Brincadeira do boi, farra do boi, ou já outra coisa? Um estudo sobre uma prática transformada pelo tempo e circunstâncias

Resumo: Existe um número considerável de estudos sobre a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que proibiu a farra de boi, praticada no litoral de Santa Catarina, e também notícias que demonstram as consequências desta decisão, envolvendo tanto ações de órgãos governamentais, como a resistência popular. Este artigo observará as características deste local. A história desta região também será mencionada, além de serem evidenciadas algumas repercussões práticas desta decisão, abrangendo não apenas a resistência popular, mas também, por exemplo, a própria tentativa do Poder Legislativo Estadual e Municipal catarinense para criar leis a fim de que se regulamente esta prática em seu território. A conclusão do presente trabalho buscará demonstrar que a “tradição” defendida pelos farristas como elemento da farra do boi é algo muito mais dinâmico do que imaginado, pois a própria farra transformou-se com o desenvolvimento de Florianópolis e para sobreviver após a sua própria proibição pelo STF.

Palavras-chave: farra do boi; direito à manifestação cultural; direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado; resistência popular; vedação à crueldade contra animais.

Abstract: There are a considerable number of studies about the decision of the Supremo Tribunal Federal (STF) which has prohibited the Festival of the Ox which is practiced on the Santa Catarina’s coast. Also, there are news which show the consequences of this decision that involved both action of governmental organs as the popular resistance. This paper will observe some features of this locality and also will analyze its story. Hence, practical repercussions of this decision will be brought, encompassing not only the popular resistance, but also, for instance, the attempt of the Executive Power of this region to create laws in order to regulate this practice on its territory. The conclusion of this paper aims at demonstrating that the “tradition” which is defended by the people who takes part of the festival is an element much more dynamic that it could be thought, because the Festival of the Ox has already transformed itself with the development of Florianopolis and also in order to survive after its prohibition by the STF.

Keywords: Festival of the ox; right to the cultural manifestation; right to the ecologically balanced environment; popular resistance; prohibition of the animal cruelty.

Sumário: Introdução. 1. Situando o local da farra do boi a ser abordado pelo presente estudo: Ganchos 1.1. A história da farra do boi em Ganchos que, aliás, coincide com a própria história deste território 2. A decisão do STF (1997): Proibição da farra do boi quer dizer fim da farra do boi? Consequências da decisão e a atuação dos órgãos governamentais Conclusão Referência

Introdução

A introdução do presente trabalho observará as características de Ganchos, localizado no Município de Governador Celso Ramos, Santa Catarina, sendo que em sua segunda parte, será analisada a história, tanto de Ganchos, como da farra do boi que lá vem ocorrendo.

1.1 Situando o local da farra do boi a ser abordado pelo presente estudo: Ganchos

O presente estudo começará com a exposição de um poema que auxiliará na melhor compreensão do seu objeto:

“Minha terra

Minha terra é hospitaleira

De um povo singular

Terra de homens valentes

Homens que vivem no mar!

Nesta terra preservamos

Nossa cultura, nossa tradição,

Da falada farra do boi

A brincadeira do boi de mamão

Também temos as criveiras

Com suas agulhar a trabalhar,

No tecido fazem a festa

Da arte de desenhar.

Ganchos, um pedacinho

De Portugal no Brasil,

É assim que eu defino

Minha terra varonil.

Filha da Terra gigante

Pedaço do meu Brasil!

A minha terra querida

As mulheres têm tradição

Umas trabalham no crivo

Ou descascam camarão

São elas que cuidam da casa

E para os filhos passam lição.

O pai é um bravo guerreiro

Que do mar tira sustento

Enfrenta o sol e a chuva

E corre por causa do vento.

Trazendo sua embarcação pra terra

Até melhorar o tempo.

Não permitas,óh Deus!

Que as coisas mudem por cá,

Que aconteçam mudanças

Como acontecem por lá

Nas famosas cidades grandes

Onde o povo vive a chorar!”

(De autoria de: Lucineide de Azevedo Simão, em SIMÃO, 1997, p. 25)

Como se é possível perceber, o poema narra uma terra brasileira em particular, denominada Ganchos, que de acordo com Martins e Machado (s/d, p. 07), é a localidade do atual município de Governador Celso Ramos, sendo situado entre os Municípios de Biguaçu e Tijucas. No litoral desse Município, a população açoriana desenvolve a pesca artesanato.

Por meio do poema acima, é possível verificar que Ganchos é uma terra dotada de histórias e características próprias sendo que a urbanização e crescimento populacional ocorrido em Santa Catarina surgiu como um desafio à região, tendo em vista a sua intenção de preservação das tradições trazidas ao local pelos açorianos, por exemplo, em meados do século XVIII.

Para se ter uma ideia a respeito das lendas e figuras mágicas que rodeiam a vida de quem mora em Ganchos, vale trazer o abaixo discorrido a respeito do nome “Ganchos” dado ao local:

“Diz a lenda que o nome foi dado em homenagem ao "Capitão Gancho", pirata que afirmam os mais antigos moradores, que por aqui passou. Uma outra hipótese é devido aos ganchos tirados das árvores para transportarem os pescados, carregados nas costas. Embora não havendo certeza, a denominação do nome pode ter ocasionado pela visão de três baias consecutivas dando cada qual o formato de um gancho. Essa é a hipótese mais concreta para o nome Ganchos […] Passados mais de dois séculos, Ganchos ainda preserva suas crenças e suas tradições. A maneira de falar rápido expressões e palavras que muitas vezes só os "gancheiros" sabem seus significados são retratos da cultura viva dentro do coração e da alma do povo simples e hospitaleiro. Ainda existem os que acreditam em lobisomem, na bruxa, na mulher de branco, no boi Tainá e no bicho de Orelha Mole, lendas espalhadas de gerações a gerações[1]”.(SIMÃO, 1997 p. 15-33)

Desta forma, Ganchos, que antes era um distrito, desmembrou-se do Município de Biguaçu no ano de 1963, elevando-se à categoria de Município, e, de acordo com as informações do site do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), pouco se sabe acerca dos moradores da orla oeste da baía norte da antiga Desterro, antes de 1747. Assim, não se sabe ao certo a época em que iniciou o devassamento do território do Município de Biguaçu. Três foram as correntes na formação da população de Biguaçu: portugueses, vindo da Ilha dos Açores, negros, vindos da África, e alemães, vindos de Bremen. Note-se que a principal corrente foi a açoriana, cujo estabelecimento ocorreu em 1747, com a fundação de São Miguel, ponto originário da evolução municipal. Após a fundação de São Miguel é que apareceram outros povoados, como: Tijuquinhas, Armação da Piedade, Ganchos, Biguaçu Três Riachos e outros[2].

