acarretarem danos muito graves ou irreparáveis. De fato, a atual Constituição não é individualista e expressamente prestigiou os chamados direitos coletivos e difusos.”
Nessa esteira, assevera Arnaldo Sussekind[21] que a norma é de eficácia contida, podendo a lei estabelecer limitações, nunca negar o direito já existente. Para ele a Lei n. 7.783/89 pode ser invocada por analogia nas greves de servidores públicos, naquilo que não for incompatível com a natureza e os objetivos do serviço público.
Em suma, se o direito de greve do servidor público tiver eficácia limitada, subordinar-se-á à edição da lei específica. Por outro lado, se tiver eficácia contida, o direito terá aplicação imediata, podendo a legislação futura vir a restringir o seu alcance.
O STF entendeu nos MIs 20/DF e 438/GO que a norma inscrita no art. 37, VII, da CF, é de eficácia limitada, desprovida, consequentemente, de auto-aplicabilidade, dependendo da edição de lei infraconstitucional.[22]
“Mandado de Injunção coletivo- Direito de Greve do Servidor Público Civil- Evolução do constitucionalismo brasileiro- Modelos normativos no direito comparado- Prerrogativa jurídica assegurada pala Constituição (art. 37, VII)- Impossibilidade de seu exercício antes da edição de lei complementar –Omissão Legislativa –Hipótese de sua configuração-Reconhecimento do Estado de mora do Congresso Nacional-Impetração por entidade de classe -Admissibilidade-Writ concedido” (MI 20-4-DF, j.19-05-94, Rel. Min. Celso de Melo, in LTr 58-06/647)
Já a jurisprudência do STJ é bastante oscilante, ora atribuindo ao direito de greve eficácia contida[23], ora eficácia limitada[24].
3.3 Competência
3.3.1 Para a edição da lei (lei complementar X lei específica)
A redação original do art. 37, VII da Constituição de 1988 dispunha que: “O direito de greve será exercido nos termos e nos limites definidos em lei complementar.” (grifo nosso). Posteriormente, a Emenda Constitucional 19/98 alterou a redação do dispositivo, passando a não mais exigir lei complementar, e sim, lei específica.
A nova redação veio, indubitavelmente, para facilitar a edição de uma lei que disciplinasse o direito de greve do servidor público, haja vista que da promulgação da Constituição à edição da EC n.19, havia um lapso temporal de 10 (dez) anos. Ora, não mais se requereu o quórum de lei complementar, ou seja, a maioria absoluta dos membros de ambas as Casas Legislativas, mas o exigido para a aprovação de lei ordinária. Contudo, mesmo diante da exigência de um quórum facilitado, a referida lei nunca foi editada.
José dos Santos Carvalho Filho[25] entende que a lei específica deve ser federal e aplicável a todos os entes federados. Alega o citado autor que:
“(…)se trata de dispositivo no capítulo da ‘Administração Pública’, cujas regras formam o estatuto funcional genérico e que, por isso mesmo, têm incidência em todas as esferas federativas. À lei federal, caberá enunciar, de modo uniforme, os termos e condições para o exercício do direito de greve, constituindo-se como parâmetro para toda a administração.”
Em contrapartida, argumenta Sergio Pinto Martins[26] que deve haver uma lei específica, editada pelo Congresso Nacional para tratar da greve dos servidores públicos da União, leis ordinárias votadas pelas Assembleias Legislativas dos Estados e, sucessivamente, nas Câmaras dos vereadores de cada município. Daí o constituinte ter utilizado o termo lei específica, e não simplesmente, lei ordinária.Nesse sentido, também entende Maria Silvia Zanella di Pietro[27], aduzindo que a matéria do servidor público não é privativa da União e, portanto, cada esfera do governo deve disciplinar o direito de greve por lei própria.
Independentemente de ser uma lei uniforme para todos os entes da federação, ou lei editada por cada um dos entes federados, a lei específica deverá regular matéria de Direito Administrativo, pois tratará da greve do servidor público. Apesar de concordarmos com o posicionamento de que cada ente da federação tem competência para estabelecer regras sobre o exercício do direito de greve pelos seus servidores, não se pode negar a dificuldade para a edição de tantas leis. Ora, se, em vinte anos, a iniciativa para a edição de uma lei para todos os entes federados não passou de projetos de lei, quanto tempo devemos esperar para que o direito de greve do servidor público seja regulamento por cada ente federado?
3.3.2 Para a solução dos conflitos de greve
A Constituição de 1988, em seu art. 114 dizia que competia à Justiça do Trabalho processar e julgar “as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”.
A EC n. 45/04, que dentre as mudanças trazidas, ampliou a competência da Justiça do Trabalho, manteve a redação anterior, passando para o inciso I do art. 114, assim como acrescentou a competência da Justiça do Trabalho para processar e julgar “as ações que envolvam o exercício do direito de greve. (art. 114, II)”
Todavia, o Supremo Tribunal Federal, em 1º de janeiro de 2005 concedeu liminar, com efeito ex-tunc, na ação Direta de Inconstitucionalidade 3395-6, dando a interpretação no sentido de excluir qualquer interpretação que atribuísse à Justiça do Trabalho competência para julgar causas entre o Poder Público e seus servidores, devido à relação estatutária entre esses.
Saliente-se que, para José dos Santos Carvalho Filho[28], o art. 114, II, com a redação dada pela EC 45/04 é vigente e estabeleceu a competência da Justiça do Ttrabalho para processar e julgar as ações que envolvam o exercício da greve. Assim leciona que:
“Como o direito de greve é assegurado a todos os servidores públicos, quaisquer litígios sobre a legitimidade, ou não, do exercício desse direito dever ser submetidos à justiça trabalhista, inclusive quando se tratar de greve de servidores estatutários, pois que nenhuma distinção o dispositivo fez quanto à natureza dos grevistas.”
Contrária a essa opinião, Maria Silvia Zanella di Pietro[29] sempre defendeu que à primeira vista têm-se a impressão de que a competência de que trata o art. 114 é da Justiça do Trabalho, mas deve ser compatibilizado com as demais normas constitucionais. Para a autora, os dissídios coletivos de competência de Justiça do Trabalho devem envolver apenas os servidores regidos pela CLT, ou seja, aqueles vinculados às empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações privadas, regidos pelo art. 173 da Constituição de 1988.
Em outra ocasião, o STF, em sede de ADIn julgou inconstitucional a alínea “e” do art. 240 da Lei 8.112/90, que tratava da competência da Justiça do Trabalho para julgar dissídios individuais e coletivos envolvendo servidores públicos.
Sérgio Pinto Martins[30] perfilha a opinião de que a competência para decidir sobre a greve de servidores públicos não será da Justiça do Trabalho. Essa só terá competência quando a Administração Pública tiver empregados. Nesse sentido, serão da competência da Justiça Federal as questões atinentes aos servidores públicos federais, e competirá à Justiça Comum as questões que envolvam servidores estaduais, distritais e municipais.
3.4 Por que a Lei nº. 7.783/89, em princípio, não se aplicaria à greve do servidor público?
Durante muitos anos, não se vislumbrava a possibilidade de se aplicar a Lei 7.783/89 à greve do servidor público, pelas razões abaixo expostas.
Primeiramente, frise-se que a redação original do art. 37, VII da Constituição de 1988 previa a edição de lei complementar. A lei 7.783/89 não goza de status de lei complementar, e sim, de lei ordinária. Ademais, mesmo que a EC n. 19/98 tenha deixado de exigir lei complementar, passando a mencionar lei específica (entenda-se ordinária), o art. 16 da Lei 7.783/89 dispõe que “para os fins previstos no art. 37, VII da Constituição, lei complementar definirá os termos e os limites em que o direito de greve poderá ser exercido”. Isso implica em dizer que, além de na época haver a exigência de lei complementar, a Lei 7.783/89 foi editada para regular a greve na iniciativa privada, e não no serviço público.
