Resumo: Este artigo tem por escopo apresentar uma solução razoável para o problema da delimitação prática do cometimento de um ou mais crimes de gestão fraudulenta de instituição financeira, separando cada delito de eventuais outros praticados pelo mesmo agente, com olhos postos na sua natureza de crime habitual impróprio.
Palavras-chave: Gestão fraudulenta. Crime habitual impróprio. Delimitação. Crime único. Concurso de crimes.
Sumário: Introdução. 1. Da natureza do delito de gestão fraudulenta – delimitação conceitual e prática do crime. Conclusão.
Introdução
A ciência jurídica precisa atribuir contornos mais precisos à questão da pluralidade de atos fraudulentos de gestão de instituição financeira, divisando as situações de crime único de gestão fraudulenta (art. 4º, caput, da Lei nº 7.492, de 1986) daquelas em que há concurso de crimes.
São intensos os debates travados entre acusação e defesa a respeito da possibilidade, ou não, de se considerar um conjunto de atos como crime único de gestão fraudulenta (por aplicação da jurisprudência dos tribunais superiores, que reconhecem ter este delito a natureza de habitual impróprio, como abaixo se verá), ou como múltiplos crimes em concurso.
Busca-se, aqui, estabelecer um critério razoável para definir, em concreto, relativamente à infração penal de gestão fraudulenta, se se cuida de única figura delitiva, ou se são vários os delitos cometidos.
1. Da natureza do delito de gestão fraudulenta – delimitação conceitual e prática do crime
A Lei nº 7.492/86 assim define o crime de gestão fraudulenta, em seu art. 4º, caput: “Gerir fraudulentamente instituição financeira”.
A este delito, o legislador cominou abstratamente a pena de 3 a 12 anos de reclusão, e multa.
Doutrinariamente, tem-se que gestão fraudulenta “significa gestão de instituição financeira com fraude, dolo, ardil ou com malícia, visando a obter indevida vantagem, independentemente de ser para si ou para terceiro”[1].
Intensa polêmica formou-se a respeito da natureza do delito ora analisado, mais precisamente sobre a necessidade ou não da habitualidade para a consumação delitiva.
Assim, havia aqueles que defendiam que apenas um ato fraudulento de gestão seria suficiente para fazer-se configurar a figura típica sub examine, muito embora a reiteração desses atos não desse ensejo ao concurso de crimes (seria, para esta corrente, crime habitual impróprio). Nessa linha, afirma Rodolfo Tigre Maia[2] que se trata “de crime habitual impróprio, ou acidentalmente habitual, em que uma única ação tem relevância para configurar o tipo, inobstante sua reiteração não configure pluralidade de crimes”.
Outra corrente, por seu turno, sustentava a necessariedade e imprescindibilidade da nota da habitualidade para que se pudesse reconhecer a concreta ocorrência do crime em questão. Nesse sentido, afirma José Carlos Tortima[3] que, para a caracterização da gestão fraudulenta, deve haver “a reiteração, pelo agente, dos atos fraudulentos”, bem assim que “a lei não diz, simplesmente, praticar ato de gestão fraudulento (ou temerário), mas sim gerir fraudulentamente…, a indicar pluralidade de atos, pautando a conduta do agente em um determinado período de tempo”.
Crime habitual, para Cleber Masson, é “o que somente se consuma com a prática reiterada e uniforme de vários atos que revelam um criminoso estilo de vida do agente. Cada ato, isoladamente considerado, é atípico”[4]. Em sequência, o mesmo autor conclui que “se cada ato fosse típico, restaria configurado o crime continuado”.
O clássico exemplo de crime habitual é o do exercício ilegal da medicina, arte dentária ou farmacêutica (art. 282 do Código Penal). Com efeito, a prática de apenas um ato privativo da profissão de médico não faz configurar-se o delito; todavia, a prática reiterada de tais atos, a demonstrar ser aquele um estilo de vida do agente, faz presente a infração penal em questão.
Dito isto, voltemos ao delito de gestão fraudulenta.
Como acima dito, uma primeira corrente defende que a prática de um singelo ato fraudulento de gestão de instituição financeira deve ser reconhecida como crime.
A corrente oposta advoga que é rigorosamente necessária a habitualidade. Explique-se: para que seja legítima a condenação por gestão fraudulenta, o agente deve praticar uma série de atos fraudulentos de gestão.