Assim, de acordo com o site da Prefeitura de Governador Celso Ramos, a enseada de Ganchos povoou-se em função da pesca, distribuída em três núcleos: Ganchos do Meio (ao centro); Canto dos Ganchos (lado Oeste); Ganchos de Fora (avançando no mar).Ademais, o Distrito foi criado em 1914, com sede em Ganchos do Meio, onde hoje está localizado o centro urbano de Governador Celso Ramos e o núcleo administrativo – prefeitura e secretarias.[3].

Diante desta breve descrição do local objeto do estudo do presente trabalho, partir-se-á, na próxima seção, à contextualização da farra do boi, que de acordo com Martins e Machado (s/d, p. 07), é uma festa tradicional desenvolvida pela população açoriana do litoral de Santa Catarina.

Desde já é interessante mencionar, que se pode perceber que a história dinâmica da farra do boi irá acompanhar o próprio desenvolvimento do território de Ganchos, tendo em vista que a necessidade de mudanças de algumas características na prática da farra do boi neste território aconteceu em virtude da transformação da sociedade e da configuração deste próprio local, a conviver com a urbanização do litoral catarinense, e também em decorrência da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF, 1997), que proibiu a prática da farra do boi.

1.1 A história da farra do boi em Ganchos que, aliás, coincide com a própria história deste território

Em um livro a respeito da cultura açoriana em Governador Celso Ramos, consta que a brincadeira do boi, nome dado à farra em tempos mais antigos, é:

“Um antigo costume ibérico que permanece em algumas cidades da Espanha e Portugal. A tourada à corda ainda hoje é muito praticada no Arquipélago dos Açores. Essa tradição foi passada para o litoral catarinense pelos povoadores que vieram para Santa Catarina em meados do século XVIII. Os imigrantes, cerca de 6.000 açorianos, portadores de uma cultura rica em detalhes e beleza, trouxeram para cá, as touradas à corda, que o catarinense adotou como "brincadeira do boi de campo". Brincadeira esta que é feita na Semana Santa em quase todo o litoral. Hoje, Governador Celso Ramos é um dos mais fortes locais onde persiste esta tradição”.(PREFEITURA MUNICIPAL DE GOVERNADOR CELSO RAMOS. SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO E CULTURA, 2011).

Portanto, a persistência da tourada à corda açoriana nas povoações catarinenses é uma constante, podendo ser denominada como “Boi na Vara” ou “Boi no Campo”, que o catarinense adotou, contemporaneamente, como “Farra do boi”. (SIMÃO, 1997, p. 49).

Necessário salientar, que ao chegarem ao Brasil, os açorianos depararam-se com um solo diferente ao de Açores, não podendo assim desenvolver a pecuária, voltando-se também à pesca, esta já realizada em Açores.

Outra nota interessante de ser mencionada é que o antropólogo Eugenio Lacerda (2003, p. 116) lembra que as touradas, muito comuns no Arquipélago de Açores durante a época da imigração portuguesa, foram diminuindo com o passar do tempo.

De acordo com Iara Chaves, os açorianos apresentavam a pecuária em sua origem, facilitando-se, assim, a expansão das touradas. Ocorre que, como acima descrito, as condições do solo brasileiro fizeram com que a prática da pecuária fosse abandonada por eles, estando o boi, desta forma, afastado do seu cotidiano, e presente apenas em momentos festivos. Segundo esta autora (1992, p. 25) “[…] isso talvez possa explicar por que correr bois passou a ser um hábito que antecede às grandes festas, como a Páscoa”.

Note-se que a farra do boi acompanhou a modernização do litoral catarinense, sendo que, a partir da década de 1960, esta prática que antes era algo praticado de forma clandestina, restrita a comunidades nativas, e praticada em áreas de campo, pasto ou praia, começou a ser noticiada pelos jornais, tendo em vista os danos que causava, como é o caso de invasão de domicílios[4], destruição de cercas, árvores e patrimônio público. (FLORES, 1997, p. 59).

Segundo Maria Bernadete Flores (1997, p. 64), colaboraram para a difusão da farra do boi como um mal-estar social a urbanização da cidade, o impulso turístico, alimentando pela construção da rodovia BR-101, assim como o surto migratório, estimulado pela implantação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e da Eletrosul, que chegou a atrair dois mil engenheiros e outros funcionários para a capital.

O Professor Adauto de Melo (2012, p. 117) lembra que nesta época, em decorrência da emancipação político-administrativa de Ganchos, as estradas foram abertas, acompanhando a expansão urbana.

Adauto de Melo (2012, p. 120) também cita uma ocasião em que estava em Ganchos, na década de 1980, quando presenciou o delegado local abater a tiros um boi que "brincava" com farristas[5], causando a revolta dos moradores. O resultado desta ação foi a depredação da delegacia e o quase linchamento do delegado.

A situação ficaria ainda pior. Segundo Adauto de Melo (2012, P. 120), no dia 30 de março de 1988 policiais abateram um boi sem que os moradores percebessem, sendo que assim, a população entrou em confronto com a polícia, usando o que sabiam manejar, resultando em um confronto entre pedras e paus de um lado, e uso de bombas de gás lacrimogênio e tiros de festim por parte dos policiais.

O Professor Adauto coloca assim o fato que para ele é notável:“a farra do boi é a festa mais esperada do ano em Ganchos, e mesmo sem apoio, vem acontecendo” (DE MELO, 2012, p. 121).

