Resumo: Neste brevíssimo texto procuro tecer alguns comentários a respeito daquilo que denomino “princípio da ultraprioridade absoluta”, que nada mais é do que uma construção teórica realizada a partir da interpretação conjunta do “princípio da absoluta prioridade”, contemplado no art. 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente e do “princípio da prioridade”, previsto no art. 8º do Estatuto da Pessoa com Deficiência. Como a elaboração desta teoria parte de um acontecimento concreto vivenciado por mim e procura chegar a uma conclusão genérica a respeito do assunto, é possível afirmar que o método utilizado na estruturação do pensamento foi o indutivo. Por fim, é importante esclarecer que, muito embora os mais ortodoxos não vejam com “bons olhos” a utilização da primeira pessoa do singular, utilizo tal artifício apenas e tão somente para conferir um aspecto mais humanizado e pessoal acerca do tema, motivo pelo qual este expediente não deve ser interpretado como “arrogância acadêmica”, pois, definitivamente, não é essa a minha intenção.
Palavras-chave: atendimento, prioridade, crianças, adolescentes, deficientes.
Abstract: This text try to make some comments about what I call "principle of ultra absolute priority," which is nothing more than a theoretical construct made from the joint interpretation of the "principle of absolute priority" as set out in art. 4º of the Statute of Children and Adolescents and the "principle of priority", provided for in art. 8º of the Statute of Persons with Disabilities. As the development of this theory part of a particular event experienced by me and demand reach a general conclusion about the subject, it is clear that the method used in the structuring of thought was inductive. Finally, it is important to clarify that, although the more orthodox not see with "good eyes" the use of the first person singular, I use this device only and solely to impart a more human and personal aspect of the topic, which is why this device should not be construed as "academic arrogance" because it definitely is not my intention.
Keywords: service, priority, children, teenagers, disabled
Desenvolvimento do raciocínio
Recentemente, meu filho, que tem síndrome de Down, precisou se submeter a uma cirurgia cardíaca, na cidade de São Paulo.
Alguns dias depois dele receber alta, após quase um mês de internação hospitalar, eu e minha esposa não víamos a hora de voltar para casa (em Goiânia).
Assim, no último dia 28 de setembro, ao chegarmos no aeroporto de Congonhas, em São Paulo, rapidamente nos dirigimos a um dos guichês de atendimento da empresa responsável pela nossa viagem, a fim de realizar o check-in e despachar nossas bagagens.
Nesse momento, um dos funcionários da referida companhia aérea nos perguntou qual o destino da nossa viagem… Assim que nós dissemos que estávamos vindo para Goiânia, ele nos encaminhou a uma fila de “passageiros com preferência”.
Tal fato nos chamou atenção porque, enquanto a maior parte dos guichês de atendimento da mencionada empresa aérea estavam bastante tranquilos, com, no máximo, duas ou três pessoas para serem atendidas, a fila do guichê indicado estava enorme… Era possível encontrar idosos, mulheres com crianças no colo, cadeirantes e, também, pessoas que, aparentemente, não deveriam estar ali.
Após questionar outra funcionária da empresa, a respeito dos critérios utilizados para a seleção dos passageiros “preferenciais”, fui informado de que, além das pessoas com as características já mencionadas, também tinham preferência no atendimento todos aqueles que possuíssem um “cartão fidelidade” da referida empesa aérea.
Nesse momento, pedi pra minha esposa ficar na fila enquanto eu ia conversar com a funcionária responsável pelo guichê “preferencial”.
Inicialmente eu expliquei para a referida funcionária que meu filho, além de ser uma criança de colo (à época com apenas cinco meses de vida), era deficiente, na acepção jurídica do termo (a síndrome de Down é considerada deficiência intelectual) e, além disso, tinha acabado de se submeter a uma complexa cirurgia cardíaca. Na sequência, eu perguntei se nós poderíamos ser atendidos antes dos demais passageiros…
A resposta veio de uma forma bastante direta: “- Senhor, todos os passageiros desta fila são preferenciais”.
Eu, sinceramente, não podia acreditar no que acabava de ouvir… De acordo com a política da referida empresa, uma criança de colo com necessidades especiais e uma pessoa com o “cartão fidelidade” da empresa deveriam receber o mesmo tratamento.
Diante de tal resposta, eu comecei a explicar para a funcionária que essa forma de tratamento era totalmente incompatível com a nossa legislação, em especial com a Constituição da República de 1988, com o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), com o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/15) e com a Lei nº 10.048/00.
A resposta novamente veio de forma lacônica: “- Senhor, como eu já disse, todos os passageiros desta fila são preferenciais”.
Por sorte, as pessoas que estavam na fila, ao escutarem o teor da conversa, demonstraram profundo bom senso, pois começaram a pedir para a funcionária nos atender antes dos demais, o que foi feito muito a contragosto, tanto que ela insistiu em dizer o seguinte: “- Senhor, apesar de todos os passageiros desta fila serem preferenciais, desta vez eu vou abrir uma exceção…”.
