Autonomia da vontade e/ou autonomia privada?

Resumo: O presente artigo desenvolve um breve estudo acerca da existência da diferença conceitual e de objeto entre autonomia da vontade e autonomia privada, bem como seus desdobramentos nos negócios jurídicos realizados entre particulares. Discute igualmente sobre a coexistência de direitos fundamentais e autonomia privada nas relações particulares, analisando limites e pressupostos dessa vinculação, para fortalecer o debate e apurar as nuances estruturais dos conflitos entre esses dois conceitos e seus limites. [1]

Palavras-Chave: Autonomia da Vontade. Autonomia Privada. Direitos Fundamentais.

Abstract: This article develops a brief study of the existence of the conceptual difference between object and autonomy of will and private autonomy, as well as its consequences in legal transactions between private. Also discusses on the coexistence of fundamental rights and private autonomy in private relationships, analyzing limits and assumptions of this link, to strengthen the debate and assess the structural nuances of the conflict between these two concepts and their limits.

Keywords: Autonomy of Will. Private Autonomy. Fundamental Rights.

Sumário: Introdução. 1. Autonomia da vontade. 2. Autonomia privada. 3. Limitações à autonomia da vontade e a constitucionalização do Direito Civil. Considerações finais. Referências.

Introdução

Pretende-se, com o presente artigo, apresentar considerações sobre o instituto da autonomia da vontade e da autonomia privada, suas delimitações e relação com os direitos fundamentais.O princípio da autonomia da vontade é reconhecido pela Constituição Federal e há necessidade de verificação da possibilidade de afastamento da eficácia do princípio da autonomia privada no ato de contratação, considerando o papel do Estado de auxílio e proteção à pessoa, inclusive contra ela mesma, criando condições para que cada uma realize suas escolhas e aja de acordo com elas, sem orientar ou exigir para a direção que repute mais adequada.

Utilizando-se da prática dedutiva, o trabalho está dividido em três partes. Inicia-se com a análise do conceito de autonomia da vontade, a origem do termo e sua evolução histórica.

Em segundo plano, haverá a verificação da concepção de autonomia privada, e suas afinidades conceituais com a autonomia da vontade, analisando se ambas são afins ou confundem-se. Ainda, é feita uma breve análise sobre o papel do negócio jurídico e sua efetivação.

Por fim, a verificação da limitação jurídica para a utilização da autonomia da vontade e/ou da autonomia privada no ordenamento jurídico brasileiro, discorrendo também sobre o fenômeno da constitucionalização do direito civil.

1 – Autonomia da vontade

O princípio da autonomia da vontade é, historicamente, um dos pilares do direito privado. A palavra autonomia deriva do grego e significa competência para determinar-se por si mesmo.

Sobre o vocábulo vontade, Érico de Pina Cabral (2004, p. 90-1) diz que o termo vontade tem origem latina – voluntas, significando um desejo, o ato de querer: vontade é a faculdade que tem o ser humano de querer, escolher, de livremente praticar ou deixar de praticar determinados atos. A partir disto, o autor traça seu conceito: “Autonomia significa o poder de se autogovernar. É a faculdade de traçar suas próprias normas de conduta, sem que se seja submetido a imposições de ordem estranha. Direito de tomar decisões livremente, com liberdade, independência moral ou intelectual. É o contrário de heteronomia, que significa a sujeição a uma lei exterior ou à vontade de outrem, com ausência de autonomia.

Maria Helena Diniz (2011, p. 40-1) conceitua o princípio da autonomia da vontade como “o poder de estipular livremente, como melhor lhes convier, mediante acordo de vontade, a disciplina de seus interesses, suscitando efeitos tutelados pela ordem jurídica.”

Por seu turno, Clóvis do Couto e Silva (1976, p. 17) reafirma o conceito como a “possibilidade, embora não ilimitada, que possuem os particulares para resolver seus conflitos de interesses, criar, associações, efetuar o escambo dos bens e dinamizar, enfim, a vida em sociedade. Para a realização desses objetivos, as pessoas vinculam-se, e vinculam-se juridicamente, através de sua vontade.”

