A legitimidade da parte que comunica a transgressão disciplinar militar

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Resumo: O presente artigo proporciona discussão e análise sobre situação bastante emblemática no meio policial militar. Aquela em que um superior hierárquico, em tese, presencia a prática de uma Transgressão Disciplinar e não há no local qualquer outra testemunha que presencie a conduta. Trata-se de um questionamento novo, isso frente à tradicional postura do militarismo, e até por isso, poucos doutrinadores aventuraram-se nessas veredas. O que consta da norma posta, não raras vezes, não se mostra suficiente para dirimir questões que surgem a partir de casos concretos. Com estes conceitos, o texto apresenta uma abordagem estribada em parâmetros seguros, tendo em vista, ser a questão, ponto de divergência administrativa e judiciária. 

Palavras-chave: comunicação disciplinar, legitimidade, procedimento administrativo, transgressão disciplinar, veracidade.

Introdução:

O Código de Ética e Disciplina dos Militares do Estado de Minas Gerais [Lei 14.310/2002], em seu Artigo 56, assim dita:

“A Comunicação Disciplinar é a formalização escrita, assinada por militar e dirigida à autoridade competente, acerca de ato ou fato contrário à disciplina”.

No mesmo artigo, já em seu Parágrafo 1º, estipula-se as condições mínimas de legitimidade do ato disciplinar:

“A Comunicação Disciplinar será clara, concisa e precisa, sem comentários ou opiniões pessoais, e conterá os dados que permitirem identificar o fato e as pessoas ou coisas envolvidas, bem como o local, a data e a hora da ocorrência”.

Percorrendo outras fontes, regulamentos e códigos disciplinares de outras instituições militares dos Estados brasileiros, e até mesmo das Forças Armadas, fácil constatar que a formação legislativa imposta à Comunicação Disciplinar, é a mesma, cabendo tão somente, em alguns casos, uma divergência na nomenclatura utilizada em alguns diplomas.

Discorrer sobre a legitimidade da Parte comunicante de uma Transgressão Disciplinar Policial Militar, bem como, apontar suas responsabilidades frente à formação de um ato administrativo, com certeza é adentrar nas raízes do próprio procedimento administrativo; ou seja, no seu fator de sustentação, de sua metodologia, o que é fundamental para dar substância e sustentação ao mesmo.

A Presunção ‘Juris Tantum’:

Tratando, pois, a Transgressão Disciplinar como núcleo formador de um ato administrativo, posto que se trata de um evento apto a produzir efeitos jurídicos que decorrem da vontade, assim, dispõe de atributos próprios dos atos administrativos, o principal deles, a presunção de legitimidade. Digno de nota é que a presunção de legitimidade possui um caráter instrumental em relação aos demais atributos, pois a imperatividade, a exigibilidade e a auto-executoriedade dependem daquele. Presunção de legitimidade é atributo específico dos atos administrativos, pois além de lhes conferir validade, autoriza que se presumam legítimos. É certo que tal presunção será sempre ‘juris tantum’, visto que, além de admitir prova em contrário, havendo irregularidade ou ilegalidade na Comunicação da Transgressão Disciplinar, será declarada sua invalidade pela própria Administração Militar ou pelo Poder Judiciário, em último caso.

Neste compasso, muitos são os casos em que, por algum motivo, o signatário da Comunicação Disciplinar não é capaz de coligir no documento dados relativos à identidade do infrator ou circunstâncias mínimas relativas à falta, ou ainda, até mesmo, sugerir condições mínimas para a identificação do fato, surgirá, então, a necessidade de um feito pré-processual, apuratório, capaz de ministrar à Administração Militar elementos essenciais para deflagração da ação disciplinar.

Acerca desta hipótese, Alexandre Henriques da Costa assevera que:

“o superior hierárquico comunicante tem interesse direto na causa por ser o ofendido material da transgressão disciplinar cometida”.[1] [1]

No mesmo discurso o autor continua:

“neste caso, a comunicação disciplinar não deterá a presunção de veracidade, pois lhe falta principalmente o requisito da impessoalidade. Entretanto, se não tiver interesse direto na causa disciplinar, a sua comunicação disciplinar deterá a presunção ‘juris tantum’ de veracidade”.[2] [2]

 

Ora, a expressão latina ‘juris tantum’, pode ser traduzida como direito que resulta de. – Também diz respeito às presunções jurídicas. Presunção ‘juris tantum’ é uma presunção relativa, ou seja, diversamente da presunção absoluta, admite comprovação em contrário. Ocorre quando, numa situação hipotética, algo deve ser, mas ainda não o é, e sendo confrontada, mesmo que por questões também relativas, mas que possuam presunções concretas, encontrar-se-á apenas em um estágio puramente conceitual.