Nesse momento, eu respirei fundo, controlei meu estresse (pra não falar umas “verdades” pra ela) e simplesmente agradeci o “favor” que ela havia nos feito.
Apesar de superado o impasse, minha indignação ainda persiste…Por isso, resolvi escrever esse brevíssimo texto…
O art. 1º da lei nº 10.048/00 estabelece que:
“Art. 1º. As pessoas portadoras de deficiência, os idosos com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos, as gestantes, as lactantes e as pessoas acompanhadas por crianças de colo terão atendimento prioritário, nos termos desta Lei” (grifei).
Apesar de a referida lei não especificar o que seja “criança de colo”, é preciso invocar “o uso de bom senso para poder identificar o caso da criança que precisa do seu responsável para poder locomover-se (por ser muito pequena, por estar doente ou dormindo, etc.), devendo observar o princípio da boa-fé”.[1]
Somente este dispositivo já seria mais do que suficiente para demonstrar não só o desvirtuamento legal da política adotada pela empresa aérea em questão, mas, também, o despreparo de seus colaboradores… Apesar disso, é possível tecer algumas considerações mais detalhadas a respeito do assunto…
O art. 227 da Constituição da República de 1988 estabelece o seguinte:
“Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” (grifei).
Redação bastante semelhante é encontrada no art. 4º do ECA, transcrito abaixo:
“Art. 4º. É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária” (grifei).
Este dispositivo, que “praticamente reproduz a primeira parte do enunciado do art. 227, caput, da CF, procura deixar claro que a defesa dos direitos fundamentais assegurados à criança e ao adolescente, não é tarefa de apenas um órgão ou entidade, mas deve ocorrer a partir de uma ação conjunta e articulada entre família, sociedade/comunidade e Poder Público” (grifei).[2]
Como se pode perceber, toda sociedade tem o dever de assegurar, com absoluta prioridade, o direito à dignidade e ao respeito, em relação às crianças.
Porém, no caso relatado, não foi isso que aconteceu, pois, a partir do momento em que a funcionária da companhia aérea dá preferência de atendimento a uma pessoa com o “cartão fidelidade” da empresa, em detrimento de uma criança de colo, ela está atribuindo maior importância ao aspecto financeiro do que à “peculiar condição da criança como pessoa em desenvolvimento”, mencionada no art. 6º do ECA, violando, com isso, seu respeito e sua dignidade.
Complementando tal raciocínio, a alínea “b” do parágrafo único do art. 4º do ECA estabelece que:
“Art. 4º. (…)
Parágrafo único – A garantia de prioridade compreende:
b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública” (grifei).
Em outras palavras, isso significa que “todos os serviços públicos ou de relevância pública devem se adequar ao atendimento prioritário (e em regime de prioridade absoluta) a crianças e adolescentes, para tanto melhor organizando as estruturas já existentes e/ou criando novas, contratando e capacitando pessoal etc. Esse ‘tratamento especial’ (e preferencial) visa evitar que os interesses de crianças e adolescentes caiam na ‘vala comum’ dos demais atendimentos ou – o que é pior – sejam relegados ao segundo plano, como usualmente ocorre. (…) O atendimento de crianças, adolescentes e suas respectivas famílias, (…) portanto, deve primar pela celeridade e pela especialização, não sendo admissível, por exemplo, que sejam aqueles submetidos à mesma estrutura e sistemática destinada ao atendimento de outras demandas, de modo a aguardar no mesmo local e nas mesmas ‘filas’ que estas (…)” (grifei).[3]
Nesse momento é importante esclarecer que, apesar da alínea “b” do parágrafo único do art. 4º do ECA estabelecer uma precedência de atendimento nos serviços públicos, é perfeitamente possível invocar a teoria da Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais, a qual vem sendo adotada, de forma sistemática, pelo Supremo Tribunal Federal, como se verifica na seguinte ementa, trazida à colação apenas a título exemplificativo:
“Sociedade civil sem fins lucrativos. União Brasileira de Compositores. Exclusão de sócio sem garantia da ampla defesa e do contraditório. Eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas. Recurso desprovido. I. Eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados. (…)” (grifei). (STF – RE 201819/RJ, rel. Min. Ellen Gracie, rel. p/ acórdão Min. Gilmar Mendes, j. 11/10/2005, 2ª t., DJ 27/10/2006, p. 64).[4]
Tecidas essas considerações, retomo a questão relacionada ao princípio da absoluta prioridade, contemplado tanto no art. 227 da CR/88 quanto no art. 4º do ECA, a fim de esclarecer que, de acordo com Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, a palavra prioridade pode ser definida como “preferência dada a alguém relativamente ao tempo de realização de seu direito, com preterição do de outros”. Já a palavra absoluta, ainda de acordo com o renomado lexicógrafo, significa “ilimitada, irrestrita, plena, incondicional” (grifei).[5]
A soma dos dois vocábulos indica, perfeitamente, o sentido do mencionado princípio constitucional: “qualificação dada aos direitos assegurados à população infanto-juvenil, a fim de que sejam inseridos na ordem-do-dia, com primazia sobre quaisquer outros”.[6]
Com base no que acaba de ser mencionado já é possível concluir que o simples fato de o meu filho ser uma criança de colo já lhe conferiria preferência no atendimento, em decorrência da aplicação do princípio da absoluta prioridade.