Ressalte-se, ainda, que o próprio art. 2º da Lei 7.783/89, ao conceituar greve, refere-se ao empregador. Portanto, trata-se de uma relação jurídico-laboral decorrente do regime trabalhista, regida pelo contrato de trabalho e subordinada à Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Ora, o ente público não é empregador, havendo, portanto, entre ele e o servidor público relação estatutária, e não contratual. Assim, o servidor público, por ser legalmente investido em cargo público, possui uma relação jurídica com a Administração (direta, autárquica e fundacional) institucional e não contratual.
Impende ressaltar que a Constituição de 1988, ao dispor sobre o direito de greve, colocou de um lado os empregados da iniciativa privada e de outro os servidores públicos. Os primeiros são regidos pelo art. 9º da Constituição Federal, tendo seu exercício regulado pela Lei 7.783/89. Por sua vez, encontra-se referência aos últimos no art. 37, VII da CF/88. Resta saber, contudo, quem são os servidores públicos, ou seja, aqueles que gozam de legitimidade para exercer o direito de greve no serviço público.
Maria Silvia Zanella di Pietro[31] anota que a Constituição de 1988 ora emprega a expressão “servidor público” em sentido amplo, ora em sentido menos amplo. No primeiro, designa todas as pessoas físicas que prestam serviços ao Estado e às entidades da Administração Indireta, com vínculo empregatício, enquanto no segundo, exclui os que prestam serviços às entidades com personalidade jurídica de direito privado. A par desses, existem preceitos aplicáveis ao que exercem funções legislativas e jurisdicionais e àqueles que exercem função pública sem vínculo empregatício.
Diante do exposto, a doutrina administrativista brasileira entendeu por bem falar em “agente público” para se referir a “todos os que, por qualquer vínculo ou atividade, exerçam uma função ou atividade pública, pouco importando que seja episódica ou definitiva, remunerada ou gratuita. O importante é que, com sua ação, influencie a Administração Pública e colabore para a realização se seus fins” [32]
Conforme ensinamentos de Celso Antônio Bandeira de Melo[33], os agentes públicos são o gênero do qual decorrem quatro espécies, quais sejam: a) agentes políticos; b) servidores públicos; c) militares e d) particulares em colaboração com o poder público.O referido autor conceitua agentes políticos como “os titulares dos cargos estruturais à organização política do país, isto é, são os ocupantes dos cargos que compõem o arcabouço constitucional do Estado e, portanto, o esquema fundamental do poder. Sua função é a de formadores da vontade superior do Estado.” Desse modo, são agentes políticos o Presidente da República, os Governadores, os Prefeitos (seus auxiliares imediatos- ministros e secretários), Senadores, Deputados e Vereadores.
Contudo, Hely Lopes Meirelles[34] emprega um sentido mais abrangente ao termo defendendo que “agentes políticos exercem funções governamentais, judiciais e quase-judiciais, elaborando normas legais, conduzindo os negócios públicos, decidindo e atuando com independência. São as autoridades públicas supremas do Governo e da Administração na área de sua atuação, pois não estão hierarquizadas, sujeitando-se apenas aos graus e limites constitucionais e legais de jurisdição. Em doutrina, os agentes políticos têm plena liberdade funcional, equiparável à independência dos juízes nos seus julgamentos”.
Por sua vez, Di Pietro segue as lições de Bandeira de Melo adotando uma posição mais estrita de agente político e mais ampla de servidor público.
José dos Santos Carvalho Filho[35] sugere inserir os membros da Magistratura, do MP, da Defensoria Pública e da Advocacia Pública como servidores públicos especiais, eis que executam funções de especial relevância, mencionadas pela Constituição Federal e sujeitos a um regime funcional diferenciado.
Feitas essas diferenças conceituais, filiamo-nos à definição de agentes políticos proposta por Hely Lopes Meirelles, notadamente, devido ao tratamento constitucional a eles reservado. Vale salientar que o STF no Recurso extraordinário 228.977/SP posicionou-se no sentido de inserir os magistrados na categoria de ‘agentes políticos’, por serem eles detentores de prerrogativas próprias e legislação específica. Corroborando esse posicionamento, a EC n. 45/2004 acrescentou os membros do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e as defensorias Públicas Estaduais, como integrantes do rol de Agentes Políticos.
No tocante aos servidores públicos, Bandeira de Mello os define como “pessoas físicas que prestam serviços ao Estado e às entidades da Administração Indireta, com vínculo empregatício e mediante remuneração paga pelos cofres públicos”. Eles se vinculam ao Estado sob qualquer vínculo funcional, dividindo-se em: a) servidores estatutários; b) empregados públicos, c) servidores temporários.
Saliente-se que os servidores estatutários, ao serem nomeados, ingressam no serviço público, ocupando um cargo público e, portanto, submetem-se ao regime estatutário. Já os empregados públicos são ocupantes de emprego público e, por conseguinte, são contratados sob o regime da legislação trabalhista (CLT). Por sua vez, os servidores temporários, como o próprio nome indica, exercem função temporária de excepcional interesse público e são submetidos ao regime jurídico administrativo da lei prevista no art. 37, IX, da CF/88.
Quanto aos militares, frise-se que esses prestam serviço ao Estado e se sujeitam a um regime jurídico próprio. (art. 42,§1º e 142, §3º, X da CF/88)
Por fim, os particulares em colaboração com o Poder Público que são “todos aqueles que sem perderem sua qualidade de particulares, exercem função pública, ainda que, em alguns casos, apenas em caráter episódico”. Podemos citar como exemplo: jurados, mesários, os que exercem serviços notariais e de registro, concessionários e permissionários, entre outros.
Rinaldo Guedes Rapassi[36] perfilha a opinião de que, em se tratando de uma lei que venha disciplinar o direito de greve junto à Administração Pública, a interpretação do termo que designa seus destinatários deve ser a mais ampla possível, compreendendo todos aqueles que estão a serviço remunerado das pessoas jurídicas de direito público (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), autarquias e fundações públicas.
Para o autor, excluem-se, portanto: a) os aposentados e pensionistas; b) os militares (por força do art. 42§ 1º e art. 142,§ 3º, IV); c) os empregados de empresa pública e sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços. A esses se aplica o regime jurídico das empresas privadas, sendo aplicável a legislação trabalhista sobre a greve, que é a Lei 7.783/89.
Com a devida vênia, preferimos retirar, também, do rol dos legitimados à greve do servidor público, os agentes políticos, (conforme a classificação de Ely Lopes Meirelles e posicionamento do STF).Ë bem verdade que há semelhanças entre os membros da magistratura e do ministério público com os servidores públicos, afinal de contas todos vinculam-se ao Estado, permanentemente, em decorrência de aprovação em concurso público e são remunerados pelos cofres públicos. Entretanto, a forma de investidura e a natureza estatutária não são suficientes para igualá-los aos servidores públicos.
Insta frisar que os membros da magistratura têm a função de dizer o direito em última instância e, portanto, exercem uma função essencial à soberania, além de se submetem à Lei Orgânica da Magistratura. Já os membros do Ministério Público zelam pelo respeito aos Poderes Públicos e também são regidos por um estatuto próprio. Assim, devido às funções constitucionais que exercem, sem falar nas prerrogativas a eles garantidas, optamos por não classificá-los com meros servidores públicos.
O óbice em aplicar a lei 7.783/89 ao setor público vai além de determinar quem é o servidor público. Alguns princípios administrativos, princípios esses que orientam os atos administrativos, sempre foram invocados impedindo a aplicação da lei do setor privado. Dentre outros, merecem destaque o princípio da continuidade do serviço público e o princípio da legalidade.
O princípio da continuidade do serviço público enseja que, se os serviços públicos buscam atender aos reclamos dos indivíduos em determinados setores sociais, sendo esses, não raro, necessidades inadiáveis, tais serviços não podem ser interrompidos. A greve, portanto, seria um fenômeno peculiar ao setor privado[37].
Em face disso, ao se garantir o direito de greve no inciso VII, do art, 37, relativizou-se o princípio em comento. A dificuldade repousa, ainda, em harmonizar direitos contrapostos. Assim, o direito de greve é exercitável desde que a coletividade não sofra prejuízos irreparáveis.
