SUMÁRIO 1. Considerações iniciais; 2. Escorço histórico da concorrência; 3. A evolução da concorrência no Brasil; 4. O princípio da livre concorrência; 5. Livre concorrência e livre iniciativa; 6. Repressão ao abuso do poder econômico; 7. Livre concorrência e eficiência econômica; 8. Considerações finais; 9. Referências bibliográficas.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Como é notório, o modelo econômico vigente em nosso país é o capitalismo, fundado no princípio da livre iniciativa, o que acarreta ampla liberdade de acesso tanto ao mercado quanto ao exercício das atividades econômicas, sem prévia necessidade de autorização estatal, salvo exceções legais.
Vale salientar que uma das decorrências da livre iniciativa é a livre concorrência, que também é um dos alicerces do sistema capitalista, sendo tal característica um dos traços distintivos das doutrinas socialistas.
É interessante, nesta senda, trazer à baila os ensinamentos de Celso Bastos:
A livre concorrência é um esteio do sistema liberal porque é pelo seu jogo e funcionamento que os consumidores vêem assegurados os seus direitos a consumir produtos de qualidade a preços justos. […] Ademais, a livre concorrência é indispensável para o funcionamento do sistema capitalista. Ela consiste, essencialmente, na existência de diversos produtores ou prestadores de serviços. É através dela que se melhoram as condições de competitividade das empresas, forçando-as a um constante aprimoramento de seus métodos tecnológicos, dos seus custos, enfim, na procura constante de criação de condições mais favoráveis ao consumidor. Traduz-se, portanto, numa das vigas mestras do êxito da economia de mercado.[1]
Desta forma, salta aos olhos a importância da liberdade de concorrência – entendida como autorização aos agentes econômicos para adentrarem no mercado e agirem livremente na atração de clientela e, também, na faculdade de os consumidores ou clientes escolherem de maneira livre os produtos ou serviços que venham a necessitar – razão pela qual se pretende, com o presente ensaio, investigar os principais aspectos relacionados com o Princípio da Liberdade de Concorrência, eleito por nossa Constituição, em seu artigo 170, inciso IV, como um princípio básico da ordem econômica.
Para tanto, primeiramente, foi feita uma abordagem histórica do instituto da Concorrência, trazendo ao lume sua evolução desde a Grécia antiga até os dias atuais. Também se analisou o iter evolutivo do regime concorrencial no Direito brasileiro.
Outro ponto de destaque foi no que diz respeito ao Princípio da Liberdade de Concorrência em si, dando-se maior atenção aos aspectos constitucionais. Assim, procurou-se conceituar o que vem a ser concorrência, elencar seus os objetivos, conteúdo jurídico, bem como seu relacionamento com os demais princípios da ordem econômica.
O passo seguinte aponta no sentido de fazer uma exata diferenciação entre os postulados da liberdade de concorrência e de iniciativa, eis que muitos autores ainda insistem em confundi-los.
Ao depois, procurou-se fazer um apanhado geral acerca do poder econômico, abordando-se aspectos relativos ao seu uso e abuso e os meios de reprimir sua utilização inadequada.
Por fim, tentado demonstrar que abuso do poder econômico não se confunde com eficiência econômica, fez-se uma ampla análise desta última, procurando sempre dar mais ênfase aos caracteres mais relacionados com a livre concorrência.
2. BREVE RELATO HISTÓRICO DA CONCORRÊNCIA
Diferentemente do que se pode imaginar, a idéia de concorrência permeia as relações sociais há muito tempo e, como assevera Lambros Kotsiris, tal ideal é “tão antigo quanto a civilização e tão contemporânea quando o espírito humano. Ela provém da típica tendência da natureza humana segundo a qual homens de todas as épocas buscaram aumentar seus interesses pecuniários.”[2]
Assim pode-se afirmar que já na antiga Grécia[3], podem ser vislumbrados alguns traços do Direito Concorrencial, tais como monopólios estatais com escopo de gerar receitas ao Estado e, também, de impedir escassez de alimentos em épocas de crise. Além do monopólio estatal, também há casos de monopólios privados.[4]
Ainda na Grécia, numa região chamada Ática[5] que dependia quase que exclusivamente de produtos importados sobreviver, havia várias leis coibindo os abusos dos importadores e comerciantes, chegando, inclusive, a determinar o preço máximo de venda dos produtos.
Em Roma, a prática monopolista também existiu, sendo correto afirmar que o monopólio do sal por parte do Estado foi responsável pela maioria das receitas deste. Através do Édito de Zenão foi regulamentada política de monopólios, evitando com isso os abusos de preços. Neste mesmo sentido também se posicionou o Código de Justiniano, que proibiu determinadas práticas de monopólio.
Na passagem da Idade Antiga para a Idade Média os institutos relativos à concorrência evoluíram, apresentando, neste momento, maiores semelhanças com seu estágio atual, principalmente com o aparecimento das chamadas corporações de ofício.
Neste diapasão é o magistério de Vicente Bagnoli, vejamos:
Em meio ao renascimento do comércio, agora com o surgimento das cidades, os artesãos de interesses comuns se reúnem para proteger esses interesses, surgindo as corporações de ofício. O surgimento espontâneo das corporações de ofício a partir de associação dos agentes econômicos se assemelha com as associações atuais ou cartéis. É nesse momento que aparecem várias regras de concorrência que de algum modo inspiram os legisladores até hoje.[6] (destaque do autor)
De forma geral, é possível asseverar que as corporações de ofício inibiam diferenciações entre os produtos (tanto de preço quanto de qualidade), procurando, deste modo, evitar a concorrência, mantendo um equilíbrio entre a oferta e a procura e, também, um preço justo para as mercadorias.
Vale ainda salientar que “a doutrina da Igreja, de sua parte, não se manteve alheia às circunstâncias da época, ao ponto de o mais prestigiado filósofo da Igreja Católica, Santo Tomás de Aquino, ter elaborado a teoria sobre o justo preço, tudo com o objetivo de sedimentar um arcabouço teórico para repelir as práticas anticoncorrenciais.”[7]
Na Idade Moderna, com a crise do feudalismo e a formação das monarquias nacionais, passa a haver uma progressiva concentração do poder político nas mãos do Rei que – por meio da demarcação de seu território, do estabelecimento de um sistema único de pesos e medidas, da criação de um sistema monetário, bem como da unificação das leis – funda o Estado nacional e, por tabela, constrói uma espécie de mercado nacional, de forma a facilitar o comércio.
A criação dos mercados nacionais traz grande benefício à classe burguesa, eis que, em função da unificação de todo o sistema, as mercadorias poderiam circular com maior facilidade e, por conseguinte, o comércio desenvolveria muito mais. Ademais, com a criação dos exércitos por parte do Rei, havia paz e segurança para que os burgueses realizassem suas transações comerciais com mais tranqüilidade.
