Resumo: O presente artigo analisará o instituto da desídia do servidor público como única hipótese de demissão culposa, percorrendo a conceituação que lhe é dada pela doutrina e jurisprudência trabalhista e administrativista; analisará seus pressupostos e a necessidade do aplicador da sanção administrativa observar os princípios da eficiência para sua caracterização e da proporcionalidade para aplicação da penalidade cabível.
Palavras-chave: Desídia. Demissão culposa. Conceito. Requisitos.
Abstract: This article will review the institute's sloth server as the only hypothesis of culpable dismissal, traversing the concepts given to it by the doctrine and jurisprudence; examine their assumptions and the need of the applicator administrative penalty observe the principles of efficiency to their characterization and application of proportionality to the appropriate penalty.
Keywords: Sloth. Culpable dismissal. Concept. requirements
Sumário: Introdução. I. Conceito do instituto: doutrina trabalhista e administrativista. II. Requisitos da desídia: art. 117, inciso XV, da Lei nº. 8.112/90. Conclusão.
INTRODUÇÃO
A estabilidade no emprego é o sonho de muitos de trabalhadores que batalham por uma vaga no serviço público. Tal garantia protege o servidor de pressões hierárquicas e políticas, e também resguarda a própria administração, assegurando a continuidade dos serviços.
Entretanto, não faltam críticas à estabilidade funcional. Muitos acreditam que ela favorece a baixa qualidade do serviço público, uma vez que o servidor estável não teria compromisso com produtividade e eficiência. Contudo, a própria legislação traz uma série de deveres e proibições que, se não observados, geram punição. Da simples advertência à demissão, tudo depende da natureza e da gravidade da infração, do dano causado, das circunstâncias e dos antecedentes funcionais.
Com efeito, o art. 41 da Constituição da República de 1988 estabelece que o servidor é estável após três anos de exercício no cargo. A partir daí, só pode perder o emprego em três hipóteses: por decisão judicial transitada em julgado, após processo administrativo em que lhe seja assegurada ampla defesa e mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho, na forma de lei complementar, assegurada ampla defesa.
A Lei nº. 8.112/90 – Estatuto do Servidor – institui no art. 116 os deveres dos servidores públicos, e no art. 117 lista as proibições. As penalidades, no art. 127, são seis: advertência, suspensão, demissão, cassação de aposentadoria ou disponibilidade, destituição de cargo em comissão e de função comissionada. Já o art. 132 estabelece os casos em que deve ser aplicada a pena de demissão.
O servidor que descumprir seus deveres ou violar as proibições pode ser punido administrativamente, por meio de Processo Administrativo Disciplinar (PAD).
Na administração pública federal, as demissões são efetivadas com a publicação de portaria assinada pelo ministro de estado ao qual está subordinado o órgão do servidor. O ato do ministro é contestado no Superior Tribunal de Justiça por meio de mandado de segurança.
Diante da gravidade da pena capital, o enquadramento nas irregularidades previstas nos incisos IX a XVI do art. 117 e de todos os incisos do art. 132, todos da Lei nº. 8.112/90 requer a adequação entre o ato configurado e o texto legal e também exige que a conduta tenha sido dolosa, com exceção da desísia, hipótese de demissão culposa. Uma vez configurado o cometimento de alguma dessas hipóteses previstas no art. 132 do citado normativo, a autoridade julgadora não dispõe de discricionariedade para abrandar a pena.
Nesse artigo será analisado o instituto da desídia, hipótese de demissão culposa e importante instrumento contra a ineficiência no serviço público, analisando seu conceito segundo a doutrina trabalhista e administrativista, requisitos, configuração e casos concretos, com o objetivo de elucidar a matéria viabilizando sua aplicação, ainda tímida no âmbito da administração pública federal.
I – CONCEITO DO INSTITUTO: DOUTRINA TRABALHISTA E ADMINISTRATIVISTA
A desídia, como situação fática, é reprovada pela sociedade, tanto nas relações de emprego, quanto no serviço público e o instrumento que a sociedade dispõe para coibir essa conduta danosa é a demissão (justa causa).
No âmbito das relações empregatícias privadas, a desídia está prevista no art. 482 , alínea “e” da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que prevê como justa causa para a rescisão do contrato de trabalho a desídia no desempenho das respectivas funções.
No entanto, delinear seu conteúdo conceitual, notadamente indeterminado, é tarefa inevitável do aplicador encarregado de analisar sua ocorrência. Segundo De Plácido e Silva (1998), a desídia tem o seguinte significado:
“DESÍDIA. Derivado do latim desídia, de desidere (estar ocioso) é tido na terminologia do Direito Trabalhista, como o desleixo, a desatenção, a indolência, com que o emprego executa os serviços que lhe estão afetos.