Com base nos pensamentos de Luigi Ferri (1969, p. 3), constata-se que a autonomia da vontade possui uma acepção intangível ou psicológica, na medida em que se foca na demonstração da disposição interna do sujeito de direitos, ou seja, sua genuína aspiração.

Importante também a posição de Natália Berti (2014, p. 83), para quem “a autonomia da vontade está diretamente relacionada a elementos subjetivos, etéreos, baseados na psique dos contratantes […] era, pois, o poder do indivíduo de criar e regular os efeitos jurídicos de sua contratação, sem intervenção externa: o contrato era uma esfera de livre atuação dos particulares.”

Para Francisco Amaral (2008, p. 338), todavia, o princípio da autonomia da vontade ainda revela “um poder de disposição diretamente ligado ao direito de propriedade, dentro do sistema de mercado, da circulação dos bens por meio de troca e de que o instrumento jurídico próprio é negócio jurídico.” A ideia colocada pelo autor é compreensível sob o prisma da realidade histórica do preceito.

Com o declínio do Estado Absolutista e seus privilégios de casta no século XIX, a autonomia da vontade desponta como referencial para o novo sistema jurídico do liberalismo em formação. A burguesia dominante, que detinha o poder econômico, agora não estava a mercê da nobreza e possuía liberdade contratual.  Neste sentido, Gustavo Tepedino (2008, p. 2) lembra que: “O direito privado tratava de regular, do ponto de vista formal, a atuação dos sujeitos de direito, notadamente o contratante e o proprietário, os quais, por sua vez, a nada aspiram senão ao aniquilamento de todos os privilégios feudais: poder contratar, fazer circular as riquezas, adquirir bens como expansão da própria inteligência e personalidade, sem restrições ou entraves legais.”

Neste novo momento, consagrado como liberalismo jurídico, o valor fundamental era o indivíduo e também se atribuía grande importância a liberdade contratual, pois essa era vista como a mais genuína manifestação do livre arbítrio do homem, cabendo ao Estado apenas assegurar a execução das vontades. Segundo Daniel Sarmento (2005, p. 188): “O direito de propriedade era o direito por excelência, e a principal liberdade reconhecida ao indivíduo consistia no poder de adquirir, manter e transmitir seus bens, só interferindo o Estado para impedir que terceiros prejudicassem o gozo dessas sacrossantas faculdades. Proteger a propriedade privada – essa era a principal finalidade do Estado, sua missão mais nobre, segundo a ótica então prevalecente.”

O novo pensamento fundamentava a autoridade estatal na vontade dos cidadãos, adotando o pensamento de Immanuel Kant (1980, p. 137), para quem a vontade de todo ser humano deve ser concebida como vontade legisladora universal.

Darcy Bessone (1987, p. 31) explica que, para a teoria clássica: “o contrato é sempre justo, porque se foi querido pelas partes, resultou da livre apreciação dos respectivos interesses pelos próprios contratantes. O sujeito era livre para contratar e definir os termos do contrato.” Contudo, por pleitear sua vontade, por ela fazia-se definitivamente obrigado, a própria autonomia delimitava a liberdade. Além disso, o intervencionismo estatal era tido como um elemento prejudicial da autonomia, as relações entre particulares deveriam se desenvolver numa situação de formal e hipotética igualdade, conduzidas pela mão invisível de Adam Smith. A ordem espontânea era preferida à ordem artificial designada pelo Estado.

Cláudia Lima Marques (2011, p. 66-9) expõe que os principais reflexos do dogma da autonomia da vontade no direito privado foram: “(a) o reconhecimento da ampla liberdade contratual (liberdade de forma das convenções, livre estipulação de cláusulas, possibilidade de criação de novas figuras contratuais); (b) a consagração da força obrigatória dos contratos; (c) a teoria dos vícios de consentimento, visando a um ajuste que refletisse com lealdade a fusão das vontades das partes.”

O liberalismo foi concomitante ao Período das Grandes Codificações e da escola da Exegese, tendo a codificação francesa, produto da Revolução Francesa e do Iluminismo, influenciado o Código Civil Brasileiro de 1916 que, por sua vez, tinha como bases a autonomia da vontade e a iniciativa privada. No entanto, a adoção de valores relacionados à apropriação de bens sobre o indivíduo, impedia a efetiva valoração da dignidade humana, a igualdade e a justiça. Neste cenário, a autonomia da vontade centralizava e conduzia o enfoque do contrato para o âmbito criador da relação jurídica e de seu conteúdo, sem maiores preocupações com a sua real eficácia e impacto social.