Juntamente com o regime Absolutista tem início o Mercantilismo, que se caracterizada por uma política econômica de constante intervenção governamental na economia e tinha como princípios básicos a balança comercial favorável, o protecionismo alfandegário, o metalismo e, por fim, o pacto colonial.
Esta última característica (pacto colonial) gerava a possibilidade do estabelecimento de monopólios entre os Estados e as colônias ou entre estas e particulares que recebiam o privilégio exclusivo do comércio por meio de concessões.
No fim do século XVI, inicia-se a contestação da legalidade dos monopólios pelos reis. Paula A. Forgioni assevera que:
Costuma-se considerar o chamado “caso dos monopólios”, de 1603, como o primeiro pronunciamento judicial sobres os princípios gerais da common law acerca dos monopólios (e também sobre o poder real de concedê-los). Para que não se façam interpretações equivocadas desse episódio, convém ressaltar que não havia, à época, a concepção de livre iniciativa ou liberdade de comércio como uma forma de atingirem-se os ideais de liberdade econômica ou eficiência. Mesmo assim, com o escopo de justificar a posição que tomavam, os julgadores apontam alguns dos efeitos danosos do monopólio para a economia e, conseqüentemente, para o bem comum.[8]
Após este primeiro caso, outros surgiram e geraram grande repercussão até que, em 1624, o Parlamento Inglês aprova o “Statute os Monopolies”, que impedia a concessão de monopólios por parte do Rei e limitava, conseguintemente, o poder soberano do Rei.
No fim da Idade Moderna ocorrem as Revoluções Burguesas[9]/[10] que objetivavam acabar com o Antigo Regime das monarquias absolutistas baseadas em leis divinas, do mercantilismo e dos privilégios de nascimento e, também, criar monarquias constitucionais que caminhassem para parlamentos e implantar o liberalismo econômico, solidificando o modo de produção capitalista.
As referidas Revoluções se inspiravam nas idéias do Iluminismo (ou Esclarecimento), que foi um movimento intelectual surgido na segunda metade do século XVIII (o chamado “século das luzes”) que enfatizava a razão e a ciência como formas de explicar o universo.
Com o pensamento Iluminista – e, principalmente, a partir da idéias de ampla liberdade de iniciativa propugnadas por Adam Smith, isto é, a não-intervenção do Estado na economia, em razão de esta ser capaz de se auto-regular por meio das leis da oferta e da procura – a concorrência passa a ser tratada como a panacéia para os males provenientes dos monopólios, regulando os mercados e propiciando bem-estar aos consumidores, independentemente de intervenção do Estado.
No ano de 1791 são editados dois instrumentos normativos de suma importância para a concorrência. Tais instrumentos são: a) Decreto de Allarde que preconizava a liberdade de comércio e indústria, independentemente de ligação com corporação de ofício; b) Lei Chapelier que acabava com as corporações de ofício, garantindo, com isso, uma ampla liberdade de comércio.[11]
Com o passar do tempo, e durante todo o século XIX, consoante afirma Alberto Venâncio Filho:
Importantes transformações econômicas e sociais vão profundamente alterar o quadro em que se inserira esse pensamento político-jurídico [Liberalismo]. As implicações cada vez mais intensas das descobertas científicas e de suas aplicações, que se processam com maior celeridade e, a partir da Revolução Industrial, o aparecimento de gigantescas empresas fabris, trazendo, em conseqüência, a formação de grandes aglomerados urbanos, representam mudanças profundas na vida social e política dos países, acarretando alterações acentuadas nas relações sociais, o que exigirá que paulatinamente, sem nenhuma posição doutrinária preestabelecida, o Estado vá, cada vez mais, abarcando maior número de atribuições, intervindo mais assiduamente na vida econômica e social, para compor os conflitos de interesses de grupos e de indivíduos.[12]
Outro evento histórico importante na evolução da concorrência foi a Revolução Industrial, principalmente com o desenvolvimento do capitalismo financeiro (após 1860), eis que foi neste momento que surgiram as grandes sociedades anônimas, os grandes conglomerados de empresas (holdings), bem como os acordos para dividir mercados e limitar a concorrência (cartéis).
Em função disso, nos Estados Unidos[13], por exemplo, houve uma grande concentração do poder econômico em poucas agentes e, conseqüentemente, uma diminuição no número de empresas. Consoante salienta Bagnoli:
Não demorou muito e a população, dentre os quais consumidores, agricultores, trabalhadores e pequenos empresários, e a imprensa, principalmente a partir de 1880, contestaram a concentração do poder econômico, os preços de monopólio e a posição de sujeição dos demais agentes do mercado ao poder econômico, práticas comerciais consideradas imorais para eliminar a concorrência. Assim, a liberdade de atuação no mercado pregada pelo Liberalismo começa a ser contestada nos EUA no final do século XIX, até ser veementemente reprovada pela população em 1887.[14]
Por força desta repulsa à concentração do poder econômico, no ano de 1888, os candidatos à presidência dos Estados Unidos da América propugnaram a criação de uma lei apta a conter o poder econômico.[15] Tal posicionamento culminou com a promulgação do “Sherman Act”[16] em 2 de julho de 1890, que protegia os negócios e o comércio contra restrições ilegais e monopólios. Nessa mesma esteira, foi promulgado em 1914 o “Clayton Act”, cujo principal papel e aperfeiçoar a Lei Sherman, tipificando condutas potencialmente anticompetitivas. Também em 1914 foi criada a Agência Antitruste norte-americana.[17]
Neste mesmo ano, inicia-se a Primeira Grande Guerra (1914-1918) que, em meio a perda de mais de nove milhões de vidas e da destruição da Europa, teve um grande beneficiado que foi os Estados Unidos da América, eis que conseguiram enriquecer com a exportação quase que exclusiva de matérias-primas e produtos industrializados para a Europa, Ásia e América do Sul, em razão de os demais países industrializados terem destinado sua produção ao esforço de guerra.
Contudo, o aludido crescimento é brecado principalmente em função da superprodução e da especulação geradas pelo fim da Guerra Mundial. O período de recessão da economia norte-americana culminou com uma das maiores crises da história que foi a quebra da bolsa de Nova Iorque em 24 de outubro de 1929[18], a chamada “Quinta-feira Negra”.
A saída encontrada pelos EUA foi a intervenção direta do Estado na esfera econômica por meio de um programa de reformas chamado de “New Deal” (nova distribuição), cujas principais medidas foram: a) no setor agrícola, a indenização dos agricultores pelo Estado, em função de terem reduzido as suas áreas de cultivo para diminuir a produção, e a concessão de créditos para pagamento de dívidas; b) na indústria, a fixação de limites à produção e tabelamento dos preços dos produtos, de modo a evitar-se as crises de ‘superprodução”; c) no setor financeiro, a criação de uma legislação para controlar a atividade da Bolsa e do setor bancário; d) no domínio social, o estabelecimento de salário mínimo, a redução do horário de trabalho e a introdução de medidas protetivas aos trabalhadores, tais como subsídio de desemprego, doença, de velhice e de invalidez.