A prática de um único ato, por seu turno, seria um indiferente penal, ou então configuraria crime diverso (reclamando a incidência de alguma outra norma penal incriminadora), mas jamais autorizaria o reconhecimento do delito ora analisado.
Pois bem: foi intenso o debate doutrinário e jurisprudencial, até que o Superior Tribunal de Justiça tornou pacífica sua jurisprudência no sentido de que “O crime de gestão fraudulenta, consoante a doutrina, pode ser visto como crime habitual impróprio, em que uma só ação tem relevância para configurar o tipo, ainda que a sua reiteração não
configure pluralidade de crimes”[5].
O Supremo Tribunal Federal entende do mesmo modo, como se pode perceber da leitura do seguinte trecho da ementa do HC 89364/PR[6]: “É possível que um único ato tenha relevância para consubstanciar o crime de gestão fraudulenta de instituição financeira, embora sua reiteração não configure pluralidade de delitos. Crime acidentalmente habitual”.
Nota-se, assim, que os tribunais superiores assentaram ser o crime de gestão fraudulenta habitual impróprio – ou acidentalmente habitual –, de sorte que um único ato configuraria a infração penal do art. 4º, caput, da Lei nº 7.492/86, mas a reiteração de delitos não geraria um concurso de crimes (especialmente crime continuado), mas sim crime único.
Sem dúvida, foi acertada a decisão dos nossos tribunais, por duas razões.
Primeiro, porque não seria justo, nem razoável, que não se reconhecesse como criminosa a prática de um singular ato de gestão de instituição financeira que ostentasse a nota da fraude, e que fosse suficientemente gravosa para ofender o bem jurídico penal protegido – a integridade e a higidez do sistema financeiro nacional –, reclamando, por isto mesmo, a incidência do art. 4º, caput, da lei de crimes contra o sistema financeiro nacional (mesmo porque a lei não faz qualquer restrição à possibilidade de reconhecimento da configuração deste crime pela prática de um único ato).
Depois, porque também não seria legítimo que, em certos casos, a pluralidade de atos fraudulentos de gestão fosse interpretada como concurso de crimes. O vocábulo “gestão” pode referir-se à prática de um só ato (desde que por ele se promova a administração da instituição), ou a um conjunto de atos.
Observe-se que a fórmula verbal adotada pela lei não impõe que se reconheça um crime a cada ato praticado, nem tampouco exige a pluralidade de atos para o reconhecimento do delito. Para a lei, não importa se foi praticado um só ato, ou muitos deles. O que é efetivamente relevante é que tenha havido a gestão da instituição financeira, e a conduta “gerir” pode ocorrer por intermédio de um só ato (que revele densidade suficiente para que seja reconhecido como um efetivo ato de administração, com efeitos jurídicos relevantes para a instituição administrada), ou de uma série de atos concatenados.
Todavia, da conclusão acima exsurge um problema: se o agente praticar um único ato que, por si, já faz consumado o crime de gestão fraudulenta, estará ele liberado para praticar outros tantos atos fraudulentos de gestão, sem que esses atos deem azo ao reconhecimento de um novo delito? Teria o agente, neste caso, um bill de indenidade para continuar a prática das fraudes, já que todos os atos posteriores estariam abrangidos pelo primeiro delito praticado? Como, então, delimitar a prática do crime em questão, de forma a separá-lo de outros crimes semelhantes, que venham a ser praticados na administração da mesma instituição financeira?
Essa indagação não é meramente acadêmica; tem repercussões importantes no status libertatis do acusado.
Com efeito, não raro os agentes são processados por uma diversidade de atos fraudulentos de gestão (em um único, ou em diferentes processos), e suas defesas técnicas tentam descaracterizar a pluralidade de delitos, afirmando serem aqueles atos componentes de um único crime.
Quid juris?
A solução há de estar na avaliação do contexto em que os atos foram praticados, na existência ou inexistência de vínculo entre tais atos, e na sua finalidade.
Assim, por exemplo, se são praticados dez atos fraudulentos de gestão, num período de seis meses, num mesmo contexto e com uma certa e única finalidade, é de se reconhecer que esses atos configuram um só crime.
Todavia, se, um ano depois da prática do primeiro ato, são praticados mais dez outros, com outra finalidade e em contexto completamente diverso, naturalmente não se pode dizer que o crime é o mesmo. Trata-se de delito diverso.
