Resumo: O presente artigo visa analisar o conceito (in) elástico atribuído pelo Superior Tribunal de Justiça em duas de suas decisões importantes sobre casos envolvendo agentes públicos.
Palavras-chaves: Improbidade Administrativa. Superior Tribunal de Justiça. Conceito. Violação de Princípios.
Abstract: This article aims to analyze the (in) elastic concept attributed by the Superior Court of Justice in two of its important decisions on cases involving public agents.
Keywords: Administrative improbity. Superior Justice Tribunal. Concept. Violation of Principles.
Sumário: Introdução. 1-Conceito de Improbidade Administrativa. 2- O conceito de Improbidade Administrativa na visão do Superior Tribunal de Justiça. 2.1- O conceito inelástico previsto no RESP 1.558.038/PE. 2.2- O conceito elástico previsto no RESP 1.177.910/SE. Considerações finais. Referências.
Introdução
O Superior Tribunal de Justiça, decidindo acerca de dois casos semelhantes, cada um com as suas peculiaridades práticas, e julgados em períodos bem próximos, trouxe duas visões diferentes no que tange ao conceito (in) elástico de improbidade administrativa quando se trata da prática de abuso de poder ou tortura cometido por agentes públicos no exercício de suas funções. Em ambos os julgados o mesmo Tribunal Superior trouxe posições completamente opostas, porém ambas de forma bem fundamentadas e que polemiza o assunto de modo a atrair, portanto, o debate sobre o tema.
1-Conceito de Improbidade Administrativa
O conceito de improbidade tem sua origem no latim, que segundo De Plácido e Silva, traduz a ideia de má qualidade, imoralidade, malícia. Refere-se à qualidade do homem que não procede bem, por não ser honesto ou que age indignamente, por não ter caráter, que não atua com decência, por ser amoral.
No mesmo sentido de improbidade, tem-se a improbidade administrativa, que seria a má qualidade ou atuação com indecência por parte de um administrador ou funcionário público. Deve-se analisar, no entanto, que o conceito de improbidade para fins de aplicação da Lei. 8.429/92 não se deve ater apenas ao significado de sua etimologia, neste sentido o autor Cleber Masson cita em sua obra o pensamento de Sérgio Turra Sobrare, que diz ser improbidade: “A conceituação baseada em sua raiz etimológica não permite a compreensão exata desse fenômeno, pois transmite a noção de que o ato de improbidade administrativa deva estar imbuído de desonestidade, demarcado com contorno de corrupção, o que nem sempre ocorre. O ato pode ser praticado simplesmente por despreparo e incompetência do agente público, que deveria atuar com o cuidado objetivo exigido, ou seja, mediante conduta culposa.”
A Lei. 8429/92 adota um conceito elástico de improbidade administrativa ao admitir que se configure improbidade administrativa não apenas aquele praticado na modalidade dolosa, mas também o praticado em sua modalidade culposa seja por negligência, imperícia ou imprudência como nos casos de lesão culposa ao erário (art. 10). Assim, podemos observar que o conceito de probidade em comparação ao de moralidade, possui uma feição mais ampla e protetiva, porquanto quando na visão de alguns autores a probidade abrange não apenas a moralidade, mas também a legalidade, impessoalidade, publicidade e a eficiência. Outro fator que corrobora a feição mais elástica do conceito de probidade é que o ato de improbidade cometido em sua modalidade culposa possui punições previstas em Lei, não havendo imoralidade quando se está diante de um ato culposo, pois para configuração da imoralidade exige-se dolo do agente. Esta, inclusive, é a visão dos autores Cleber Masson, Flávio Sátiro e Maria Sylvia Zanella Di Pietro.