A partir de então, embora sempre tenha existido atuação estatal na economia, a quantidade de normas provenientes do Estado aumentou sobremaneira, de forma a ser estabelecida uma interferência não apenas episódica, mas organizada e sistemática. O Estado passa a conduzir o sistema, buscando evitar crises. Tal condução é chamada de intervenção estatal.[19]/[20]
Por fim, neste contexto, e como ensina Eros Roberto Grau, o instituto da concorrência “por um lado organiza os processos que fluem segundo as regras da economia de mercado, colocando a sua disposição normas e instituições […] e, por outro, converte-se em instrumento de que lança mão o Estado para influir em tais processos.”[21]
3. A EVOLUÇÃO DA CONCORRÊNCIA NO BRASIL
No início da história brasileira não há que se falar em concorrência, tendo em vista que o único comércio existente naquele tempo era fruto do pacto colonial com a metrópole. Com o escopo de manter tal monopólio, Portugal precisava impedir qualquer desenvolvimento industrial do Brasil. Com essa intenção, foram criadas algumas leis proibitivas, dentre as quais podemos citar a Carta Régia de 1766 (proibia a atividade de ourives, a fabricação de mel de vinho e o plantio de uvas) e o Alvará de 5 de janeiro de 1785 (proibindo a produção de qualquer espécie de manufatura).
Como o passar do tempo, apesar da quase inexistência de concorrência nas terras brasileiras, pode-se afirmar que a Coroa portuguesa tinha uma certa preocupação com o que hoje chamamos de “consumidor”. Aliás, neste sentido se posiciona Paula A. Forgione:
Nessa linha, a revogação do estanco concedido pelo Estado português à Companhia do Comércio do Brasil (que possuiu o privilégio do comércio na costa brasileira e também o monopólio da venda do vinha, azeita, bacalhau e trigo) deu-se, segundo sustentado por alguns, em virtude não apenas do desabastecimento que se estava fazendo sentir na colônia, mas também dos preços excessivos que eram impostos à população, em frontal desrespeito aos tabelamentos instituídos.[22]
Ademais, era clarividente a intervenção do Estado português na economia da colônia, como ocorreu com a Companhia do Grão-Pará e Maranhão (!755) e com a Companhia de Pernambuco e Paraíba (1759), que recebiam vários incentivos e privilégios da Coroa.
Com a chegada da família real ao Brasil, em função da invasão napoleônica à Península Ibérica, foi implementada uma política de fomento que findou por desenvolver a economia do país. Dentre as medidas de incentivo, pode-se elencar: a abertura dos portos brasileira em 28 de janeiro de 1808 às nações inimigas; a instituição da liberdade de manufatura e indústria (Alvará de 1º de abril de 1808), com a revogação do Alvará de 1785; e a criação do Banco do Brasil (12 de outubro de 1808).
Consoante os ensinamentos de Hélio Jaguaribe, Dom João VI adota um “liberalismo pragmático, não ortodoxo, que visava a retirar do princípio da liberdade de comércio e de iniciativa todas as vantagens que pudesse proporcionar, deixando de aplicá-lo quando contrariasse os interesses nacionais.”[23]
Apesar disso, é possível asseverar que tal liberalismo era implementado de acordo com permissões inglesas, como é possível observar, v.g., com a celebração do Tratado de 1810, por força do qual o Brasil viu-se impossibilitado de implementar uma política protecionista.[24]
Neste contexto surge a Constituição de 1824 apregoando, de acordo com João B. L. da Fonseca, que “a liberdade, a segurança individual e a propriedade são direitos individuais ou naturais, e, como tais, estão acima das leis civis, devendo por estas se reconhecidos e garantidos.”[25]
Interessante é o comentário de Pimenta Bueno acerca da liberdade de contratar:
O direito ou liberdade de contratar é de tal modo evidente que ninguém jamais dirigiu-se a impugná-lo; seria para isso necessário pretender que o homem na pode dispor de sua inteligência, vontade, faculdade ou propriedade. Não basta porém reconhecer o direito como inconcusso, é demais necessário saber respeitá-lo em toda a sua latitude e suas lógicas conseqüências, senão o princípio, posto que consagrado, será mais ou menos inutilizado com grave ofensa dos direitos do homem.[26]
Na verdade, até a Constituição de 1891, pouco há o que ser estudado, no que diz respeito à concorrência, eis que o mercado brasileiro era abastecido em sua grande parte por mercadorias estrangeiras, não oferecendo à industria interna qualquer concorrência, sendo poucas eram as tentativas de proteção do mercado interno.[27]
De acordo com os relatos de Raymundo Faoro, neste período “a regulação econômica do Estado fez sentir, com particular veemência, no comércio e indústria. Praticamente, tudo dependia do Governo, com autorizações, favores, tarifas protecionistas e concessões; fora da faixa do Tesouro não conseguia medrar a iniciativa privada.”[28]
Com a primeira Constituição Republicana do Brasil, o direito de propriedade é mantido plenamente, conforme dispõe o parágrafo 17 do artigo 72, cuja dicção é a seguinte: “O direito de propriedade mantém-se em toda a sua plenitude, salva a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante indenização prévia.”[29]
Assim, como é possível observar, quando a Constituição garante o direito de propriedade, de certa forma está garantindo a liberdade de industria e comércio e, conseguintemente, a liberdade de concorrência. João B. L. da Fonseca, nesta trilha, salienta que, “como conseqüência desse direito fundamental [propriedade], continuam garantidos a liberdade de indústria e comércio […]. O contrato, como expressão do direito transferir livremente a propriedade, continua sob o pálio da plena liberdade.”[30]
Ademais, cumpre salientar que o regime político da Constituição de 1891 conserva o Estado como ausente das atividades econômicas. E isto pode ser corroborado por um simples exame na competência da União na matéria, limitada tão-somente à instituição de bancos emissores e à criação e manutenção de alfândegas.
Contudo, é pertinente lembrar que houve grande intervenção do Estado na economia em: a) 1906 com o Convênio de Taubaté, para defender a economia cafeeira; b) 1908 através da Caixa de Conversão, medida que complementou a defesa da cafeicultura; c) 1918 por meio da criação do Comissariado de Alimentação Pública (Decreto 13.069), que tinha o escopo de reequilibrar a economia que estava caótica em função da Primeira Guerra Mundial.
No ano de 1929, com a crise da Bolsa de Nova Iorque, e com o desmoronamento do sistema de defesa do café, o aparelho político na velha República entra em colapso, aumentando por meio da Revolução de 1930 o desejo por mudanças políticas e sociais.
