Ato administrativo discricionário e o controle jurisdicional

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Resumo: O presente artigo tem como escopo abordar o tema controle do ato administrativo discricionário e a possibilidade do Poder Judiciário controlá-lo, para tanto mister introduzir o presente assunto tratando da necessidade de intervenção do Estado no seio da sociedade. Diante da suposta imutabilidade no que tange ao discricionarismo do agente público ao produzir atos administrativos, analisamos a possibilidade de abuso de poder daquele que produziu o ato e a necessidade de haver um controle pelos demais poderes, especificamente, o Judiciário. Sendo assim, analisou-se o binômio oportunidade – conveniência e o limite de sua legalidade e legitimidade, bem como a necessidade de observância dos mais diversos princípios presentes no ordenamento jurídico como mais uma ferramenta de controlar a discricionariedade do ato administrativo.

Palavras-chave: Ato administrativo, controle, discricionariedade.

Abstract: This article is scoped to address the control issue of discretionary administrative act and the possibility of the judiciary controls it, so needful is to introduce this subject dealing with the need for state intervention in society. Given the supposed immutability in relation to the discretion of the public agent to produce administrative acts, was analyzed the possibility of abuse of power from the one that produced the act and the need for control by other powers, specifically the judiciary. Therefore, was analyzed the binomial opportunity – convenience and the limit of its legality and legitimacy, as well as the need for observance of the many diverse principles present in legal system as another tool to control the discretion of the administrative act.

Key words: Administrative act, control, discretion.

Sumário: Introdução. 1. Administração Pública e Estado. 2. Ato Administrativo. 3. Controle do Ato Administrativo Discricionário pelo Poder Judiciário. Conclusão. Referências.

Introdução

Inseridos em uma sociedade regida pelo princípio do Estado Democrático de Direito, onde a administração pública enquanto atividade estatal volta-se para um de seus fins maiores e primordiais, a persecução do interesse coletivo, O ordenamento jurídico brasileiro buscou disponibilizar à sociedade instrumentos adequados para evitar ocorrência de arbitrariedades, ilegalidades e lesões aos direitos individuais, subordinando-os, imediatamente, aos ditames legais.

Desta forma, despertou-se o desejo e a necessidade de dissecar acerca do instrumento de controle da Administração Pública, mais especificamente dos seus atos administrativos discricionários frente ao Poder Judiciário. Assunto que tem apresentado, hodiernamente, latente evolução e, por conseguinte, torna-se imprescindível demonstrar seus futuros contornos. Vislumbra-se uma ampliação na aplicabilidade do princípio da legalidade, não se analisando apenas em seu sentido estrito, mas, sobretudo, considerando todo ordenamento jurídico.

Tendo como escopo clarear obscuridades ao assunto central, será exposta, a princípio, sucintamente, a relação entre Estado e Administração Pública, adentrando no tema ato administrativo, para que, mediante tais informações analise-se a questão nuclear do controle do ato administrativo discricionário pelo Poder Judiciário.

1 Administração pública e estado

Explicita o eminente doutrinador Bonavides (2000, p.64), consoante a doutrina aristotélica, que os homens só se realizam como seres sociais enquanto introduzidos no seio da sociedade, todavia nem sempre reina nesta a harmonia, pois, comumente, estão presentes interesses muitas vezes divergentes, acarretando conflitos que precisam ser solucionados. Assim, o Estado surge com o escopo de resolver tais lides, tratando de regras de convivência, como também de ações voltadas para as necessidades coletivas.

Ademais, afirma-se que o poder exercido pelo Estado é uno e indivisível, entretanto, o exercício poderá ser realizado por diversos órgãos que o compõem. Clássica a lição de Montesquieu, em sua obra ‘L’Ésprit des Lois’, para quem o exercício do poder concentrado nas mãos de um só indivíduo conduz ao arbítrio e à tirania. Sendo assim, visando evitar tais circunstâncias, este teórico concebe a necessidade de haver uma separação das funções do Estado (Bandeira de Mello, 2007, p.31): “… Para que não se possa abusar do poder é preciso que, pela disposição das coisas, o poder detenha o poder. […] Quando na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não há liberdade, porque se pode temer que o mesmo Monarca ou o mesmo Senado façam leis tirânicas para executá-las tiranicamente.”