 

Partindo de tal pressuposto verifica-se que alegações citadas em declarações, a maioria das vezes, pode se tornar insustentável. Veja que, a Comunicação Disciplinar, mesmo aquela que está sendo apontada por Comunicante que não tenha “interesse direto na causa”, porquanto ter uma presunção de veracidade, continua ligada ao princípio de uma verdade relativa; verdade esta que inevitavelmente deverá chegar a uma verdade palpável, capaz de substanciar fatos que permitam identificar a transgressão comunicada; isso, seja, através de dados concretos, e não meramente presumíveis.

 A Teoria dos Motivos Determinantes:

Cabe dizer então que, a Comunicação Disciplinar é um ‘ato administrativo duplo’, que pode constituir um direito; ou seja, é um ato, que mesmo com sua presunção ‘júris tantum’, necessita da complementação de outros atos que irão dar estabilidade jurídica/administrativa a um fato até então de resultados aleatórios – ou seja, para se aperfeiçoar, e si auto afirmar, necessita além da uma ratificação por um outro órgão [ato], tem a obrigação funcional de paridade [igualdade jurídica administrativa comprobatória] com um outro método de legalidade, firmando a bilateralidade necessária ao procedimento ou ao processo.

Em esclarecimento; os fatos alegados em uma Comunicação Disciplinar, ou em uma apuração disciplinar [ato administrativo], mesmo sendo relatados por um superior hierárquico que não tenha ligação direta na causa, e sendo legalmente questionado, por quem de direito, inevitavelmente necessitarão de comprovação fática; antes disso, juridicamente e administrativamente, não poderão ser tidos como verdade real.

“A transcrição, na comunicação disciplinar, das normas supostamente violadas facilita a defesa do acusado, por conferir maior precisão à imputação formalizada, ao demonstrar as razões pelas quais o fato imputado constitui transgressão disciplinar. – Não há ilegalidade na persecução administrativa iniciada por meio de denúncia anônima, bem como na punição lastreada na confirmação do fato imputado pelo acusado, quando este não pugnar pela produção de provas que desqualifiquem a comunicação disciplinar […]” – [TJM/MG – Processo 1445/09 (AC)/3ª AJME. Relator: Juiz Cel BM Osmar Duarte Marcelino] [gn]

Incontestavelmente os processos disciplinares policiais militares, assim como todo e qualquer procedimento disciplinar, são regidos pelo princípio da verdade material; este, designado para alcançar uma verdade incontestável por meio de procedimentos que não possuem partes, mas apenas interessados, entre os quais se destaca a própria Administração Policial Militar.

Disso resulta que o interesse da Administração Policial Militar em alcançar o objeto de um procedimento administrativo calcado na verdade real é interesse público geral, cuja finalidade, a própria Administração Policial Militar não pode o deixar de perseguir, competindo-lhe, inclusive, pesquisar e produzir as provas que serão apreciadas por ela mesma. É este o sentido do princípio da verdade material que impõe à autoridade competente o dever de motivar o ato punitivo com provas hábeis a demonstrar o enquadramento do fato à norma.

Este é o sentido, acertado da ‘Teoria dos Motivos Determinantes’, que tem origens na jurisprudência do Conselho de Estado Francês. Já em 1864 houve a primeira introdução teórica sobre o tema, quando a magistratura francesa admitiu a revisão de um ato administrativo por considerar que houve discricionariedade do administrador para atingir um fim diferente, daquele substanciado em provas. A citada teoria é amplamente aplicada no direito brasileiro, segundo a qual:

“[…] o motivo do ato administrativo deve sempre guardar compatibilidade com a situação que gerou a manifestação da vontade. E não se afigura estranho que se chegue a esta conclusão: se o motivo se conceitua como a própria situação de fato que impele a vontade do administrador, a inexistência desta situação provoca a invalidade do ato.