Acerca de tal período, é ilustrativo o ensinamento de Paulo Henrique Rocha Scott:
Seria o resultado direto da dificuldade pela qual passou a economia externa durante os anos da primeira guerra mundial – e ao episódio da Revolução de 1930 – a partir do qual se instituiu um modelo voltado a novas finalidades, como a promoção da indústria e a proteção dos trabalhadores urbanos – para resultar uma nova fase de organização social, política, jurídica e econômica no Brasil. Assim, a partir da década de 30 – sob diretrizes político – econômicas governamentais, nitidamente voltadas à conquista de uma auto-suficiência nacional pelo fortalecimento da economia interna – novos fatores passaram a caracterizar o processo brasileiro de industrialização, como o surgimento deu m núcleo importante de indústrias de bens primários, a consciência da escassez de capital e das deficiências técnicas e culturais, relacionadas às atividades econômicas, bem como as aspirações de melhoria das condições sociais.[31]
Em meio a essas crises, é promulgada a Constituição de 1934 que, pela primeira vez, expressamente, traz a o ideal da liberdade econômica em seu artigo 115, cujo conteúdo é o seguinte: “A ordem econômica deve ser organizada conforme os princípios da Justiça e as necessidades da vida nacional, de modo que possibilite a todos existência digna. Dentro desses limites, é garantida a liberdade econômica.”[32]
É importante notar que a liberdade econômica aparece, neste momento, ligada à idéia de que ao Estado é facultado intervir na economia, desde que seja para garantir a justiça e as necessidades de vida nacional. “Essa limitação explica-se pelo fenômeno da regulamentação da economia brasileira pelo governo federal, que se fez presente para minimizar os efeitos da grande crise de 1929, estendendo-se por toda a década de 30,”[33] de acordo com o anteriormente aduzido.
O golpe de Estado de 1937 deu início ao regime autoritário denominado Estado Novo que outorgou à sociedade brasileira uma Constituição que inova na área econômica e tem o seguinte ideal de liberdade de iniciativa:
Art 135 – Na iniciativa individual, no poder de criação, de organização e de invenção do indivíduo, exercido nos limites do bem público, funda-se a riqueza e a prosperidade nacional. A intervenção do Estado no domínio econômico só se legitima para suprir as deficiências da iniciativa individual e coordenar os fatores da produção, de maneira a evitar ou resolver os seus conflitos e introduzir no jogo das competições individuais o pensamento dos interesses da Nação, representados pelo Estado. A intervenção no domínio econômico poderá ser mediata e imediata, revestindo a forma do controle, do estimulo ou da gestão direta.[34]
Pela Carta de 37, a intervenção do Estado no domínio econômico poderia ocorrer por meio do controle, estímulo ou atuação direta, mas apenas para suprir deficiências da iniciativa individual e coordenar os fatores de produção, ou seja, a liberdade de iniciativa era amplamente protegida.
Além de proteger a liberdade de iniciativa, a Constituição também zelava pela defesa da economia popular em seu artigo 141, que assim dispunha: “a lei fomentará a economia popular, assegurando-lhe garantias especiais. Os crimes contra a economia popular são equiparados aos crimes contra o Estado, devendo a lei cominar-lhes penas graves e prescrever-lhes processos e julgamentos adequados à sua pronta e segura punição.”[35]
Regulamentando tal dispositivo, surge a primeira Lei Antitruste[36]/[37] brasileira que foi o Decreto-Lei n. 869 de 18 de novembro de 1938. Algumas de suas disposições se refletem até hoje em nossa legislação antitruste, como ocorre, por exemplo, com a coibição do açambarcamento de mercadorias (art. 2º, IV), a manipulação da oferta e da procura (art. 2º, I e II), a fixação de preços mediante acordo entre empresas (art. 3º, I), a venda abaixo do preço de custo (art. 2º, V) etc.
No ano de 1945 foi introduzida no ordenamento jurídico brasileiro o Decreto-Lei n. 7.666, a chamada “Lei Malaia”[38], que veio a sistematizar regulamentação de repressão ao abuso do poder econômico de forma específica, reprimindo firmemente o abuso do poderio econômico. A mencionada lei também criou a Comissão Administrativa de Defesa Econômica (CADE), órgão responsável pela apuração dos abusos.
Segundo o magistério de Alberto Venâncio Filho, a “Lei Malaia” (Decreto-Lei n. 7.666) “estabelecia um regime de autorização prévia para formação, incorporação, transformação e agrupamento de determinadas empresas, além do registro de outros ajustes e acordos, com interferência no processo de produção e circulação de riquezas”[39], ou seja, era colocado “nas mãos do Poder Executivo um instrumento apto a controlar a atividade do poder econômico em território brasileiro, facultando até mesmo a intervenção em empresas que praticassem atos nocivos ao interesse público.”[40]
Com o advento da Carta Constitucional de 1946, é corroborada a liberdade de iniciativa (art. 145, CF), e, também, pela primeira vez, o princípio da repressão ao abuso do poder econômico vem expresso no artigo 148: “a lei reprimirá toda e qualquer forma de abuso do poder econômico, inclusive as uniões ou agrupamentos de empresas individuais ou sociais, seja qual for a sua natureza, que tenham por fim dominar os mercados nacionais, eliminar a concorrência e aumentar arbitrariamente os lucros.”[41]
Vale salientar, ainda no que atine a Constituição de 1946, que a intervenção na economia era atribuição da União, que poderia monopolizar determinada indústria ou atividade, sempre tendo por base o interesse público e por limite os direitos fundamentais assegurados na Constituição (art. 146).
Outra importante lei foi a n. 1.521, de 26 de dezembro de 1951 que, além de alterar dispositivos da legislação vigente sobre crimes contra a economia popular, traz vários artigos tipicamente antitruste (por exemplo, art. 3º, inc. V, que veda a prática de preços predatórios).
Ainda égide da Constituição de 1946, em 10 de setembro de 1962, foi promulgada a Lei n. 4.137, criando-se, como previu o artigo 8º, o Conselho Administrativo de Defesa Econômico (CADE), incumbindo da apuração e repressão dos abusos do poder econômico. Nessa mesma conjuntura, em 26 de setembro de 1962, vieram as Leis Delegadas 4 e 5 que versavam, nessa mesma ordem, sobre a intervenção no domínio econômico para assegurar a livre distribuição de produtos necessários ao consumo do povo e sobre a organização da Superintendência Nacional da Abastecimento (SUNAB).
Com o início do Regime Militar em 1964 foi instituída uma nova ordem, representada pela Constituição de 1967, e também pela Emenda Constitucional de 1967, nas quais a liberdade de iniciativa e repressão ao abuso do poder econômico foram mantidos[42], não havendo profundas modificações em relação ao regime anterior.