Destarte, o poder estatal deve ser limitado através da separação das funções do Estado, quais sejam: legislativa, jurisdicional e executiva (administrativa), as quais serão exercidas por diferentes órgãos, conforme preleciona Montesquieu.

Ressalte-se, ainda, que as funções estatais não se separam de forma absoluta, pois os órgãos que as exercem, externam de forma mais evidenciada as suas funções típicas, não podendo se olvidar a eventualidade de também praticarem outras funções, que são as denominadas atípicas.

Esta separação das funções do Estado é uma medida imprescindível para limitar o poder pelo próprio poder. Assim, aos diversos órgãos do Poder do Estado, são conferidos prerrogativas para que atuem de maneira independente, sem que um se sobreponha ao outro, nesse sentido ratifica Pedro Lenza (2006, p.222). É o que se denomina ‘checks and balance’, ou "sistema de freios e contrapesos", que permite a existência de uma espécie de controle de um órgão sobre o outro, sem, contudo, estar imune a este mesmo controle.

2 Ato administrativo

Aproximando-se um pouco mais do cerne da problemática suscitada, preliminarmente, é necessário mencionar que há dois critérios distintos para conceituar ato administrativo: o subjetivo, o qual considera o órgão administrativo que praticou o ato, excluindo, desta forma, todos aqueles atos administrativos praticados pelo Poder Judiciário e Legislativo de maneira atípica; e o objetivo, que leva em consideração apenas o exercício concreto e imediato da função administrativa. Desta feita, qualquer ato originado dos três Poderes Estatais, pode ser considerado administrativo, desde que observados os requisitos mencionados e vise os fins sociais, sendo tais ensinamentos inferidos conforme as  lições de Di Pietro (2008, p.178).

Diante das observações supra e das leis vigentes, podemos afirmar que o critério objetivo é o mais aceito, considerando como atos de natureza administrativa, aqueles originados tanto do Executivo, como do Legislativo e do Judiciário.

Acentua-se, ainda, conforme os ensinamentos de Di Pietro (2008), que o controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário não só é possível, como é um dos pilares que dá sustentáculo à incessante persecução aos interesses e fins coletivos. Sendo dever de o Estado submeter-se a esse controle, e direito do Poder Judiciário fiscalizar e controlar eventuais abusos.

Corroborando o explicitado, Carvalho Filho (2007, p.92) conceitua ato administrativo como sendo: “a exteriorização da vontade de agentes da Administração Pública ou de seus delegatários, nessa condição, que, sob o regime de direito público, vise à produção de efeitos jurídicos, com o fim de atender ao interesse público.”

O direito positivo brasileiro, na Lei nº 4.717, de 29 de junho de 1965, em seu art. 2º, tratando da nulidade de atos administrativos, apontou cinco elementos: sujeito, objeto, forma, motivo e finalidade. Estes devendo estar sempre presentes para tornar o ato perfeito e válido; sendo obrigatórios e harmônicos entre si, restando inválidos os que se efetivarem na ausência de qualquer deles.

No que tange ao sujeito, Meirelles (2003, p.147) afirma: “nenhum ato – discricionário ou vinculado – pode ser realizado validamente, sem que o agente disponha de poder legal para praticá-lo”.

Já o objeto é o efeito jurídico que o ato produz imediatamente. Assim, quando praticado, cria, extingue ou transforma um determinado direito. Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo (p.365, 2008) afirmam que: “o objeto do ato administrativo identifica-se com seu próprio conteúdo, por meio do qual a Administração manifesta sua vontade, ou atesta simplesmente situações preexistentes.”

Atinente às formalidades que devem ser atendidas em todo o processo de formação do ato com o fim de se obter uma decisão final, no Direito Público tornam-se ainda mais relevantes respeitá-las por serem garantias jurídicas ao administrado, e assim, os atos devem ser praticados de acordo com a forma pré-estabelecida a fim de possibilitar o controle pela própria Administração Pública e pelos outros Poderes do Estado.

