Resumo: O presente artigo tem como objetivo investigar os principais aspectos da Responsabilidade Civil nas relações de consumo. Para tanto pretende analisar o tratamento especial dado a relação de consumo pela legislação e doutrina brasileira, a teoria do risco da empresa, o princípio da qualidade do produto, a responsabilidade objetiva, a responsabilidade pelo vício do produto, a responsabilidade pelo fato do produto, a responsabilidade do comerciante e a responsabilidade do profissional liberal.
Palavras-Chave: Responsabilidade Civil, Relação de Consumo, Direito do Consumidor
Abstract: The objective of the present article is to investigate the main aspects of Civil Responsibilities in consumers affairs. In order to do so, it intends to analyze the especial treatment given to consumers affairs by both the Brazilian legislation and doctrine, the theory of corporate risk, the theory of product quality, the objective responsibility, Strict Liability, Personal Injury Liability, the responsibility of the merchant and the responsibility of the independent professional.
Keywords: Civil Responsibilities, consumer affair, Consumer Law
Sumário: Introdução. 1. Origem e fundamento do tratamento especial da relação de consumo. 2. Responsabilidade objetiva no CDC, conceito e fundamentos. 3. Teoria do risco da empresa, advento e aplicabilidade. 4. Teoria do produto Ideal ou princípio da qualidade do produto. 5. Responsabilidade pelo fato do produto e responsabilidade pelo vício do produto. 6. Responsabilidade do comerciante no CDC. 7. Responsabilidade dos profissionais Liberais no CDC. Considerações Finais. Referências.
Introdução
O presente artigo tem como objetivo analisar e investigar os principais aspectos da responsabilidade civil no Direito do Consumidor. Para tanto, buscou-se conhecer a origem e fundamento do tratamento especial dado à relação de consumo pela legislação e doutrina brasileira.
Como será observado adiante, o tratamento especial da relação de consumo aliado a teoria do risco da empresa e teoria do produto ideal contribuíram significativamente para construção de um sistema de responsabilidade civil singular, próprio do Direito do Consumidor.
Verificou-se também que o sistema de responsabilidade civil no Direito do Consumidor deve analisado sob diversos ângulos e situações: responsabilidade objetiva, responsabilidade subjetiva, responsabilidade pelo fato do produto, responsabilidade pelo vício do produto, responsabilidade do comerciante e responsabilidade do profissional liberal.
Todas estas peculiaridades tornam rico e melindroso estudo da responsabilidade civil no âmbito consumerista, pois exigem para cada situação uma análise, investigação e conclusão específica.
1. Origem e fundamento do tratamento especial da relação de consumo
Apenas recentemente as relações de consumo têm obtido a atenção merecida dos operadores do Direito. A instabilidade jurídica e os riscos sociais foram a grande motivação para que se regulamentasse um novo direito e, conseqüentemente, surgisse uma nova disciplina jurídica, o direito do consumidor, com princípios, normas e regras próprias.
Outrora as relações de consumo eram consideradas como meramente civis, entre partes iguais, em que os princípios da autonomia das partes, da força obrigatória dos contratos e da liberdade contratual reinavam quase que absolutamente sobre toda ordem jurídica. (MARQUES, 2009)
É interessante observar que o modelo jurídico liberal de tratamento das relações jurídicas influía, obviamente, na apuração da responsabilidade civil dos fornecedores de produtos e serviços. Por este motivo, o conhecimento da origem e evolução histórica das concepções jurídicas, econômicas e sociais é de suma importância no estudo e compreensão da responsabilidade civil.
Nota-se que as concepções baseadas na influência da teoria econômica liberal permaneceram com força até o século XX, eis que aparentavam à época viabilidade e equidade, no entanto, conduziam a sociedade às intempéries do poderio econômico, da desigualdade social e dos abusos de toda sorte. Diante dessas circunstâncias, o liberalismo e os princípios jurídicos que o apoiavam foram repensados. (CAVALIERI FILHO, 2008)
A partir dos anos 60-70 do século XX nos EUA e Europa surgem os primeiros movimentos organizados em defesa dos consumidores capazes de despertar o interesse da sociedade e Estado sobre a necessidade de tratamento especial às relações de consumo. Com tais progressos, a proteção do consumidor foi disciplinada em várias legislações, cuja finalidade principal era preservar a saúde e segurança dos consumidores, bem como tornar mais leal as relações de consumo. (MARQUES, 2009)
Diante da consideração da vulnerabilidade do consumidor nas relações comerciais iniciou-se um movimento no âmbito internacional com o intuito dar maior equilíbrio à relação consumidor-fornecedor. No ano de 1985 a ONU promulgou a resolução 39/248 que reconhecia expressamente o desequilibro econômico, educacional e de poder aquisitivo entre consumidores e fornecedores de serviços. (ALMEIDA, 2002).