No tocante ao princípio da legalidade, reza o postulado que toda atividade administrativa deve ser autorizada por lei, caso contrário é ilícita[38]. Ora, se os direitos e deveres dos servidores públicos são determinados em lei, como reivindicar, por meio da greve, melhores condições de trabalho? Se não há norma específica, como prevista na constituição, como o direito de greve pode ser exercido?
3.5 Remuneração durante a greve.
Questão que sempre foi objeto de grande discussão diz respeito à remuneração do servidor público durante a greve.
Diante da mora do Poder Legislativo em regulamentar o direito de greve do servidor público o Presidente da República editou o decreto n. 1.480, de 03/05/95. Em suma, previu o referido decreto que as faltas decorrentes de participação de servidores públicos federais em greve não poderão ser objeto de abono, compensação, cômputo, para fins e contagem de tempo de serviço ou de qualquer vantagem que o tenha por base, podendo até ensejar a demissão do chefe imediato ou dos ocupantes de cargos ou funções comissionadas.
Frise-se que muitos alegam a inconstitucionalidade do decreto 1.480/95 por restringir o direito de greve do servidor público, pressionando-o a não suspender suas atividades ao descontar os dias parados. Contudo, a inconstitucionalidade não reside no desconto da remuneração, pois como explicado anteriormente, não há direito fundamental absoluto, ou seja, que não seja passível de relativização. Ao servidor público é garantido o direito de greve, cabendo a uma lei específica regulamentar seus limites.
De fato há inconstitucionalidade, visto que o Decreto. n. 1.480/95 deveria regulamentar uma lei, ou seja, a lei de greve do servidor público. Ora, a Constituição Federal de 1988 previu uma lei, em sentido formal, que exige discussão e votação no Congresso Nacional. Se a lei não existe, não há que se falar em decreto.Outrossim, concordamos com Carlos Henrique Bezerra Leite[39] quando defende ser o referido decreto de ‘constitucionalidade duvidosa’ por discriminar os ocupantes de cargo em comissão dos que percebem função gratificada.
“Ora, a Constituição não fez qualquer distinção entre os servidores públicos civis efetivos e os servidores ocupantes de cargo em comissão, sendo certo que as funções de confiança devem ser, por força da Emenda Constitucional n.19/98, ocupadas exclusivamente por servidores de cargos efetivos.”
Em suma, há inconstitucionalidade no decreto n.1.480 por ferir o princípio da igualdade entre os servidores públicos, e não no desconto dos dias parados.
O Superior Tribunal de Justiça, bem antes da decisão do STF em 2007, reconheceu a liberdade de exercício da greve, entretanto entendeu que devem ser descontados os dias de ausência do servidor grevista. É o que se depreende da leitura da seguinte ementa:[40]
“CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. PROFESSORES ESTADUAIS. GREVE. PARALISAÇÃO. DESCONTO DE VENCIMENTOS. O direito de greve assegurado na Carta Magna aos servidores públicos, embora pendente de regulamentação (art. 37, VII), pode ser exercido, o que não importa na paralisação dos serviços sem o consequente desconto da remuneração relativa aos dias de falta ao trabalho, à míngua de norma infraconstitucional definidora do assunto. Recurso desprovido.”
3.6 A questão da Negociação coletiva
A Constituição de 1988 não só positivou o direito de greve do servidor público, como também o direito à sindicalização, salvos aos militares (art. 142, VI). Todavia, em se tratando de firmar acordo ou convenção coletiva, decorrência lógica da negociação coletiva, o direito não foi conferido. A vedação expressa encontra-se no § 2º do art. 39 e, portanto, a negociação coletiva só é cabível no tocante aos empregados de empresa pública e sociedade de economia mista. Em face da impossibilidade supracitada, que constitui condição da ação, não há que se falar em dissídio coletivo.[41]
A maioria da doutrina brasileira defende a impossibilidade de acordos e convenções coletivas serem realizados sob os seguintes fundamentos:[42] Primeiramente, o princípio da supremacia do interesse público impede que a Administração Pública e o servidor público figurem em situação de paridade jurídica. Ao se ingressar no serviço público, sob o regime estatutário, permite-se à Administração Pública fixar unilateralmente as condições laborais. Ademais, diante do princípio da legalidade, a Administração Pública fica adstrita à lei e, portanto, qualquer vantagem ou aumento de remuneração só pode ser concedido mediante autorização específica na lei de diretrizes orçamentárias e prévia dotação orçamentária, não podendo exceder os limites na Lei de Responsabilidade Fiscal. Nesse sentido, dispõe o art. 37, X, (alterado pela EC n.19/98) exigindo que cada alteração de remuneração de cargo deverá ser feita por meio de edição de uma lei ordinária que trate desse assunto.
A matéria já se encontra sumulada (Súmula 679 do STF) nos seguintes termos: “A fixação de vencimentos dos servidores públicos não pode ser objeto de convenção coletiva”. Anteriormente, na ADin n. 492-1/600-DF, o STF já havia revogado as alíneas ‘d’ e ‘e’ do art. 240 da Lei n. 8.112/90, que previam direito à negociação coletiva e dissídio coletivo frente à Justiça do Trabalho. Vale citar o posicionamento de José dos Santos Carvalho Filho[43] acerca do assunto:
“Os sindicatos são entidades que servem como instrumento de pressão para dois tipos de reivindicação em favor dos trabalhadores: uma de caráter social e outra de caráter econômico. No caso do sindicato dos servidores, entretanto, é necessário o recurso à interpretação sistemática da Constituição. A matéria relativa aos vencimentos dos servidores obedece, como vimos, ao princípio da legalidade, isto é, são fixados e aumentados em função de lei. Esse princípio impede que haja negociação e reivindicação sindical de conteúdo econômico. Por isso mesmo, inviável será a criação de litígio trabalhista a ser decidido em litígios coletivos, como ocorre na iniciativa privada.”
Apesar da impossibilidade de negociação quanto à remuneração, defende-se que a negociação coletiva pode servir a outros interesses, quais sejam, os de caráter social. Nesse sentido, Evaristo de Moraes Filho[44] argumenta que apesar de nas maiorias das greves reivindicar-se melhor remuneração, não raro há outros motivos determinantes do movimento paredista.
Por sua vez, Antônio Álvares da Silva defende a negociação coletiva, mas não nos exatos moldes da iniciativa privada[45], haja vista ser a flexibilização da Administração Pública uma tendência nas sociedades democráticas modernas.
Pelo exposto, argumentamos que à negociação coletiva não se confere poderes para fixar a remuneração dos servidores, pois só cabe à lei, no sentido formal fazê-lo. Entretanto, reiteramos a opinião de que deve haver um canal de ligação entre a Administração Pública e seus servidores, na qual seja expressa a vontade coletiva dos que a ela pertencem. Assim, a negociação coletiva deve haver, sem necessariamente, gerar acordo ou convenção coletiva.
4 Direito de Greve Do Servidor Público: O STF Frente à Omissão Do Legislativo
4.1 O mandado de injunção como instrumento ao exercício dos direitos fundamentais.
O constituinte originário de 1988 inseriu no art. 5, LXXI da Constituição, o Mandado de Injunção, prescrevendo que “concerder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania”. Trata-se, portanto, de um remédio constitucional contra a inércia do poder competente, cuja incumbência, ou seja, obrigação jurídico-constitucional é regulamentar normas de eficácia limitada, para que certos preceitos constitucionais possam gozar de eficácia positiva. No dizer de Alexandre de Moraes[46]:
“O mandado de injunção consiste em uma ação constitucional de caráter civil e de procedimento especial, que visa suprir uma omissão do Poder Público, no intuito de viabilizar o exercício de um direito, uma liberdade ou uma prerrogativa prevista na Constituição Federal. Juntamente com ação direta de inconstitucionalidade por omissão, visa ao combate à síndrome de inefetividade das normas constitucionais.”
