“O legislador ordinário, bem ou mal, mas cumprindo o dever de editar a lei, estabeleceu um parâmetro, que teve a virtude de dar eficácia à norma constitucional” (Maurício Corrêa, ADIN 1.232/DF)
O art. 203 da Constituição da República dispõe que a assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de ter o beneficiário contribuído. Este comando constitucional revela que a necessidade do assistido constitui requisito essencial para que seja concedido um benefício assistencial.
A Lei 8.742, de 7 de dezembro de 1993, é a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS). Já no seu primeiro artigo, ela normatiza que a assistência social é direito do cidadão e dever do Estado, constituindo política de seguridade social não contributiva que provê os mínimos sociais.
Em 07/07/2011, entrou em vigor a Lei 12.435, a qual provocou uma considerável alteração da regência normativa da assistência social no Brasil, porquanto alterou vários dispositivos e acrescentou outros à LOAS. Ilustrativamente, podem ser citadas as novas regras concernentes à abrangência dos conceitos de grupo familiar e deficiência, contidas, respectivamente, no art. 20, parágrafos §§ 1º e 2º, da Lei 8.742/1993.
Este artigo tem a finalidade de analisar o critério objetivo de determinação da condição de necessitado do idoso ou do deficiente, fixado pelo artigo 20, § 3º, da Lei 8.742/1993, sob a perspectiva crítica de que o legislador perdeu a oportunidade legislativa de, por meio da Lei 12.435, de 06/07/2011, sepultar de vez a cizânia jurisprudencial que gira em torno de tão tormentoso tema, geradora de insegurança jurídica.
A redação originária do artigo 20, § 3º, da Lei 8.742/1993 é a seguinte: “Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a (1/4) um quarto do salário mínimo.”
Após o advento da Lei 12.435/2011, apesar de ter havido pequena alteração da redação do mencionado dispositivo da LOAS, adequando-a à forma contemporânea de tratamento do deficiente, o fato é que o conteúdo normativo permaneceu exatamente o mesmo, já que depois dessa lei modificadora ele passou a dispor que “Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo.”
A Constituição da República estabelece em seu artigo 203, V, como um dos objetivos da assistência social a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa com deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, na forma da lei.
Regulamentando referido mandamento constitucional, o art. 20, § 1º da Lei 8.742/1993, com a redação imposta pela Lei 12. 435/2011, assegurou que o benefício de prestação continuada é a garantia de um salário mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com sessenta e cinco anos ou mais, que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção, nem de tê-la provida por sua família. Vale dizer, referido benefício assistencial pecuniário será concedido ao necessitado.
Visando estabelecer um critério objetivo de necessitado para se dar efetividade ao direito social previsto no inciso V do artigo 203 da Constituição da República, o legislador houve por bem estabelecer no artigo 20, § 3º, da Lei 8.742/1993 que a família do idoso ou do deficiente cuja renda mensal per capita fosse inferior a um 1/4 (um quarto) do salário mínimo seria considerada incapaz de prover a manutenção de tais pessoas, pelo que teriam elas direito a receber um salário mínimo a título de benefício assistencial pecuniário, na modalidade benefício de prestação continuada.
O imbróglio nasceu da interpretação dessa regra. Afinal, o percebimento de renda mensal familiar inferior ou superior a 1/4 (um quarto) de salário mínimo estabelece uma presunção absoluta (juris et de jure) ou relativa (juris tantum) da condição de necessitado ou de não-necessitado legitimador da concessão do benefício de prestação continuada?
Em outras palavras: a renda familiar per capta acima ou abaixo de 1/4 (um quarto) do salário mínimo traz a certeza irrefutável de que inexiste ou existe risco social do idoso ou deficiente que justifique ou não serem eles destinatários da prestação assistencial pecuniária do Estado?
Já houve grande discussão nos tribunais acerca da constitucionalidade da regra contida no artigo 20, § 3º, da Lei 8.742/1993, sob o argumento de que tal dispositivo seria incompatível com a Constituição da República, pois limitava o direito por ela assegurado em seu artigo 203, inciso V.
Esse cenário motivou a propositura da ação direta de inconstitucionalidade nº 1.232/DF, em 24.02.1995, pelo então Procurador-Geral da República, Aristides Junqueira de Alvarenga, por meio da qual se questionou a constitucionalidade do comentado critério objetivo fixado pelo referido comando da lei federal para recebimento do benefício assistencial previsto no artigo 203, V, da Constituição da República.