Nesta esteira, a relação de consumo não mais era vista sob o prisma irreal da igualdade, ao contrário, passou a ser considerada como entre partes desiguais, como de fato é. Neste sentido, citam-se os apontamentos feitos por Nunes:
“O consumidor é a parte fraca da relação jurídica de consumo. Essa fraqueza, essa fragilidade, é real, concreta, e decorre de dois aspectos: um de ordem técnica e outro de cunho econômico. O primeiro está ligado aos meios de produção, cujo conhecimento é monopólio do fornecedor. E quando se fala em meios de produção não se está apenas referindo aos aspectos técnicos e administrativos para a fabricação de produtos e prestação de serviços que o fornecedor detém, mas também ao elemento fundamental da decisão: é o fornecedor que escolhe o que, quando e de que maneira produzir, de sorte que o consumidor está à mercê daquilo que é produzido.” (NUNES, 2000, p. 106).
Conclui-se que a construção da recente legislação e doutrina consumerista se deu em virtude do reconhecimento da desigualdade técnico-econômica e da vulnerabilidade dos consumidores nas relações econômicas. Obviamente, a partir dessa nova construção legislativa e doutrinária surge também um novo sistema de apuração da responsabilidade civil destinado à relação de consumo e, assim, nasce o sistema de responsabilidade objetiva no direito do consumidor. (BENJAMIN, 2009).
2. Responsabilidade objetiva no CDC, conceito e fundamentos
O estudo do sistema de responsabilidade objetiva traçado no Código de Defesa do Consumidor é de incomensurável importância para direcionar o operador do direito acerca da caracterização ou não do dever jurídico de indenizar do fornecedor de produtos. Tal exigência é freqüente, eis que, não raras vezes, ocorrem danos ao consumidor ocasionados por produtos e/ou serviços adquiridos.
Noutro giro, doutrinas e jurisprudências relativas ao direito do consumidor apresentam grandes divergências, o que dificulta ainda mais compreensão do sistema de responsabilidade civil traçado pelo CDC e outros institutos jurídicos relacionados, a exemplo das causas de exclusão da responsabilidade do fornecedor de produtos.
Com o advento do Código de Defesa do Consumidor e do novo sistema de responsabilidade civil, o direito experimentou uma verdadeira revolução, conforme ensina Cavalieri Filho:
“O Código de Defesa do Consumidor provocou uma verdadeira revolução no direito obrigacional, mormente no campo da responsabilidade civil, estabelecendo responsabilidade objetiva em todos os acidentes de consumo, quer decorrentes de fornecimentos de produtos (art.12) quer de serviços (art14). A partir do Código do Consumidor podemos dividir a responsabilidade civil em duas grandes áreas – a responsabilidade tradicional e a responsabilidade nas relações de consumo.” (CAVALIERI FILHO, 2008 p. 299).
Assim, o conceito de responsabilidade objetiva traçado pelo CDC foi construído com base em três aspectos: A) A existência de um defeito no produto; B) O efetivo dano sofrido (moral ou material); C) O nexo de causalidade que liga o defeito do produto à lesão sofrida. Estes três elementos são indispensáveis para caracterização do dever jurídico de indenizar do fornecedor de produtos. Ressalta-se que, em sede de direito do consumidor, a culpa é elemento irrelevante para caracterização do dever de indenizar do fornecedor de produtos, eis que basta ao consumidor lesado demonstrar apenas a relação de causalidade entre o dano e o defeito do produto para que se caracterize o direito à reparação dos danos sofridos. (MARQUES, 1999).