É bem verdade que há normas constitucionais de eficácia limitada e, portanto, carentes de regulamentação. Contudo, a omissão do poder competente não pode chegar ao ponto de enfraquecer a força normativa da Constituição. Portanto, o mandado de injunção limita a discricionariedade dos órgãos normativos, cuja omissão torna inviável o exercício dos direitos, liberdades e prerrogativas constitucionais.
Para que o MI seja cabível, alguns requisitos precisam ser preenchidos, quais sejam: a) falta de norma regulamentadora de direito fundamental e que essa ausência possa causar danos aos cidadãos; b) que haja mora por parte do órgão legislativo, superando um prazo razoável para a realização do ato legislativo, necessário a concretude normativa da Lei Fundamental.[47] Assim sendo, não cabe mandado de injunção que vise alterar lei ou ato normativo já existente para que se dê interpretação mais justa.[48]
Qualquer pessoa goza de legitimidade para ajuizar o mandado de injunção, cabendo, até mesmo, o mandado de injunção coletivo. Para o último, possuem legitimidade ativa as mesmas entidades do mandado de segurança.
É cediço que tanto o MI como a Adin por omissão procuram combater a chamada “síndrome de inefetividade das normas constitucionais”, mas não se confundem. Ressalte-se que além das diferenças entre os legitimados ativos e passivos, quanto à competência, há distinções marcantes quanto ao objeto dessas ações.
Em apertada síntese, o MI tem por objeto um caso concreto em que se leva ao conhecimento judicial a lesão sofrida, visando a um provimento judicial. Já na Adin por omissão, há uma análise em abstrato da omissão legislativa. Além disso, as duas ações diferem quanto à decisão judicial. Para melhor sustentar que o MI não é ação subsidiária da Adin por omissão, melhor recorrermos à lição de José Afonso da Silva[49].
“A tese é errônea e absurda porque: 1) não tem sentido a existência de dois institutos com o mesmo objetivo e, no caso, de efeito duvidoso, porque o legislador não fica obrigado a legislar; 2) o constituinte, em várias oportunidades na elaboração constitucional, negou ao cidadão legitimidade para a ação de inconstitucionalidade; por que teria de fazê-lo por vias transversas? 3) absurda mormente porque o impetrante de mandado de injunção para satisfazer o seu direito (que o moveu ao recorrer ao judiciário), precisaria recorrer a duas vias: uma a do mandado de injunção, para obter a regulamentação que poderia não vir, especialmente se ela dependesse de lei, pois o legislativo não pode ser constrangido a legislar; admitindo que obtenha a regulamentação, que será genérica, impessoal, abstrata, vale dizer por si não satisfatória de direito concreto; a segunda via é que, obtida a regulamentação, teria ainda que reivindicar sua aplicação em seu favor, que, em sendo negada, o levaria outra vez ao Judiciário para concretizar seu interesse , agora por outra ação porque o mandado de injunção não caberia.”
Quanto aos efeitos da decisão judicial a doutrina constitucionalista majoritária sempre defendeu, no MI a decisão teria aplicabilidade inter partes,por se tratar de um caso concreto, enquanto na ação direita de inconstitucionalidade por omissão, os efeitos seriam erga omnes. Contudo, não há unanimidade entre constitucionalistas e processualistas quanto aos efeitos do MI, tendo surgido posicionamentos distintos.
Uma das correntes é a denominada posição não concretista, que se fundamenta na separação dos poderes e cuja decisão do judiciário tem efeitos meramente declaratórios, cientificando o poder competente e solicitando que esse efetue a regulamentação normativa. Em crítica a esse posicionamento, assevera Pedro Lenza[50] que o mandado de injunção passaria a ter a mesmo escopo da Adin por omissão, tornando-se inócua a providência constitucional. Em igual sentido, posiciona-se Walber Agra, acrescentando que “diante da demora do órgão que deveria regulamentar o preceito constitucional e ocorrendo dano, o remédio, segundo o STF, seria pleitear o direito nas vias ordinárias.”[51]
Em contrapartida, há a posição concretista, que se subdivide em: concretista individual direta, concretista individual intermediária e concretista geral. Na primeira, implementa-se a eficácia da norma constitucional, mas o efeito desta valerá somente para o autor do mandado de injunção. Na segunda, o judiciário, ao julgar procedente o MI, fixa prazo para que o poder competente elabore a norma regulamentadora. Por último, na concretista geral, o judiciário regulamenta a matéria, produzindo sua decisão efeitos erga omnes.
A crítica que se faz a primeira corrente (posição não concretista), é que devido à natureza meramente declaratória, o MI tornar-se-ia inútil.
Quanto à segunda corrente, resta saber qual dela melhor se adequaria a resguardar o direito fundamental, sem interferir na esfera do Poder Legislativo. Filiamo-nos à posição concretista individual direta, pois o judiciário toma atitude mais incisiva na efetivação das normas constitucionais de eficácia limita, fazendo valer o princípio da supremacia da constituição e confere ao MI o seu mister sem atentar contra a separação dos poderes.
Não adotamos a posição concretista individual intermediária, visto que não mais se justifica conferir caráter mandamental à decisão, com prazo determinado para a regulamentação da norma, quando existe um lapso temporal de mais de 20 anos. Por fim, discordamos da posição concretista geral, pois, no dizer do ministro Moreira Alves[52], ao proclamar em sede de mandado de injunção, uma decisão com efeito erga omnes, estaria o “Supremo, juiz ou tribunal, que decidisse a injunção, ocupando a função do Poder Legislativo, o que seria claramente incompatível com o sistema de separação de poderes.”
4.2 A mudança de posicionamento do STF quanto à greve do servidor público
Ao citar, como exemplo, os MIs 20, 107, 485 e 585, Gilmar Ferreira Mendes[53] relatou que, nas diversas vezes que o Tribunal se manifestou sobre o direito de greve dos servidores públicos, “reconheceu unicamente a necessidade de se editar a reclamada legislação, sem admitir uma concretização direta da norma constitucional”.
Finalmente em 2007, o STF concluiu o julgamento dos MIs 670/ES, 708/DF e 712/PA, impetrados, respectivamente, pelo Sindicato dos Servidores Policiais Civis do estado do Espírito Santo- Sindpol, pelo Sindicato dos trabalhadores em educação do município de João Pessoa – Sintem e pelo Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário do estado do Pará.
Os referidos writs foram impetrados em face da mora do Congresso Nacional em regulamentar o art. 37, VII da Constituição Federal. Solicitou-se que não só fosse declarada a omissão do Poder Legislativo, assim como, a supressão da lacuna legislativa, através da regulamentação do direito de greve no serviço público. Ademais, pleiteou-se que o direito de greve fosse reconhecido.
No julgamento, decidiu-se conferir ao Mandado de Injunção eficácia plena, declarando, por unanimidade, a omissão legislativa e, por maioria, a aplicação da Lei 7.783/89, não integralmente, mas com as adaptações que as peculiaridades do serviço público exigem. Da decisão divergiram, parcialmente, os ministros Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa e Marco Aurélio sob os fundamentos de que a Lei 7.783/89 não se adequa às especificidades do serviço público e de que a decisão deveria limitar-se aos impetrantes.
Através dos votos dos relatores, passaremos a analisar a decisão.
4.2.1 Qual a eficácia do art. 37, VII segundo a atual posição do STF?
No MI 712/PA, o Ministro Eros Grau modificou seu ponto de vista, quanto à eficácia do art. 37, VII. Assim expôs:
“Isso me leva alterar posição que anteriormente assumi, ao afirmar que a norma veiculada pelo art. 37, VII é de eficácia contida. Pois é certo que ela reclama regulamentação, a fim de que seja adequadamente assegurada a coesão social. Por isso, ao adotarmos a classificação usual das normas constitucionais segundo o critério da eficácia, devo necessariamente tê-la como de eficácia limitada; e assim a tenho porque esta é a conclusão que necessariamente se extrai da Constituição no seu todo.”