Cada série de atos concatenados e entre si vinculados configura um crime independente.
Pensar o contrário seria conferir ao agente um bill de indenidade, já que, uma vez praticado um único ato fraudulento de gestão, estaria o administrador da instituição financeira livre para praticar outros tantos, a qualquer tempo, sem incorrer na prática de qualquer outro delito. O primeiro ato já faria configurado o delito, e os demais, sem qualquer limitação temporal ou contextual, restariam impunes.
Tal raciocínio, inclusive, atenta contra os objetivos da política criminal, já que, ao invés de inibir, funcionaria como um estímulo à criminalidade, uma vez que os atos fraudulentos posteriores ao primeiro, apesar de configurarem lesão autônoma ao bem jurídico tutelado pela norma, ficariam impunes.
A solução, como acima sinalizado, é avaliar cada caso de forma cuidadosa, buscando identificar todo o desenrolar da conduta delitiva, de forma a saber se os atos de fraude possuem conexão entre si, e se estão inseridos num mesmo contexto – indicando tratar-se de delito único –, ou se nenhuma ligação guardam entre si, revelando, cada um deles, um propósito diferente e contornos que demonstram inserir-se, cada qual, em um distinto contexto.
Por exemplo, se um diretor de instituição bancária pretende desviar desta uma quantia “x” e, para tanto, simula, de forma ardilosa, diversos empréstimos e transações financeiras em nome de correntistas, é de se concluir que, apesar da efetivação de diversos atos (os tais empréstimos e transações), trata-se de crime único, porquanto os atos foram realizados para um único propósito, num mesmo contexto, e possuíam ligação entre si, já que cada ato era complementar aos demais, de forma que, por meio de todos eles, em conjunto, pretendeu o diretor realizar o seu intento criminoso.
Neste caso, cada ato foi qual uma partícula de um sistema que, em seu todo, buscava, fradulentamente, desviar dinheiro da instituição.
Imagine-se, por outro lado, um único ato que, ostentando a nota da fraude, tenha por objetivo maquiar a contabilidade da instituição financeira, ocultando grave prejuízo experimentado por esta. Um ano depois, o mesmo agente pratica um novo ato fraudulento, desta feita com o objetivo de desviar dinheiro da instituição.
Ora, é evidente que tais atos não guardam qualquer relação entre si, foram praticados em conjunturas diversas e tinham, inclusive, objetivos distintos.
Não se trata, aqui, de crime único, já que o dolo que animou o primeiro ato foi distinto daquele que motivou o outro, revelando vontades autônomas de delinquir.
Ademais, como os atos materiais praticados pelo agente não guardavam, entre si, qualquer conexão, não se pode sustentar que devam ser eles tratados conjuntamente como parte de um mesmo crime.
É importante que se diga, ainda, que a lei, em nenhum momento, proscreve o concurso de crimes de gestão fraudulenta, e nem a sua natureza de crime habitual impróprio conduz a essa conclusão.
O fato é que, se os atos de fraude estiverem interligados de modo a, pela aplicação do raciocínio acima exposto, revelarem um só intento criminoso, devem ser tidos como parte de um único crime.
De modo inverso, se cada ato (ou conjunto de atos) for autônomo e independente, cada um deles deve ser considerado como um crime autônomo, e deve o agente ser punido pelo concurso de crimes, na forma em que se apresentar (concurso material ou crime continuado).
Conclusão
Considerando o que acima exposto, há que se ter redobrado cuidado na avaliação dos crimes de gestão fraudulenta, de forma a evitar equívocos e prejuízos tanto para o réu como para o Estado-acusador.
Assim, do mesmo modo que não se pretende uma dupla ou múltipla punição do agente por atos que, unidos entre si, revelam uma vontade única de delinquir, mesmo contexto e mesma finalidade, não se pode deixar de reconhecer o concurso de crimes nos casos em que, absolutamente dissociados, os atos de fraude revelem elementos subjetivos autônomos e contextos diversos, porque isto seria um estímulo à criminalidade.
Muita cautela deve ser dispensada para aquilatar todos os detalhes do caso concreto, para proteger o status libertatis do cidadão e garantir à sociedade o seu direito a um sistema financeiro hígido, seguro e funcional.
Informações Sobre o Autor
Luiz Eduardo Galvão Machado Cardoso
Procurador do Banco Central do Brasil. Graduado em Direito pela Universidade Federal da Bahia