2-O conceito de Improbidade Administrativa na visão do Superior Tribunal de Justiça
2.1-O conceito inelástico previsto no RESP 1.558.038/PE
O Superior Tribunal de Justiça no RESP 1.558.038/PE (Informativo 573), trouxe uma visão mais restritiva do conceito de improbidade administrativa, de modo que segundo o posicionamento neste julgado, não há improbidade administrativa, ainda que praticado por agente público no exercício de suas funções e que este ato enseje abuso de autoridade tipificado na Lei 4.898/65, quando deste ato não haja lesão aos cofres públicos, haja vista a inelasticidade do conceito de improbidade administrativa. Veja que o julgado considera improbidade administrativa apenas no sentido de lesão ao erário ou enriquecimento ilícito, pouco fazendo menção à existência de violação de princípios, que inclusive possui previsão na própria Lei. 8.429/92. Frisa-se que para o Superior Tribunal de Justiça, neste julgado, só há improbidade, quando há diretamente ofensa aos cofres públicos. Neste sentido vale a pena transcrever o julgado ipsis litteris:
“Não ensejam o reconhecimento de ato de improbidade administrativa (Lei 8.429/1992) eventuais abusos perpetrados por agentes públicos durante abordagem policial, caso os ofendidos pela conduta sejam particulares que não estavam no exercício de função pública. O fato de a probidade ser atributo de toda atuação do agente público pode suscitar o equívoco interpretativo de que qualquer falta por ele praticada, por si só, representaria quebra desse atributo e, com isso, o sujeitaria às sanções da Lei 8.429/1992. Contudo, o conceito jurídico de ato de improbidade administrativa, por ser circulante no ambiente do direito sancionador, não é daqueles que a doutrina chama de elásticos, isto é, daqueles que podem ser ampliados para abranger situações que não tenham sido contempladas no momento da sua definição. Dessa forma, considerando o inelástico conceito de improbidade, vê-se que o referencial da Lei 8.429/1992 é o ato do agente público frente à coisa pública a que foi chamado a administrar. Logo, somente se classificam como atos de improbidade administrativa as condutas de servidores públicos que causam vilipêndio aos cofres públicos ou promovem o enriquecimento ilícito do próprio agente ou de terceiros, efeitos inocorrentes na hipótese. Assim, sem pretender realizar um transverso enquadramento legal, mas apenas descortinar uma correta exegese, verifica-se que a previsão do art. 4º, "h", da Lei 4.898/1965, segundo o qual constitui abuso de autoridade "o ato lesivo da honra ou do patrimônio de pessoa natural ou jurídica, quando praticado com abuso ou desvio de poder ou sem competência legal", está muito mais próxima do caso – por regular o direito de representação do cidadão frente a autoridades que, no exercício de suas funções, cometerem abusos (art. 1º) -, de modo que não há falar-se em incidência da Lei de Improbidade Administrativa. REsp 1.558.038-PE, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em 27/10/2015, DJe 9/11/2015”.
Assim, como já enfatizado, o julgado traz uma análise em dissonância com o que prevê a própria legislação brasileira, pois desconsidera a existência do próprio art. 11 da Lei de Improbidade, que traz um rol exemplificativo de violação aos princípios da Administração Púlica.