4.2.2 Quais os Efeitos da Decisão?
No tocante aos efeitos da decisão, no MI 712/PA foi decidido, pela maioria, que não se deveria regular apenas o caso concreto, excluindo, assim, de se criarem tantas normas regulamentadoras, o que viria a ferir o princípio da igualdade. “Também aqui é preciso ter presente que não cumpre ao tribunal remover um obstáculo, que só diga respeito ao caso concreto, mas a todos os casos constituídos pelos mesmos elementos objetivos” .[54]
Quanto ao MI 708, o Ministro Gilmar F. Mendes citou o leading case que mudou o posicionamento da Corte, em se tratando de ampliação dos efeitos da decisão em mandado de injunção, equiparando os efeitos àqueles da ADin por omissão. “A decisão proferida no controle abstrato da omissão tem eficácia erga omnes, não tendo diferença fundamental da decisão prolatada no mandado de injunção.”
Por sua vez, no MI 670, o relator defendeu a eficácia inter partes da decisão:
“(…) ao emprestar-se eficácia erga omnes à tal decisão, como se pretende, penso que esta Suprema Corte estaria intrometendo-se, de forma indevida, na esfera de competência que a Carta Magna reserva com exclusividade aos representantes da soberania popular, eleitos pelo sufrágio universal, direto e secreto.”
4.2.3 A solução para suprir a lacuna do legislativo
No MI 712/PA, o Ministro Eros Grau sustentou que a Lei 7.783/89 não é suficiente para regulamentar a greve do servido público, cabendo a Corte traçar os parâmetros para que o direito de greve no setor público seja exercido. Nesse diapasão, merece destaque, o seguinte trecho de seu voto:[55]
“Por isso, tenho que a Lei n. 7.783, de 20/06/89, atinente à greve dos trabalhadores em geral, não se presta, sem determinados acréscimos, bem assim algumas reduções do seu texto, a regular o exercício do direito de greve pelos servidores públicos. Este reclama, em certos pontos, regulação peculiar (…).”
Semelhante à solução acima aventada, no MI 708 o Ministro Gilmar Ferreira Mendes propôs a solução para concretizar o direito de greve do servidor público, diante da mora injustificada do Poder Legislativo. Assim, apresentou um documento por ele elaborado conjugando a aplicação da Lei 7.783/89 com o projeto de lei da Deputada Federal Rita Camata. Merece destaque a seguinte passagem de seu voto:[56]
“Nesse quadro, não vejo mais como justificar a inércia legislativa à inoperância das decisões desta Corte. Comungo das preocupações quanto à não assunção pelo Tribunal de um protagonismo legislativo. Entretanto, parece-me que a não atuação no presente momento já se configuraria quase como uma espécie de “omissão judicial”. (…)
A esse respeito, em apêndice, ao meu voto, elaborei documento comparativo da Lei 7.783/1989 e o texto substitutivo ao Projeto de Lei n. 4.497/2001 (“que dispõe sobre os termos e limites do exercício do direito de greve pelos servidores públicos”), de autoria da então Deputada Federal Rita Camata, para disciplinar o exercício do direito de greve dos servidores públicos dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e a dos Municípios, previsto no art. 37, inciso VII da Constituição Federal.”
Diante da necessidade de compatibilizar a Lei 7.783/89 com as peculiaridades do serviço público, foram sugeridas algumas modificações, as quais se resumem a seguir: 1) Considera-se legítimo exercício do direito de greve a suspensão coletiva, temporária, pacífica, parcial, de prestação pessoal de serviços ao empregador. Portanto, não é lícita a paralisação total. 2) A administração deve ser notificada da paralisação com antecedência mínima de 72 horas, e não mais de 48 (quarenta e oito horas). 3) O sindicato dos servidores, responsável pela declaração da greve, obriga-se a entrar em acordo com o estado para garantir a continuidade do serviço público. 4) A Administração terá o direito de contratar agentes para garantir a continuidade dos serviços paralisados, firmado um contrato por prazo determinado.5) O não cumprimento da regular continuidade da prestação de serviço público caracterizará abuso do direito de greve.
Por seu turno, no MI 670, o Ministro Ricardo Lewandowski asseverou que a decisão não deve ser meramente declaratória, nem tão pouco constitutiva. Ao discorrer sobre as três correntes a serem seguidas em sede de mandado de injunção, o ministro defendeu garantir o exercício do direito de greve, sem legislar.
“Embora comungue da preocupação de que é preciso dar efetividade às normas constitucionais, sobretudo àquelas que consubstanciam direitos fundamentais, estou convencido que o Judiciário não pode ocupar o lugar do poder ao qual o constituinte, intérprete primeiro da vontade soberana do povo, outorgou a sublime função de legislar.”
4.2.4 Justificativas apresentadas para a concretização
Várias foram as razões apresentadas para a mudança de posicionamento da Suprema Corte quanto à adoção da teoria concretista.
No MI 712/PA, o relator asseverou que a falta de norma regulamentadora não pode inviabilizar o exercício de um direito, eis que cabe ao juiz, não havendo norma legal ou sendo omissa a existente, fazer uso da analogia, dos costumes e dos princípios gerais do direito, salvo se houver alguma regra proibitiva quanto a esses métodos de integração.
Foi argumentado que, ao intervir supletivamente, o Judiciário deve respeitar o princípio da separação dos poderes, e assim, expôs como é possível dar concreção a um preceito fundamental, sem usurpar de competência. Primeiramente, defendeu-se que o Judiciário pode agir mais incisivamente, suprindo a lacuna legislativa, quando a norma não foi elaborada no prazo previsto ou no prazo que o tribunal entenda razoável.
Asseverou-se também que, ao se suprir a lacuna legislativa, o judiciário estará exercendo função normativa e não legislativa.
No MI 708, a justificativa apresentada ressaltou a mora injustificada do Poder Legislativo e a necessidade de se garantir os direitos constitucionais outorgados.[57]
“De resto, uma sistêmica conduta omissiva do Legislativo pode e deve ser submetida à apreciação do Judiciário (e por ele deve ser censurada) de forma a garantir, minimamente, direitos constitucionais reconhecidos (CF, art.5º, XXXV) Trata-se de uma garantia de proteção judicial efetiva que não pode ser negligenciada na vivência democrática de um Estado de Direito” (CF, art. 1º)
No tocante ao MI 670, o Ministro Ricardo Lewandowski justificou seu posicionamento, alegando que as diferenças existentes entre a greve do servidor público e a greve na iniciativa privada são tão marcantes que não ensejam analogia. Em suas palavras:
“Não vejo, permito-me repetir, semelhança relevante entre a greve dos trabalhadores do setor privado e a greve dos servidores públicos. Com efeito, não reconheço identidade jurídica entre os dois fenômenos que autorize a aplicação da Lei 7.783/89 ao serviço público. (…) O raciocínio por analogia, no Direito, somente é lícito se as duas situações, a regulamentada e a não-regulamentada, tenham em comum a mesma ratio legis.”
4.2.5 Quanto à possibilidade de negociação coletiva
A questão da negociação coletiva não foi explicitamente tratada nos votos. Todavia, ressalte-se que não houve modificação no caput do art. 3º da Lei 7.783/89 ao ser aplicado à greve do servidor público.
4.2.6 A questão dos serviços essenciais e o princípio da continuidade do serviço público
No MI 712/ PA O Ministro Eros Grau enfatizou a importância de conciliar o direito de greve do servidor público com a prestação continuada dos serviços públicos. “O que deve ser regulado (…) é a coerência entre o exercício do direito de greve pelo servidor público e as condições necessárias à coesão e interdependência social, que a prestação continuada dos serviços públicos assegura.”
Ao concluir seu voto no MI 708, Gilmar Ferreira Mendes enfatizou que os serviços públicos são “serviços ou atividades essenciais” e, em razão da continuidade dos mesmos, requer um tratamento mais rígido, sem deixar de reconhecer o direito de greve.[58]
Nesse sentido, no MI 670, que as conseqüências de uma paralisação de servidores públicos são diferentes de uma paralisação na área privada, ensejando tratamento diferenciado. Portanto, a regulamentação do direito de greve deve atender às especificidades do serviço público e, ao mesmo tempo, resguardar os interesses da coletividade.