Novamente Gustavo Tepedino (2008, p. 64) faz um curto resgate histórico da necessidade da proteção à pessoa, especialmente pela manutenção de sua base no direito público, que não respondia mais à altura do desenvolvimento social em progressão, que precisa ser trazido à colação: “Vale dizer, a estrutura dogmática que dominou as grandes codificações europeias do século XIX, e gizou as linhas mestras do sistema jurídico pátrio, baseia-se na summa diviso herdada do direito romano, que estrema o direito público e o direito privado. Inspirado pelas ideias jusnaturalistas que exaltavam o indivíduo, o direito civil assegurava a liberdade de contratar e a franca apropriação dos bens, ao passo que a doutrina dos direitos humanos, concebida a partir do século passado, engendrou mecanismos de proteção do indivíduo em face do Estado. Cuida-se, pois, de duas faces da mesma moeda. A sublimação do indivíduo no direito civil dá-se pela autonomia da vontade, enquanto as garantias fundamentais, concebidas pelo direito público, afastam as ingerências do Estado da esfera privada.”

Tratando a respeito da melhoria das condições da classe trabalhadora pobre, surgida em decorrência dos desdobramentos da Revolução Industrial, no final do século XIX, Andreza Cristina Baggio Torres (2006, p. 54) afirma: “Após a Primeira Grande Guerra e com o desenvolvimento econômico e o crescimento da população, passou-se a perceber que os diplomas legais até então vigentes já não atendiam às necessidades do mercado, principalmente com o crescimento das relações de consumo e de mercado. Surgem então as Constituições dos Estados Sociais, inicialmente a Constituição mexicana de 1917, então seguida pela Constituição de Weimar de 1919. É o nascimento do Estado Social. O Estado, agora, passa a intervir nas relações privadas, buscando diminuir as desigualdades sociais, propiciar o bem-estar e o acesso aos bens de consumo a toda a população. (…) Através da preocupação com o direito de todos os homens ao acesso aos meios necessários à sua sobrevivência e à proteção das legítimas expectativas da sociedade agora massificadas, na qual as riquezas e as propriedades estavam concentradas nas mãos de muito poucos, o Estado, através das suas Constituições, passa a prever a proteção de direitos como o da dignidade e da vida. (…) Assim, principalmente após a Segunda Grande Guerra Mundial, firmou-se em todo o mundo a ideia de que era necessária a intervenção do Estado para o bem-estar de todos, e não apenas daqueles que possuem poder econômico.”

Também mencionando o Estado Social antes, com suas consequências, e o Estado Liberal depois, com sua oposição aos sistemas pretéritos, Beatriz França (2006, p. 93) relata: “Com o advento do Estado Social a liberdade de contratação passa ter fronteiras que teve como consequência intervenção na economia global, dando origem ao dirigismo contratual. Também foi preciso impor limites à autonomia privada, ao controle dos bens e, seguramente, à propriedade, ao mesmo tempo em que programas assistenciais eram desenvolvidos. Resta claro que o individualismo cultuado durante décadas naufragara. (…) O Estado Liberal foi o oposto dos sistemas anteriores a ele, uma vez que sua carga histórica e filosófica fez-se indispensável para aquele momento de transformações profundas, gerando efeitos diretos. Atualmente o Estado Democrático de Direito que vigora no Brasil, apontou outras necessidades no sistema socioeconômico, mas também histórico e político e jurídico.”

Neste contexto, Aldacy Rachid Coutinho (2006, p. 181) expõe que “O Estado passa a intervir massivamente nas relações sociais e, nesse contexto, o contrato assume uma visão solidarista…”, adquirindo agora a preocupação com o direito justo e que coincida os interesses privados e da coletividade.

A partir desse novo viés, alguns doutrinadores chegaram ao consenso que o termo autonomia da vontade não se adequava neste novo cenário, surgindo, portanto, um novo conceito, da autonomia privada.