Porém, tal preferência fica ainda mais acentuada pelo fato de ele ser uma pessoa com deficiência…
Isso porque, como já referido anteriormente, meu filho tem síndrome de Down, “alteração genética que ocorre na formação do bebê, no início da gravidez”, considerada um dos “principais tipos de deficiência intelectual”.[7]
Sendo assim, a ele se aplica, também, a Lei nº 13.146/15, mais conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência…
Nesse momento interessa trazer à tona, especificamente, o art. 8º do referido diploma legal, cuja redação estabelece o seguinte:
“Art. 8º. É dever do Estado, da sociedade e da família assegurar à pessoa com deficiência, com prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à sexualidade, à paternidade e à maternidade, à alimentação, à habitação, à educação, à profissionalização, ao trabalho, à previdência social, à habilitação e à reabilitação, ao transporte, à acessibilidade, à cultura, ao desporto, ao turismo, ao lazer, à informação, à comunicação, aos avanços científicos e tecnológicos, à dignidade, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e comunitária, entre outros decorrentes da Constituição Federal, da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo e das leis e de outras normas que garantam seu bem-estar pessoal, social e econômico” (grifei).
A leitura deste dispositivo deixa transparecer que toda sociedade tem o dever de assegurar, com prioridade, em relação à pessoa com deficiência, seu direito ao transporte, à acessibilidade, à dignidade e ao respeito, o que também não ocorreu no caso em tela.
Como se isso não fosse suficiente para demonstrar o desrespeito, por parte dos funcionários da companhia aérea em questão, no que tange ao tratamento preferencial que deveria ter sido dado ao meu filho, o artigo 9º do Estatuto da Pessoa com Deficiência contempla regra expressa nesse sentido. Com efeito, a redação do mencionado dispositivo legal é a seguinte:
“Art. 9º. A pessoa com deficiência tem direito a receber atendimento prioritário, sobretudo com a finalidade de:(…)
II – atendimento em todas as instituições e serviços de atendimento ao público” (grifei).
Como é possível perceber, este dispositivo é mais abrangente do que o previsto no ECA, pois, o atendimento prioritário aqui estipulado não fica restrito apenas aos serviços públicos ou de relevância pública, mas se estende a todas as instituições e serviços de atendimento ao público, o que, em outras palavras, significa que todas as instituições e serviços (mesmo os privados) que atendam ao público devem observar a prioridade de atendimento inerente às pessoas com deficiência.
Por fim, é importante trazer à baila o art. 5º do Estatuto da Pessoa com Deficiência, que contempla a seguinte regra:
“Art. 5º. A pessoa com deficiência será protegida de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, tortura, crueldade, opressão e tratamento desumano ou degradante.
Parágrafo único. Para os fins da proteção mencionada no caput deste artigo, são considerados especialmente vulneráveis a criança, o adolescente, a mulher e o idoso, com deficiência”.
Novamente invocando a lição de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, é possível definir a palavra negligência como “desatenção, menoscabo, menosprezo”,[8] o que se amolda perfeitamente ao comportamento apresentado pelos funcionários da empresa aérea em relação aos direitos do meu filho.
Por todos esses motivos, defendo a tese de que o atendimento dispensado às pessoas acompanhadas por crianças de colo que apresentem algum tipo de deficiência deva ser sempre pautado por aquilo que denomino ultraprioridade absoluta.
Mestre em Direito, Relações Internacionais e Desenvolvimento pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás – PUC/GO (Bolsista/Pesquisador da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás – FAPEG), Especialista em Direito Público (com ênfase em Direito Penal) pela Universidade Potiguar/RN, Especialista em Direito Civil e Processo Civil pelo Centro Universitário Toledo de Presidente Prudente/SP (Bolsista da própria Instituição), Graduado em Direito pelo Centro Universitário Toledo de Presidente Prudente/SP (classificado em 1º lugar – melhor aluno – entre os concluintes do curso de Direito – Turma “A” de dezembro de 2005), Ex-coordenador do curso de Direito da Faculdade Objetivo de Rio Verde/GO, Professor Universitário, Técnico Jurídico (Nível Superior) do Ministério Público do Estado de Goiás, Coordenador Pedagógico da Escola Superior do Ministério Público do Estado de Goiás, Autor de livros e artigos científicos, Membro da Academia Goiana de Direito (ocupante da Cadeira nº 36)
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