O motivo, requisito imprescindível do ato administrativo, é a conjectura fática e jurídica que possibilita ao agente público fundamentar o ato administrativo praticado, ou seja, é um acontecimento que impulsiona a Administração Pública a realizar determinado ato consoante a norma legal aplicável. Há de se salientar que com a Lei nº 9.784/99, regulamentadora do processo administrativo no âmbito federal, todos os atos administrativos, independentemente de serem vinculados ou discricionários, deverão ser motivados, com indicação da situação fática que possibilitou a prática, bem como seu fundamento.

E o último elemento é a finalidade, que impõe para todas as atividades da Administração Pública objetivar o interesse público, pois este é um de seus fins precípuos.

Contemporaneamente, a ordem democrática exige a total subsunção do Estado ao espírito das normas, buscando-se obter o melhor resultado para a coletividade. Trata-se de um pressuposto que remonta às concepções políticas de Rousseau e Montesquieu, amplamente divulgadas no mundo, que condensaram o que seria o Estado de Direito.

Imprescindível relembrar que o princípio da legalidade inerente à Administração nos remete a idéia de total dependência desta com a lei. Sabe-se, pois, que acordante o referido princípio, a Administração Pública só pode atuar quando haja expressa permissão em lei, jamais lhe cabendo atuar sob o fundamento de que tal prática não é proibida, haja vista esta possibilidade ser permitida, em regra, no âmbito do direito privado.

Conforme o grau de liberdade do agente público diante de um ato que irá praticar pode-se classificar em: vinculado, quando a norma a ser cumprida determina com rigor e objetividade o comportamento da Administração diante de certa situação fática, dizendo qual é o único e possível comportamento que o administrador deverá tomar, não deixando qualquer espaço para uma apreciação subjetiva; e o discricionário, quando a Administração pode optar por uma dentre duas ou mais soluções, todas convalidadas de pleno direito, com base nos critérios de conveniência e oportunidade.

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Sobre esse instituto traz-se à tona o seguinte conceito: discricionariedade é a margem de liberdade que remanesça ao administrador para eleger, segundo critérios consistentes de razoabilidade, um dentre pelo menos dois comportamentos cabíveis, perante cada caso concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal, quando por força da fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida no mandamento, dela não se possa extrair objetivamente, uma solução unívoca para a situação vertente. (BANDEIRA DE MELLO, 2007).

Entretanto, não se pode olvidar de mencionar que no ordenamento jurídico brasileiro, inexiste ato totalmente discricionário, desembaraçado da necessidade de conformidade dos seus aspectos intrínsecos e extrínsecos ao princípio da legalidade. Mesmo aqueles tidos como discricionários devem obedecer à lei.

Nos elementos formadores, observa-se a incidência de sua vinculação em pelo menos dois aspectos, competência e finalidade. Pode-se, então, ratificar que pelo menos alguns elementos do ato discricionário são vinculados, ou ainda, mesmo aqueles atos discricionários devem surgir no horizonte jurídico com sinais de vinculação. Já quanto ao mérito, observam-se os critérios da oportunidade e conveniência com escopo do interesse público. Trata-se de um juízo estritamente subjetivo, havendo, portanto, a incidência da discricionariedade nessa hipótese.

Tornar-se-ia inócua uma análise da discricionariedade, sem se considerar a hipótese de desvio de poder. Este consiste exatamente na discricionariedade do ato de uma maneira ampla, criando um eventual afastamento da finalidade traçada pela norma por parte do agente competente.

Conforme já mencionado, a atividade administrativa necessita estar em conformidade com a lei, além disso, deve buscar atingir objetivos previamente traçados, para assim manter-se fiel aos princípios do Estado de Direito e da Carta Magna. Lima (apud Mello) corrobora esse entendimento ao afirmar que o fim – e não a vontade – domina todas as formas de administração. Supõe, destarte, na atividade administrativa a preexistência de uma regra jurídica, reconhecendo-lhe uma finalidade própria.