Neste sentido, Octavio Ianni salienta que:
A postura governamental deste período – inaugurado em 1964 – […] manteve-se sob os mesmos objetivos econômicos básicos: reduzir a taxa de inflação; incentivar a exploração de produtos agrícolas, minerais e manufaturados; racionalizar o sistema tributário e fiscal; estimular, sob o controle governamental, o mercado de capitais; criar condições e estímulos novos à entrada de capital e tecnologia estrangeiros; conter os níveis salariais em todos os setores da produção; estimular a modernização das estruturas urbanas; executar o plano habitacional; criar a indústria petroquímica; estabelecer novos objetivos e criar novos meios na política de ocupação e dinamização da economia da Amazônia.[43]
Com o rompimento do Regime Militar, promulgou-se a Constituição de 1988 que trouxe algumas inovações, dentre elas pode-se citar a inclusão da livre concorrência como princípio da ordem econômica (Art. 170, Inc. IV, CF). O parágrafo único do referenciado dispositivo prevê que “é assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.”[44]
O panorama do direito antitruste do Brasil foi alterado com Lei n. 8.158, de 8 de janeiro de 1991, que nasceu para evitar crises que poderiam advir do comportamento dos agentes econômicos em função da nova política econômica de governo, extremamente liberal. Com o novo instrumento.
Por fim, insta informar que o último grande diploma antitruste em nosso país foi a Lei 8.884/94, por meio da qual sistematizou-se a matéria e, ainda, implementou-se o que se convencionou chamar de “Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência” (SBDC), composto pelo CADE, pela Secretaria de Acompanhamento Econômico e pela Secretaria de Direito Econômico.
4. O PRINCÍPIO DA LIVRE CONCORRÊNCIA
Como ficou esposado, na introdução deste ensaio, a livre concorrência é um dos pilares do sistema capitalista[45], isto é, como alicerce fundamental da economia liberal, tem por finalidade assegurar o regime de economia mercado, não tolerando o monopólio ou qualquer outra forma de distorção do mercado livre.
Nossa atual Carta Política, no artigo 170, inciso IV, pela primeira vez, expressamente, erigiu o postulado da livre concorrência[46] ao patamar constitucional. O mencionado princípio possui caráter instrumental da livre iniciativa[47]/[48], tendo em vista que constitui um dos elementos a balizar seu exercício, “a fim de que ela seja exercida dentro de suas finalidades sociais, mantendo condições propícias à atuação dos agentes econômicos, de um lado, e beneficiando os consumidores, de outro.”[49]
Ultrapassada esta noção inicial de concorrência, cumpre agora conceituá-la[50]/[51]. Nesta trilha, pode-se afirmar que, em sentido genérico, a mesma indica o ato ou efeito de concorrer, ou seja, traz em si a idéia de luta, de competição entre pessoas na busca do mesmo objetivo ou vantagem. Em uma palavra: concorrência nada mais é que, em condições de igualdade, disputar espaços com objetivos lícitos e compatíveis com as aspirações nacionais. Na área econômica, representa a disputa entre todas as empresas para obter maior e melhor espaço no mercado.[52] Ou, como diz Rubens Limongi França, “no campo de direito privado, a concorrência é a disputa, o ato pelo qual uma pessoa procura estabelecer competições de preços, com o fim de apurar as melhores condições para efetivação de compra ou realização de uma obra.”[53]
Assim, livre concorrência significa a possibilidade de os agentes econômicos atuarem sem embaraços juridicamente plausíveis, em um dado mercado, visando à produção, à circulação e ao consumo de bens e serviços, isto é, procura garantir que os agentes econômicos tenham oportunidade de competir de forma justa no mercado.[54]
É salutar colacionar agora o que ensina José Cretella Júnior:
No regime de livre concorrência, ou de livre competição, o mercado competitivo, ou concorrencial, caracteriza-se pelo grande numero de vendedores, agindo de modo autônomo, oferecendo produtos, em mercado bem organizado. No mercado competitivo, os produtos oferecidos por uma dada empresa são recebidos pelo comprador como se fossem substitutos perfeitos ou equivalentes dos produtos da firma concorrente. Na hipótese de preços iguais, ao comprador é indiferente, regra geral, a procedência do produto, só influindo a marca, na medida em que a propaganda se intensifica. De qualquer modo, no regime da livre concorrência,os preços de marcado tendem a abaixar, beneficiando-se com isso o comprador, ao contrário d que acontece no regime de monopólio, que prejudica o comprador e afeta o equilíbrio da Ordem Econômica, a não se quando a intervenção monopolística é assegurada por lei federal, fundada em expresso dispositivo constitucional.[55]
Como se pode inferir, pelas razões anteriormente expostas, a concorrência volta-se para as atividades comerciais e industriais, porquanto é através delas que encontra sua seara de atuação, buscando conquistar consumidores, os quais lhes conferem aprovação ou não. E, além disso, pressupõe “uma ação desenvolvida por um grande número de competidores, atuando livremente no mercado de um mesmo produto, de maneira que a oferta e a procura provenham de compradores ou vendedores cuja igualdade de condições os impeça de influir, de modo permanente e duradouro, nos preços de bens ou serviços.”[56]
Conforme expõe Ana Maria de Oliveira Nusdeo:
Quanto ao seu conteúdo, o princípio da livre concorrência costuma ser identificado com a liberdade de atuar nos mercados buscando a conquista da clientela, com a expectativa de sua aplicação levar os preços de bens e serviços, fixados pelo jogo dos agentes em disputa pela clientela, a níveis razoavelmente baixos, chegando no caso extremo de concorrência perfeita, a se igualarem ao custo marginal do produto. Aponta-se, no entanto, que a essa liberdade jurídica de conquista de clientela pelos concorrentes deve somar-se a liberdade dos consumidores de usufruírem de alternativas.[57]
Todavia, cumpre asseverar que proteção constitucional da livre concorrência jamais pode se confundir com a conservação de uma perfeita concorrência, onde inexista qualquer amostra de poder por parte dos agentes econômicos.[58] Muito pelo contrário, o poder econômico, inclusive, é constitucionalmente institucionalizado, quando o artigo 173, § 4º da Constituição Federal determina a repressão ao seu abuso. Na verdade, “é inegável que, no domínio das relações econômicas propriamente ditas, os jogos do mercado impendem uma concorrência perfeita, revelando a todo instante, a presença de práticas concertadas, de abusos de posições dominantes e de concentrações empresariais.”[59]
Desta forma, a busca da liberdade de concorrência tem o escopo de proporcionar o equilíbrio, não aquele atomístico do liberalismo tradicional, e sim um balanceamento entre os grandes grupos, dando, também, oportunidade às pequenas empresas de estar no mercado, de modo que esta competição entre os diversos agentes que há no mercado leve a otimização dos recursos econômicos e a preços justos, impedindo, com isso, lucros arbitrários e abuso do poder econômico.