Este Professor (DE MELO, 2012, p. 122) reflete também que, como nativo, acredita que a brincadeira pode ser dividida em dois momentos, sendo o seu limiar o antes e o depois da interferência direta da polícia na noite de 30 de março de 1988, que provocou a resistência constante dos moradores e a luta pelo fim da brincadeira travada pelos órgãos de proteção animal. Assim, para ele, as mudanças que ocorreram na brincadeira, inclusivena sua própria denominação (de brincadeira para farra do boi), fundamentar-se-iam nesses fatos.

Para ele (DE MELO, 2012, p. 123), as facilidades de acesso ao local, as mudanças nos hábitos e costumes locais, e a introdução de novos "farristas" que não os moradores da cidade, introduziram novas características à brincadeira, mas não retirou dela a sua essência: o espírito de festa que envolve seus participantes.

Adauto de Melo relata também outra característica de Ganchos: ele conta que este local montanhoso e de terras de pouco ou nenhum valor, fazia com que qualquer pessoa pudesse apropriar-se dela, da extensão que lhe aprouver, fazendo ao governo a solicitação exigida.

Assim, tal local era dotado de casas pobres, apresentando um quadro pitoresco de irregularidade rural, sendo algumas construídas no cume das montanhas e outras na beira do mar (DE MELO, 2012, p. 119).

Em seguida, refere-se (DE MELO, 2012, p. 119) aos significados que podem ser atribuídos ao "ritual da farra do boi". Segundo ele, para alguns estudiosos o boi "faria o papel de Judas", enquanto para outros, "o animal simbolizaria o satanás e através da tortura do diabo as pessoas se livrariam de seus pecados", dentre outras teses.

Assim, De Melo (2012, p. 119) lembra a conotação religiosa da farra do boi, tendo em vista até mesmo a sua maior ocorrência durante a Semana Santa, sendo que, para ele "a festa é também uma oportunidade para fazer uma festa na comunidade e gerar capital financeira com a venda de comes e bebes para os participantes".

A partir da década de 1980, Adauto de Melo conclui que o evento passou a ser combatido por grupos ligados a entidades não governamentais, que passaram a fazer campanhas contra a farra do boi, considerando a mesma cruel, o que acabou por culminar na prática da farra do boi sendo levada ao Poder Judiciário, sendo julgada pelo STF no ano de 1997, o que será objeto da próxima seção deste trabalho.

2 A decisão do STF (1997): Proibição da farra do boi quer dizer fim da farra do boi? Consequências da decisão e a atuação dos órgãos governamentais

Em seus tempos mais antigos, a denominação objeto da prática deste artigo era mais referente a uma “brincadeira do boi”, sendo que, para o Professor Adauto de Melo (2012, p. 117) "[…] o termo farra do boi, segundo os antigos moradores, foi atribuído pelas novas gerações que associam a prática dos dias atuais à muita música, festa, bebedeira entre amigos e visitantes".

A brincadeira do boi era praticada, antigamente, com o boi sendo transportado por pequenas tropas conduzidas através das trilhas, já que não existia acesso terrestre, sendo que os moradores brincavam durante dois a três dias, até o sábado de aleluia, e após este período, o boi era abatido e a sua carne dividida entre os sócios[6]. Essa prática era repetida todos os anos, em decorrência da Semana Santa, e constitui-se, segundo Adauto de Melo, na mais polêmica festa da comunidade. Adauto de Melo (2012, p. 117) relata ainda que "[…] naquele tempo não tinha bebedeira, era tudo muito diferente”.

Adauto de Melo (2012, p. 119) começa a comentar em seu estudo, diante disso, sobre a decisão do Supremo Tribunal Federal, lembrando que a mesma foi rodeada por debates e pressões por parte da sociedade organizada, através de entidades de proteção e defesa dos animais.

Note-se também que existem alternativas, como o boi de mamão[7], brincadeira folclórica realizada com um boi de madeira e a farra em um mangueirão[8], local que poderia diminuir a violência e confusão da farra, sendo realizada mais como uma tourada, apenas provocando o boi, com puxadas de rabo e outras provocações, controlando-se também o local em que o boi se encontra. Note-se, contudo, que a farra do boi realizada em mangueirão também é proibida, e não impede a prática de crueldade contra o boi.

Um breve e interessante trabalho mostra que a farra do boi em Ganchos tem passado por um período de significativa transformação. Tal mudança, de acordo com os seus autores (MACHADO; MARTINS, s/d), se dá tanto no que tange ao cuidado para com o animal, a fim de que este sofra menos violência e mutilações, como no próprio calendário para a prática da farra do boi na região.

Este trabalho foi elaborado por um Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Valmir Martins, e por um farrista e estudante do Curso de Geografia da UFSC, Mauro José Machado, e relata que se deve ter em conta que adquirir um maior número de animais há quinze anos era mais difícil, tendo em vista as piores condições para transportá-lo.

Hoje, de acordo com estes autores (MACHADO; MARTINS, s/d, p. 08) em virtude da abertura das comunicações e da melhoria dos transportes, pode-se adquirir um número maior de animais, e o boi, ao primeiro sinal de esgotamento, é "posto de lado" para ser trocado por outro em melhores condições.

Desta forma, antigamente, comprava-se poucos animais (dois a quatro), que, ao ser sacrificado, era dividido proporcionalmente aos sócios, ou ainda, fazia-se um churrasco para a coletividade. Segundo os autores (MACHADO; MARTINS, s/d, p.07) citados, por este motivo os cuidados para que o boi não fosse machucado eram bem menores, tendo em vista que o animal ia ser sacrificado, e não trocado por outro.

Outra interessante menção destes autores, é que, tendo em vista que Ganchos consolidou-se como um "território livre da Farra do boi", o número de bois soltos para a sua prática aumentou, assim como as pessoas que comparecem ao evento, pois outros "farristas" acabam vindo de outras localidades, sendo em geral, descendentes de açorianos, e que, devido à maior repressão da prática em sua localidade, devido ao crescente processo de urbanização e avanço da especulação imobiliária, já não podem mais fazer a farra como antigamente.

Desta forma, os autores (MACHADO; MARTINS, s/d, p. 09) constatam que "hoje, é muito comum a união de farristas de outras localidades com gancheiros, inclusive como "sócios do boi" para participar e garantir esta manifestação cultura. Na verdade, segundo estes autores, trata-se de uma união espontânea para resistir e garantir a farra.