2 – Autonomia privada

Segundo Francisco Amaral (1989, p. 210), define-se a autonomia privada como o poder que os particulares têm de regular, pelo exercício de sua própria vontade, as relações de que participam, designando-lhes a respectiva disciplina jurídica.

Apesar do conceito semelhante, a distinção entre as autonomias, privada e da vontade, é destacada por Érico de Pina Cabral (2004, p. 111): “(…) numa visão simplista dos institutos, pode-se resumir a diferença afirmando que a autonomia da vontade relaciona-se com a liberdade de autodeterminação (manifestação da vontade livre) e a autonomia privada ao poder de autorregulamentação (normas estabelecidas no interesse próprio)”.

Verifica-se que a autonomia privada, então, se constitui no gênero, enquanto que a autonomia da vontade pode ser a espécie, considerando a autonomia da vontade vinculada à vontade interna e à liberdade de atuação de cada pessoa, com a possibilidade de escolha do tipo de obrigação a que se pretende aderir, enquanto a autonomia privada, por sua vez, possui relação direta com a liberdade de contratação, ou seja, com a criação de normas para si.

Para Francisco Amaral (2008, p 345): “A expressão ‘autonomia da vontade’ tem uma conotação subjetiva, psicológica, enquanto a autonomia privada marca o poder da vontade no direito de um modo objetivo, concreto e real”. Todavia, este poder não é originário. Emana do ordenamento jurídico estatal, que o reconhece e opera nos limites que esse estabelece, demarcações que vem crescendo em virtude do aumento das funções sociais do Estado.

 Entretanto, alguns autores não diferenciam ambas as autonomias, como Carlos Alberto Mota Pinto (2005, p. 102): “O negócio jurídico é uma manifestação do princípio da autonomia privada ou da autonomia da vontade, subjacente a todo o direito privado. A autonomia da vontade ou autonomia privada consiste no poder reconhecido aos particulares de auto-regulamentação dos seus interesses, de autogoverno da sua esfera jurídica. Significa tal princípio que os particulares podem, no domínio da sua convivência com os outros sujeitos jurídico-privados, estabelecer a ordenação das respectivas relações jurídicas. Esta ordenação das suas relações jurídicas, este autogoverno da sua esfera jurídica, manifesta-se, desde logo, na realização de negócios jurídicos, de actos pelos quais os particulares ditam a regulamentação das suas relações, constituindo-as, modificando-as, extinguindo-as e determinando o seu conteúdo.”

Em concordância com o exposto acima, Luiz Edson Fachin (1988, p. 54), por sua vez, explica: “É significativo o fato de que a autonomia privada é tida como sendo pedra angular do sistema civilístico inserido em contexto econômico-político próprio. A análise da autonomia privada, cuja expressão é autonomia da vontade, está diretamente vinculada ao espaço que o universo jurídico reserva aos particulares para disporem sobre seus interesses. Em verdade, a autonomia privada tem um reconhecimento da ordem jurídica, na medida em que a própria lei confere explicitamente o espaço em branco para que os particulares o preencham. Esse reconhecimento decorre da aplicação de um critério de exclusão, pois os particulares atuam nos espaços permitidos, isto é, não vedados pela ordem jurídica.”

Nota-se no último caso que, apesar da utilização do termo autonomia da vontade, este se encontra em consonância com o pensamento jurídico moderno, não se apresenta como um conceito destituído de limites, mas sim abrangendo medidas reconhecidas pela ordem jurídica. Deduz-se então, que a expressão autonomia privada designa muito mais a quebra de um paradigma do sistema liberalista burguês, apontando a evolução de um conceito. Assim, Francisco Amaral (2008, p. 213) novamente conceitua: “A autonomia privada constitui-se, portanto, no âmbito do direito privado, numa esfera de atuação jurídica do sujeito, mais propriamente um espaço de atuação que lhe é concedido pelo imperativo, o ordenamento estatal, que permite, assim, aos particulares a auto-regulamentação de sua atividade jurídica. Os particulares tornam-se, desse modo, e nessas condições, legisladores sobre sua matéria jurídica, criando normas jurídicas vinculadas, de eficácia reconhecida pelo Estado.”