A esse respeito ratifica Oliveira (2001, p.91):

“Ao que se vê, há desvio de poder, seja por desvio da finalidade (interesse público genérico), oportunidade em que bastará o exame de elementos objetivos, para se apurar ter o agente utilizado de uma competência para o atingimento de objetivos particulares ou, então, haverá desvio do fim (imediato, próximo), oportunidade em que se deverá apurar a intenção, o móvel do agente que contrastado com causas objetivas levará o julgador a apurar o desvio de poder.”

Dessa forma, o controle jurisdicional não coloca em perigo a liberdade administrativa, ou melhor, a discricionariedade conferida por lei ao agente público, pois controla a legalidade. Nesse aspecto, é essencial que o Judiciário atue, já que o interesse primordialmente público deve ser priorizado em todas as hipóteses. Em se calando ou mantendo-se inertes, descobertos ficarão os administrados e terão seus direitos gravemente violados.

Nesse aspecto, é preciso lembrar que o Estado de Direito é garantidor dos atos praticados pelos seus agentes. Tais atos devem, necessariamente, corresponder às finalidades públicas e legais estabelecidas, impedindo, assim, que haja qualquer resquício de insegurança jurídica.

3 Controle do ato administrativo discricionário pelo judiciário

O ordenamento jurídico brasileiro adotou a teoria da tripartição de poderes elaborada por Montesquieu, de forma atenuada, pois como bem preleciona Pedro Lenza (2006, p.222) “… diante das realidades sociais e históricas, se passou a permitir uma maior interpenetração entre os poderes, atenuando a teoria que pregava uma separação pura e absoluta dos mesmos”.

Além disso, o Direito Constitucional, dentre as inúmeras atribuições que lhe foram concedidas, possui a essencial função de, através dos seus princípios basilares, reger o Estado Democrático de Direito. Sendo a este imprescindível que haja Poderes de Estado e Instituições, independentes e harmônicos entre si, bem como previsão de direitos fundamentais e instrumentos que possibilitem a fiscalização e a perpetuidade desses requisitos. (MORAES, 2003).

Em decorrência da imprescindibilidade de controle da Administração Pública, vislumbrou-se uma série de funções voltadas ao equilíbrio da atuação dos órgãos estatais, através do sistema de freios e contrapesos (checks and balances). Este previu a possibilidade de controle recíproco entre os poderes, visando evitar os abusos e arbitrariedades no exercício das funções. Assim ratifica Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo (2008, p. 385): “… as funções de governo são atribuídas a órgãos autônomos, porém de modo não exclusivo, de sorte que é assegurado mútuo controle e um funcionamento harmonioso, tendente à realização da vontade política geral.”  

Essa previsão constitucional ocorre não apenas no que tange seu sistema organizacional, mas, especialmente, no atinente ao controle dos atos administrativos. Pois, estes devem ser utilizados incessantemente conforme seus fins legais, e, conseqüentemente, priorizando o interesse coletivo em face de qualquer outro tipo de interesse individual.

Ademais, o controle recíproco deve ser inerente ao Estado Democrático de Direito, pois o administrador público gerencia interesses alheios, e, portanto, tem o dever de prestar contas de suas atividades, respondendo por eventuais danos causados à coletividade.

O princípio da legalidade é base de sustentação ao Estado Democrático de Direito o qual proporciona toda a estrutura organizacional, política e administrativa garantidora dos direitos fundamentais dos cidadãos. Neste assentir Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo (2008, p. 331):

“Em suma, a Administração, além de não poder atuar contra a lei ou além da lei, somente pode agir segundo a lei (a atividade administrativa não pode ser contra legem, nem praeter legem, mas apenas secundum legem). Os atos eventualmente praticados em desobediência a tais parâmetros são atos inválidos e podem ter sua invalidade decretada pela própria Administração ou pelo Poder Judiciário.”

Entretanto, de nada adiantaria existir tal observância à legalidade se seu cumprimento não fosse rigorosamente fiscalizado por um órgão autônomo, dotado de imparcialidade, responsável pela apreciação e eventual invalidação dos atos praticados pela Administração.