Em sua explanação sobre o ritual da farra do boi, Martins e Machado expõem o seguinte:

São nove horas da manhã, as portas do Bar do Manoel em "Ganchos de Fora", já estão abertas, e o pessoal começa a chegar. A farra do boi está começando. Logo uma lista de "sócios do boi" começa a circular, e, em menos de duas horas já se tem dinheiro "apurado" para comprar, às vezes, até dois bois. "Ganchos-de-fora" já está transformado. O clima é de grande festa, e todos estão preparados[…] Levantado o dinheiro, começa a segunda etapa. Quatro, cinco, e às vezes até mais, carros abarrotados começam um verdadeiro "rallye" pelo interior dos municípios próximos, de fazenda em fazenda, de "buteco em buteco", na procura do boi. O boi já está na mangueira esperando os farristas. Neste instante os farristas "testam" o boi. Querem saber se o boi é brabo ou não. No final do teste, vem a decisão do grupo.Vamos levar esse. Neste instante é que se discute o preço com o dono da fazenda. Se o boi for realmente violento, geralmente o preço não importa muito. A alegria do grupo é geral. O negócio é feito e à tarde já está avançada. É hora de retornar para "Ganchos de Fora". (MARTINS; MACHADO, s/d, p. 09).

Após explicarem (MARTINS; MACHADO, s/d, p. 11) sobre “a chegada” do boi, que é “regada de buzinadas, tendo em vista a recepção do "herói", sendo que o desejo do boi e medo da fera misturam-se”, estes autores narram sobre o “solta aqui”, que indica o seguinte momento:

 “O boi é finalmente solto[9]. A correria e os gritos generalizados. Tem gente que nem consegue ver o boi. O animal sai em desabalada correria até encontrar o seu espaço. Ele define seu território. A propriedade dissolve-se. Nem o boi nem os farristas pedem licença para passar e todos sabem que é assim mesmo. De forma absolutamente espontânea a Farra do boi cria seu espaço, o seu tempo, as suas normas. A disciplina agora é disciplinada pela Farra. O importante agora é viver intensamente este grande momento. Depois dá-se jeito.

Cada um participa como deseja. Uns seguem o boi para desafiá-lo. São os mais arrojados. Quanto mais perto do boi alguém chega, mais corajoso é. Isso dá status na Farra.

Outros vão para o bar tomar cerveja como forma de participar da Farra. Conversa-se sobre o desenrolar da Farra ali e em outros lugares. Um ri do outro. Bebe-se pra valer.Terceiros, cansados de acompanhar a "fera" contentam-se em ficar comendo goiaba ou vão para a casa de alguém comer e beber bastante. Assim, a Farra prossegue até o animal cansar ou perder-se no mato.Se a "fera" é achada e não pode mais ser objeto da Farra, simplesmente é presa e fica no pasto aguardando para ser trocada por outra. O processo se repete até chegar o sábado ou domingo de Páscoa. Nestas alturas, o animal já descansou bastante e vai ser "carneado"”. (MARTINS, MACHADO, s/d, p. 11-12).

A carneação, segundo Martins e Machado (s/d, p. 12) é a última etapa da farra, em que:“[…] o animal depois de ter descansado de um até um dia é meio, é morto. Chegou o fim do ritual e já se fala na próxima "farra". Às vezes, tem boi que não se mata e fica no pasto para ser trocado por outro na próxima "parada". Nada é definitivo. Basta uma nova reunião dos pescadores num bar, num final de semana, para que alguém resolva sinalizar uma nova "farra", e o ciclo se repete”.

Ao deparar-se com as mudanças da farra do boi no decorrer do tempo, constata-se que esta prática persistiu, portanto, no litoral de Santa Catarina, e por isto, a World Animal Protection, por meio do advogado Carlos Barzan, ajuizou uma ação judicial contra o Estado de Santa Catarina, em 1999, a fim de exigir o cumprimento da decisão do Supremo Tribunal Federal[10].

A sentença do Desembargador Mauricio de Melo, no ano de 2000, acabou estipulando a multa de R$ 500,00 por dia de realização da farra do boi no território catarinense.

No ano de 2006, diante de um dossiê que coletava novamente informações sobre a continuação da prática no território catarinense, o advogado mencionado entrou com um processo judicial a fim de cobrar a multa de R$ 500,00 estabelecida pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina.

O dossiê continha matérias jornalísticas, imagens da farra, entrevistas de rádio e televisão, e outros documentos pertinentes à retratação de que a decisão do STF continuava sendo descumprida.

O Tribunal de Justiça de Santa Catarina voltaria novamente a enfrentar a questão, agora em julgamento de Ação Direita de Inconstitucionalidade, no ano de 2007.

Esta ação foi promovida pela Promotoria da Comarca de Biguaçi com atribuição para a defesa do meio ambiente, a fim de declarar a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 542/2007 de Governador Celso Ramos, note-se, novamente, o Município com a incidência mais expressiva da prática da farra do boi em Santa Catarina.

Esta Lei Municipal, promulgada em 18/04/2007 por iniciativa popular regulamentaria a agora denominada "brincadeira do boi", sendo que prevê um prévio cadastramento do evento junto à Prefeitura Municipal, o tempo em que o animal pode permanecer na brincadeira, e a punição dos organizadores em caso de dano à integridade física do boi.

A Promotora lembrou também que a Lei Municipal citada viola o disposto no art. 182, inciso III, da Constituição Estadual de Santa Catarina, que prescreve o dever do Estado de defender e preservar o meio ambiente e proíbe tratamento cruel aos animais. (BRASIL, 2007).

O artigo 1º da Lei Municipal nº 542/2007 previa que: “Fica reconhecida, nos termos expostos nesta Lei, a manifestação cultural denominada "Brincadeira do Boi", configurando ato de preservação do patrimônio imaterial pelo poder público municipal”.

Note-se que além da decisão do STF a respeito, também se foi mencionada nesta ação outra Ação Direta de Inconstitucionalidade contra uma Lei Estadual Catarinense, a Lei 11.365/2000, promulgada pela Assembleia Legislativa do Estado, que autorizava e regulamentava a farra do boi, se realizada sem o tratamento cruel contra o animal e sem a perturbação da ordem pública. Ademais, a sua prática dependeria, sempre, de autorização solicitada ao Delegado de Polícia local, indicando-se a área onde será realizada, o horário e os responsáveis pelo evento.

