Bem jurídico tutelado pelos crimes de tortura

1 – INTRODUÇÃO


O estudo da determinação do bem jurídico tutelado nos tipos penais é de suma relevância no Direito Penal contemporâneo, vez que não mais se admite uma criminalização sem a indicação segura de uma objetividade jurídica, ou seja, sem que haja a delimitação de um bem jurídico lesado a justificar uma reação penal, o que se traduz no chamado “Princípio da Lesividade” e no “Princípio da exclusiva tutela de bens jurídicos”.


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Neste trabalho se discorrerá sobre o bem jurídico especialmente protegido pelos crimes de tortura previstos na Lei 9455/97, tendo em vista a excessiva generalização do pensamento doutrinário que apresenta como bens visados pela norma tão somente as integridades física e psíquica da vítima. No decorrer deste texto pretende-se demonstrar que os crimes de tortura tutelam interesses que se sobrepõem à simples integridade física e psíquica, encontrando lastro constitucional de maior magnitude.


Com vistas esse desiderato iniciar-se-á por uma abordagem do papel do bem jurídico para a criação, interpretação e aplicação das normas penais. Em seguida será realizada uma incursão pela forma como vem interpretando a doutrina o bem jurídico tutelado nos crimes de tortura para então, finalmente, apresentar uma visão considerada mais correta quanto à delimitação protetiva da norma nos moldes constitucionais. Ao final será retomada a linha de desenvolvimento do tema, apresentando as respectivas conclusões.


2 – FUNÇÃO DO BEM JURÍDICO


Entende-se hodiernamente que a função do bem jurídico consiste em mais do que simplesmente fundamentar a criminalização de certas condutas, delimitar o poder punitivo Estatal perante o indivíduo. Desse modo o conceito de bem jurídico impõe ao legislador um limite, não lhe permitindo a imposição de penas para condutas que não venham a lesionar interesses individuais e/ou sociais. Assim sendo, o bem jurídico não somente legitima uma incriminação legal, mas torna-se fator de delimitação da atuação estatal criminalizadora.


A doutrina (PRADO, 2003, p. 60 – 61) apresenta várias funções para o bem jurídico:


a) “Função de garantia ou de limitar o direito de punir do estado” – conforme acima já destacado sem que haja lesividade da conduta a um bem jurídico não há legitimidade para a previsão de um tipo penal como bem traduz o brocardo “nullum crimen sine injuria”.


b) “Função teleológica ou interpretativa” – todo o sentido e alcance de uma norma penal está ligado ao bem jurídico por ela tutelado. Sem uma devida determinação do bem jurídico protegido por uma infração penal torna-se impossível sua interpretação e aplicação correta.


c) “Função individualizadora” – utilizada como critério para a dosimetria legal da pena de acordo com a importância do bem jurídico protegido pela norma, bem como com o grau de lesão produzido na conduta concreta.


d) “Função sistemática” – o bem jurídico exerce importante papel na classificação dos tipos penais em uma parte especial de um código, de modo a possibilitar a agregação daqueles que têm entre si uma coincidência tutelar (ex. crimes contra a vida, crimes contra o patrimônio etc.). Isso também vale para legislações penais esparsas (ex. Crimes de Trânsito, Crimes Ambientais, Crimes contra a ordem tributária, Crimes contra as relações de consumo etc.).


Entretanto, é necessário observar que para que um determinado bem possa legitimar-se como um bem jurídico penal faz-se necessária sua materialização ou concreção, mediante um discurso argumentativo que lhe confira consistência jurídica e político – criminal. Em outros termos, é preciso fundamentar a relevância e a necessidade de erigir-se determinado bem em um bem jurídico – penal mediante a criminalização de certas condutas.


