Introdução.
A aula de direito administrativo a que referimos é composta pelo prefácio de Milton Campos, homem público de renome nacional e ex-governador do Estado de Minas Gerais, à obra de Odilon Andrade, então professor de direito administrativo da Universidade de Minas Gerais.
Preferimos chamar o prefácio da referida tese de aula em razão da profundidade e clareza com que são expostos os temas do livro.
Que os ensinamentos do ilustre brasileiro nos sirvam de modelo e inspiração para o desenvolvimento de uma ciência do direito administrativo que indique sempre caminhos novos e úteis à realização do interesse público, do bem comum acima de tudo.
Efeitos da ausência do sistema do contencioso administrativo no Brasil.
O ano era o de 1937. Milton Campos já apontava a deficiência que imperava no direito administrativo brasileiro. Ausência de cortes especializadas – ou o sistema do contencioso administrativo que, sabe-se, tão relevante foi para o desenvolvimento do direito administrativo – já fazia escassas as pesquisas neste campo científico do direito público. Os estudiosos do direito se viam envolvidos pelos debates do direito privado. A administração pública era mais ligada aos problemas de caráter político e contribuía muito pouco acerca das suas questões práticas e para a solução dos seus principais problemas.
Efeitos da ausência de legislação regulamentadora.
A Constituição de 1934 criara um tribunal competente para julgar os litígios entre a União e seus credores, derivados de contratos públicos, além de recursos de atos do Poder Executivo e das sentenças dos juizes federais, nos litígios de que a União fizesse parte, desde que relativos ao funcionamento de serviços públicos ou regidos pelo direito administrativo. Entretanto, observe-se, a norma constitucional determinante da organização deste tribunal não era auto-aplicável e, desta forma, dependia de lei regulamentadora. Tal lei, entretanto, não fora criada até a publicação do livro em questão.
Debates a respeito da natureza jurídica da função pública.
O debate acerca da natureza jurídica do vínculo entre o Estado e o funcionário público já produzira até então interminável debate. Andrade debateria com segurança e praticidade o tema sem deixar, contudo, de tratar das principais teorias do assunto. Já eram significativas as dificuldades em se escolher uma entre tantas as teorias para se definir a natureza da função pública – a civilista, a política, a contratualista, etc. Milton Campos resume o seu entendimento de que, dependendo do processo de investidura e do grau de participação da vontade individual na formação do vínculo, todas as teorias encontrariam oportunidade e cabimento.
Estatuto dos funcionários públicos de 1939.
Outro ponto ressaltado pelo autor do prefacio era o de que os pontos de vista do autor haveriam de contribuir imensamente para os que deveriam se envolver com a criação do estatuto do funcionalismo público – estatuto este que se concretizou dois anos mais tarde, em 1939.[i]
Classificação de serviço público.
Andrade também distingue as espécies de serviço público de acordo com o modo como o serviço público incide sobre o cidadão e nele atua. Se o serviço público for feito por imposição, obrigatoriamente será o serviço prestado por funcionários estatutários. Se se tratar de um serviço público simplesmente ofertado aos cidadãos, podendo o indivíduo aceitá-lo ou recusá-lo, o serviço seria de simples oferta e exercido por empregados sujeitos ao regime de contrato de locação.[ii]
A distinção acima demonstrada é razoável, feliz e consagrada no direito positivo da época.
A respeito das concessões de serviço público.
Na realidade da época a maioria dos serviços de utilidade pública já era prestada por meio de concessões e as atividades do Estado eram múltiplas e crescentes. Lembra Milton Campos que a Constituição Federal avançara ao exigir regulação por meio de lei da fiscalização e da revisão das tarifas dos serviços públicos concedidos, além da vigilância dos lucros e a expansão dos serviços.
Como se tratava de contratos de longa duração, preocupadas com a intangibilidade dos respectivos contratos, as partes envolvidas nas concessões acabavam se desentendendo. Como conseqüência deste desentendimento, ou perdia o público ou perdia o concessionário.
Interessante citar o antigo político mineiro:
“Preoccupadas com a intangibilidade dos contractos de longa duração, as partes, nas concessões, acabam necessariamente se desentendendo: ou perde o público, mal servido pelas estipulações antiquadas, mas obrigatórias,ou perde o concessionário, que, entretanto, quando as tarifasse tornam baixas, prefere prejudicar o serviço a prejudicar seus interesses. Ao cabo, é sempre o interesse público que fica desattendido. Pacta sunt servanda. Mais um detrimento ao bem collectivo, por amor ao latim”.[iii]
Existe a necessidade de se estabelecer, acima de tudo, permanente contato entre o poder público e o serviço concedido, a fim de que não se perca o caráter de serviço público e seja o mesmo abandonado.
Outra citação fundamentalmente importante:
“Ter-se-á de attender, é certo, aos justos interesses do concessionário. Mas o caracter público há de predominar, bastando que, em logar de se procurar sustentar a todo transe a estipulação,mesmo quando posteriormente se lhe verifiquem effeitos anti-sociaes, antes se mantenha sempre a equação financeira que deve estar na base de toda concessão”.[iv]
Ao concessionário restam a continuidade e a regularidade do serviço público, sem contudo deixar de se levar em consideração a sua situação ante as condições desfavoráveis que de maneira imprevista podem lhe dificultar a missão.
Milton Campos encerra o seu prefácio, mais semelhante a uma aula de direito administrativo, da seguinte maneira:
“Segundo palavras de Leon Blum no Conselho de Estado, é da essência mesma das concessões procurar e realizar, na medida do possível, um equilíbrio entre as vantagens que se conferem ao concessionário e os encargos que lhe são impostos. Em toda concessão, portanto, está implícita a equivalência honesta entre o que se outorga ao concessionario e o que dele se exige. E esse calculo de equivalência é essencial á concessão, ainda que seja estranho á sua constituição jurídica e lhe não modifique a natureza, e isso porque elle é a base do accordo e do consentimento”.[v]
Conclusão.
A leitura e o trabalho com os textos do direito passado como um todo são uma verdadeira previsão de futuro. É notável perceber como os problemas enfrentados até então em muito se assemelham com os problemas atuais. É sempre possível se concluir que muito pouco se fez para acrescentar uma real modificação aos desafios enfrentados pela estrutura da administração pública brasileira e até mesmo mundial. Para que se preveja um futuro em tudo semelhante ao que vivemos hoje basta fazer o que tem sido feito até os dias atuais em questões de direito público em geral e, mais especificamente, em questões de direito administrativo.
Informações Sobre o Autor
Francisco Mafra.
Doutor em direito administrativo pela UFMG, advogado, consultor jurídico, palestrante e professor universitário. Autor de centenas de publicações jurídicas na Internet e do livro “O Servidor Público e a Reforma Administrativa”, Rio de Janeiro: Forense, no prelo.