Classificam-na, mui justamente, em desídia fortuita ou ocasional e desídia habitual. A desídia fortuita ou ocasional, a que pode vir por descuido de momento, por uma desatenção momentânea, não constitui motivo para a despedida do empregado ou trabalhador. É justificável.”
Cumpre trazer à baila, ainda, as definições de renomada doutrina e jurisprudência trabalhista pátria sobre o instituto em análise:
“Desídia (e). É falta culposa, e não dolosa, ligada à negligência; costuma caracterizar-se pela prática ou omissão de vários atos (comparecimento impontual, ausências, produção imperfeita); excepcionalmente poderá estar configurada em um só ato culposo muito grave; se doloso ou querido pertencerá a outra das justas causas”. (CARRION,1995, p.364).
“O empregado labora com desídia no desempenho de suas funções quando o faz com negligência, preguiça, má vontade, displicência, desleixo, indolência, omissão, desatenção, indiferença, desinteresse, relaxamento. A desídia pode também ser considerada um conjunto de pequenas faltas, que mostram a omissão do empregado no serviço, desde que haja repetição dos atos faltosos”. (MARTINS, 2003, p. 358).
“Trata-se de tipo jurídico que remete à idéia de trabalhador negligente, relapso, culposamente improdutivo. A desídia é a desatenção reiterada, o desinteresse contínuo, o desleixo contumaz com as obrigações contratuais”. (DELGADO, 2003, p. 1184).
“Desidioso é o empregado que, na execução do serviço, revela má vontade e pouco zelo”. (SAAD, 1990, p. 326).
“A desídia caracteriza-se pelo atraso do empregado ao serviço, pelas constantes ausências e/ou produção imperfeita. A falta reiterada ao serviço, por si só, é considerada falta grave, pois o empregador não pode contar com os serviços do empregado ausente. Resta evidente quando, após ter sido advertido, o empregado não se corrige”. (SÃO PAULO, 2009)
“O empregado tem a obrigação de ser ativo, diligente e interessado nas tarefas que lhe entregam. A desídia é a violação desse dever: é a negligência, a imprudência, a má vontade revelada pelo empregado na execução de seus encargos.
É, portanto, uma daquelas justas causas que só se realizam dentro das empresas, durante o serviço ou com reflexo no trabalho.
Assume ela mil formas diferentes na vida prática. Os modos mais comuns de revelação da negligência ou da imprudência do empregado são: pouca produção, produção de mercadorias de qualidade inferior, faltas repetidas e injustificadas ao trabalho, chegadas tardias ao serviço, serviços mal executados etc.” (RUSSOMANO, 1990, p. 561).
“Desídia significa desleixo, indiferença, falta de exação no cumprimento do dever, omissão, que pode se configurar quando o empregado chega atrasado reiteradamente ou falta seguidamente sem motivo justificado”. (ALAGOAS, 2002).
Note-se, todavia, que a conduta desidiosa não está restrita às relações empregatícias privadas, existindo também no serviço público. O Estatuto dos Servidores Públicos da União (Lei nº. 8.112, de 11 de dezembro de 1990), em seu art. art. 117, inciso XV[1] proíbe a conduta desidiosa, reservando-lhe a pena capital de demissão (art. 132, inciso XIII), semelhantemente ao que ocorre nos estatutos dos servidores públicos dos outros entes federados.
Observa-se que a definição de desídia abarcada pelos administrativistas se assemelha ao da doutrina trabalhista:
“Desídia é ação contrária à de diligência, de bom desempenho, de zelo que, por sua vez, constituem requisitos justificadores da presença do servidor público, no serviço. É sinônimo de negligência, relaxamento, descaso e incúria”. (GUIMARÃES, 1998, p. 33).
“Em sentido corrente, segundo os léxicos, o termo desídia significa incúria, negligência, desleixo, descaso, indolência, inércia, preguiça, etc. De efeito, infere-se que procede de modo desidioso o servidor público que desenvolve a sua função com negligência, desleixo e incúria”. (COSTA, 2004, p. 397).
“(…) como infração disciplinar, a desídia em sentido técnico, está interligada ao desleixo, à desatenção, à indolência com que o servidor público executa as funções que lhes estão afetas.
Não resta dúvida que a desídia decorre de um comportamento rebelde do servidor público, voltado para um desleixo intencional e voluntário”. (MATTOS, 2008, p. 540-541).