Em outras palavras, o fornecedor de serviços responde pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação de serviços ou fornecimento de produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas, independentemente da existência de culpa. (GRINOVER, 1998)
Nesta esteira, as noções de responsabilidade civil não mais podem ser vistas sob o prisma tradicional traçado pelo Código Civil, mas agora devem se concentrar no novo modelo legislativo, o Código de Defesa do Consumidor, o qual pretende combater os abusos e deslealdades de toda sorte, como frisa bem Néry Júnior, autor do anteprojeto do Código de Defesa do Consumidor:
“O Código pretende criar a necessidade de haver mudança de mentalidade de todos os envolvidos nas relações de consumo, de sorte que não mais seja praticada a ‘Lei de Gérson’ no país, segundo a qual deve se tirar vantagem devida e indevida de tudo, em detrimento dos direitos de outrem. O Código pretende desestimular o fornecedor com o espírito de praticar condutas desleais ou abusivas, e o consumidor de aproveitar-se do Código para reclamar infundadamente de pretensos direitos a ele conferidos.” (NERY JÚNIOR, 1998, p.12)
Se por um lado nota-se a preocupação em desestimular abusos e deslealdades nas relações de consumo com a instituição do novo sistema de responsabilidade, por outro lado, objetiva-se efetividade na reparação das lesões sofridas pelos consumidores nos acidentes de consumo. Tal concepção se dá em virtude da sociedade de consumo estar inundada por produtos e serviços de inestimável complexidade tecnológica, o que torna inevitável a ocorrência de danos provenientes destes mesmos produtos e serviços. Por este motivo, a alteração da sistemática da responsabilização do fornecedor de produtos deixou de ser subjetiva para ser objetiva e, assim, possibilitar uma melhor concretização do direito dos consumidores à reparação dos danos sofridos. (BENJAMIN, 2009)
Em outro ângulo, o advento da responsabilidade objetiva no CDC se fez necessário em face da dificuldade de configuração da responsabilidade subjetiva do fornecedor de produtos. A configuração desta responsabilidade quase sempre é complexa e imprecisa, em virtude da indispensabilidade da caracterização da culpa (negligência, imprudência, imperícia), o que prejudica substancialmente a reparação das lesões sofridas pelos consumidores nos acidentes de consumo. Neste sentido, apontam-se os ensinamentos de Bittar:
“Na teoria da culpa (ou “Teoria subjetiva”), cabe perfazer-se a perquirição da subjetividade do causador, a fim de demonstrar-se, em concreto, se quis o resultado (dolo), ou se atuou com imprudência, imperícia ou negligência (culpa em sentido estrito). A prova é, muitas vezes, de difícil realização, criando óbices, pois, para ação da vítima, que acaba, injustamente suportando os respectivos ônus.” (BITTAR, 2005, p. 30)
Os atuais postulados da responsabilidade objetiva visam corrigir a deficiência do velho conceito clássico da culpa, nitidamente superado pelas necessidades novas do direito, surgidas com o novo ciclo da industrialização. A doutrina e jurisprudência já demonstravam urgência e necessidade de um novo sistema de responsabilidade civil, capaz de redistribuir os riscos inerentes à sociedade de consumo e promover a justiça distributiva. (BENJAMIN, 2009)
O conceito de responsabilidade objetiva em sede de direito do consumidor foi construído e fundamentado na dificuldade de efetivar a reparação de danos às vítimas dos acidentes de consumo. Tal dificuldade se dava em virtude da incompatibilidade da responsabilidade subjetiva com as relações de consumo, e também pelo alto grau de risco que os produtos e serviços colocados em massa na sociedade de consumo oferecem aos consumidores. Entretanto, os fundamentos da teoria da responsabilidade objetiva na ótica consumerista não se encerram nos fatores já expostos, pelo contrário, daí partem diversas outras teorias capazes de sustentar o sistema de responsabilidade objetiva, tais como teoria do risco da empresa, princípio de qualidade dos produtos, teoria da socialização dos riscos, dentre outras. (CAVALIERI FILHO, 2008)
3. Teoria do risco da empresa, advento e aplicabilidade
Conforme abordagem anterior foi verificado que a responsabilidade civil objetiva possui como fundamento a destacada teoria do risco. Por esse motivo, a análise do advento e aplicabilidade desta teoria se torna não só necessária, como inevitável.
A teoria do risco surgiu no final do século XIX na França, sendo concebida como uma probabilidade de dano, isto é, aquele que exercesse uma atividade perigosa deveria assumir os riscos e reparar o dano dela decorrente. A partir daí, a teoria do risco pôde ser observada na seara consumerista, como em tantos outros campos do direito. Tornou-se presente em diversas legislações, tais como a Constituição Federal, Código Civil, Código de Mineração, Código Brasileiro de Aeronáutica e legislação ambiental. (CAVALIERI FILHO, 2008)
Diante da exposição das múltiplas facetas e naturezas jurídicas da teoria do risco, nota-se a sua incomensurável riqueza e relevância no mundo jurídico. Por outro lado, em sede de direito do consumidor, é possível considerar a teoria do risco como fator influenciador na constatação do dever jurídico de indenizar dos fornecedores de produtos nos acidentes de consumo.