4.2.7 A quem compete solucionar os conflitos?
Nesse sentido, no MI 708 o STF fixou as regras de competência até que o Congresso Nacional venha a regulamentar a matéria. Nessa esteira, os dissídios de greve instaurados entre o Poder Público e os servidores públicos serão apreciados da seguinte forma:[59]
“Se a paralisação for de âmbito nacional, ou abranger mais de uma região da Justiça Federal, ou ainda, compreender mais de uma unidade da Federação, a competência para o dissídio de greve será do STJ (por aplicação analógica do art. 2º, I, a), da Lei 7.701/1988)
Ainda no âmbito federal, se a controvérsia estiver adstrita a uma única região da Justiça Federal, a competência será dos Tribunais Regionais Federais (aplicação analógica do art. 6º da Lei 7.701/1988)
Para o caso da jurisdição no contexto estadual ou municipal, se a controvérsia estiver adstrita a uma unidade da Federação, a competência será do respectivo Tribunal de Justiça (também por aplicação analógica do art. 6º da Lei 7.701/1988)
As greves de âmbito local ou municipal serão dirimidas pelo Tribunal de Justiça, ou Tribunal Regional Federal com jurisdição sobre o local da paralisação, conforme se trate de greve de servidores municipais, estaduais ou federais.”
4.3 Análise da decisão: o STF atropelou a competência do legislativo?
Como visto, durante vários anos, nossa Suprema Corte adotou a teoria não-concretista, na qual a decisão judicial não supria a omissão legislativa, mas apenas constituía em mora o Pode Competente para editar a lei, afastando, assim, o argumento de que estaria afrontando o princípio da separação dos poderes, preconizado no art. 2º da Constituição.
Verifica-se que, paulatinamente, o STF evoluiu seu posicionamento, não só reconhecendo a omissão do Legislativo, mas fixando um prazo para o suprimento da referida lacuna, embora sem sucesso. Todavia, só com os julgamentos dos Mandados de Injunção n. 670/ES, 708/DF e 712/PA, foi possível concretizar um direito constitucionalmente insculpido, mas carente de regulamentação. Ademais, regulamentou-se a omissão com efeito erga omnes, equiparando o Mandado de Injunção à Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão.
Em face do exposto, mister se faz nos posicionarmos no que tange à nova posição da Suprema Corte.
Com efeito, não há como não concordamos com a opinião de que as decisões do judiciário não devem apenas declarar o direito aventado, e sim, serem dotadas de eficácia. Afinal, de que serviria bater às portas do judiciário, se não houvesse a possibilidade de concretização do direito pleiteado? Ora, o direito de greve do servidor público está inscrito na Constituição e, portanto, qualquer lei que venha a discipliná-lo não poderá suprimir esse direito, mas tão-somente traçar parâmetros para que não ocorra abuso do mesmo.
A par disso, cumpre ressaltar que, mesmo sendo o art. 37, VII, norma de eficácia limitada e, por conseguinte, dependente de regulamentação, o Mandado de Injunção é um remédio jurídico constitucional posto à disposição da sociedade para que haja o controle das omissões legislativas, leia-se das normas de eficácia limita. Por conseguinte, é poder-dever doJudiciário dar ao MI o seu real alcance, eis que lhe incumbe aplicar as normas constitucionais.
Entretanto, é imperioso verificar até que ponto o Judiciário pode exercer sua competência, fazendo uso do remédio constitucional supracitado, sem ferir o princípio da separação dos poderes. Seria possível filiar-se à posição concretista sem usurpar da competência legislativa?
Antônio Álvares da Silva comunga da opinião de que o Judiciário deve desempenhar papel mais incisivo (posição concretista geral), sob pena de seu próprio descrédito diante da sociedade. Assim, aduz que:[60]
“Essas leis não vieram, nem o STF agia no sentido de colmatar a lacuna. Assistia, simplesmente, como espectador neutro, ao drama social sem nele intervir, embora pudesse prestar relevante serviço à sociedade, como agora de fato prestou, dando ao MI a função que a Constituição lhe indicou. Não se limita mais a um mero “noticiar” de mora legislativa ao poder omisso. Agora se ergue em autêntico supridor da omissão no caso concreto até que a norma geral de competência do Legislativo venha.”
Em que pese à opinião do jurista, preferimos seguir os ensinamentos de José Afonso da Silva[61], quando discorre sobre o Mandado de Injunção. Para o autor, não resta dúvida de que a finalidade dessa ação constitucional consiste em conferir imediata aplicabilidade à norma inerte em virtude de ausência de regulamentação. Em outras palavras, o Mandado de Injunção deve realizar concretamente em favor do impetrante, mas não visa obter a regulamentação prevista na norma constitucional.
“É equivocada, portanto, data vênia, a tese daqueles que acham que o julgamento do mandado de injunção visa à expedição da norma regulamentadora do dispositivo constitucional dependente de regulamentação, dando a esse remédio o mesmo objeto da ação de inconstitucionalidade por omissão.”
De fato, mesmo que se argumente que a mora desarrazoada do legislador legitimaria o STF, guardião da Constituição, a exercer o chamado sistema de freios e contrapesos, na busca da concretização dos objetivos constitucionais, não cabe ao judiciário legislar. Insta frisar que é plenamente possível conceder o direito (posição concretista individual direta) sem legislar. Ora, a lacuna de vinte anos do Legislativo pode ser suprimida garantindo ao servido público o exercício do direito de greve, como sustentou o voto, vencido, do Ministro Ricardo Lewandowski.
Por outro lado, a partir do momento que se perfilha a posição concretista geral, com efeito erga omnes, não se estar apenas interferindo na esfera de competência do Legislativo, como também dando tratamento análogo à ADin por Omissão. Esses, embora tenham o mesmo pressuposto existencial, não se confundem.
Outrossim, argumentaram, em seus votos, os Ministros Eros Grau e Gilmar Ferreira Mendes que aplicar-se-ia a analogia como forma de integração da norma constitucional não regulamentada, conforme preceituam o art. 4 da Lei de Introdução ao Código Civil[62] e o art. 126 do Código de Processo Civil[63]. Entretanto, quanto à greve do servidor público, não cabe fazer uso da analogia. Ora, a analogia não requer apenas casos semelhantes, mas, sobretudo, aplicar às hipóteses não previstas, o dispositivo de uma hipótese prevista e semelhante.[64]A par disso, frise-se que: [65]
“A analogia pressupõe omissão involuntária do legislador. Não se deve confundi-la com a interpretação extensiva, que é a técnica da interpretação da lei que estende o seu alcance aos casos que o legislador previu, mas não conseguiu expressar no texto legal.”
Recorrer à analogia como meio de integração da norma, data venia, é uma visão equivocada. Primeiramente, porque há mais diferenças entre a greve da iniciativa privada e a greve no setor público do que semelhanças. Além disso, a greve do servidor público foi prevista pelo constituinte originário e, portanto, não há que se falar em analogia. Por fim, insta frisar que, além da aplicação da Lei 7.783/89, foram propostas diretrizes para compatibilizar a lei da iniciativa privada às peculiaridades do serviço público. Seria isso recorrer à analogia ou legislar?
Ao regulamentar o direito de greve do servidor público, o STF acabou suscitando questões que têm causado controvérsias. O art. 3 caput da Lei 7.783/89 foi recepcionado, sem restrições, gerando interpretações de que a negociação coletiva seria cabível. Já no MI 708, menciona-se o dissídio de greve. Estaria o Supremo admitindo a possibilidade de negociação coletiva nos moldes da iniciativa privada? Seria uma negociação informal entre o sindicato e o governo? Ou o STF deixou passar in albis questão de tamanha importância na função atípica de criar a norma? O fato é que, um dos motivos da negociação coletiva do setor privado não se aplicar ao setor público é porque naquela requer-se a existência de dois ou mais sindicatos, enquanto na negociação com o Estado só existe um, ou seja, o da categoria profissional.