Assim sendo, pode-se entender a desídia como a conduta do servidor público consistente em deixar de cumprir, injustificadamente, as obrigações inerentes ao exercício da função pública, com a finalidade de eliminar ou diminuir a sua carga de trabalho, reduzindo a qualidade ou quantidade do produto de sua atividade, afetando negativamente a eficiência do serviço público. (ALBUQUERQUE, 2007).
Com efeito, a desídia pode também ser considerada um conjunto de pequenas faltas, que mostram a omissão do servidor público no serviço, desde que haja repetição dos atos faltosos.
Segundo José Armando da Costa, a objetividade jurídica tutelada pelo tipo é a normalidade do serviço público vislumbrada sob o particular aspecto da intensidade e eficiência das tarefas públicas postas em prática pelo servidor. Daí por que o elemento material da conduta desidiosa do funcionário se funda na baixa produtividade de suas atribuições e nos eventuais prejuízos causados ao erário. (COSTA, 2004, p. 397).
Arremata o jurista, aduzindo que para a caracterização da proibição disciplinar sub lite não basta, porém, que se constatem as consequências materiais acima referidas, sendo, também, de rigor que ela resulte de uma conduta voluntária reveladora de negligência, imprudência e imperícia (descaso, incúria, falta de zelo etc.) atribuída ao funcionário. (COSTA, 2004, p. 397).
A desídia consiste, por conseguinte, na conduta continuada, repetitiva e reiterada por parte do servidor, marcada, de forma injustificada, pela ineficiência, desatenção, desinteresse, desleixo, indolência, descaso ou incúria no desempenho das atribuições do seu cargo. (CGU, 2011, p. 467).
II – REQUISITOS DA DESÍDIA: ART. 117, INCISO XV, LEI Nº. 8.112/90
O inciso XV do art. 117, da Lei nº. 8.112/90, em razão da subjetividade do conceito, e por referir-se a um proceder de forma desidiosa, exige a habitualidade, o desleixo contínuo para sua configuração. Desse modo, o tipo disciplinar em comento, pressupõe, em regra, a prática reiterada de atos que revelem descaso do servidor no desempenho de suas atribuições. Nesse sentido:
“Não é suficiente para potencial aplicação de responsabilização ao servidor apenas a configuração objetiva de um fato criticável (prejuízo à eficiência administrativa, no caso). Deve-se ainda ter demonstrado o ânimo subjetivo do agente que conduz à necessidade de se configurar que o tal prejuízo decorreu de postura imprudente, imperita ou negligente do servidor, conforme a seguir se justifica.
Em última análise, o resultado da conduta desidiosa do servidor afeta a eficiência da própria administração, prejudicando a qualidade ou a quantidade do serviço prestado pelo agente público. Daí, advém que a desídia não é considerada ilícito de natureza dolosa, pois não é esta a intenção do servidor – afetar a eficiência do serviço público. A desídia não se amolda à definição de ilícito doloso (em que a intenção do autor é atingir o resultado delituoso da conduta). No caso, o servidor tem a intenção de tão-somente diminuir ou eliminar sua própria carga de trabalho, mitigando suas responsabilidades, em conduta que, em relação ao resultado final (ineficiência do serviço público), eiva-se de negligência, de imperícia ou de imprudência. Portanto, a desídia é hipótese de aplicação de pena capital de natureza culposa e nela não se cogita de dolo; a rigor, é a única infração expulsiva de natureza culposa na Lei nº. 8.112/90.” (CGU, 2011, p. 467).
Observe-se que o aplicador da penalidade, ao fazer o juízo de valor da conduta avaliada para apontar ou rejeitar a desídia do servidor, deverá relevar especialmente os princípios da administração pública insculpidos no art. 37 da Constituição da República de 1988, especialmente, os princípios da eficiência e da proporcionalidade, permitindo a adequação da conduta praticada à penalidade aplicada e, ainda, que a demissão restitua a eficiência do serviço lesado, atendendo ao conjunto de interesses públicos envolvidos.
A desídia pressupõe, destarte, os seguintes elementos: i) que o servidor tenha deixado de cumprir, injustificadamente, as obrigações inerentes ao exercício da função pública, tais como a falta de zelo, descumprimento de normativos e insubordinação; ii) que reduza a quantidade ou a qualidade do produto de sua atividade, afetando negativamente a eficiência do serviço público, seja a credibilidade da instituição a qual trabalha ou mesmo, prejuízo material (elementos objetivos); iii) a finalidade de eliminar ou diminuir a sua carga de trabalho (elemento subjetivo); iv) aplicação do princípio da proporcionalidade para sua caracterização (elemento normativo). (ALBUQUERQUE, 2007).