Se antes havia a necessidade das empresas assumirem os riscos da sua atividade, agora esta necessidade se amplia dadas as modificações sensíveis nos produtos e serviços. A sociedade de consumo sofre com oferta e exposição em massa de produtos e serviços dotados de alta complexidade tecnológica, quase sempre sujeitos aos defeitos de diversas naturezas, por óbvio, os acidentes de consumo ocorrem até com certa naturalidade e freqüência. (BENJAMIN, 2009)
Neste sentido, a avaliação dos riscos que a atividade empresarial provoca aos consumidores não só se torna perfeitamente possível, como necessária. A possibilidade de avaliação e análise dos riscos da atividade empresarial é perfeitamente cabível diante da evolução tecnológica. Portanto, aquele que se dispõe a exercer alguma atividade no mercado de consumo tem o dever de responder pelos eventuais vícios ou defeitos nos bens e serviços fornecidos, independentemente de culpa. (CAVALIERI FILHO, 2008)
Noutro giro, ainda se fundamenta a teoria do risco com base na confiança, elemento indispensável nas relações de consumo e que é esculpido no próprio Código de Defesa do Consumidor (art.14 § 1º). Neste mesmo sentido, cita-se a lições de Larenz:
Aquele que criou o estado de confiança está mais próximo de suportar os riscos resultantes de uma indução ou erro ou – no caso de documentos – de um uso indevido em relação àquele em que há de confiar. O princípio da confiança, com base de uma responsabilidade pela confiança, é só uma de entre várias configurações deste princípio. Está contido como elemento coenvolvido no princípio da boa-fé, onde, por sua vez, encontrou uma expressão especial nas doutrinas da caducidade, e na proibição de venire contra factum proprium. (LARENZ, 1997, p. 678)
Ainda se enumera os seguintes fundamentos de apoio à teoria do risco: A) A necessidade de proteção das vítimas do evento danoso diante da brutalidade dos fatos da vida; B) A dificuldade em se apurar o elemento culpa, quase sempre vago, impreciso e incerto; C) A indispensabilidade do tratamento desigual para partes naturalmente desiguais, ou seja, consumidor e fornecedor de produtos, com a finalidade de elevar os mais nobres princípios de justiça e equidade; D) A evolução no sistema de apuração de responsabilidade, em termos de certeza, segurança e estabilidade jurídica. (LIMA, 1998)
Em posição contrária à teoria do risco, apresenta-se o argumento de que a mesma imprime demasiada atenção à vítima do acidente de consumo. Tal aspecto, em tese, negaria o princípio da justiça social, para impor o dever de reparar o dano no acidente de consumo de forma desproporcional. Ainda em resistência à teoria do risco, há quem afirme que mesma é capaz de inviabilizar a atividade econômica e, por esse motivo, seria inaplicável. (DIAS, 1997)
Entretanto, o argumento exposto perde razão e credibilidade em uma análise mais pragmática, posto que, os fatos danosos são de ocorrência excepcional, tanto que a aplicação da doutrina do risco foi ampliada sem sinal algum de prejuízo ao desenvolvimento econômico. A ausência de prejuízo ao desenvolvimento econômico, deve-se ao fato que as grandes empresas consideram os riscos como uma condição de atividade econômica que exercem e os fazem figurar no seu próprio passivo. (LIMA, 1998)
Assim, pode-se aferir que a teoria do risco constitui um avanço no campo de apuração da responsabilidade dos fornecedores de produtos, vez que se baseia na posição de superioridade da empresa/empresário em face dos consumidores, nos riscos que submetem a sociedade de consumo e na expectativa legítima que geram nos consumidores. Dessa maneira, diante destes fatores, o dever de assumir os riscos da atividade econômica, sejam eles diretos ou indiretos, impõe-se de forma necessária e justa. (CAVALIERI FILHO, 2008).
4. Teoria do produto Ideal ou princípio da qualidade do produto
Será demonstrado a seguir que o princípio da qualidade do produto é um dever jurídico ideal e que sua observância interessa em muito ao aplicador do direito, eis que se trata de um dos pilares da responsabilidade objetiva traçada na legislação consumerista. Citam-se as lições de Benjamin acerca importância da análise do princípio da qualidade do produto:
“A teoria da qualidade forma-se com os olhos voltados para o instituto da responsabilidade do fornecedor: civil, administrativa e penal. De nada adiantaria criar-se um dever de qualidade se o seu desrespeito não trouxesse conseqüências para o violador. Tanto no direito administrativo como no direito penal, a teoria da qualidade apresenta um colorido predominantemente repressivo. Já pelo prisma da responsabilidade civil, o tom principal é dado pela reparação, elemento essencial para o consumidor lesado. É em tal sede, portanto, que a questão da qualidade ganha enorme importância econômica.” (BENJAMIN, 2009, p. 111)
Se após a ocorrência do acidente de consumo incide a teoria do risco, assegurando de certa forma a reparação dos danos ao consumidor, em uma fase muito anterior ao acidente de consumo, até mesmo antes da comercialização do próprio produto, apresenta-se à empresa ou ao empresário o dever de imprimir segurança e qualidade aos seus produtos. (MARQUES, 2009)
Dessa maneira, a teoria do produto ideal ou princípio da qualidade do produto consiste no dever legal de fornecer produtos e serviços capazes não só de cumprir suas funções e finalidades, mas também de assegurar qualidade e segurança, valores exigidos legitimamente pela sociedade de consumo. (BENJAMIN, 2009)
Por outro lado, ressalta-se que o princípio da qualidade do produto não é irrestrita e comporta mensuração e proporcionalidade na apuração da responsabilidade do fornecedor de produtos, isso porque o Código de Defesa do Consumidor primou pela garantia de segurança do produto ou serviço de forma limitada, como apregoa o§ 1º do art.12 do CDC, à “segurança que dele legitimamente se espera”.