Os critérios para essa fundamentação têm variado ao longo do tempo e das discussões acadêmicas. Não obstante vem conquistando acatamento a tese de que cabe à Constituição identificar os bens materialmente dignos de tutela, de modo que o Direito Penal terá legitimidade para criminalizar aqueles bens jurídicos com assento constitucional. Em suma, a Constituição estabelece bens jurídicos dignos de tutela pelo ordenamento, indicando um critério de relevância e cabendo ao legislador de acordo com um princípio de proporcionalidade e razoabilidade, estabelecer os instrumentos protetivos adequados (penais ou extrapenais). Portanto, mais do que a relevância do bem jurídico, o critério para sua seleção como um “bem jurídico – penal” é a efetiva necessidade dessa medida extrema ou “ultima ratio” (PASCHOAL, 2003, “passim”).


3 – O BEM JURÍDICO NOS CRIMES DE TORTURA


Conforme exposto a correta determinação do bem jurídico tutelado por uma norma penal assume enorme relevância para sua legitimação, interpretação e aplicação.


No que tange aos crimes de tortura constata-se uma tendência generalizada para a identificação incorreta do bem jurídico protegido. As manifestações doutrinárias em geral pairam na epiderme da questão, apontando como bens tutelados a integridade física e psíquica da vítima ( Neste sentido: CAPEZ, 2010, p. 725; BECHARA, 2005, p. 106; GONÇALVES, 2001, p. 90 dentre outros).


Em leve dissidência encontra-se Nucci que soma à integridade física a liberdade da pessoa humana como bem jurídico objetivado pelo crime de tortura, conferindo-lhe a característica de “crime complexo” (2006, p. 735). No entanto, também este autor não foge à indicação de bens jurídicos que já são objeto de tutela em outras normas penais sem lograr conferir ao crime de tortura um elemento distintivo.


Noutra banda podem-se apontar aqueles que abrem os horizontes da proteção jurídica do crime de tortura para “as garantias constitucionais do cidadão” (Neste sentido: ANDREUCCI, 2007, p. 384 e SIMONATO, LICHTENTHAL, 2008, p. 223). Nessa linha pode-se dizer que para além de reconhecer a complexidade da tortura, tutelando variados bens jurídicos abarcados pela Constituição, se obtém o efeito desejado de distinguir o crime de tortura de outras infrações penais previstas no ordenamento jurídico – penal brasileiro, tais como lesões corporais, ameaça, constrangimento ilegal etc.


Malgrado essa virtude do último posicionamento mencionado, contém ele o vício da generalização exagerada e da indefinição, caracteres estes altamente indesejáveis quando se milita no meio jurídico, especialmente no meio jurídico – penal, onde se exige um grau elevado de segurança e determinação.


Mister se faz, portanto, delimitar dentre “as garantias constitucionais do cidadão” qual delas pode ser erigida de forma específica e determinada como o bem jurídico tutelado especialmente pelo crime de tortura a conferir-lhe um elemento distintivo com relação às demais espécies criminais.


Esse bem jurídico certamente não pode constituir-se simplesmente na integridade física e psíquica ou mesmo na liberdade individual, pois que já devidamente protegidos pelos crimes de lesões corporais e contra a liberdade individual previstos no Código Penal. É certo que esses bens são também tutelados pelo crime de tortura, mas apenas de forma subsidiária no bojo de um crime complexo e em irradiação da proteção principal de um bem jurídico mais abrangente. Esse bem jurídico somente pode ser a “dignidade humana” incrivelmente olvidada pela doutrina em geral quando se trata da questão da definição do bem jurídico tutelado na incriminação da tortura. Fala-se comumente de integridade física e psíquica, liberdade individual, garantias constitucionais em geral, mas omite-se o principal, ou seja, a “dignidade humana” mortalmente atingida pela conduta da tortura infligida a uma pessoa.