Como concluído na decisão de Ação Direta de Inconstitucionalidade de Lei Estadual, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, por maioria de votos, considerou que, apesar das tentativas previstas para ser diminuída a crueldade, pelas suas características, a própria prática é inerentemente cruel. (BRASIL, 2007).

A decisão do STF, que se amparou na vedação do tratamento cruel aos animais, por meio da concretização do direito ao meio ambienta ecologicamente trouxe como mudanças na atuação dos órgãos governamentais para fiscalizar e coibir a farra do boi no litoral catarinense.

Segundo o site do Governo de Santa Catarina "a Farra do Boi é considerada crime, de acordo com o art. 32 da Lei n. 9.605/1998, conforme acórdão do Supremo Tribunal Federal"[11].

Indaga-se, qual é a consequência de um acórdão do STF ter considerado a farra do boi como crime? No presente caso, evidencia-se que as consequências são várias, e a situação ainda não se encontra conclusa, e nem de longe, pacificada. De acordo com o site citado, em 06 de março de 2014, já haviam sido registradas 12 ocorrências em Florianópolis, e três em Governador Celso Ramos, número este que muito provavelmente já está mais elevado.

Portanto, a primeira verificação é que, realmente, a prática da farra do boi continua ocorrendo, e mesmo fora do período de quaresma[12], seu período tradicional.

Ademais, no dia 19 de Janeiro de 2013, foi assinado um Protocolo de Cooperação entre a Polícia Militar de Santa Catarina, a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Regional da Grande Florianópolis, a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Regional de Itajaí, a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Regional de Laguna, a Polícia Civil de Santa Catarina, a Companhia Integrada de Desenvolvimento Agrícola de Santa Catarina (Cidasc), o Ministério Público de Santa Catarina, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), a 8ª Superintendência da Polícia Rodoviária Federal, o Instituto Ambiental Ecosul e os municípios de Florianópolis, São José, Biguaçu, Governador Celso Ramos, Penha, Navegantes, Garopaba, e Itajaí.

A parceria empreendida para o combate da farra do boi demonstra a necessidade de serem abrangidas diversas zonas de ação para combater a prática da farra do boi: a polícia rodoviária, por exemplo, seria o obstáculo para que o boi chegasse ao local da farra, sendo que hoje, verifica-se que farristas tentam transportar bois até mesmo dentro de veículos menores, de modo disfarçado.

O auxílio das Escolas se daria em parceria também com a Secretaria Municipal de Cultura e a de Educação, como é o caso de Ganchos, em que, para a elaboração desse trabalho, uma de suas autoras compareceu em Ganchos e conversou com uma Professora, que relatou que a principal ideia que se tenta difundir nas escolas é a de que o boi sente dor.

A Secretaria Municipal de Educação de Governador Celso Ramos é dotada de uma Biblioteca, com livros sobre a farra, e também na própria Secretaria pode-se vivenciar o encontro de diferentes traços que envolvem a farra do boi: a coexistência de uma Professora, compadecida com o combate à farra, que relatava sobre a integridade até mesmo psíquica do boi que era afetada, segundo ela, desde a saída do mesmo do local em que vivia para o local em que seria o objeto da farra do boi, com outra funcionária da Secretaria, favorável à farra, e que contava que seu filho se divertia com ela. Assim, esta funcionária relatou sobre a herança e descendência que se corporificam na farra, mas mesmo assim concordando que o animal não sofreria tanto.

Ao lado delas, outro funcionário estava engessado, pois havia participado de uma farra há uns dias, e havia sido atingido pelo boi.

A farra do boi, portanto, faz parte do dia-a-dia de Ganchos. Ao comparecer na Delegacia local, uma das autoras deste trabalho pode encontrar outra Professora, cujo filho estava participando do programa com a Polícia Ambiental, a fim de que seja difundido nas escolas sobre a prevenção da farra do boi.

Tal programa faz parte de um processo de conscientização a respeito da farra do boi, sendo que meninos podem fazer parte da propagação do material e realização de palestras, em conjunto com a Polícia Ambiental.

Ademais, o Ministério Público de Santa Catarina também conta com o auxílio de organizações não governamentais a fim de atuar permanentemente no combate desta prática.

O Protocolo de Cooperação mencionado prevê, dentre outras, as seguintes ações:

“- a necessidade de construção de ações preventivas e repressivas para contar a prática da farra do boi em Santa Catarina;

– palestras nas escolas dos municípios em que ocorre a farra do boi, como ação de prevenção primária;

– concurso de redação, buscando valorizar o respeito a todas as formas de vida;

– que os partícipes considerem importante a realização de campanha de mídia para orientar a população sobre a proibição da farra do boi;

– deve-se fiscalizar os locais a fim de que, se for o caso, adotar medidas legais e/ou administrativas, tais como interdição de locais e apreensão dos animais;

– é necessária a contratação de laçadores e veículos para a condução dos animais, tendo em vista as limitações logísticas da Polícia Militar de Santa Catarina;

– a CIDASC (Companhia Integrada de Desenvolvimento Agrícola de Santa Catarina) será responsável pela destinação final dos animais apreendidos;

– o Ibama, a CIDASC e a Diretoria de Bem Estar Animal de Florianópolis ficarão responsáveis por avaliar a condição de maus tratos aos animais;

– A Polícia Militar de Santa Catarina registrará adequadamente todas as ocorrências atendidas (levantamento fotográfico, filmagem, lavratura de B.O), encaminhando cópia da documentação à Delegacia de Polícia e à Promotoria de Justiça da Comarca”.

(Disponível em: <http://www.pm.sc.gov.br/fmanager/pmsc/upload/930385/ART_930385_2013_03_13_103738_protocolo_.pdf>. Acesso em: 23/07/2014).