O ordenamento jurídico brasileiro adotou o sistema de jurisdição una, o qual o Poder Judiciário detém o monopólio da função jurisdicional, de modo que os atos da Administração Pública podem ser submetidos aquele. Neste sistema, o Judiciário aprecia lesão ou ameaça de lesão a direitos individuais e coletivos, resolvendo, em caráter definitivo, todos os conflitos existentes, sejam eles relacionados ou não com a Administração, envolvendo particulares ou até mesmo entre estes e órgãos públicos, como bem explicita o direito de ação inserto no art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal: “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

Com essa noção de divisão de função sustentada pelo princípio da tripartição das funções, cada Poder exerce uma única função típica inerente à sua atividade e outra atípica. Assevera ainda Pedro Lenza (2006, p. 223) em relevante exposição: “Importante notar que, mesmo no exercício da função atípica, o órgão exercerá uma função sua, não havendo aí ferimento ao princípio da separação de poderes…”. Tal fato se traduz eminentemente salutar, pois possibilita um controle e uma fiscalização recíproca sobre os atos administrativos e a gestão, em geral, com a “coisa pública”.

Além disso, a legalidade do ato administrativo é o aspecto primordial para sua validade e eficácia. No Estado Democrático, inadmissível seria qualquer ação do Poder Público sem respaldo legal. Significa dizer que o agente público não pode utilizar o arbítrio, abuso de poder ou qualquer outra forma de comportamento que não seja a necessária.

Conforme os ensinamentos de Hely Lopes Meirelles (2003, p. 145):

“Todo ato administrativo, de qualquer autoridade ou Poder, para ser legítimo e operante, há de ser praticado em conformidade com a norma legal pertinente (princípio da legalidade), com a moral da instituição (princípio da moralidade), com a destinação pública própria (princípio da publicidade) e com a presteza e rendimento funcional (princípio da eficiência). Faltando ou desviando-se desses princípios básicos, a Administração Pública vicia o ato, expondo-o a anulação por ela mesma ou pelo Poder Judiciário, se requerida pelo interessado.”

Analisando ainda a questão do controle jurisdicional sobre os atos administrativos, Di Pietro (2003, p.616) ratifica: “Não há invasão do mérito quando o Judiciário aprecia os motivos, ou seja, os fatos que precedem a elaboração do ato; a ausência ou falsidade do motivo caracteriza ilegalidade suscetível de invalidação pelo Poder Judiciário.”.

Alguns doutrinadores, como Mattos (2005), admitem a possibilidade de controle dos atos administrativos de forma ampla e irrestrita, em todos os aspectos, sempre que houver lesão ou ameaça de direito.

É oportuno destacar a lição de Lúcia Valle Figueiredo (apud COELHO, 2002, p. 47); para ela, o ato deve ser controlado até onde o Judiciário entenda que cabe sua atuação, analisando os valores principiológicos do texto. Sobre o assunto, arremata:

“E concluímos que o ato administrativo, individual ou de caráter normativo, deve ser esmiuçado até o limite que eu o próprio magistrado entenda ser seu campo de atuação. Não há atos que se preservam do primeiro exame judicial. O exame judicial terá de levar em conta não apenas a lei, a Constituição, mas também os valores principiológicos do texto constitucional, os standards da coletividade.”

Segundo essa corrente, a qual se defende, existe uma vinculação entre os princípios constitucionais e o mérito do ato administrativo sendo considerados raízes do Direito Administrativo e incidindo substancialmente nesse ramo do Direito.

E assim, o mérito do ato administrativo não pode exorbitar à esfera de controle jurisdicional, pois os princípios constitucionais incidem direta e intimamente, como critério objetivo na Administração Pública.

A guisa da ilustração traz-se à baila jurisprudência corroborando que os atos administrativos devem ser submetidos ao controle do Poder Judiciário, como expõe o aresto da Ministra do Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial 493.811/SP (2003), que permite a ampliação do campo de atuação do controle jurisdicional, ultrapassando os aspectos legais do ato e adentrando, inclusive, no mérito administrativo:

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“Administrativo e Processual Civil – Ação Civil Pública – |Ato Administrativo Discricionário: Nova Visão.