Essa afirmação da “dignidade humana” como bem jurídico tutelado no crime de tortura encontra lastro nos diplomas internacionais de Direitos Humanos que regem a matéria. Em seu anexo 1 a Convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes de 1984 reconhece que a necessidade de proteção emana da “dignidade inerente à pessoa humana” (BORGES, 2004, p. 201). Outra não é a postura da Convenção Interamericana para prevenir e punir a tortura de 1985 ao reafirmar que “todo ato de tortura ou outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes constituem uma ofensa à dignidade humana” (Ibid., p. 223).


Nem é preciso insistir no fato de que a dignidade humana é um dos pilares fundamentais do Estado Democrático de Direito constitucionalmente erigido no Brasil, conforme dispõe o artigo 1º., III, CF, seguido pela proibição e repúdio com o respectivo mandamento de prevenção e repressão, inclusive criminal, aos atos de tortura, nos estritos termos do artigo 5º., III e XLIII, CF.


Afora a argumentação jurídica a indicar esta como a melhor solução para a determinação do bem jurídico protegido pelos crimes de tortura, pode-se aduzir um argumento fático insofismável: a pessoa submetida a tortura não aponta como principal lesão sofrida qualquer ferimento, seqüela física, cerceamento de liberdade ou mesmo o medo, o terror psicológico, mas sim o aviltamento inesquecível de sua condição humana, de sua dignidade e até mesmo de sua autoimagem e amor próprio. Esses é que são, na verdade, os pontos cruciais de lesão à pessoa torturada e não danos físicos ou mesmo psíquicos de outra natureza. A lembrança da tortura que avilta e se perpetua na memória é a ofensa à dignidade humana da pessoa vitimada. Testemunho vivo disso é a obra editada pela Arquidiocese de São Paulo intitulada “Brasil nunca mais”, onde são descritos os atos de tortura do regime militar brasileiro e as sequelas físicas e morais deixadas nos vitimados, podendo-se entrever em cada relato o dano irreversível à dignidade das pessoas. Nessa obra resta tão claro o poder vilipendiante da dignidade humana pela tortura que em seu prefácio o Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns chama a atenção para a degradação a que são expostos não somente os torturados, mas os próprios torturadores (1987, p.13).


Quando se aponta como bens jurídicos tutelados apenas a integridade física e psíquica, ainda que a estas se adicionando a liberdade não há justificativa para a criação de um crime especial de tortura, de uma legislação específica. Os danos produzidos aos bens jurídicos poderiam muito bem ser devidamente coibidos e punidos proporcionalmente pelos tipos penais já existentes em sua gradação. Por exemplo: as lesões se dividem em leves, graves, gravíssimas e seguidas de morte; os crimes contra a liberdade individual podem variar entre a ameaça, o constrangimento ilegal e o sequestro ou cárcere privado etc. Não obstante, os tratados internacionais e a Constituição Federal determinam um tratamento especial para o crime de tortura. O que justifica isso a não ser que para além desses bens jurídicos subsidiários a tortura tutela a dignidade da pessoa humana, princípio e fundamento basilar de nosso Estado Democrático de Direito Constitucional?


A tortura somente pode ser vista como um crime complexo que tem por bem jurídico principal a dignidade da pessoa humana e por bens subsidiários a liberdade e a integridade física e psíquica. Esse entendimento é o único capaz de satisfazer o pleno exercício das funções do bem jurídico nos crimes de tortura.