Não se trata de uma segurança absoluta, mesmo porque o CDC não desconhece ou proíbe que produtos naturalmente perigosos sejam colocados no mercado de consumo, pelo contrário, concentra-se na idéia de defeito, de falha na segurança e qualidade. (MIRAGEM, 2003)
Mais uma vez, aponta-se a os elementos confiança e boa-fé como norteadores das relações de consumo. Se estes elementos são capazes de fundamentar a teoria do risco, o mesmo ocorre na teoria do produto ideal. Neste exato sentido, leciona Dias:
“Seu sistema considera que somos responsáveis para com os outros na medida em que eles têm a necessidade de confiar em nós mesmos, não somos perante outrem; a relação de que nasce a responsabilidade é uma relação de confiança necessária; a obrigação que ela cria é uma obrigação que gera a confiança e, quando essa obrigação não é executada, quando há confiança legítima enganada, há culpa.” (DIAS, 1997, p. 65)
Ainda que pese o conhecimento da impossibilidade de um determinado produto atingir os resultados que dele se espera, deve o fornecedor de produtos se responsabilizar pela quebra de expectativa legítima do consumidor. Tal entendimento visa compensar ou aos menos amenizar a quebra de expectativa ou confiança do consumidor que jamais iria adquirir um produto sabidamente defeituoso ou apto a lhe causar danos. (BENJAMIN, 2009)
A fundamentação na confiança e expectativa dos consumidores acerca do bem ou produto adquirido pode ser facilmente demonstrada através de exemplos práticos. Outrora, pertences de estimável valor eram guardados em residências comuns, havia até hábito folclórico de guardar economias em espécie nos colchões. Entretanto, com o surgimento das instituições financeiras e respectivos serviços, o citado hábito perdeu completo sentido e conveniência.
Tal transformação só ocorreu em virtude do elemento confiança, isso porque, no âmago dos consumidores existia o senso de certeza de que o patrimônio em posse dos bancos estaria completamente assegurado. Este mesmo senso de certeza e segurança acompanha os consumidores que deixam seus veículos nos estacionamentos dos Shoppings ou que ainda adentram em qualquer estabelecimento comercial.
Dessa maneira, a teoria do produto ideal ou princípio de qualidade do produto não só serviu de base jurídica para elaboração das normas de consumo, como deve ainda ser respeitada e observada na aplicação do direito na apuração da responsabilidade do fornecedor de produtos nos acidentes de consumo, sob duas óticas: A) Garantia da incolumidade físico-psíquica do consumidor e proteção a saúde, segurança e vida; B) Garantia da incolumidade econômica e patrimonial. (BENJAMIN, 2009)
5. Responsabilidade pelo fato do produto e responsabilidade pelo vício do produto
Os conceitos de responsabilidade pelo fato do produto e responsabilidade pelo vício do produto interferem diretamente na configuração do dever de indenizar da empresa ou do empresário. Por outro lado, estas duas espécies de responsabilidade possuem o campo de incidência distinto, bem como aplicabilidade singular. Nesta esteira, qualquer conceituação ou delimitação errônea dos dois institutos trará prejuízos imensos na análise do dever de indenizar do fornecedor de produtos. Dessa forma, inegável se torna a relevância dos supramencionados institutos nos campos de responsabilidade civil e de direito do consumidor.
A responsabilidade pelo fato do produto deve ser considerada como responsabilidade pelos acidentes de consumo. Trata-se do dever de reparar que impõe ao fornecedor de produtos em decorrência desse evento. Ressalta-se que o acidente de consumo terá sempre como causa o defeito no produto, não um mero defeito de funcionamento, mas um defeito que ultrapassa as esferas do produto para atingir o patrimônio moral e material do consumidor, o que implica no dever de indenizar da empresa ou empresário. (MIRAGEM, 2003)
O art.12 do CDC se refere ao fato do produto e estabelece:
“O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos.”