Por maioria de votos, o Supremo Tribunal Federal julgou improcedentes os pedidos formulados na aludida ação, vencidos, em parte, os ministros Ilmar Galvão e Néri da Silveira, os quais emprestavam à regra contida no artigo. 20, §3º, da Lei 8.742/2011 interpretação conforme a Constituição da República, no sentido de que haveria uma presunção absoluta de que as famílias cuja renda fosse inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo estariam dispensadas de provar sua incapacidade para prover o idoso ou deficiente. Sendo superior à fração legal, a presunção seria relativa, podendo ser provada a vulnerabilidade econômica e social por outros meios.
Em que pese o entendimento do Supremo Tribunal Federal em reconhecer a constitucionalidade do artigo 20, § 3º, da LOAS, o Superior Tribunal de Justiça tem posicionamento divergente, para quem o critério objetivo de 1/4 (um quarto) do salário mínimo não é absoluto, podendo o julgador valer-se de outros elementos de prova para formar sua convicção da condição de miserabilidade do postulante, conforme revela paradigmático acórdão prolatado no Resp nº 1.112.557/MG, de relatoria do ministro Napoleão Nunes Maia Filho, cuja relevância justifica a transcrição de elucidativo fragmento de sua ementa:
“A CF/88 prevê em seu art. 203, caput e inciso V a garantia de um salário mínimo de benefício mensal, independente de contribuição à Seguridade Social, à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei. 2. Regulamentando o comando constitucional, a Lei 8.742/93, alterada pela Lei 9.720/98, dispõe que será devida a concessão de benefício assistencial aos idosos e às pessoas portadoras de deficiência que não possuam meios de prover à própria manutenção, ou cuja família possua renda mensal per capita inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo. 3. O egrégio Supremo Tribunal Federal, já declarou, por maioria de votos, a constitucionalidade dessa limitação legal relativa ao requisito econômico, no julgamento da ADI 1.232/DF. 4. Entretanto, diante do compromisso constitucional com a dignidade da pessoa humana, especialmente no que se refere à garantia das condições básicas de subsistência física, esse dispositivo deve ser interpretado de modo a amparar irrestritamente ao cidadão social e economicamente vulnerável. 5. A limitação do valor da renda per capita familiar não deve ser considerada a única forma de se comprovar que a pessoa não possui outros meios para prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, pois é apenas um elemento objetivo para se aferir a necessidade, ou seja, presume-se absolutamente a miserabilidade quando comprovada a renda per capita inferior a 1/4 do salário mínimo. 6. Além disso, em âmbito judicial vige o princípio do livre convencimento motivado do Juiz (art. 131 do CPC) e não o sistema de tarifação legal de provas, motivo pelo qual essa delimitação do valor da renda familiar per capita não deve ser tida como único meio de prova da condição de miserabilidade do beneficiado. De fato, não se pode admitir a vinculação do Magistrado a determinado elemento probatório, sob pena de cercear o seu direito de julgar.”
A Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais perfilhava o mesmo entendimento do Superior Tribunal de Justiça, já que por meio de sua súmula nº 11 dispunha que “a renda mensal per capita familiar superior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo não impede a concessão do benefício assistencial previsto no art. 20, § 3º, da Lei n. 8.742, de 1993, desde que comprovada, por outros meios, a miserabilidade do postulante”. Ocorre que sob o influxo do posicionamento do Supremo Tribunal Federal, citada súmula foi cancelada em 12/05/2006.
O entendimento fixado pelo Supremo Tribunal Federal não teve, porém, a capacidade de asserenar definitivamente a tormenta hermenêutica que ainda gravita em torno da interpretação da regra do art. 20, § 3º, da Lei 8.742/1993. Isso porque se percebe que a exegese fixada pela Corte Superior potencializou a lacuna axiológica que emerge deste comando infraconstitucional, já que sua aplicação produz um resultado injusto não condizente com o Estado Constitucional Democrático, porquanto obstaculiza o deferimento do mínimo social ao idoso ou deficiente necessitado cuja renda familiar per capta seja superior a 1/4 (um quarto).
A interpretação literal do dispositivo do artigo 20, § 3º, da Lei 8.742/1993, no sentido de considerar incapaz de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência ou idosa somente a família cuja renda mensal seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo, sem levar em consideração outros elementos comprobatórios da condição de miserabilidade social e econômica, começa, felizmente, a perder fôlego até mesmo no Supremo Tribunal Federal.