A relevância da dignidade humana encontra-se satisfeita por seu assento constitucional que não somente a erige em fundamento do Estado de Direito Brasileiro, mas a repudia e determina sua incriminação rigorosa. Para além da determinação de incriminação constitucionalmente prevista é de se ressaltar a necessidade de intervenção criminal no caso específico da tortura, pois que se trata de infração grave muitas vezes (embora não exclusivamente) perpetrada pelos próprios agentes estatais, de modo que não poderia comportar proteção somente em outros campos do Direito que não o penal com seus instrumentos mais drásticos de repressão. Nesse mesmo caminho se vislumbra o cumprimento da função limitadora do direito de punir do Estado e sua função teleológica ou interpretativa, possibilitando uma distinção entre a tortura e outros crimes anteriormente existentes. O legislador, em face da peculiaridade dos atos de tortura está legitimado a criar um tipo penal especial para a defesa do bem jurídico “dignidade humana”, bem como a partir daí, confere-se ao intérprete um critério diferenciador entre um crime de tortura e uma simples lesão corporal, ainda que grave, ameaça ou constrangimento ilegal. Também a função individualizadora está operante quando se identifica a dignidade humana vilipendiada pelo torturador a justificar uma reação penal mais gravosa e rigorosa em cotejo com outras figuras criminais. Finalmente a função sistemática é cumprida pelo bem jurídico dignidade humana, fundamentando a tipificação da tortura em legislação esparsa e não como integrante de capítulos do Código Penal como os das lesões corporais ou dos crimes contra a liberdade individual.


4 – CONCLUSÃO


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Teve como finalidade o presente artigo a delimitação exata do bem jurídico tutelado no crime de tortura. Partiu-se da constatação de que a doutrina vem tateando a definição correta da objetividade jurídica nesse campo, permanecendo com uma visão por demais superficial.


Iniciou-se por uma abordagem das funções e da legitimação dos bens jurídicos no Direito Penal contemporâneo, passando-se para a análise do tema em estudo de forma específica, mediante a aferição dos posicionamentos doutrinários acerca do bem jurídico tutelado nos crimes de tortura. Nesse ponto comprovou-se a tese inicialmente formulada de que a doutrina passa ao largo de uma definição adequada e distintiva do bem jurídico especificamente protegido pelo crime de tortura, deixando-se repousar num apontamento superficial dos bens da integridade física, psíquica e liberdade individual, já devidamente abrigados por outros tipos penais anteriormente previstos no ordenamento pátrio. O máximo a que chega a doutrina é identificar como objetividade jurídica a “garantia dos direitos constitucionais do cidadão”, expressão esta, porém, ainda por demais indefinida.


Finalmente, por uma análise jurídica (constitucional e internacional) e fática das peculiaridades dos crimes de tortura, chegou-se à conclusão de que o bem jurídico tutelado não se pode reduzir à liberdade e integridade física e moral, nem mesmo pode permanecer fluido como a simples garantia dos direitos constitucionais do cidadão, devendo assentar-se sobre uma objetividade determinada a fim de propiciar uma devida distinção do crime de tortura com a segurança desejada na seara penal. Tal bem jurídico específico à tortura é a dignidade da pessoa humana, capaz de satisfazer a contento todas as funções do bem jurídico na incriminação da tortura, bem como de produzir sua distinção em relação a outras figuras criminais, justificando com isso a própria existência de uma legislação especial para o tema.


 


Referências bibliográficas

ANDREUCCI, Ricardo Antonio. Legislação Penal Especial. 3ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

ARNS, DOM PAULO EVARISTO (org.). Brasil nunca mais. 20ª. ed. Petrópolis: Vozes, 1987.

BECHARA, Fábio Ramazzini. Legislação Penal Especial. São Paulo: Saraiva, 2005.

BORGES, José Ribeiro. Tortura. Campinas: Romana Jurídica, 2004.

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal – legislação penal especial. Volume 4. 5ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Crimes hediondos, tóxicos, terrorismo, tortura. São Paulo: Saraiva, 2001.

NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. São Paulo: RT, 2006.

PASCHOAL, Janaína Conceição. Constituição, criminalização e Direito Penal mínimo. São Paulo: RT, 2003.

PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico – penal e constituição. 3ª. ed. São Paulo: RT, 2003.

SIMONATO, Mônica Chiarella, LICHTENTHAL, Patrícia Dias. Legislação Penal Especial. São Paulo: Atlas, 2008.


Informações Sobre o Autor

Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal e Processual Penal Especial e Criminologia na graduação e na pós – graduação da Unisal e Membro do Grupo de pesquisa em bioética e biodireito do programa de mestrado da Unisal.


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