Com base no até aqui exposto, é possível afirmar que dois são os grandes objetivos proteção jurídica à livre concorrência, quais sejam: a) proteção do consumidor, considerado parte hiposuficiente na relação de consumo; b) garantia, por meio da própria concorrência, de uma economia de mercado eficiente e legítima.[60]/[61]
Corroborando tal assertiva, Fábio Ulhoa Coelho assim se posiciona:
A rigor, a legislação antitruste visa a tutelar a própria estruturação do mercado. No sistema capitalista, a liberdade de iniciativa e a de competição se relacionam com aspectos fundamentais da estrutura econômica. O direito, no contexto, deve coibir as infrações contra a ordem econômica, com vistas a garantir o funcionamento do livre mercado. Claro que, ao zelar pelas estruturas fundamentais do sistema econômico de liberdade de mercado, o direito de concorrência acaba refletindo não apenas sobre os interesses dos empresários vitimados pelas práticas lesivas à constituição econômica, como também sobre os consumidores, trabalhadores e, através da geração de riqueza e aumento dos tributos, os interesses da própria sociedade em geral.[62]
Deste modo, na medida em que livre concorrência buscar garantir o pleno funcionamento da economia de mercado, também proporciona aos consumidores, em razão da competitividade entra as empresas, uma posição de maior benefício. Em outras palavras: a defesa da concorrência, contém em si a pretensão de evitar uma posição de superioridade, em prejuízo da igualdade entre as empresas, que é primordial para o adequado desenvolvimento da mercado e do país, ao mesmo tempo em que tutela as relações de consumo.[63]
É importante, também, expor que, assim como qualquer outro princípio, a livre concorrência nunca deve ser vista de maneira absoluta, isto é, deve conviver em plena harmonia com os demais postulados constitucionalmente reputados como relevantes, tais como a defesa do consumido, do meio ambiente etc. Inclusive, assim preceitua Tércio Sampaio Ferraz Júnior:
A defesa da concorrência,cuja guarda compete ao Estado, mas que não exlcui a iniciativa privada, deve, por último, ser entendida no contexto mais amplo da ordem econômica constitucional. A livre concorrência, nestes termos, é um dos sés princípios, devendo, assim, conviver harmonicamente com os demais (art. 170 e incisos). Ou seja, não se pode defender a concorrência à custa da soberania nacional, do consumidor, do meio ambiente, da redução das desigualdades regionais e sociais, da busca do pleno emprego, do tratamento favorecido às empresas de pequeno porte. E vice-versa: nenhum desses princípios será defendido à custa da livre concorrência. Isto vale, obviamente, à “a fortiori”, para o princípio da propriedade privada e o da sua função social (incisos II e III do art. 170). E, em tudo, é vinculante, naquela defesa e na mencionada harmonização, o respeito aos fundamentos da ordem econômica – livre iniciativa e valorização do trabalho humano – bem como às suas finalidades, assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social.[64]
Por fim, insta salientar que, por meio de suas agências reguladoras e órgãos de defesa da concorrência, é o Estado quem tem o dever de assegurar a competição leal, isenta de práticas onde haja abuso do poder econômico, anticoncorrenciais, portanto. Vale dizer: a livre concorrência não se reveste mais no modelo liberalismo de Adam Smith, onde o Estado fica ausente da economia, permitindo que a competição entre os agentes se auto-regule até chegar a um ponto de equilíbrio. [65]
5. LIVRE CONCORRÊNCIA E LIVRE INICIATIVA
Após esta breve análise do conteúdo do princípio da livre concorrência, cumpre, neste momento, fazer a devida diferenciação entre aquele e a liberdade de iniciativa, que revela a adoção política do modo de produção capitalista[66] e pode ser conceituada como a possibilidade de os agentes econômicos se lançarem no mercado sem a criação de embaraços por parte do Estado.
É importante afirmar que a livre iniciativa prevista em nossa Constituição Federal deve ser entendida de maneira bem ampla, “compreendendo não apenas a liberdade econômica, ou liberdade de desenvolvimento de empresa, mas englobando e assumindo todas as demais formas de organização econômicas, individuais ou coletivas, como a cooperativa e a iniciativa pública.”[67]/[68]
Assim, como foi anteriormente enunciado e se pode observar, tanto a livre concorrência como a livre iniciativa são fundamentos da economia de mercado, funcionando a primeira como uma espécie de instrumento da segunda, eis que é um dos muitos elementos destinados a balizar seu exercício.
Aliás, consoante preleciona Celso Bastos, a livre concorrência “tem muito a ver com a livre iniciativa, é dizer, só pode existir a livre concorrência, onde há livre iniciativa. No entretanto, o inverso não é verdadeiro, pode existir livre iniciativa sem livre concorrência. Portanto, a livre concorrência é algo que se agrega à livre iniciativa.”[69]
Contudo, é salutar informar que a livre concorrência não é um desdobramento[70], uma conseqüência natural da livre iniciativa. E isto ocorre porquanto, “à medida que se constatou ser o mercado falho na alocação de recursos e na manutenção do jogo concorrencial, não foi mais possível identificar a livre concorrência como um subproduto da livre iniciativa.”[71] Assim, embora complementares, o conteúdo dos dois postulados é diferente.[72]
Para que não reste dúvidas acerca da diferença entre liberdade de iniciativa e de concorrência é de bom alvitre transcrever o pensamento de Miguel Reale:
Começo por observar que, pela primeira vez na história de nosso Direito Constitucional, a livre concorrência foi elevada à dignidade de princípio constitucional, como se acha consagrada no art. 170 da Lei Fundamental em vigor, e isto depôs de, no “caput” desse mesmo artigo, declarar-se que a ordem econômica no Brasil se funda, entre outros, sobre o valor da iniciativa privada. Por sinal que esta é referida destacadamente logo no art. 1º da Carta, não se devendo olvidar que esse artigo é de natureza manifestamente preambular, pois enumera quais são os “princípios fundamentais” de nosso Estado Democrático de Direito. Assim sendo, não é este ou aquele outro dispositivo isolado da Constituição que nos permitirá captar o novo sentido da nova captar o novo sentido da nova ordem econômico, mas sim todo o contexto de suas disposições.
Ora, livre iniciativa e livre concorrência são conceitos complementares, mas essencialmente distintos. A primeira não é senão a projeção da liberdade individual no plano da produção, circulação e distribuição das riquezas, assegurando não apenas a livre escolha das profissões e das atividades econômicas, mas também a autônoma eleição dos processos ou meios julgados mais adequados à consecução dos fins visados. Liberdade de fins e de meios informa o princípio de livre iniciativa, conferindo-lhe um valor primordial, como resulta da interpretação conjugada dos citados artigos 1º e 170.