2.2-O conceito elástico previsto no RESP 1.177.910/SE
O Superior Tribunal de Justiça, julgando o RESP 1.177.910/SE (Informativo 577) trouxe posição completamente oposta acerca do conceito de Improbidade Administrativa. Desta vez o referido Tribunal Superior traz um conceito elástico e considerando a existência de violação de princípios existentes na Lei. 8429/92. Veja que o caso julgado não é completamente idêntico, pois não versa sobre abuso de autoridade, mas sim tortura praticada por agentes públicos. Outro ponto preponderante é o de que o preso se encontrava custodiado em delegacia, isto é, local onde acarreta responsabilidade objetiva estatal quando há ofensa à integridade física ao preso. Neste sentido vale também destacar o entendimento adotado pelo STJ:
“DIREITO ADMINISTRATIVO. CARACTERIZAÇÃO DE TORTURA COMO ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. A tortura de preso custodiado em delegacia praticada por policial constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública. O legislador estabeleceu premissa que deve orientar o agente público em toda a sua atividade, a saber: "Art. 4° Os agentes públicos de qualquer nível ou hierarquia são obrigados a velar pela estrita observância dos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade no trato dos assuntos que lhe são afetos". Em reforço, o art. 11, I, da mesma lei, reitera que configura improbidade a violação a quaisquer princípios da administração, bem como a deslealdade às instituições, notadamente a prática de ato visando a fim proibido em lei ou regulamento. Tais disposições evidenciam que o legislador teve preocupação redobrada em estabelecer que a grave desobediência – por parte de agentes públicos – ao sistema normativo em vigor pode significar ato de improbidade. Com base nessas premissas, a Segunda Turma já teve oportunidade de decidir que "A Lei 8.429/1992 objetiva coibir, punir e afastar da atividade pública todos os agentes que demonstraram pouco apreço pelo princípio da juridicidade, denotando uma degeneração de caráter incompatível com a natureza da atividade desenvolvida" (REsp 1.297.021-PR, DJe 20/11/2013). É certo que o STJ, em alguns momentos, mitiga a rigidez da interpretação literal dos dispositivos acima, porque "não se pode confundir improbidade com simples ilegalidade. A improbidade é ilegalidade tipificada e qualificada pelo elemento subjetivo da conduta do agente. Por isso mesmo, a jurisprudência do STJ considera indispensável, para a caracterização de improbidade, que a conduta do agente seja dolosa, para a tipificação das condutas descritas nos artigos 9º e 11 da Lei 8.429/92, ou pelo menos eivada de culpa grave, nas do artigo 10" (AIA 30-AM, Corte Especial, DJe 28/9/2011). A referida mitigação, entretanto, ocorre apenas naqueles casos sem gravidade, sem densidade jurídica relevante e sem demonstração do elemento subjetivo. De qualquer maneira, a detida análise da Lei n. 8.429/1992 demonstra que o legislador, ao dispor sobre o assunto, não determinou expressamente quais seriam as vítimas mediatas ou imediatas da atividade desonesta para fins de configuração do ato como ímprobo. Impôs, sim, que o agente público respeite o sistema jurídico em vigor e o bem comum, que é o fim último da Administração Pública. Essa ausência de menção explícita certamente decorre da compreensão de que o ato ímprobo é, muitas vezes, um fenômeno pluriofensivo, ou seja, ele pode atingir bens jurídicos diversos. Ocorre que o ato que apenas atingir bem privado e individual jamais terá a qualificação de ímprobo, nos termos do ordenamento em vigor. O mesmo não ocorre, entretanto, com o ato que atingir bem/interesse privado e público ao mesmo tempo. Aqui, sim, haverá potencial ocorrência de ato de improbidade. Por isso, o primordial é verificar se, dentre todos os bens atingidos pela postura do agente, existe algum que seja vinculado ao interesse e ao bem público. Se assim for, como consequência imediata, a Administração Pública será vulnerada de forma concomitante. No caso em análise, trata-se de discussão sobre séria arbitrariedade praticada por policial, que, em tese, pode ter significado gravíssimo atentado contra direitos humanos. Com efeito, o respeito aos direitos fundamentais, para além de mera acepção individual, é fundamento da nossa República, conforme o art. 1º, III, da CF, e é objeto de preocupação permanente da Administração Pública, de maneira geral. De tão importante, a prevalência dos direitos humanos, na forma em que disposta no inciso II do art. 4º da CF, é vetor de regência da República Federativa do Brasil nas suas relações internacionais. Não por outra razão, inúmeros são os tratados e convenções assinados pelo nosso Estado a respeito do tema. Dentre