[…] Mesmo que um ato seja discricionário, não exigindo, portanto, expressa motivação, esta, se existir, passa a vincular o agente aos termos em que foi mencionada. Se o interessado comprovar que inexiste a realidade fática mencionada no ato como determinante da vontade, estará ele irremediavelmente inquinado de vício de ilegalidade”[3]. [3]

Assim sendo… A simples declaração de uma testemunha, ou mesmo a proposta de ação disciplinar por superior hierárquico, não é prova incontestável de uma Transgressão Disciplinar, e sendo estas questionadas, tem-se a legalidade do fato há ser apurado, dependência jurídica e administrativa de provas materiais, periciais ou testemunhais

Partindo do raciocínio exposto, dentro do mesmo Código de Ética e Disciplina dos Militares de Minas Gerais, já anteriormente citado, e que é apenas um norte na questão aqui em análise – já que sintetiza, de maneira doutrinária, boa parte dos princípios policiais militares do país –, é encontrada regulamentação que reafirma tal entendimento, até aqui parte deste estudo técnico. O Artigo 11, ao descrever a Transgressão Disciplinar, indica tratar-se de:

“ofensa concreta aos princípios da ética…” […]

Não se fala em presunção, mas sim em afronta concreta, substancial. Veja que o posicionamento de decisões judiciais corrobora com o apontamento: a jurisprudência do Tribunal de Justiça Militar do Estado de Minas Gerais, assim se posiciona sobre o tema:

“A validade do ato administrativo está vinculada à existência e à veracidade dos motivos apontados como fundamentos para a sua adoção, por força da teoria dos motivos determinantes”. – [TJM/MG – Processo 1116/09 – 2ª AJME. Relator: Juiz Fernando Armando Ribeiro]

“… as testemunhas também são contraditórias quanto a ter ele dito expressões injuriosas.

A condenação exige a certeza e não basta, sequer, a alta probabilidade, que é apenas um juízo de nossa mente em torno da existência de uma certa realidade, devendo prevalecer o princípio do ‘in dubio pro réu’”. – [TJM/MG – Apelação 2206 – Relator: Décio de Carvalho Mitre]

Esse mesmo é o entendimento das decisões administrativas consolidadas na Polícia Militar de Minas Gerais, mais precisamente em pauta da 15ª Região de Polícia Militar; que assim decide sobre tema similar no Boletim Reservado nº. 54/2010, de 29 de dezembro de 2010:

“Embora a testemunha inserta à folha 16 tenha afirmado ter visto o recorrente disparar arma de fogo, as dúvidas geradas pelos depoimentos das demais testemunhas, não permitem sua responsabilização, face à ausência de prova material…”

Conclusão:

Por fim, apresentada a argumentação, cabe, em termos de conclusão, expor que o tema é bastante controverso, necessitando de maior estudo, e quem sabe uma discussão mais clara entre doutrinadores e juristas do Direito Administrativo Militar. Mesmo assim, claro está que existem contornos jurídicos/administrativos sedimentados que orientam por uma postura mais clara e dinâmica frente à Comunicação Disciplinar como formadora de um ato administrativo.

Apresentar-se diante de uma postura apenas discricionária, na modernidade jurídica em que o Estado Brasileiro está se consolidando, não sustenta a condição de uma Administração Policial Militar num Estado Democrático de Direito.

A discricionariedade administrativa; a condição relativa de veracidade exposta pela Parte que presta o comunicado disciplinar, mesmo estando com vínculo na Presunção ‘juris tantum’, como apontado, não podem ser vistas como verdades incondicionais, isso, seja pela relação teórica [e prática] dos ‘Motivos Determinantes’, ou mesmo pela própria consolidação da Administração Policial Militar como elo fundamental entre direito e constitucionalidade.   

 

Notas:
[1] Manual do Procedimento Disciplinar. 1. Ed. São Paulo: Suprema Cultura, 2006; pág. 61

[2] Obra citada; pág. 62.

[3] FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. 22. Ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2009; pág. 112/113.


Informações Sobre o Autor

Eder Machado Silva

Policial Militar da Polícia Militar de Minas Gerais. Bacharel em direito e filosofia – com especialização em processo civil e direito militar. Mestrando em Antropologia. Autor de livros jurídicos e artigos em revistas e sites especializados. Membro titular da Academia de Letras de Teófilo Otoni/MG


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