1. Na atualidade, o império da lei e o seu controle, a cargo do Judiciário, autoriza que se examinem, inclusive, as razões de conveniência e oportunidade dos administrados.

2. Legitimidade do Ministério Público para exigir do Município a execução de política específica, a qual se tornou obrigatória por meio de resolução do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente.

3. Tutela específica para que seja incluída verba no próximo orçamento, a fim de atender a proposta políticas certas e determinadas.

4. Recurso especial provido.”

Barroso (apud MATTOS, 2005, 32) esclarece:

“O poder discricionário, portanto, encontra limites, como já referido, na finalidade legal da norma que o instituiu, mas também, e primordialmente, nas normas constitucionais. No normal das circunstâncias, como no caso examinado neste estudo, a finalidade legal do ato a ser praticado e as normas constitucionais são limites que convivem harmoniosamente para demarcar o espaço de atuação do administrador, mas é importante registrar que, em caso de conflito insuperável entre esses dois elementos, a supremacia será sempre das normas constitucionais, admitindo-se até mesmo que o administrador deixe de dar cumprimento à lei em reverência à Constituição.”

Os princípios constitucionais são os vetores do ordenamento jurídico, e de forma nenhuma poderão ser suprimidos, sob pena de formarmos um grande conjunto de regras inócuas, sem finalidade, sem essência. A atividade administrativa está vinculada aos valores supremos constitucionais, e ideologias consagradas na Constituição que refletem o posicionamento do Estado perante os valores da humanidade.

Toda atividade administrativa se desenvolve sob o prisma do respeito ao ordenamento jurídico. Mesmo os atos discricionários devem ser emanados de acordo com os valores constitucionais, harmonizando a atuação da Administração com os fins colimados na Carta Magna.

Neste sentido, robustece o entendimento a nova concepção do direito sob a ótica principiológica, como já mencionado, e a constitucionalização da Administração Pública que resultaram em novos contornos no que tange ao controle jurisdicional do ato administrativo. E assim bem menciona J. J. Canotilho: “Os princípios do Estado de direito (proporcionalidade, não retroatividade, confiança, segurança), e os princípios constitucionais da administração (legalidade, imparcialidade, justiça) forçam a reconstrução do direito administrativo à luz do direito constitucional”.

Nesse assentir, o princípio da juridicidade é mais um pilar que reforça a possibilidade do exercício do controle pelo Poder Judiciário frente aos atos administrativos, posto que exija não só a observância da legalidade formal, como também os princípios de cunho administrativo e constitucional.

Devemos mencionar ainda que os atos vinculados não suscitam qualquer dúvida acerca do cumprimento da finalidade constitucional, pois o controle será verificado, no caso concreto, se atendeu ou não a solução preconizada, através do simples controle de legalidade, já que seus elementos estarão todos vinculados à lei.

Contudo, nos atos discricionários, é concedida à Administração a prerrogativa de decidir quanto ao conteúdo do ato praticado. Mas essa opção não pode estar totalmente desvinculada do ordenamento jurídico e dos princípios constitucionais.

O Supremo Tribunal Federal proferiu, ainda, decisão reforçando o explicitado no Agravo de Instrumento nº 426.122-9, tendo como Relator o Ministro Carlos Britto, em 01 de março de 2005:

“Ementa: Caso em que a alegada Carta da República (art. 5º, II, XXXV, LV e LXIX, e art. 37, II), se existente, dar-se-ia de forma reflexa ou indireta, não ensejando a abertura da via extraordinária. (STF, 2005).”

Visando esclarecer a ementa supracitada transcreveremos um breve trecho do acórdão em comento:

“… 9. É entendimento pacífico nesta Colenda Corte a possibilidade de controle dos atos administrativos, quando ilegais ou abusivos, não ensejando violação ao princípio da separação dos três poderes. Nesse sentido Res. 259.355 e AgR 170.782. (…). (STF, 2005).”

Desta forma é patente a possibilidade do Poder Judiciário controlar os atos vinculados, já que todos os seus elementos estarão prescritos na lei, tornando-se necessário apenas um controle de legalidade em sentido estrito.