A autonomia privada é um dos princípios fundamentais do direito civil. Este se materializa através da realização de negócios jurídicos e Manuel A. Domingues de Andrade (1998, p. 27), compreende a autonomia privada como a “ordenação das relações jurídicas pela vontade dos particulares” e o negócio jurídico é “o meio posto pela ordem jurídica à disposição da pessoa (singular ou coletiva) privada para modelar como lhe aprouver suas relações jurídicas, pondo-as de acordo com os seus interesses, tais como os entende ou aprecia”.

De acordo com Roxana Cardoso Brasileiro Borges (2005, p. 70): “No exercício de sua autonomia privada e, portanto, na realização de negócios jurídicos, as pessoas tem, do ordenamento jurídico, o poder criador, modificativo e extintivo de situações e relações jurídicas, no âmbito e na forma previstas pelo mesmo ordenamento que concede este poder. Ao regulamentar, de forma direta e individual, seus próprios interesses pessoais, o sujeito faz coincidir sua autonomia privada com os interesses que o ordenamento escolhe proteger. A competência pessoal e jurídica que o sujeito tem para autorregular certos interesses encontra sua fonte no ordenamento jurídico.”

O pressuposto da autonomia privada é a liberdade como valor jurídico e a ideia de que o indivíduo é o embasamento da construção social e de que sua escolha, espontânea, é instrumento de efetuação do direito. Portanto, o negócio jurídico torna-se fonte principal de obrigações.

Fernando Noronha (1994, p. 116) elucida que a autonomia privada vem sendo adotada como fundamento do negócio jurídico, pois “costuma ser vinculada a força obrigatória dos contratos, mas, a obrigação de cumprir o contrato está associada essencialmente ao dever ético, de respeitar a palavra dada, e está ligado essencialmente à tutela da confiança e ao princípio da boa-fé”.

Novamente Francisco Amaral (1989, p. 212) expõe que “a liberdade, como valor jurídico, permite ao indivíduo a atuação com eficácia jurídica, ou melhor, a atuação livre com transcendência jurídica que se concreta em duas manifestações fundamentais, uma, subjetiva, que é o estabelecimento, modificação ou extinção de relações jurídicas, e outra, objetiva, que é a normativização ou regulação jurídica dessas relações.” Desse modo, entende-se que existe a liberdade de criar, modificar ou abolir relações e a autonomia privada, que seria o poder de criar normas de direito, nos limites legalmente estabelecidos. 

Numa perspectiva jurídica, a liberdade é o poder de fazer ou não fazer ao livre arbítrio do indivíduo, todo o ato não ordenado nem proibido por lei é o poder que as pessoas têm de definir entre o exercício e o não exercício que o agente dispõe de seus direitos subjetivos. Como direito, a liberdade é faculdade de opção entre atos nem ordenados nem coibidos, aptidão ao exercício do poder jurídico dos particulares, para que estes possam orientá-los de forma a atender seus interesses.

É necessário salientar que a autonomia privada diverge da autonomia pública no sentido de ser essa um poder outorgado ao Estado, ou a seus elementos, de conceber direitos nos limites de sua alçada, com a finalidade de proteger os direitos fundamentais. Já na autonomia privada, os interesses são particulares e sua execução é declaração de liberdade.

Embora permaneça como essência do negócio jurídico, o princípio da autonomia da vontade passa por um processo de reavaliação crítica devido a intervenção crescente do Estado.

3 – Limitações à autonomia da vontade e a constitucionalização do direito civil

Em relação ao atual ordenamento jurídico brasileiro, a Constituição da República Federativa do Brasil, em seus arts. 1º[2], IV, e 170[3], promove a livre iniciativa, especialmente quando é prevista a liberdade contratual, além do que seu art. 5º[4], II, serve também como fundamento constitucional da autonomia da vontade. George Marmelstein (2013, p. 102) relata que mesmo a Constituição Brasileira sendo “tão generosa ao proclamar direitos”, não há “nenhum dispositivo que consagre claramente o direito à autonomia privada”, mas menciona, como “fonte normativa para a proteção da autonomia da vontade, o art. 5º, II”.

Contudo, a autonomia privada encontra fronteiras em normas legais e na ordem pública. De acordo com Maria Helena Diniz (2011, p. 42): “É preciso não olvidar que a liberdade contratual não é ilimitada ou absoluta, pois está limitada pela supremacia da ordem pública, que veda convenções que lhe sejam contrárias e aos bons costumes, de forma que a vontade dos contraentes está subordinada ao interesse coletivo”.