É o que denota a decisão monocrática do ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, que negou a concessão de liminar na reclamação nº 4374-6/PE, cuja importância autoriza a transcrição de parte dela:“O Tribunal parece caminhar no sentido de se admitir que o critério de 1/4 do salário mínimo pode ser conjugado com outros fatores indicativos do estado de miserabilidade do indivíduo e de sua família para concessão do benefício assistencial de que trata o art. 203, inciso V, da Constituição. Entendimento contrário, ou seja, no sentido da manutenção da decisão proferida na Rcl 2.303/RS, ressaltaria ao menos a inconstitucionalidade por omissão do § 3º do art. 20 da Lei n° 8.742/93, diante da insuficiência de critérios para se aferir se o deficiente ou o idoso não possuem meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, como exige o art. 203, inciso V, da Constituição. A meu ver, toda essa reinterpretação do art. 203 da Constituição, que vem sendo realizada tanto pelo legislador como por esta Corte, pode ser reveladora de um processo de inconstitucionalização do § 3º do art. 20 da Lei n° 8.742/93. Diante de todas essas perplexidades sobre o tema, é certo que o Plenário do Tribunal terá que enfrentá-lo novamente. Ademais, o próprio caráter alimentar do benefício em referência torna injustificada a alegada urgência da pretensão cautelar em casos como este. Ante o exposto, indefiro o pedido de medida liminar.”
Toda essa divergência jurisprudencial evidencia que permanece acesa a polêmica que permeia a interpretação do critério objetivo contido no artigo 20, § 3º, da Lei 8.742/1993, cizânia cujo interesse não se enclausura entre os muros da academia, mas que o extrapola, já que seus efeitos práticos tem colocado em risco a efetividade do mínimo social constitucional, ante a negativa do benefício de prestação continuada aos idosos ou deficientes realmente necessitados cujas famílias tenham renda per capita superior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo.
Essa controvérsia chegou a tal grau de exponenciação que o Supremo Tribunal Federal, em 09/02/2008, reconheceu a repercussão geral da questão constitucional suscitada no recurso extraordinário nº 567.985-3, de relatoria do ministro Marco Aurélio, tendo sido admitida a relevância do tema sob os ângulos jurídico, político e social. Todos os recursos sobre a matéria foram sobrestados até o julgamento definitivo, com base no art. 543-B, do Código de Processo Civil.
Por todas essas razões apresentadas, muito ao contrário do que afirmado pelo ministro Maurício Corrêa, o parâmetro contido no artigo 20, § 3º, da Lei 8.742/1993 não teve a virtude de dar eficácia ao comando constitucional contido no artigo 203, inciso V. Em sentido diametralmente oposto, o que de fato fez o critério legal em comento foi restringir o acesso ao benefício assistencial de prestação continuada previsto no art. 20, § 1º, da Lei 8.742/1993, o que denota um “processo de inconstitucionalização do § 3º do art. 20 da Lei n° 8.742/93”, conforme apontado pelo ministro Gilmar Mendes.
A Lei 12.435/2011, que, como já afirmado, realizou significativa alteração da Lei Orgânica da Assistência Social, poderia ter lançado de uma vez por todas no baú das velharias jurídicas essa controvérsia que, ao que tudo indica, terá ainda grande sobrevida. Mas não, preferiu o legislador ordinário o silêncio, a indiferença legislativa.
Toda essa situação navega na contracorrente do paradigma do Estado Constitucional Democrático, já que o fundamento republicano da dignidade humana, núcleo axiológico da Constituição da República, bem como o objetivo republicano de construção de uma sociedade justa e solidária, impedem uma interpretação literal do art. 20, § 3º da LOAS que dificulte a concessão do benéfico de prestação continuada, só pelo glacial e singelo argumento de que a renda familiar per capita superior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo gera a presunção absoluta de que o idoso ou deficiente não é um necessitado do ponto de vista social e econômico, pois sua família tem plena condições de prover sua manutenção.
Nesse horizonte hermenêutico conturbado e enigmático, só nos resta a paciência de esperar o pronunciamento final do Supremo Tribunal Federal sobre a (talvez) nova interpretação do art. 20, § 3º, da LOAS e a ousadia de, inspirados no instigante poema “Perguntas em forma de cavalo-marinho”, de Carlos Drummond de Andrade, parafrasearmos o Poeta itabirano para inquirirmos: Que metro servirá à Corte Suprema para medir tão relevante tema, diretamente ligado à dignidade da pessoa humana?
Informações Sobre o Autor
Alexandre Oliveira Soares
Mestrando em Direito do Trabalho pela PUC Minas. Especialista em Direito Civil e Direito Processual Civil pela UNIPAC. Professor do curso de graduação em Direito da Fundação Comunitária de Ensino Superior de Itabira (FUNCESI).