Já o conceito de livre concorrência tem caráter instrumental, significando o “princípio econômico” segundo o qual a fixação dos preços das mercadorias e serviços não deve resultar de atos cogentes da autoridade administrativa, mas sim do livre jogo das forças em disputa de clientela na economia de mercado. Houve, por conseguinte, ineludível opção de nossos constituintes por dado tipo de política econômica, pelo tipo liberal do processo econômico, o qual só admite a intervenção do Estado para coibir abusos e preservar a livre concorrência de quaisquer interferências, quer do próprio Estado quer do embate de forças competitivas privadas que pode levar à formação de monopólios e ao abuso do poder econômico visando ao aumento arbitrário dos lucros.[73]
Por fim, é imperioso arrematar dizendo que, como foi visto, a livre iniciativa e a livre concorrência são conceitos distintos, embora complementares. O primeiro não é senão a projeção da liberdade individual no plano da produção, circulação e distribuição de riquezas, significando a livre escolha e o livre acesso às atividades econômicas. Já o conceito da livre concorrência é instrumental daquele, constituindo o princípio econômico mediante o qual a fixação dos preços dos bens e serviços não deve resultar de atos de autoridade, e sim do livre jogo das forças em disputa no mercado.
6. REPRESSÃO AO ABUSO DO PODER ECONÔMICO
De acordo com tudo o que já foi esposado, é notório que a Constituição tutela a propriedade, inclusive dos meios de produção, bem como a ampla liberdade, incluindo de maneira expressa a liberdade de iniciativa e concorrência. Contudo, tais institutos admitem exceções, especialmente no momento em que seu mau uso seja maléfico à sociedade.
Consoante preconiza André Ramos Tavares:
A necessidade de estabelecer, por via da legislação, punições às atitudes da iniciativa privada que possam comprometer o equilíbrio dos agentes econômicos é incontestável. Isso porque referido equilíbrio é objetivado pela Constituição, não apenas como decorrência do princípio abstrato da igualdade, mas também porque a própria Constituição foi especificamente incisiva nesse particular. Não há como aquele equilíbrio ser atingido com a ausência total de regulação e fiscalização pelo Estado. No mercado regido pelas forças absolutamente livres há sempre a possibilidade de o agente econômico interferir nesse estado de liberdade, corrompendo o desejável equilíbrio, pela sua força econômica superior.[74]
Assim, é imperioso reconhecer que o poder econômico[75] é um fenômeno que existe em qualquer mercado e que goza de certa legitimidade, isto é, não pode ser limitado pelo Poder Público, exceto quando for abusivo, e, ainda por cima, constitucionalmente institucionalizado, quando o artigo 173, § 4º da Constituição Federal determina a repressão ao seu abuso.
É possível conceituar poder econômico[76] como o conjunto de meios materiais e não materiais, de expressão econômica, de que o agente dispõe e emprega no exercício de sua atividade ordinária, no mercado de bens ou serviços onde atua. De forma mais completa, Ana M. de O. Nusdeo o define “como a possibilidade de exercício de uma influência notável e a princípio previsível pela empresa dominante sobre o mercado, influindo na conduta das demais concorrentes ou, ainda, subtraindo-se à influência dessas últimas, através de uma conduta indiferente e delas independente em grau.”[77]
Vale dizer que tanto a titularidade como o uso do poderio econômico são legítimos, inclusive todos os atores que exploram atividade econômica são incentivados, pela própria dinâmica dos mercados, a majorar o seu poder econômico, eis que é pelo emprego dele que o concorrente aumentará a sua participação no mercado. Neste mesmo sentido aponta Guilherme A. Canedo de Magalhães: “não sofre o poder econômico nenhuma limitação e a sua amplitude é estimulada pela Estado, como incentivada a sua expansão, pois isto implica no desenvolvimento do país.”[78]
Todavia, o poder econômico dever ser usado no interesse social, “não podendo, de maneira alguma, limitar a liberdade de iniciativa [e concorrência] de outros agentes econômicos que se encontrem em situação menos favorável.”[79]
Assim, o necessário é reprimir o abuso do poder econômico, ou seja, o seu uso perverso, com a finalidade de tirar do concorrente parcela do mercado que este tenha conquistado em função da posição de influência que possui, impossibilitando, com isso, que os demais concorrentes e consumidores compitam livremente, submetendo-se à conduta e aos preços por ele impostos. Em outras palavras, segundo vaticina Guilherme A. Canedo de Magalhães, “quando o poder econômico passa a ser usado com o propósito de impedir a iniciativa de outros, com a ação no campo econômico, ou quando o poder econômico passa a ser o fator concorrente para um aumente arbitrário de lucros do detentor do poder o abuso fica manifesto.”[80]
Deste modo, a criação de uma ordem que permita a regulação dos mercados e da concorrência é imprescindível, de uma banda, para implementar os desideratos econômicos constitucionalmente reputados importantes e, de outra, à necessidade de a função estatal de manter os mercados em equilíbrio, bem como de implementar políticas econômicas determinadas, atinentes à concorrência.
Nesta senda, o artigo 173, § 4º de nossa Carta Magna preconiza que “a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.”[81]/[82]
Assim, quando o poder econômico for usado para dominar mercados, eliminar a concorrência ou aumentar arbitrariamente os lucros – em função de tais fatos gerarem prejuízo imediato e livre iniciativa no respectivo setor, inclusive, refletindo no consumidor – o Poder Público deve ser acionado para restabelecer o equilíbrio da economia, vale dizer, “a liberdade de competição deve ser defendida por uma lei de repressão às práticas comerciais restritivas, por órgãos administrativos, com o fim de reforçar a tutela da concorrência.”[83]
Insta mencionar, finalmente, que, no plano jurídico nacional, foi preciso editar leis que regulamentassem os problemas atinentes à violação da livre concorrência, com o escopo de reprimir e prevenir que os agentes econômicos abusassem de seu poder. Nossa principal lei desta espécie é a Lei n. 8.884/94, a famigerada “Lei Antitruste”, que dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica. Consoante salienta André Ramos Tavares, tal “lei estabelece mecanismos jurídicos para combater, administrativamente, a concentração econômica e evitar abusos que possam comprometer o equilíbrio do sistema de livre concorrência estatuído constitucionalmente.”[84]
7. LIVRE CONCORRÊNCIA E EFICIÊNCIA ECONÔMICA
O ideal de eficiência sempre esteve atrelado ao conceito de mercado competitivo, “sendo, mais do que um objetivo, um verdadeiro atributo, inerente ao mercado concorrencial enquanto alocador de recursos, a relação entre concorrência e eficiência era tão intrínseca que as primeiras normas antitruste não precisavam sequer apontá-la como um objetivo específico de sua proteção”[85], estando elas mais preocupadas com a defesa da livre iniciativa e da livre concorrência, bem como com a repressão ao abuso do poder econômico.
A eficiência passa a ganhar espaço como objeto autônomo do direito antitruste a partir do instante em que se cambiam as estruturas dos mercados, especificamente quando a atomização cede lugar a concentração. Deste momento em diante, invocando os ideais de livre iniciativa e livre concorrência, procurou-se manter no mercado um elevado número de produtores e comerciantes com o escopo de buscar uma maior eficiência econômica, no que tange ao aumento de produção e implementação das técnicas produtivas.