Noutra esfera, apresenta-se a responsabilidade pelo vício do produto, a qual recai sobre a empresa ou empresário em três hipóteses: 1) vício que torne o produto impróprio ao consumo; 2) vício que lhe diminua o valor; 3) vício decorrente da disparidade das características dos produtos com aquelas veiculadas na oferta e publicidade. Ressalta-se que, tais ocorrências fáticas nem sempre geram o mesmo direito ao consumidor. Haverá casos de configuração do dever de reparar o produto, do dever de trocar o produto por outro novo da mesma espécie, do dever de restituir o valor pago pelo produto, dentre outras hipóteses. (BENJAMIN, 2009)
O art.18 do CDC se refere ao vício do produto e estabelece:
“Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com a indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas.”
Uma vez conceituado a responsabilidade pelo vício do produto e a responsabilidade pelo fato do produto, ainda se faz imprescindível apontar outras diferenças entre os dois institutos de direito do consumidor. Como será demonstrado, tal apontamento poderá ter como objeto origem, delimitação, aplicabilidade e conseqüências jurídicas destes eventos tão relevantes na seara consumerista.
Em uma análise legislativa percebe-se que o Código de Defesa do Consumidor se ocupa dos vícios do produto na III Seção (art.18 ao art.25), ao passo que a responsabilidade pelo fato do produto se dá na II Seção (art. 12 ao art.17). Dessa maneira, conclui-se que a legislação consumerista, por si só, já diferencia a responsabilidade pelo fato do produto e a responsabilidade pelo vício do produto, conferindo tratamento, conceitos e causas próprias de cada instituto. (GRINOVER, 1998)
Aponta-se como traço distintivo essencial entre a responsabilidade pelo fato do produto e a responsabilidade pelo vício do produto os conceitos de defeito e vício, os quais assumem valor jurídico singular. A responsabilidade pelo fato está ligada à idéia de defeito no produto, ou seja, a ocorrência de falha no produto capaz de desencadear o acidente de consumo e, por óbvio, danos ao consumidor. Em contrapartida, a responsabilidade pelo vício está ligada à ocorrência de falha no produto, capaz apenas de lhe diminuir o valor ou funcionalidade, sem, no entanto, afetar a integridade física, moral e patrimonial do consumidor. Observa-se ainda que a idéia de defeito se liga à segurança do consumidor, ao passo que a idéia de vício se liga a qualidade do produto. (BENJAMIN, 2009)
O vício é uma característica própria e intrínseca do produto ou serviço em si. O defeito é um vício acrescido de um problema extra, alguma coisa extrínseca, que causa um dano maior que simplesmente o mau funcionamento, a ausência de funcionamento, a quantidade errada, a perda do valor pago. Dessa forma, na responsabilidade pelos fatos do produto e do serviço o defeito ultrapassa, em muito, o limite valorativo do produto ou serviço, causando danos à saúde ou à segurança do consumidor. Já na responsabilidade pelos vícios do produto ou serviço, o vício não ultrapassa tal limite versando apenas sobre a quantidade ou qualidade do mesmo. (NUNES, 2000)
Citam-se os exemplos esclarecedores acerca da diferença prática entre o fato do produto e o vício do produto nas lições de Cavalieri Filho:
“Se A, dirigindo seu automóvel zero quilômetro, fica repentinamente sem freio, mas consegue parar sem maiores problemas, teremos aí vício do produto; mas se A não consegue parar, e acaba colidindo com outro veículo, sofrendo ferimentos físicos, além de danos nos dois automóveis, aí já será fato do produto. Se alguém instala uma nova televisão em sua casa mas esta não produz boa imagem, há vício do produto; mas, se o aparelho explodir e incendiar a casa, teremos um fato do produto.” (CAVALIERI FILHO, 2008, p.746)
Noutro giro, a distinção entre a responsabilidade pelo fato do produto e a responsabilidade pelo vício do produto é relevante na definição dos legitimados a responder pelas lesões causadas ao direito do consumidor. A responsabilidade pelos fatos do produto ou serviços se apresenta ao comerciante como subsidiária, eis que, os obrigados principais são o fabricante, o produtor, o construtor e o importador. Assim, só será responsabilizado quando aqueles não puderem ser identificados, quando o produto fornecido não for devidamente identificado, ou ainda, quando não conservar os produtos perecíveis adequadamente. Em contrapartida, na responsabilidade pelos vícios do produto o comerciante responde solidariamente, juntamente com todos os envolvidos na cadeia produtiva e distributiva. (GRINOVER, 1998)
Observou-se que a responsabilidade advinda do fato do produto (defeito) é distinta da responsabilidade pelo vício do produto, com base na legislação e doutrina consumerista que evidenciam com propriedade as diferenças e efeitos diversos dos dois institutos.