Diante disto, no presente momento, serão expostas três notícias, que relatam a situação do boi após a decisão do STF (1997). Tais notícias foram escolhidas dentre muitas, pois a primeira delas foi indicada por uma moradora de Governador Celso Ramos para a elaboração deste trabalho, a segunda relata o absurdo que virou a destinação que é dada ao boi, ou seja, o boi capturado na prática da farra foi levado a um frigorífico, e a terceira relata a agressão sofrida por um Professor, pois denunciou farristas, o que demonstra que existiu, de fato, razão para que a ação que chegou ao STF fosse ajuizada no Estado do Rio de Janeiro, e também razão de não se mencionar os nomes dos solícitos colaboradores deste trabalho, moradores de Ganchos.

A primeira notícia[13] (06/04/2010) foi indicada por uma pessoa com quem se conversou em Ganchos. Ela se inicia com os seguintes dizeres: "É festa, alegria e tradição. É também maus-tratos aos animais e uma cidade sem lei".

A citada reportagem se constitui em um acompanhamento da farra do boi, realizada durante os dias que antecederam a Páscoa, nos principais bairros do evento: Ganchos, Palmas e Fazenda da Armação.

Ela mostra que o boi foi trazido por um carro a reboque até o meio da multidão, sendo relatado que “as buzinadas ainda persistem. O boi desce, e assobios, berros e tapas são sentidos pelo boi, que cansa”, como mostra a notícia. A farra acontecia, aliás, na frente da prefeitura municipal”.

A reportagem mostra também o caso de um dono de propriedade, que não quis se identificar, que, apesar de ter ido passar a Páscoa em Florianópolis, para não ter que lidar com os problemas que trazem a prática da farra do boi, teve a casa invadida durante a festa, relatando que:

“Na hora o caseiro ficou sem saber o que fazer. Não sabia se cuidava do cachorro que tinha sido envenenado, ou se espantava os farristas que estavam tentando invadir a parte interna da casa. Chamamos a polícia e, só uma hora depois, é que eles apareceram. Conferiram se houve furto e a presença dos bois no terreno. Depois disso, foram embora, sem fazer nada — relatou o dono da propriedade.

Enquanto nas ruas pessoas embebedadas gritam irracionalmente para que maltratem um animal e destruam as propriedades alheias, outras, nas igrejas gritam evocando Jesus. É uma fé irracional — opina o morador”[14].

Ademais, a reportagem mostra que a cidade se torna uma cidade sem lei na hora da prática da farra do boi, pois a bebida alcóolica é vendida sem distinção, e motoristas embriagados estão dispersos pelo local.

Enquanto isto, para um farrista, a farra do boi é a oportunidade de reunir pessoas que não se viam há tempos.

Na segunda notícia[15] (05/04/2014), informou-se que um boi resgatado da farra em Navegantes foi encaminhado para o Matadouro Nova Era, em Itajaí. Assim, releva-se que a decisão do STF não foi capaz de mudar o destino dos bois, a sua morte.

 Ademais, indaga-se que o Ministério Público de Santa Catarina deveria se posicionar quanto a esta questão, tendo em vista ser um protetor legítimo dos interesses dos animais.

A terceira notícia[16](24/04/2014) conta o que aconteceu com o professor aposentado, César de Medeiros Régis, de 63 anos. Régis acusa dois irmãos e um amigo de entrarem em sua casa, no Pântano do Sul, e espancarem ele e seus filhos. De acordo com este Professor "[…] eles cismaram que fui eu quem chamou a Polícia Militar para acabar com a farra do boi que ocorria no campinho de futebol no acesso à praia dos Açores (Sul da Ilha)".

Ademais, outra notícia de 22/03/2014[17] mostra que a prática de uma farra do boi no Pântano do Sul, em Florianópolis, terminou em confronto com os policiais, sendo que os farristas jogaram pedras e garrafas nas guarnições, que respondeu com tiros de borracha e granadas de efeito moral.

Após esta exposição, colacionar-se-ão alguns depoimentos presentes no livro do Professor Adauto de Melo, sobre o que os farristas pensam sobre a proibição da farra do boi pelo STF. Afinal, o que esta decisão significou para eles? Notem-se algumas manifestações sobre abaixo:

Ainda é boa a brincadeira.. Não vai acabar nunca não, a gente acaba, mas a farra do boi continua, já era do tempo dos meus avôs, do tempo em se que trazia o boi por esses matos de deus, imagina agora que tá tudo fácil.. Não se acaba nunca não vai durar muito tempo… (Depoimento de Teodomiro Santos, em julho de 1998. Ganchos do meio, Governador Celso Ramos. p. 125).

Podem até nos impedir de brincar na semana santa, mas a brincadeira é para nós coisa santa também. Por isso, brincaremos em outras datas, porque isso é nossa tradição e ninguém vai acabar com a nossa tradição (Depoimento de farrista que pediu para não ser identificado. Abril de 2012. Ganchos do Meio, Governador Celso Ramos. p. 125).

"Rio de Janeiro: Domingo sangrento e tráfico toma conta da cidade".

"São Paulo. A cada minuto 60 carros são roubados".

"Governador Celso Ramos. Exemplo de paz e alegria. Assim é feita nossa festa com muita união sempre. Vamos lutar a favor da nossa tradição".

"Brasília. Corrupção escândalos dos cartões com o dinheiro do povo".

"Paraná. Assaltante mata menina e doméstica a facada".

(Imagem trazida em camiseta, em que se compara a situação da comunidade de Celso Ramos com outros lugares do Brasil)

(Todas as informações estão inseridas em: AMARAL, 2012, p. 125).

O presente trabalho almeja finalizar esta seção com a seguinte reflexão: existem alternativas para a farra do boi, como é o caso do boi de mamão, ou a brincadeira do boi de pau[18]. Ademais, como restou demonstrado, a farra modificou-se com o tempo, como também outros costumes presentes na região, e que assim, por que a mesma não poderia se transformar também em prol do boi?

Como indicam MARTINS e MACHADO (s/d, p. 12), problemas como educação formal, espaço urbano, organização independente, violência, intervenção do aparelho do Estado, preservação do meio ambiente, cultura, resistência popular, podem ser pesquisados a partir da farra do boi.  Alguns destes problemas foram observados neste trabalho, contudo, de forma não exauriente, tendo em vista a complexidade que é o caso da proibição da farra do boi em um território tão peculiar, que é o de Ganchos. Houve quem achasse que mudar o nome da prática, de “Farra”, para a antiga “Brincadeira”, poderia amenizar a polêmica e carga semântica presente na Farra, concebida hoje como prática cruel, como demonstra a decisão do STF sobre.