Já no que tange aos atos discricionários há certa controvérsia doutrinária. Primeiro deve-se ficar claro que sempre será possível, através do controle de legalidade controlar os elementos vinculados dos atos discricionários, a saber, competência, forma e finalidade, já que estarão definidos na própria lei. Já no que tange ao mérito administrativo, ou seja, conveniência e oportunidade que se encontra nos elementos motivos e objeto, há divergência doutrinária acerca da possibilidade de controlar ou não.

Ocorre que alguns doutrinadores como Seabra Fagundes (apud Carvalho Filho, p.116) dizem que nunca se poderá adentrar no mérito administrativo para controlar. Alegam-nos que neste caso haveria violação ao princípio da separação dos poderes.

Contudo, as doutrinas mais modernas, a exemplo Mello (2007), entendem que em situações extremas pode haver um controle de legalidade que invadirá indiretamente o mérito. Nos casos em que os administradores tem se utilizado de formas abusivas a pretexto de estar exercendo a discricionariedade do ato. No entanto, é bom salientar que nestes casos não haverá um típico controle de mérito do ato administrativo, e sim um controle de legalidade em sentido amplo(quando se analisa leis, princípios e regras constitucionais), por ferir os princípios da razoabilidade e proporcionalidade (princípios implícitos constitucionais), e o princípio da moralidade.

Deste modo é cristalina a possibilidade de controle de legalidade em sentido amplo dos atos administrativos vinculados e discricionários. Ademais é interessante salientar que o mérito administrativo quando exercido dentro da legalidade jamais poderá ser controlado pelo poder judiciário (CARVALHO FILHO, 2007).

Consoante exposto não é correto que o judiciário se exima de controlar os atos administrativos e resguardar a aplicação dos princípios constitucionais, a pretexto de invasão de poder ou qualquer outro argumento. Necessariamente tais argumentos, se tornarão infundados, sobretudo porque o magistrado se restringirá a declarar a invalidade do ato ilegal, não sendo competente para realizar ato algum, pois este será praticado unicamente pela Administração Pública.

Conclusão

Pelo que foi exposto, concluímos que não são tidos como mérito administrativo aqueles atos que excedem ou extrapolam o binômio oportunidade/conveniência, ou ainda, aqueles que apresentam características pessoais. Apontam-se, também, aqueles atos que maculam a regra de competência e, por último, os atos desproporcionais que se excedem para atingir o fim.

Todos esses extrapolam a discricionariedade permitida pela lei e adentram na ilegalidade e ilegitimidade, sendo assim passível de análise jurisdicional para que se anule o ato contrário ao direito, sob pena de romper as garantias do Estado de Direito.

Ratifica-se e reforça-se, ainda, a normatividade e imperatividade dos princípios no ordenamento jurídico brasileiro hodierno, que revelou mudanças no paradigma do exercício do controle jurisdicional do ato administrativo discricionário de forma ampliativa. E assim resultou, sobremaneira, na redução do que se denomina mérito administrativo, pois este não mais se vincularia unicamente ao texto da lei, mas, sim, a todo o ordenamento jurídico e, sobretudo aos princípios implícitos e explícitos.

O mérito do ato emanado pela Administração Pública, que fica adstrito ao binômio oportunidade e conveniência, é o reflexo da discricionariedade que não pode ser atacado pelo Poder Judiciário, cabendo a este, diante de todo o exposto, utilizar princípios insertos no ordenamento jurídico para analisar o ato administrativo discricionário e realizar possível controle; posto que a lesão a qualquer um deles resultará na exorbitação do mérito administrativo e, sendo assim, passível de controle.

Portanto, no que tange o ato administrativo discricionário não se pode olvidar sê-lo passível de controle, até mesmo no que tange o mérito, posto que atualmente faz-se uma interpretação do ordenamento jurídico como um todo possibilitando, legalmente, extirpar possíveis excessos cometidos com base numa suposta discricionariedade. 

 

Referências
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Informações Sobre o Autor

Rafael de Lucena Falcão

Advogado, graduado na Universidade Federal da Paraíba


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