6. Responsabilidade do comerciante no CDC
É de suma importância destacar a responsabilidade civil do comerciante em sede de direito do consumidor, isso porque, observar-se-á que embora o comerciante se responsabilize de forma objetiva nas relações de consumo, nem sempre poderá ser responsabilizado em primeiro plano, ou seja, ora será responsável de forma solidária, ora será responsável de forma subsidiária. Dessa maneira, a responsabilidade do comerciante passa a ser mais um componente essencial no estudo da responsabilidade civil, no CDC.
Em sede de responsabilidade civil, é possível afirmar que o legislador consumerista objetivou um tratamento diverso e específico ao comerciante, uma vez que o considerou como responsável subsidiariamente nos casos de acidentes de consumo. Ou seja, na responsabilidade pelo fato do produto o comerciante responde em segundo plano, ao passo que o fabricante, o produtor, o construtor e o importador respondem em primeiro plano. Por outro lado, o CDC impõe ao comerciante a responsabilidade solidária, conjunta com todos os envolvidos na cadeia produtiva e distributiva de consumo, nas hipóteses de vício do produto. (MIRAGEM, 2003)
Apontam-se as lições de Cavalieri Filho acerca da responsabilidade subsidiária do comerciante no CDC:
“O Código, em seu art.13, atribui-lhe apenas uma responsabilidade subsidiária. Pode ser responsabilizado em via secundária quando o fabricante, o construtor, o produtor ou importador não puderem serrem identificados; o produto for fornecido sem identificação clara do seu fabricante, produtor, construtor ou importador ou – hipótese mais comum – quando o comerciante não conservar adequadamente os produtos perecíveis. São casos, como se vê, em que a conduta do comerciante concorre para o acidente de consumo.” (CAVALIERI FILHO, 2008, p.483)
Nesta esteira, se o comerciante é responsável subsidiário diante do acidente de consumo, o direito de regresso em face dos fornecedores de produtos responsáveis em primeiro plano é uma conseqüência natural. Ressalta-se que o direito de regresso tem o intuito de impedir que um dos co-devedores legais venha a pagar por algo que ultrapasse sua contribuição. (BENJAMIN, 2009)
Noutro giro, a responsabilidade do comerciante pelo vício do produto é solidária, ou seja, tanto fabricante, quanto comerciante e outros envolvidos da cadeia de produção e distribuição de consumo são responsáveis em primeiro plano, sem qualquer ordem de preferência. Neste caso, a responsabilidade solidária pelo vício do produto se configura como uma opção do consumidor que, poderá escolher qualquer fornecedor ou fornecedores para demandar e exigir o respeito de seus direitos. (BESSA, 2008)
Observa-se que o sistema normativo do CDC foi introduzido para tornar mais eficiente a reparação de danos dos consumidores em face dos responsáveis em primeiro e segundo plano, o que traz conseqüências não só no campo da responsabilidade civil, mas também na esfera processual e abarca tanto os responsáveis solidários quanto subsidiários. Assim, torna-se impossível a aplicabilidade dos institutos de intervenção de terceiros nas ações subordinadas ao CDC, a exemplo da denunciação a lide que ocorre quando o autor ou réu chama a juízo terceira pessoa para se assegurar. (BENJAMIN, 2009)
Enfim, conclui-se que a responsabilidade do comerciante poderá ser subsidiária ou solidária, conforme os casos expostos. Com conseqüência, surgirá o direito de regresso do comerciante, para impedir que o mesmo se responsabilize excessivamente. Entretanto, constata-se que os institutos de intervenção de terceiro no processo civil devem ser vistos com muita reserva e limitação nos casos em que os litigantes constituem uma relação de consumo.
7. Responsabilidade dos profissionais Liberais no CDC
Como já exposto, a responsabilidade objetiva é tida como regra na seara consumerista e apresenta variações na imposição do dever de indenizar, ora na forma solidária, ora na forma subsidiária, em decorrência do tratamento diferenciado dado ao comerciante pelo CDC. É exatamente este tratamento diferenciado que interessa ao operador do direito, dada interferência direta no estudo da responsabilidade civil. Neste prisma, torna-se extremamente proveitoso a análise da responsabilidade dos profissionais liberais nas relações de consumo, já que também se trata da quebra de um padrão de responsabilidade objetiva, como será demonstrado.
O art.14 §4º do Código de Defesa do Consumidor estabelece que “a responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa”. Observa-se que o paradigma da responsabilidade objetiva no CDC foi quebrado neste caso. Dessa maneira, os profissionais liberais somente serão responsabilizados por danos quando ficar demonstrada a ocorrência de culpa subjetiva, em quaisquer de suas modalidades: negligência, imprudência ou imperícia. (MIRAGEM, 2003).