Neste diapasão surgiram dois conceitos distintos de eficiência: a) alocativa que é entendida pela Teoria Clássica como uma característica dos mercados onde vigora a livre concorrência, legitimando, deste modo, a regulação anticoncorrencial para reprimir práticas ou estruturas que tendam a eliminar a concorrência; b) produtiva que demonstra os benefícios da produção em larga escala por empresas de grande porte e, portanto, dotadas de maior poder de mercado.
Conforme ensina Ana Maria de Oliveira Nusdeo:
Em outras palavras, a eficiência alocativa tende a ser correspondente à existência de concorrência nos mercados, situação mais provável com a existência de maior número de unidades produtivas. A eficiência produtiva, porém, decorre da escala de produção e da capacidade dos produtores de investirem em tecnologia, exigindo a presença de agentes com maior poder de mobilização de capital e maquinário, e, portanto, maiores no mercado – isto é, é maior concentração.[86]
No Brasil, com o advento da Lei n. 8.158/91, que modificou a antiga lei antitruste (Lei n. 4.137/62), a eficiência econômica foi acoplada ao direito concorrencial do Brasil. Por seu turno, a Lei n.8.884/94 manteve a alusão à eficiência econômica.
Esta última lei incorpora o conceito de eficiência em dois aspectos diferentes. No artigo 20, § 1º funciona como excludente de ilicitude para a conduta do domínio de mercado quando tal fato resultar em crescimento interno da empresa, ficando patente a preferência do legislador por processos de crescimento a partir do desenvolvimento interno do agente econômico, ao invés de concentrações.
Já o artigo 54 de um meio de defesa para a provação dos atos de concentração que possam vir a causar malefícios à livre concorrência, sempre lembrando que o agrupamento deve estar somado a não eliminação da concorrência de parte substancial de mercado relevante de bens e serviços, a distribuição equânime dos resultados obtidos entre os seus participantes, de um lado, e os consumidores ou usuários finais, de outro, e, por fim, que sejam observados os limites estritamente necessários para atingir os objetivos visados.[87]
É imperioso, ainda, alertar para a problemática da definição do definição da eficiência como um princípio do direito da concorrência do Brasil. A uma, porque a noção de eficiência é relativamente nova, não encontrando origens nem na tradição do direito liberal, nem tampouco foi inserida com a ampliação da atuação do Estado na economia. A duas, porquanto, ao passo que coloca a eficiência como objetivo primordial do sistema, guindá-la a princípio poderia implicar adesão a esse modelo, ferindo frontalmente a ideológica de nossa Carta Política.[88]
Contudo, recusar que a eficiência faça parte de um dos princípios do direito antitruste do Brasil, de forma oposta, acarretaria na dissociação da análise jurídica da realidade econômica.
Neste diapasão aponta Ana Maria de Oliveira Nusdeo, vejamos:
Com efeito, o desenvolvimento das técnicas produtivas e do sistema capitalista como um todo demonstrou a importância das economias de escala, da capacidade de investimento em produtividade e inovação, exigindo que a proteção jurídica à concorrência tenha em conta seu objetivo de garantir a competitividade nos mercados sem impedir o desenvolvimento de novas estruturas e formas de competição, sob pena de estancar o próprio desenvolvimento da economia de mercado, à qual deve servir de instrumento de preservação e renovação. Além disso, o processo de globalização tem impulsionado um crescimento da competitividade em escala mundial e nacional, o que leva o conceito de eficiência a ocupar papel central na dinâmica econômica da atualidade. O reconhecimento da eficiência, assim, como um princípio basilar de proteção à concorrência representa a disposição da lei na conciliação de sua tarefa de manter a concorrência e impulsionar o processo de evolução das técnicas produtivas e de concorrência nos mercados.[89]
Assim, é fato que, em função de ter sido introduzido no ordenamento jurídico por meio de lei ordinária, o princípio da eficiência é inferior aos demais princípios da ordem econômica. Todavia, na aplicação concreta dos princípios, onde haja confronto da eficiência com outro postulado qualquer, não pode ser resolvido simplesmente pela declaração da inferioridade da eficiência. Em um caso desses, o interprete deve procurar identificar qual o princípio mais adequado à situação, eis que o princípio da eficiência no antitruste representa um elo entre a esfera jurídica e o real funcionamento do mercado. Sem a devida observação dessa realidade, resultados estapafúrdios podem surgir.
De certa forma, é adequado o entendimento de que a aplicação do princípio da eficiência no direito antitruste, permitindo a flexibilização das normas aos reais caracteres dos mercados e à inevitável dinamicidade dos processos produtivos, pode consolidar o objetivo do desenvolvimento nacional, também fixado constitucionalmente.
Finalmente, cumpre dizer que a noção de desenvolvimento acarreta questões muito maiores que as analisadas numa operação de concentração de empresas, atinentes a características culturais e sociais, bem como à necessidade de um planejamento público com força de organizá-lo como meio para capaz de modificar estruturalmente a realidade econômica e social do país. Todavia, no atinente à economia, é fato que o referido princípio envolve-se diretamente com a criação de novos meios de produtivos, com o aumento de produtividade e com novas estratégias de produção. Nesta trilha, a apreciação da eficiência em casos concretos referentes à concorrência, sempre observando os demais princípios da ordem econômica, permitirá sua aplicação harmoniosa aos meios de implementação da economia.[90]
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presente análise foi apresentada aos leitores, com o propósito de tentar esclarecer e despertar a importância acerca do estudo dos princípios da ordem econômica, em especial o Princípio da Livre Concorrência.
Após o estudo dos tópicos mais relevantes da liberdade de concorrência, espera-se que este trabalho possa ter acrescentado algum conhecimento com relação à matéria, sendo certo que questão mais importante salientada nesta diz respeito ao conteúdo jurídico do Princípio da Livre Concorrência, que aponta no sentido de que exista a possibilidade de os agentes econômicos atuarem sem embaraços juridicamente plausíveis no mercado, visando à produção, à circulação e ao consumo de bens e serviços.
É de salutar importância lembrar também que foi possível analisar não só do que se trata tal instituto, como também sua a conceituação, os efeitos, bem como os motivos que a tornam necessário a inclusão deste instituto em nosso ordenamento jurídico.
Por fim, cumpre aduzir que não se pretendeu esgotar o tema neste singelo trabalho, por isso convidamos vocês leitores à pesquisa constante do tema, relacionando-o com os demais ramos da ciência, visando, ao final, arquitetar uma teoria da concorrência que leve em conta a realidade dos mercados e sempre buscando a construção de uma sociedade mais justa.
Informações Sobre o Autor
Rodrigo Aiache Cordeiro
Advogado no Acre. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Estado do Acre. Especialista em Direito Processual Civil pela PUC-SP. Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie-SP. Pós-graduado em Direito Tributário pela Universidade da Amazônia