Além da negociação coletiva, têm-se questionado acerca da competência para dirimir os conflitos de greve, já que o voto do Ministro Eros Grau nada dispôs sobre a matéria.[66]
Antônio Álvares da Silva[67], à guisa de exemplificação, defende a competência da Justiça do Trabalho. Em seu livro intitulado A Greve no Serviço Público depois da decisão do STF, o jurista analisa o voto do Ministro Eros Grau no MI 712 e conclui que não foi excluída a competência da Justiça do Trabalho. Assim afirma: “Pelo contrário. No elenco dos artigos adaptados foi acolhida, sem qualquer restrição, referências à Justiça do Trabalho”.
Em seguida, para corroborar seu argumento, citou a ADIN 3595: “Não se falou, no longo acórdão de 44 páginas, em sindicato ou direito coletivo uma vez sequer.” Continuou sua explanação dizendo que o STF, no art. 114, I da CF/88 interpretou a relação de trabalho com a Administração Pública como sendo de natureza administrativa. Todavia, a Constituição era clara ao conferir, em seu art. 114, II à Justiça do Trabalho “processar e julgar as ações que envolvam o direito de greve”.
Com a devida vênia, não concordamos com a opinião do citado autor. Ora, se o STF retirou da competência da Justiça do Trabalho qualquer interpretação que inclua o Poder Público e seus servidores, não parece razoável, em se tratando de greve do servidor público, continuar conferindo à Justiça do Trabalho essa competência, salvo se o dissídio coletivo envolvesse celetistas.
Em suma, ressalte-se que, embora o STF tenha se utilizado do MI como técnica adequada para o controle das omissões, defendemos que a posição concretista geral fere a separação dos poderes. Melhor teria agido se tivesse adotado a posição concretista individual direta. Além disso, consigne-se que o uso da analogia não era cabível. Com efeito, o ativismo judicial, embora bem intencionado, ao criar, excedeu os limites e suscitou controvérsias.
4.4 Recentes posicionamentos do STF
4.4.1 Quem não pode fazer greve?
Muito se tem falado acerca do direito de greve do servidor público. Todavia, será que a todo servidor público assiste o direito de aderir a movimentos grevistas? Como vimos, a Constituição, no art. 37, VII utilizou o termo servidor público (grifo nosso). Frise-se, ademais, que houve vedação expressa somente ao militar (art. 42). Assim sendo, poder-se-ia fazer uma interpretação extensiva do referido inciso, concedendo o direito de greve aos demais agentes públicos, salvo os militares?
A questão diz respeito, principalmente, aos juízes e aos policiais civis. Aos primeiros, porque gozam de independência funcional, subordinando-se apenas à Constituição Federal. Aos últimos, por serem grupos armados e, facilmente, comparados aos militares.
O STF ainda não foi provocado para julgar esse mérito. Entretanto, acenou contrário ao direito de greve de certas categorias que desempenham serviço público. A discussão veio à tona no julgamento da Reclamação 6568, na qual se julgou a competência do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) para julgar a greve da Polícia Civil paulista[68]. A reclamação foi proposta pelo governo paulista em face da decisão do Tribunal Regional do Trabalho da 2º Região, que concedeu liminar determinando a manutenção de 80% do efetivo dos policiais e fixou uma multa diária no valor de R$ 200 mil (duzentos mil reais), caso não cumprida a decisão.
Na ocasião do julgamento, 5 (cinco) dos 11(onze) ministros tiveram a oportunidade de opinar quanto à participação de magistrados e policiais civis em movimentos grevistas. Defendeu Eros Grau, então relator, que a vedação do direito de greve deve ser estendida a todos os serviços de que dependa a ordem pública. Por sua vez, Gilmar Mendes expressou que os juízes são responsáveis pela soberania do Estado, e quem exerce parte da soberania não pode fazer greve. Concordaram com esses os ministros Celso de Mello, Carlos Brito e Cezar Peluso. Esse último asseverou que a polícia civil não pode ser autorizada a funcionar com 80% do efetivo, como ocorreu em São Paulo, visto que nem com 100% consegue garantir a segurança ao cidadão.
A posição do STF tem sido alvo de crítica, sob o fundamento de que a Constituição não distinguiu o servidor público, nem tampouco equiparou o policial civil ao policial militar. Assim sendo, questiona-se até que ponto a Corte tem competência para fazê-lo.
Com efeito, não raro se defende que se deve dar uma interpretação abrangente ao conceito de servidor público, vedando o direito de greve somente a quem a Constituição expressamente o vedou, ou seja, aos militares. Contudo, infelizmente, mesmo que o constituinte de 1988 tenha sido bem intencionado em positivar tantos direitos fundamentais, as normas constitucionais requerem interpretação, competência essa conferida ao STF, haja vista ser o guardião da Lei Maior. Ora, se o legislador constituinte não foi claro em dizer quem é servidor público e apenas a doutrina o faz, cabe ao STF se pronunciar, não como órgão consultivo, mas julgando a matéria suscitada.
Ora, os magistrados não podem ser vistos como meros servidores públicos, pois gozam de prerrogativas, legislação própria e exercem a jurisdição. Concordar com a greve dos magistrados é concordar com a greve do Poder Judiciário, e poder não faz greve.
No que tange ao policial civil, não resta dúvida de que essa categoria está inserida no conceito de servidor público. O fato de serem os policiais civis e militares grupos armados não justifica, por si só, usar da analogia. O policial militar está adstrito à justiça militar e, portanto, o regime jurídico a que se submete é diverso. Assim, não vislumbramos a possibilidade de vedação do exercício de greve ao policial civil.
4.4.2 Pode haver punição aos grevistas?
Como dito alhures, o decreto n. 1.480/95, quando da deflagração da greve, previu o corte do ponto do trabalhador grevista, com o consequente desconto salarial na proporção dos dias de ausência tida como injustificada. Diante das controvérsias quanto à constitucionalidade do mesmo, a decisão do STF no MI 708 contempla a questão da remuneração dos dias parados, suprindo a lacuna legislativa. Concluiu-se que, de acordo com a fixação de competência, os tribunais decidirão acerca do mérito do pagamento ou não dos dias de paralisação.
Ora, se para a iniciativa privada, na hipótese de greve, há a suspensão do contrato de trabalho e, consequentemente, o não pagamento dos dias parados, salvo negociação em contrário, o mesmo pode ser aplicado ao servidor público. Não é só porque o direito de greve é constitucionalmente garantido, que a falta está justificada e o servidor faz jus à remuneração. Como visto, o exercício do direito de greve não está isento de consequências. Se não há obrigatoriedade de pagamento no setor privado, nada impede o não pagamento no setor público, principalmente devido as suas peculiaridades. Nesse sentido, têm decidido nossos tribunais:[69]
“E M E N T A CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO. SERVIDORES PÚBLICOS FEDERAIS. DIREITO DE GREVE. ART. 37, VII DA CR/88. PRECEITO CONSTITUCIONAL DE EFICÁCIA CONTIDA. NECESSIDADE DE EDIÇÃO DE LEI ESPECÍFICA. DECRETO Nº 1.480/95. RESTRIÇÃO A DIREITO FUNDAMENTAL. INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 7º DA LEI Nº 7.783/89. APLICABILIDADE. SUSPENSÃO DO CONTRATO DE TRABALHO DURANTE O MOVIMENTO PAREDISTA.