Constata-se que na esfera do direito civil, o princípio da autonomia privada é restringido pelo dirigismo contratual, que regula as medidas restritivas do Estado visando à supremacia dos interesses coletivos sobre os interesses individuais dos contratantes, com o propósito de administrar o equilíbrio contratual, prevenindo abusos e de proteger os economicamente mais fracos, conciliando sempre os interesses da sociedade.

Novamente, Maria Helena Diniz (2011, p. 45): “O Estado intervém no contrato, não só mediante a aplicação de normas de ordem pública (RT, 516:150), mas também com a adoção da revisão judicial dos contratos, alterando-os, estabelecendo-lhes condições de execução, ou mesmo exonerando a parte lesada, conforme as circunstâncias, fundando-se em princípios de boa-fé e de supremacia do interesse coletivo, no amparo do fraco contra o forte, hipótese em que a vontade estatal substitui a dos contratantes, valendo a sentença como se fosse declaração volitiva do interessado.”

Assim, a nova postura estatal de tomar a responsabilidade para si e intervir nos contratos, podendo modificá-los, rescindi-los e até definir uma solução diferente do acordado, decorre da mudança axiológica sofrida pelo direito civil. Os princípios da autonomia privada e da força obrigatória dos contratos tiveram sua abrangência reduzida pela boa-fé, a função social do contrato e a equidade entre as partes.

Há que se destacar também que, com a promulgação da Constituição de 1988, inicia-se em nosso ordenamento o fenômeno chamado de Constitucionalização do Direito Privado, o que significa dizer que os princípios básicos do direito privado partem do Código Civil para a Constituição, pilar central do ordenamento. Nas palavras de Francisco Amaral (2008, p. 52): “Os valores fundamentais do Direito em geral e do civil em particular, como a justiça, a segurança, a liberdade, a igualdade, o direito à vida, a propriedade, o contrato, o direito de herança, etc., saem do seu habitat natural, que era o Código Civil, e passam ao domínio do Texto Constitucional que, além de reunir os princípios básicos da ordem jurídica, também estabelece os direitos e deveres do cidadão e organiza a estrutura político administrativa do Estado.”

Sobre esse momento, a opinião de Carmem Lúcia Silveira Ramos (1998, p. 10-11) é pertinente: “Ao recepcionar-se na Constituição Federal temas que compreendiam, na dicotomia, o estatuto privado, provocou-se transformações fundamentais do sistema do Direito Civil clássico: na propriedade (não mais vista como um direito individual, de característica absoluta, mas pluralizada e vinculada à sua função social); na família (que, antes hierarquizada, passa a ser igualitária no seu plano interno, e, ademais, deixa de ter o perfil artificial constante no texto codificado, que via como sua fonte única o casamento, tornando-se plural quanto à sua origem) e nas relações contratuais (onde foram previstas intervenções voltadas para o interesse de categorias específicas, como o consumidor, e inseriu-se a preocupação com a justiça distributiva.”

Eros Belin de Moura Cordeiro (2009, p. 222), a partir da concentração de capital e da massificação da sociedade, fenômenos do século XX determinantes à caracterização da fragilidade do ser humano, alerta que “a ‘socialização’ do direito civil pode servir de alavanca para um redimensionamento do direito civil, que deixa de ser garantista de interesses de certa classe e passa a proteger os interesses da pessoa concreta, inserida em determinado contexto social. Em outras palavras: o sujeito do direito civil clássico cede espaço para a pessoa, centro do direito civil contemporâneo. Tal ordem de ideias, cujos vetores centrais são a pessoa humana e a solidariedade social, é que foram cristalizadas na ordem constitucional brasileira inaugurada em 1988.”