vários, lembra-se a Convenção Americana de Direito Humanos (promulgada pelo Decreto n. 678/1992), que já no seu art. 1º, dispõe explicitamente que os Estados signatários são obrigados a respeitar as liberdades públicas. E, de forma mais eloquente, os arts. 5º e 7º da referida convenção reforçam as suas disposições introdutórias ao prever, respectivamente, o "Direito à integridade pessoal" e o "Direito à liberdade pessoal". A essas previsões, é oportuno ressaltar que o art. 144 da CF é taxativo sobre as atribuições gerais das forças de segurança na missão de proteger os direitos e garantias acima citados. Além do mais, é injustificável pretender que os atos mais gravosos à dignidade da pessoa humana e aos direitos humanos, entre os quais a tortura, praticados por servidores públicos, mormente policiais armados, sejam punidos apenas no âmbito disciplinar, civil e penal, afastando-se a aplicação da Lei da Improbidade Administrativa. Essas práticas ofendem diretamente a Administração Pública, porque o Estado brasileiro tem a obrigação de garantir a integridade física, psíquica e moral de todos, sob pena de inúmeros reflexos jurídicos, inclusive na ordem internacional. Pondere-se que o agente público incumbido da missão de garantir o respeito à ordem pública, como é o caso do policial, ao descumprir com suas obrigações legais e constitucionais de forma frontal, mais que atentar apenas contra um indivíduo, atinge toda a coletividade e a própria corporação a que pertence de forma imediata. Ademais, pertinente reforçar que o legislador, ao prever que constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de lealdade às instituições, findou por tornar de interesse público, e da própria Administração em si, a proteção da imagem e das atribuições dos entes/entidades públicas. Disso resulta que qualquer atividade atentatória a esse bem por parte de agentes públicos tem a potencialidade de ser considerada como improbidade administrativa. Afora isso, a tortura perpetrada por policiais contra presos mantidos sob a sua custódia tem outro reflexo jurídico imediato. Ao agir de tal forma, o agente público cria, de maneira praticamente automática, obrigação ao Estado, que é o dever de indenizar, nos termos do art. 37, § 6º, da CF. Na hipótese em análise, o ato ímprobo caracteriza-se quando se constata que a vítima foi torturada em instalação pública, ou melhor, em delegacia de polícia. Por fim, violência policial arbitrária não é ato apenas contra o particular-vítima, mas sim contra a própria Administração Pública, ferindo suas bases de legitimidade e respeitabilidade. Tanto é assim que essas condutas são tipificadas, entre outros estatutos, no art. 322 do CP, que integra o Capítulo I ("Dos Crimes Praticados por Funcionário Público contra a Administração Pública"), que por sua vez está inserido no Título XI ("Dos Crimes contra a Administração Pública"), e também nos arts. 3º e 4º da Lei n. 4.898/1965, que trata do abuso de autoridade. Em síntese, atentado à vida e à liberdade individual de particulares, praticado por agentes públicos armados – incluindo tortura, prisão ilegal e "justiciamento" –, afora repercussões nas esferas penal, civil e disciplinar, pode configurar improbidade administrativa, porque, além de atingir a pessoa-vítima, alcança, simultaneamente, interesses caros à Administração em geral, às instituições de segurança pública em especial, e ao próprio Estado Democrático de Direito. Precedente citado: REsp 1.081.743-MG, Segunda Turma, julgado em 24/3/2015. REsp 1.177.910-SE, Rel. Ministro Herman Benjamin, julgado em 26/8/2015, DJe 17/2/2016. 1ª Seção.”
Vejamos que esta decisão traz um conceito amplo de improbidade administrativa em consonância com o que prevê a própria Lei que regula as hipóteses de violações aos princípios da Administração Pública.
Considerações finais
Diante do exposto, observa-se que os julgados possuem peculiaridades interessantes e que apesar da similitude em vários pontos, tiveram desfechos diversos, por tratarem de casos concretos. Ao que parece, apesar do pequeno lapso temporal entre os julgados, o julgado mais recente, que é o que admite a elasticidade do conceito de improbidade administrativa, que vem sendo admitido como prevalecente, no entanto, as situações foram analisadas em caso concreto e nada impede o mesmo Tribunal Superior decidir no mesmo sentido quando se deparar com outro caso envolvendo abuso de autoridade e corroborar seu posicionamento pela inelasticidade do conceito de improbidade.
Informações Sobre o Autor
João Gabriel Cardoso
Advogado. Pós-graduado em Direito Administrativo pela Faculdade de Ciências Wenceslau Braz. Aprovado no concurso público de provas e títulos para o cargo de Delegado de Polícia Civil do Estado do Ceará