Evidencia-se que “a Brincadeira do Boi” está inserida no capítulo “Sentidos e sentimentos da memória”, do Professor Adauto Amaral (2012), em que constam também o caso das parteiras e o das bruxas e assombrações.

Indaga-se assim, em até que medida a Farra do boi é hoje o que era antes, se a magia é a mesma, ou se a sua alegria compartilhada, hoje com mais feição de farra, com pessoas de todos os lugares, tocando-se música alta e bebidas industrializadas. A única certeza que permanece no tempo é a referente ao seu objeto. Faltam olhares também ao boi. E isto não quer dizer que o boi capturado deva ser levado a um frigorífico, como já foi feito em Santa Catarina. Deve-se ir além disto, ou do contrário, de nada adianta a proibição da farra, já que a sua prevenção e repressão não é para preservar o bem-estar do animal, mas apenas para cumprir uma ordem emanada de um acórdão do STF.

Conclusão

O presente artigo visou a observar diferentes aspectos sobre a farra do boi praticada no litoral de Santa Catarina. Ao se deparar com a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF, 1997) e com a literatura sobre a farra, note-se que a mesma pode ser referida como “ritual”, “folguedo”, “festa”, “alegria”, “tradição”, “costume”, dentre outros.

Tendo em vista a complexidade não apenas do que antes era denominado como “brincadeira”, mas também dos aspectos que a envolvem, como a sua convivência com a decisão do STF, que a proibiu, e a transformação que a mesma vem sofrendo com o tempo; o presente trabalho não almejou exaurir e nem buscar uma solução sobre como a prática poderia continuar a existir, e, aliás, ainda existe, como se foi constatado por meio de algumas notícias observadas neste trabalho.

É sabido que a prática da farra do boi traz alegria, segundo os farristas, sim, ela é dotada de história e de tradição, sim, ela é cultura. Ocorre que, em meio a tantos “sins” para algo abstrato, o presente trabalho almeja trazer outra constatação possível, sendo ela de forma facilmente e factualmente detectada: sim, o boi sofre na prática da farra do boi.

A farra do boi, conforme foi exposto, sofreu modificações no tempo, decorrentes não apenas da urbanização de Santa Catarina, da sua divulgação pela mídia em todo Brasil, ou da decisão do STF (1997), dentre outros. A transformação foi tanto em termos maiores, como os acima citados, como também em particularidades, como se mostra no fato de que a mesma se transformou mais em bebedeira e em música que não a tradicional, em gente de todos os lugares, sendo transformada assim, não mais em algo mais fechado da comunidade, mas sim em uma festividade que parece mais com um “Carnaval” fora de época.

O objetivo deste trabalho é de crítica a quem coube zelar pelo pós-decisão do STF,como é o caso do Ministério Público do Estado de Santa Catarina e a aparato policial, dentre outros órgãos governamentais, que em vez de considerarem o bem-estar do animal, muitas vezes mataram o boi (caso do seu aparato policial) a tiro ou anuíram em conduzi-lo a um frigorífico.

Existe ainda o Governo, que se utiliza da farra quando deseja obter popularidade junto à população, mas em teoria, continua com o seu discurso de que está fazendo de tudo para combater a farra.

Se tal fato ocorre, então, de pouco adianta a decisão do STF, sendo que esta, em vez de ter significado “olhem para o boi, literalmente um objeto da farra”, apenas revela um “obedeçam a um acórdão do STF”.

Tal dever cego a um acórdão do STF não levará a uma análise profunda do que envolve a prática da farra do boi. Desta forma, para variar, a melhor iniciativa criada após a proibição da farra do boi pelo STF, a nosso ver, foi parceria com as escolas, sendo ensinado desde cedo que o boi sente dor. Afinal, e não é surpresa, o melhor depoimento colhido para este trabalho sobre o que está acontecendo no local a respeito da prevenção da prática da farra foi justamente o emitido por uma Professora gancheira.

 

Referência
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Notas
[1]Lobisomem: Numa família com 7 filhos homens, o mais velho se transforma em lobisomem (meio lobo-cachorro e meio homem). O lobisomem ataca nas noites de lua cheia e viaja nos mais diversos lugares, no dia seguinte lembra-se de tudo o que fez e de onde esteve. Para se livrar da maldição, o irmão mais velho é obrigada a batizar o mais novo e se isso não acontecer, jamais se livrará, podendo o mais novo também transformar-se.
Bruxa: velha feia, de origem europeia, enfeitiça e atormenta as pessoas, em especial, crianças que não querem dormir. É acometida à mulher (primeira ou sétima filha).
Mulher de branco: Percorre as ruas assustando os moradores, após a meia-noite, em noites de lua cheia;
Bola de luz ou Boi Tatá: Nome dado pelos indígenas ao fenômeno do "fogo fátuo". A bola de luz surge no morro percorrendo todas as ruas.
Bicho da Orelha Mole: Bicho idêntico a um homem, com orelhas grandes, que bate fortemente as orelhas fazendo um barulho estranho. (SIMÃO, 1997, p. 36).

[2]Disponível em: <http://www.cidades.ibge.gov.br/painel/historico.php?lang=&codmun=420230&search=%7Cbiguacu
>. Acesso em 22/07/2014.

[3]Disponível em: <http://www.governadorcelsoramos.sc.gov.br/turismo/item/detalhe/518>. Acesso em 22/07/2014.

[4] Note-se a seguinte notícia como exemplo: Dois bois invadiram hotéis no bairro Ingleses, Norte da Ilha, e assustaram funcionários e hóspedes na quinta e sexta-feira. Tudo indica que os animais estavam fugindo da farra do boi nas comunidades de Ingleses e Santinho. Ninguém ficou ferido e não houve grande prejuízo material. Um dos animais foi capturado e será abatido e incinerado em um frigorífico de Biguaçu. O outro boi não foi encontrado pela polícia. Nenhum farrista foi identificado. Por volta das 13h30 de quinta-feira (21), um boi branco fugia de pessoas que o perseguiam com motos e bicicletas na rua das Gaivotas, próximo à praia de Ingleses. O animal conseguiu se esconder na vegetação em frente à praia.  Três horas mais tarde, o boi tentou sair do matagal, mas, em razão da presença de banhistas no local, acabou correndo em direção a um hotel próximo. (23/04/2011). (Disponível em: <http://m.ndonline.com.br/florianopolis/noticias/8773-dois-bois-invadem-hoteis-na-praia-de-ingleses-no-norte-de-florianopolis.html>. Acesso em: 23/07/2014).