Neste sentido, expõem-se as lições de Benjamin:
“O Código, em todo o seu sistema, prevê uma única exceção ao princípio da responsabilização objetiva para os acidentes de consumo: os serviços prestados por profissionais liberais. Não se introduz a responsabilidade, limitando-se o dispositivo legal a afirmar que a apuração de responsabilidade far-se-á com base no sistema tradicional baseado em culpa. Só nisto eles são beneficiados. No mais, submetem-se integralmente, ao traçado do Código.” (BENJAMIN, 2009, p.139)
A diversidade de tratamento na responsabilização dos profissionais liberais se dá em razão da natureza intuitu personae dos serviços prestados pelos mesmos. Os profissionais liberais são contratados ou constituídos com base na confiança que inspiram aos respectivos clientes, a exemplo de médicos e advogados. Por este motivo, justifica-se o tratamento diferenciado em sede de responsabilidade civil. (GRINOVER, 1998)
Noutro giro, observa-se ainda que a responsabilidade dos profissionais liberais poderá ser configurada sem a presença do elemento culpa. O CDC, ao dar tratamento diferenciado aos profissionais liberais, nada mais fez do que manter o sistema tradicional baseado na culpa, razão pela qual as regras de responsabilidade descritas no Código Civil ainda continuam sendo aplicáveis. Dessa forma, nas obrigações de resultado, em que o produto/serviços é vinculado a uma meta ou resultado, a exemplo das cirurgias estéticas, o profissional liberal poderá ser responsabilizado sem aferição do elemento culpa. (CAVALIERI FILHO, 2008).
Portanto, como restou demonstrado, a observância da responsabilidade dos profissionais liberais deve ser analisada sob uma perspectiva específica e própria, para que não haja distorção na apuração da responsabilidade civil destes profissionais. Pelo exposto, torna-se de suma relevância o aprofundamento neste estudo.
Considerações Finais
Inicialmente pode-se destacar que a construção de um sistema de responsabilidade civil na seara consumerista fundamentou-se no reconhecimento da desigualdade técnico-econômica entre consumidores e fornecedores, e da vulnerabilidade dos consumidores nas relações comerciais.
Dessa forma, a doutrina e legislação consumeristas instituíram a responsabilidade objetiva como regra na apuração do dever de reparar do fornecedor de produtos e serviços, com o intuito de efetivar a reparação de danos das vítimas dos acidentes de consumo (teoria do risco), e também como forma de garantir as expectativas legítimas dos consumidores (teoria da qualidade do produto).
A responsabilização civil do fornecedor de produtos está condicionada a existência de um defeito no produto, o efetivo dano sofrido (moral ou material) e o nexo de causalidade que liga o defeito do produto à lesão sofrida. Verifica-se que a culpa é elemento irrelevante para caracterização do dever de indenizar do fornecedor de produtos, eis que basta ao consumidor lesado demonstrar apenas a relação de causalidade entre o dano e o defeito do produto para que se caracterize o direito à reparação dos danos sofridos.
Noutro giro, observou-se que a responsabilidade advinda do fato do produto (defeito – art.12 do CDC) é distinta da responsabilidade pelo vício do produto (art.18 do CDC), recebendo tratamento legislativo, doutrinário e jurisprudencial totalmente diverso. O vício do produto é considerado como uma qualidade ruim intrínseca ao bem, enquanto o fato do produto se refere ao acidente de consumo e induz ao prejuízo que ultrapassa a esfera do produto para atingir o patrimônio do consumidor.
O CDC em um caso (art.18 vício do produto) elege a responsabilidade solidária entre os fornecedores da cadeia de consumo, em outro caso (art.12 fato do produto) elege a responsabilidade subsidiária. Tal perspectiva influi diretamente na responsabilização do comerciante, que ora poderá ser subsidiária, ora poderá ser solidária.
Por fim, verificou-se que a responsabilidade dos profissionais liberais poderá ser configurada com ou sem a presença do elemento culpa. O CDC tratou de forma diferenciada a responsabilidade civil dos profissionais liberais, mantendo a aplicabilidade do Código Civil. Entretanto, nas obrigações de resultado, em que o produto/serviços é vinculado a uma meta ou resultado, a exemplo das cirurgias estéticas, o profissional liberal poderá ser responsabilizado sem a necessidade de caracterização da culpa.
Informações Sobre o Autor
Hugo Vinícius Muniz Meira
Advogado bacharel em Direito Universidade Estadual de Montes Claros pós-graduado em Direito Público UNAR/Complexo Educacional Damásio de Jesus e em Metodologia e Didática do Ensino Superior UNIMONTES