1. É inconstitucional a restrição ao direito de greve realizada pelo Decreto nº 1.480/95, uma vez que as restrições a direitos fundamentais encontram-se sob reserva de lei. Ante a ausência de edição de lei específica a que faz alusão o preceito o art. 37, VII, da Constituição, o STF tem se inclinado a alterar sua antiga jurisprudência – cujos efeitos atribuídos à decisão em sede de mandado de injunção eram meramente declaratórios (v. STF, MI nº 107/DF, Min. Relator Moreira Alves)- passando a atribuir efeitos concretos ao comando do art. 37, VII, de modo a afastar as conseqüências da inércia do legislador. 2. Ao tratar de greve dos servidores públicos no MI 712/PA, o STF determinou a incidência da Lei nº 7.783/89 até o advento da lei regulamentadora, excepcionando alguns dos seus dispositivos, dentre os quais não figura o art. 7o, na parte em que cuida da suspensão do contrato de trabalho durante o movimento paredista.3. Tanto a Suprema Corte quanto o Col. STJ têm se manifestado recentemente sobre o tema no sentido de que “a ausência de lei não conduz a conclusão de que a Administração Pública deveria considerar justificadas as faltas” (STF, Ag. Reg. AI nº 618986/SP, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, D.J. 06/06/2008, p. 1097), uma vez que “o direito de greve, nos termos do art. 37, VII, da Constituição Federal, é assegurado aos servidores públicos, porém não são ilegítimos os descontos efetuados em razão dos dias não trabalhados’ (STJ, Ag. REg no RMS 21428/SP, Rel.Min. Arnaldo Esteves Lima, DJ 05/05/2008).4. Remessa Necessária e recurso da União parcialmente providos, para excluir da sentença recorrida a parte em que determinou que a autoridade coatora se abstenha de efetuar qualquer desconto pelos dias paralisados, mantendo, assim, a concessão da ordem no sentido de vedar medidas de retaliação contra os substituídos, pela adesão ao movimento grevista.
Cumpre tecermos alguns comentários acerca dos servidores em estágio probatório.
O servidor em estágio probatório somente adquire estabilidade após três anos de efetivo exercício. Assim, segundo o art. 41 da Constituição de 1988, os servidores recém ingressos no cargo público deverão sujeitar-se a um processo de avaliação periódica de desempenho funcional, constituindo-se no estágio probatório.[70]
Portanto, o servidor em estágio probatório não pode perder o cargo sem que seja respeitada a garantia da ampla defesa e do contraditório. Não é outro o entendimento adotado pela jurisprudência dominante. De acordo com a súmula nº 21 do Supremo Tribunal Federal, “o funcionário em estágio probatório não pode ser exonerado nem demitido sem inquérito ou sem as formalidades legais de apuração de sua capacidade” [71]
Nesse sentido, em 11 de novembro de 2008, a 1º Turma do STF decidiu manter o cargo de servidor público que, durante o estágio probatório, aderiu a movimento de greve e faltou ao trabalho por mais de 30 dias. A matéria chegou ao STF através do RE 226966 de autoria do governo do Rio Grande do Sul, que exonerou o servidor grevista. Contudo, esse reingressou ao cargo por força de um Mandado de Segurança concedido pela justiça estadual gaúcha. Embora o relator tenha entendido que o servidor fez greve antes do direito ser regulamentado pela decisão do STF, além de estar em estágio probatório, tal entendimento não prevaleceu. A tese vencedora foi no sentido que a “inassiduidade decorrente de greve não legitima o ato demissório”, argumentou o ministro Marco Aurélio.[72]Igualmente, votou a Ministra Carmem Lúcia, argumentando que o estágio probatório não é fundamento para a exoneração.
5.Conclusão
Após longos anos de experiência ditatorial, o Brasil reconquistou a democracia e, consequentemente, foi promulgada a Constituição Federal de 1988. Devido ao cerceamento de direitos no regime precedente, a chamada “Constituição Cidadã” rompeu com o ordenamento jurídico anterior e, sobretudo, concedeu, em seu texto prolixo, um imenso rol de direitos, alguns deles dependentes do legislador ordinário para serem exercidos.
Duas décadas mais tarde, a Constituição apresenta situação sui generis, pois apesar de tantas emendas constitucionais, há dispositivos ainda carentes de aplicabilidade imediata. Contudo, o legislador constituinte parece ter previsto a situação caótica causada pela inércia injustificada do Poder Legislativo, tendo inserido no texto constitucional o remédio contra a inefetividade das normas constitucionais: O Mandado de Injunção.
Mesmo com uma poderosa arma para lutar contra a inoperância do Legislativo, o STF limitou-se a utilizar o MI, com efeitos meramente declaratórios, deixando o servidor público, por exemplo, a mercê do legislador ordinário para exercer o direito de greve.
Conceder o exercício de greve ao servidor público esbarrava em inúmeros obstáculos. Primeiro, porque em se tratando de um instrumento jurídico novo, o MI gerava questionamentos sobre o seu real alcance. Segundo, porque tanto a doutrina quanto a jurisprudência dominantes apontavam para a necessidade de comutação da norma constitucional, já que essa era de eficácia limitada. Instar frisa, também, que a Lei 7.783/89, em seu art. 16 impedia a sua aplicação à greve do serviço público, diante das inúmeras peculiaridades que a situação encerra. Por fim, regulamentar o direito de greve não é função do judiciário e, portanto, estar-se-ia ferindo a separação dos poderes.
Todavia, a jurisprudência evoluiu e conferiu ao MI caráter constitutivo. Como visto, não só decidiu aplicar a Lei 7.783/89 à greve no serviço público, como foi bem além do previsto: 1) fez valer a decisão não somente para o caso concreto; 2) modificou o texto da lei para servir à situação não regulamentada.
Argumentamos que melhor teria sido se o Supremo, através do MI, tivesse concedido o direito de greve ao servidor público, sem necessariamente ter legislado (posição concretista individual direta). Ora, ao adaptar o texto da Lei 7.783/89, conferindo eficácia erga omnes, (posição concretista geral) o STF legislou e exorbitou de sua competência. Com efeito, independentemente da desídia do Poder Legislativo e do argumento de que a separação dos poderes não pode mais ser concebida nos moldes propostos por Montesquieu, o Judiciário foi além do sistema de freios e contrapesos, pois a competência para criar uma norma jurídica geral não é constitucionalmente prevista como função do Judiciário. Frise-se que, a posição concretista geral é apenas uma corrente doutrinária, diga-se de passagem, alvo de inúmeras críticas dos constitucionalistas.
É de bom alvitre ressaltar que, no ímpeto de elaborar um novo texto legal, no qual se tentou adequar a lei da iniciativa privada à greve do servidor público, algumas questões deixaram de ser contempladas, gerando novos e inquietantes debates.
É interessante notar que, mesmo após três anos da decisão, o inciso VII do art. 37 continua sem a devida regulamentação do Poder Legislativo. Mesmo que, para muitos, o ativismo judicial tenha sido digno de aplausos, não se pode negar que a greve no serviço público não foi contemplada devidamente. Será que, se ao direito de greve do servidor público tivesse o STF, simplesmente, conferido aplicabilidade imediata, não bastaria para compelir o Legislativo a sair do estado letárgico? Afinal de contas, são tantos os projetos de lei tramitando no Congresso, que diante de inúmeras greves, inevitavelmente deflagradas, sem as devidas balizas que a situação requer, em breve, fatalmente, chegar-se-ia à normatização adequada.
Por fim, mister se faz esclarecer que, qualquer lei que venha a disciplinar o direito de greve do servidor público não deve tratá-lo como análogo ao direito de greve da iniciativa privada. A situação não é a mesma, nem tampouco as consequências sofridas pela sociedade. Outrossim, não se deve pensar que a solução repousa em conferir tratamento mais rígido e considerar todo serviço público atividade essencial. É preciso, preliminarmente, delimitar quem é o servidor público, real legitimado à lei de greve junto à Administração Pública. A par disso, é fundamental harmonizar o direito de greve conferido pelo constituinte às peculiaridades do serviço público, esse constituído de várias esferas que reclamam distinção.
Esperamos ter contribuído para uma reflexão sobre o tema, que apesar de estar inserido no Direito Administrativo, o estudo interdisciplinar com o Direito do Trabalho contribui para se obter melhor conhecimento do assunto e, quiçá, alcançar a tão sonhada lei. Essa deverá regular a matéria de maneira mais ou menos rígida, mas nunca suprimir o direito de greve do servidor público.
Informações Sobre o Autor
Vitória dos Santos Lima Queiroga
pós-graduanda em Direito Público (Universidade Anhanguera-Uniderp/LFG), especialista em Direito Constitucional (UNISUL/LFG/IDP), mestra em Línguística Aplicada (Universidade de Birmingham- Inglaterra), graduada em Direito (UNIPÊ) e em Letras (UFPB),ex-conciliadora da Justiça Federal –seccional da Paraíba.