[5] Farristas: os que participam sistematicamente e intensivamente da Farra do Boi (MACHADO; MARTINS, s/d, p. 08).

[6]Sócios: sócio-do-boi: pessoas que contribuem com dinheiro para comprar o boi que vai ser objeto da farra (MACHADO; MARTINS, s/d, p. 07).

[7]A dança do Boi de Mamão é a brincadeira mais cultivada e, por isso mesmo, a mais apreciada dança folclórica da região. Sendo uma das tradições folclóricas mais antigas de Santa Catarina, principalmente nas regiões litorâneas, recebendo maior destaque entre o Natal e o Carnaval. Apresentada em forma de pantomima – uma espécie de teatro gestual, com poucos diálogos no decorrer do ato -, a peça retrata, em tom cômico, uma corrida de touros em arenas, segundo ritos hibéricos, adaptado às práticas juvenis. A história mostra o desespero de Mateus, um vaqueiro simples do interior da Ilha, que, ao ver seu boi de estimação morto, busca um médico e um curandeiro para ressuscitá-lo. Ao fim, o boi volta à vida e todos comemoram com cantorias e danças. Disponível em: <http://www.guiafloripa.com.br/cultura/folclore/brincadeira-boi-de-mamao>. Acesso em: 24/07/2014.

[8]Mangueirão: local cercado de madeira, bambu, ou arame, onde o boi pode ser solto sem que o governo reprima. Em Ganchos, afirmam os autores, já existiu um Prefeito Municipal que, seguindo orientação do Governo do Estado, construiu um "Mangueirão" e comprou bois para soltá-los. A política do Governo do Estado estimulando a brincadeira no Mangueirão, na verdade, tenta liquidar com a farra do boi, transformando-a em tourada (MARTINS; MACHADO, s/d, p. 08). Note-se também, que de acordo com algumas pessoas entrevistadas, a farra do boi acaba sendo apoiada por políticos, tendo em vista a sua popularidade.

[9]soltos – bois que são comprados e objeto da Farra
soltura – momento em que o boi é solto do caminhão em que está sendo transportado (MACHADO; MARTINS, s/d, p. 08).

[10] Maiores informações em: <http://www.worldanimalprotection.org.br/noticias/2009/Luta-contra-a-Farra-do-Boi-registra-avancos.aspx> . Acesso em: 23/07/2014.

[11] Disponível em: <http://www.sc.gov.br/index.php/mais-sobre-seguranca-publica/6144-acoes-de-combate-a-farra-do-boi-serao-intensificadas-em-sc>. Acesso em: 24/07/2014.

[12]Segundo a Wikipedia, o Tempo da Quaresma é o período do ano litúrgico que antecede a Páscoa cristã, sendo celebrado por algumas igrejas cristãs, dentre as quais a Católica, a Ortodoxa, a Anglicana , a Luterana. A expressão Quaresma é originária do latim, quadragesima dies (quadragésimo dia). O adjetivo referente a este período é dito quaresmal ou, mais raro, quadragesimal. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Quaresma>.  Acesso em: 24/07/2014.Acesso em: 24/07/2014.

[13] (Disponível em: <http://diariocatarinense.clicrbs.com.br/sc/noticia/2010/04/reportagem-flagra-farra-do-boi-em-governador-celso-ramos-2863370.html>. Acesso em: 23/07/2014).

[14] (Disponível em: <http://diariocatarinense.clicrbs.com.br/sc/noticia/2010/04/reportagem-flagra-farra-do-boi-em-governador-celso-ramos-2863370.html>. Acesso em: 23/07/2014).

[15] (Disponível em: <http://www.anda.jor.br/05/04/2014/animais-resgatados-farra-boi-sao-enviados-matadouros>. Acesso em: 23/07/2014).

[16] (Disponível em: <http://ndonline.com.br/florianopolis/noticias/161432-peregrinacao-de-um-pai-nas-delegacias-para-pedir-justica.html>. Acesso em: 23/07/2014).

[17] (Disponível em: <http://diariocatarinense.clicrbs.com.br/sc/geral/noticia/2014/03/farra-do-boi-termina-em-confronto-com-a-policia-militar-em-florianopolis-4454064.html>. Acesso em: 23/07/2014).

[18] Outro capítulo do livro do Professor Amaral (2012, p. 90-91) demonstra que a farra do boi não foi a única manifestação que sofreu modificações com o tempo. Em seu capítulo sobre certas memórias, Adauto menciona a Brincadeira com o Boi de pau, que envolvia a representação através de dramatização de várias personagens, música, dança e muita alegria. Esta representação era propícia nos tempos antigos de Ganchos, pois no início de seu povoamento, as casas eram muito simples e possuíam espaços propícios para as apresentações.  Desta forma, as brincadeiras começavam no mês de dezembro e terminavam no dia seis de janeiro, dia dos Santos Reis. O grupo que apresentava visitava várias casas, desenvolvendo-se relações de camaradagem, quando pouco se tinha para se divertir. Ocorre que, com a melhoria das condições habitacionais, e os cuidados que se passou a ter com as casas, a brincadeira foi se limitando a algumas poucas datas. Ademais, a apresentação que antes era feita nos quintais, restou obstaculizada com o fato de que as residências passaram a ser muradas. Assim, com o passar do tempo, as apresentações passaram a se restringir a algumas comunidades mais tradicionais do Município.


Informações Sobre os Autores

Luciana Helena Gonçalves

Professora de Direito da Faculdade Anhanguera Advogada e Mestre em Direito e Desenvolvimento pela Escola de Direito da FGV-SP

Marisa Rossafa

Advogada e Professora do curso de Direito da Faculdade Anhanguera de Taboão da Serra


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