Antes, reputava-se a dignidade sob uma perspectiva individual, como um imperativo a sociedade. Protegia-se o homem frente ao Estado, mas não se falava em proteção mútua às suas dignidades. Por tais razões Anderson Schreiber (2005, p. 54-5) comenta: “O Estado passa a intervir em defesa dos mais vulneráveis, limitando e redimensionando a atuação privada. Mas a consagração da dignidade da pessoa humana e da solidariedade social como princípios fundamentais das Constituições Contemporâneas passa a sujeitar o exercício de qualquer situação jurídica subjetiva – e, sobretudo, das situações subjetivas patrimoniais – ao respeito dos múltiplos aspectos da personalidade de todos aqueles sobre os quais este exercício possa se refletir. A própria liberdade e a autonomia privada passam a estar, em si, condicionadas ao atendimento da dignidade da pessoa humana, subvertendo o esquema axiológico do liberalismo burguês.”

Promulgada em 1988, a Constituição Cidadã prevê uma proteção heterogênea à autonomia privada. Quando pertinente às liberdades existenciais, como as de comunicação e expressão, de religião, de associação e de profissão, entre outras, por uma lado existe um amparo constitucional acentuado, pois esses são direitos tidos como indispensáveis para a dignidade humana, ainda que em caso de conflito, podem ser ponderadas com outros direitos e princípios constitucionais. Por outro lado, menos intensamente quando se trata de relações de caráter exclusivamente patrimonial.

Importante a opinião de Daniel Sarmento (2005, p. 209) quando ensina que: “…é evidente que se trata de uma autonomia fortemente limitada por uma série de outros valores constitucionais e interesses públicos, e que pode ser objeto de restrições legislativas, desde que proporcionais. E, naturalmente, tal autonomia também se sujeita ao controle judicial, fundado em regras jurídicas cogentes ditadas pelo legislador com fundamento na Lei Maior, em cláusulas gerais interpretadas à luz da normativa constitucional ou, ainda, na aplicação direta dos princípios da própria Constituição.”

Depreende-se, portanto, que a autonomia privada possui também um caráter constitucional, entretanto isso não significa que ela não é passível de intervenções. Pelo contrário, tais intervenções devem ser tidas como naturais e em alguns casos como imprescindíveis, tendo em vista a irregularidade econômica e social atual. A prioridade é promover interesses relevantes à sociedade.

Considerações finais

Observa-se atualmente o advento de um novo paradigma de Estado, o da pós-modernidade. Enquanto ciência social, o direito está conectado às transformações civis, econômicas e políticas, portanto, relacionado à própria vida humana. Assim, quando suas fontes, instrumentos e metodologia se tornam obsoletos e insuficientes, ocorre a necessidade de adequar as estruturas aos novos questionamentos que se apresentam.

Nesse patamar, evidenciam-se as mutações observadas no Direito Civil, pilar fundamental do direito por excelência, que vem cada vez mais sendo relido à luz da Constituição Federal, criando um Direito Civil Constitucional, atribuindo aos conteúdos clássicos uma nova relação axiológica.

O princípio da autonomia da vontade, que, no liberalismo, fundia-se com a concepção de soberania absoluta dos particulares, agora, inclusive, recebe nomenclatura diversa. Começa-se a utilizar o termo autonomia privada, como forma de demonstrar a superação desse dogma do arbítrio ilimitado e supremo.

A autonomia privada eleva-se à condição de direito fundamental e é, ao mesmo tempo, delimitada por outros direitos fundamentais.

Sendo assim, depreende-se que a autonomia da vontade, convertida em autonomia privada, prossegue como um princípio do direito privado, mas com um aspecto renovado, que se ajusta ao momento contemporâneo globalizado, plural e hipercomplexo.

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Notas:
[1] Trabalho orientado pelo Prof. Roni Edson Fabro, Mestrando em Direitos Fundamentais Civis da UNOESC. Mestre em Relações Internacionais para o MERCOSUL. Especialista em Direito Civil e em Direito Processual Civil. Professor do Curso de Direito da UNOESC Joaçaba(SC). Advogado.
[2]Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.
[3]Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
I – soberania nacional;
II – propriedade privada;
III – função social da propriedade;
IV – livre concorrência;
V – defesa do consumidor;
VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços de seus processos de elaboração e prestação;
VII – redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII – busca do pleno emprego;
IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.
Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.
[4]Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;

Informações Sobre o Autor

Fernanda Cadavid Ratti

Acadêmica de Direito da Universidade do Oeste de Santa Catarina UNOESC campus de Joaçaba/SC


Equipe Âmbito Jurídico

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