Deste modo, à semelhança do que ocorre nas relações de emprego, a desídia do servidor público pode ser apontada quando o mesmo pratica uma sequência de atos prejudiciais à eficiência do serviço público, com crescente gravidade, até que a demissão seja o meio proporcional para restabelecer a eficiência perdida.
Entretanto, em nome dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, levando-se em conta que se trata de infração sujeita à pena de demissão, o enquadramento da conduta do servidor como desídia exigirá certa gravidade nas consequências, não se cogitando de desídia quando se tratar de uma ou poucas atitudes descuidadas que não importaram em prejuízos relevantes para a atividade administrativa. (CGU, 2011, p. 302).
Importante, dessa forma, a discussão quanto à necessidade ou não de uma conduta reiterada para a configuração da infração. Em outras palavras, discute-se se uma única conduta desidiosa, em função de sua gravidade, pode dar ensejo à aplicação da pena de demissão pela ofensa à proibição prevista no art. 117, inciso XV, da Lei nº. 8.112/90.
Não há dúvidas que, via de regra, a desídia implica um comportamento do servidor que age com descaso em reação ao trabalho, e, portanto, necessita de vários atos de desleixo para se configurar.
Ocorre que não se deve descartar a possibilidade do enquadramento no art. 117, inciso XV, da Lei nº. 8.112/90, tão só pelo fato de que se trata de uma conduta única, devendo-se ponderar a gravidade e circunstância do ato.
Nesse sentido, a desídia pode caracterizar-se também e, excepcionalmente, quando um servidor pratica um único ato que causa grande prejuízo à eficiência do serviço público, de forma que a demissão se torna adequada, necessária e proporcional às circunstâncias[2].
O meio adequado para avaliar a conduta desidiosa é o processo administrativo disciplinar ou sindicância, ambos os instrumentos previstos na Lei nº. 8.112/90, garantida a ampla defesa e o contraditório ao servidor.
Ademais, o poder judiciário pode apreciar tanto a legalidade quanto a legitimidade da aplicação de uma sanção disciplinar, outrora vedado, em razão da reserva do poder discricionário à administração pública[3].
No tocante ao caráter culposo da desídia e a sua relação com o ato de improbidade, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça que a desídia e a negligência não configuram dolo, tampouco dolo eventual, mas indiscutivelmente modalidade de culpa. Tal consideração afasta a configuração de ato de improbidade administrativa por violação de princípios da administração pública, pois não foi demonstrada a indispensável prática dolosa da conduta de atentado aos princípios da administração pública, mas efetiva conduta culposa, o que não permite o reconhecimento de ato de improbidade administrativa previsto no art. 11 da Lei nº. 8.429/92. (BRASIL, 2009).
O Parecer AGU nº. GQ-164, vinculante, citando Mozart Victor Russomano, preleciona que quando a desídia é intencional, como na sabotagem, onde há a ideia preconcebida de causar prejuízos ao empregador, por esse aspecto doloso, ela se identifica com a improbidade. (RUSSOMANO, 1990, p. 561).
Não são, porém, os pequenos lapsos da produção, os pequenos erros técnicos do empregado, as pequenas faltas de atenção que criam a desídia. É indispensável que tal seja repetido muito vezes para haver a justa causa. No entanto, se vamos considerar a desídia através de uma de suas formas mais comuns – ausências injustificadas ao trabalho – é claro que a habitualidade será seu requisito essencial. (RUSSOMANO, 1990, p. 561).
Quanto a desídia e a inassiduidade ao trabalho, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que em se tratando de ato demissionário consistente no abandono de emprego ou inassiduidade ao trabalho, impõe-se averiguar o animus específico do servidor, a fim de avaliar o seu grau de desídia[4]. (BRASIL, 2000).
Ressalte-se que a dificuldade de se conceituar e também de se caracterizar a desídia do servidor público faz com que esse instituto seja pouco utilizado, o que coloca em risco a eficiência do serviço prestado à população.
CONCLUSÃO
Conclui-se, portanto, que apesar do conceito de desídia ser indeterminado, o instituto constitui importante instrumento de combate à odiosa ineficiência no serviço público, razão pela qual seu estudo reclama maiores discussões e amadurecimento para o seu devido manejo, bem como para o atendimento aos princípios insculpidos no art. 37 da Constituição da República de 1988.
Informações Sobre o Autor
Natalia Hallit Moyses
Procuradora Federal. Especialista em Direitos Humanos, Teoria e Filosofia do Direito e em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais