No final do século XX o mundo começou a passar por profundas e aceleradas mudanças fruto dos avanços tecnológicos e da opção por um modelo econômico excludente e concentrador de riquezas. Assistimos o fim da União Soviética, o mundo bipolar se esfacelou e um império global tentou se afirmar, e continua tentando, agora com um militarismo desenfreado que cresce na mesma medida que os EUA perdem a legitimidade de sua liderança.
A partir deste cenário assistimos mudanças importantes e a superação de antigos conceitos ou sua reconstrução, como por exemplo, a idéia de soberania, de Estado e de Constituição. Debates importantes se colocam na ordem do dia como o anuncio do fim do Estado nacional e o retorno de velhos nacionalismos, o aperfeiçoamento da democracia e o surgimento de novos autoritarismos mais sofisticados e perigosamente eficientes, o fortalecimento do poder local e da idéia de democracia dialógica, ao mesmo tempo em que assistimos uma concentração de poder econômico globalizado jamais visto gerando exclusão, desigualdades, rebeldias e rebeliões, e novas formas desesperadas de reação a opressão, a exclusão e a massificação como os fundamentalismos e o terrorismo global. A opressão gerou a resposta fundamentalista, que gerou a violência e novos fundamentalismos de todos os lados. No fundamentalismo não há diálogo.
Este novo desafio de um velho mundo em decomposição exige respostas do Direito. No entanto na maioria das vezes estas respostas são velhas e não se adequam ao que de novo surgiu na sociedade e precisa ser compreendido, sistematizado, organizado, explicado e posto a serviço de uma nova sociedade, democrática e participativa, onde o diálogo de culturas e de pessoas seja a base da convivência pacífica.
A primeira pergunta que podemos fazer como cidadãos que buscamos o mínimo de segurança é como uma sociedade em profunda transformação, com um grande numero de excluídos e com um poder econômico concentrado em nível global na mão de muito poucos vai reagir diante das fantásticas possibilidades que oferece a biomédica e a biotecnologia. Estamos formando cidadãos aptos para enfrentar estes desafios e superá-los de forma criativa e humanista, ajudando a construção de uma nova sociedade, ou, simplesmente, formamos diariamente nas escolas e universidades meros reprodutores do conhecimento posto, peças humanas (seres humanos egoístas e sem capacidade de reflexão), para uma maquina enferrujada. A resposta não é difícil de ser encontrada, basta percorrermos alguns dos temas diários nos jornais e percebermos como profissionais competentes das mais variadas áreas, médicos, cientistas, legisladores e operadores do Direito nas mais diversas atividades, vêm enfrentando os problemas, grande parte do tempo. Note-se que não estou e não posso generalizar, e que as grandes soluções alternativas democráticas, têm surgido no meio do povo, através de pequenas ações coletivas que ganham proporção na medida que são implementadas e envolvem mais pessoas organizadas em uma ação e em um projeto coletivo. Entretanto ainda percebemos que insistentemente, e contra o movimento popular global, os poderes postos e os profissionais dentro de estruturas antigas ainda apresentam as mesmas soluções antigas, e utilizam a grande mídia e o poder do marketing e do dinheiro para vender suas velhas idéias com roupagem de nova, pois se apresentam na forma de sofisticadas tecnologias, armas inteligentes, satélites espiões e um controle da tecnologia cada mais totalitário sobre o ser humano.
Hoje assistimos pessoas desavisadas acreditarem no aumento do controle como uma solução da criminalidade, câmeras nas ruas, nos elevadores, nas praças, muros e cercas elétricas, condomínios fechados, polícia privada, polícia militar, polícia civil, polícia federal, penas mais duras, novos presídios, novas polícias, novas técnicas policiais, novas leis penais, mais leis penais, novo código penal, novo código de processo penal. Velhas e falsas soluções para velhos problemas cada vez mais graves e em maiores proporções: porque será. Este antigo direito penal pode dar resposta ao mundo da biotecnologia..
Para combater a exclusão, as armas, e o mesmo se repete na criminalidade internacional. O terrorismo anônimo se combate com a guerra e o Direito Internacional consegue no máximo, quando muito apresentar uma solução política desigual, onde o argumento do mais forte sempre prevalece (porque o Iraque tem que se sujeitar a inspeções de armas de destruição em massa e Israel não, ou porque não promover o desarmamento global, mas apenas dos mais fracos, sendo que o único país do mundo que usou a bomba atômica não se sujeita as leis internacionais).
A tecnologia que hoje serve ao poder e ao controle, também tem servido para criar uma rede global de comunicação alternativa. Vivemos a era das contradições que se acentuam dia a dia numa rede de complexidades de difícil controle. A compreensão desta sociedade exige um conhecimento cada vez mais amplo e necessariamente trans-disciplinar, diríamos, mesmo, holístico.
O ensino superior precisa formar pessoas nas mais diversas áreas do conhecimento capazes de responder a estes desafios, diríamos mais, capazes de compreender a existência destes desafios e se inserirem nesta sociedade como cidadãos responsáveis pela construção do futuro.
As tecnologias, os sistemas políticos, o modelo econômico, a Constituição, o discurso da mídia, o autoritarismo, a sociedade de consumo, o militarismo, a criminalidade, a sociedade civil, a religiosidade, a biotecnologia, o parlamento, os transgênicos, a democracia e tudo mais, se colocam em uma intrincada rede que não exclui nada nem ninguém, e não podemos formar profissionais que não se sintam parte da solução de um problema do qual inevitavelmente eles fazem parte.
Nenhuma ciência é neutra uma vez que nenhum ser humano o é. Somos seres condenados a autopoiesis, portanto históricos e culturais, auto-referenciais e auto-reprodutivos, e todo o conhecimento que produzirmos, conquistarmos ou descobrirmos será inevitavelmente contaminado pelo nosso ser, pelos nossos valores, cultura e história. Nada é definitivo.
Dentro deste mundo contemporâneo de inúmeras possibilidades e riscos que se dá a discussão do transplante de órgãos. Qual o perigo que enfrentamos e como este perigo real interfere nesta discussão e nas propostas legislativas que nos prometem segurança.
Em um livro de importante conteúdo, o professor Volnei Garrafa e o pensador italiano Giovanni Berlinguer levantam diversos problemas e indagações sobre esta questão. Nos diversos casos ali descritos vislumbramos um mundo que parece ter saído dos filmes de ficção, muitos dos casos dos filmes mais grosseiros e assustadores. Entretanto são fatos extraídos desta realidade complexa e injusta, e logo extremamente insegura na qual nos encontramos, principalmente após a revolução tecnológica e a vitória temporária do projeto neoliberal que mencionamos anteriormente.
Quanto maiores os avanços da biotecnologia e da biomédica mais assustadores são as suas possíveis utilizações em mundo de exclusão, concentração de riquezas e criminalidade organizada.
Vamos agora fazer um exercício de imaginação: estamos diante de uma tecnologia que permite prolongar a vida humana cada vez mais, para quem pode pagar, é lógico, e esta mesma tecnologia promete intervir nos genes humanos buscando a criação do ser humano perfeito (conceito histórico e cultural, portanto extremamente relativo), esta tecnologia, a disposição de quem pode pagar também, é capaz de desenvolver clones e recriar a vida a partir de um fio de cabelo, e trazer de volta espécies extintas, assim como oferecer safra de qualidade incomum, mas cujo grão não oferece além de uma única safra, enfim, um leque de opções que são colocadas à disposição, não da humanidade, mas de quem pode pagar. Toda esta tecnologia se encontra em poder de restritos grupos ou corporações que representam o gigantesco poder econômico construído principalmente nos anos neoliberais, e que não sofrem o controle do Estado ou das leis do Estado, pois são eles que financiam campanhas eleitorais caríssimas, elegem legisladores e presidente, especialmente o presidente dos Estados Unidos e põem uma gigantesca máquina de guerra a serviço de seus interesses, subordinando as economias de quase todos os Estados nacionais aos seus objetivos, que se resumem, enquanto empresas capitalistas, ao lucro.
Não é difícil imaginar o que teremos na sociedade do futuro se não reagirmos. Os cenários podem estar presentes nos mais sombrios filmes de ficção científica. Entretanto o que os filmes de ficção não incluíram nos seus roteiros foi a enorme capacidade de reação e organização da sociedade civil. Nela reside a grande força democrática capaz de parar este pesadelo. A sociedade civil local e global não consiste apenas em uma previsão teórica como se apresentou a poucos anos atrás em livros de importantes pensadores contemporâneos, mas é hoje realidade. Assistimos a formação de uma enorme rede de comunicação global alternativa e democrática, que a parte dos Estados, além dos Estados, reagem ao poder econômico concentrado e globalizado.
Este é o cenário que gostaria de apresentar para a reflexão do leitor. Os desafio está posto, o cenário está montado e a alternativa vem se apresentando de maneira contundente, mas trabalhosa. Nos recentes movimentos globais antiglobalização, nos fóruns sociais pelo mundo afora, especialmente o de Porto Alegre, nos movimentos pela paz que reuniu mais de doze milhões de pessoas em mais de seiscentas cidades em pelo menos sessenta países em um só dia, assistimos uma nova realidade, onde não há uma liderança nacional ou global comandando, mas milhares e lideranças locais, milhões de seres humanos indispensáveis à construção da efetiva democracia global que pode nos esperar, se cada um de nós se perceber como essencial à mudança do planeta.
Poderia agora, depois do que foi escrito analisar a lei de transplante de órgãos, como já fiz em outros momentos. Entretanto, justamente por tudo que foi escrito, não o farei. Deixo para o leitor esta reflexão: o comércio internacional de órgãos humanos existe e afeta os excluídos, que várias vezes dispõe de seu corpo para atender uma necessidade básica de seu corpo. Em um mundo de brutal concentração econômica os órgãos humanos se tornam mercadoria no supermercado do egoísmo capitalista. Como evitar esta realidade. Como controlar esta realidade. A resposta não é difícil e pode ser encontrada nas linhas anteriores, mas com certeza não está no direito penal.
A democracia radical e dialógica é a única segurança possível.
Informações Sobre o Autor
José Luiz Quadros de Magalhães
Especialista, mestre e doutor em Direito Constitucional pela UFMG Professor da graduação, mestrado e doutorado da PUC-MINAS e UFMG.