Valdemiro Adauto de Souza
RESUMO
O presente trabalho dedica-se à uma reflexão sobre a (não) solidariedade dos Entes Federativos (União, Estados-Membros e Municípios) na prestação de Assistência Farmacêutica à população como consequência da consagração do direito universal à Saúde pela Constituição Federal de 1988. Com efeito, a jurisprudência tem reiteradamente considerado que, haja vista ser a Saúde um direito de todos e dever do Estado, pode-se exigir de quaisquer dos três Entes o fornecimento de medicamentos. Não obstante, a própria Constituição estabelece que a Saúde Pública será prestada por um Sistema Único de Saúde, integrado por todos os Entes da Federação de forma hierarquizada e coordenada. E disciplinando o funcionamento (e distribuição de tarefas) deste Sistema Único, foram editadas um conjunto de regras infraconstitucionais. Deste modo, a aferição da (não) solidariedade parte de uma análise da Constituição Federal de 1988 no que toca ao tratamento dispensado à pessoa humana, à Saúde e à sua gestão. Segue perquirindo o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal, sobre o tema. E, por fim, se inclina a um exame da legislação infraconstitucional que regulamenta o Sistema Único de Saúde e a Assistência Farmacêutica à população.
PALAVRAS-CHAVE: Saúde – Assistência Farmacêutica – Solidariedade – Entes Federativos.
ABSTRACT
The present work is dedicated to a reflection on the (non) solidarity of the Federative (Union, Member States and municipalities) in the pharmaceutical assistance to the population as a consequence of the consecration of the universal right to health by The Federal Constitution of 1988. Indeed, the jurisprudence has repeatedly considered that, being a health right of all and duty of the State, can require of any of the three Loved the supply of medicines. Nevertheless, the Constitution itself stipulates that public health will be provided by a unified Health System, integrated by all hierarchical form Federation Ones and coordinated. And disciplining the functioning (and distribution of tasks) of this unique system, have been edited a set of infra-constitutional rules. In this way, the measurement of (not) solidarity part of an analysis of the 1988 Federal Constitution with regard to the treatment to the human person, to health and to your management. Follow keeping an eye on the placement of the Superior Court of Justice and the Supreme Court, on the topic. And, finally, leans over to an examination of the infra-legislation that regulates the health system and the Pharmaceutical Assistance to the population.
Keywords: Health – Pharmaceutical Assistance – Solidarity – Federative Entities.
Sumário: Introdução; 1 A Constituição Federal de 1988: Reflexões sobre Estado Democrático de Direito, Dignidade da Pessoa Humana e Direito à Saúde; 2 Assistência Farmacêutica: Corolário do Direito à Saúde e Previsão Infraconstitucional; 3 A Compreensão do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça sobre o Direito à Saúde e a Assistência Farmacêutica; 4 O Sistema Único de Saúde (SUS): Matriz Constitucional e Regulamentação Infraconstitucional; 5 A Regulamentação da Assistência Farmacêutica pelo Sistema Único de Saúde (SUS); Considerações Finais; Referências
Introdução
Há um mantra[1] entoado pela jurisprudência brasileira[2] de que, havendo a Constituição Federal de 1988 erigido a Saúde à condição de direito de todos e dever do Estado sem definir as ações ou políticas públicas a serem desempenhadas por cada um dos Entes da Federação, é obrigação solidária da União, Estados-Membros e Municípios atender a população através dos mais variados serviços, dentre os quais, a Assistência Farmacêutica.
O presente trabalho justifica-se pela necessidade de se buscar o fundamento legal dessa solidariedade, ou de normas que exatamente repelem-na ao definirem a formação de um Sistema Único de Saúde, integrado por todos os Entes, com a distribuição ordenada de atribuições.
A sua relevância reside no fato de que com frequência Municípios de pequeno porte têm se deparado com decisões judiciais compelindo-os a fornecerem medicamentos de altíssimo custo, que, ademais da ausência de previsão orçamentária para fazer frente a essas despesas, o desembolso de exacerbados valores em casos particulares pode até mesmo comprometer ações de Saúde Pública direcionadas à população como um todo[3].
Tem-se como objetivo geral demonstrar que a atribuição da concretização da Saúde ao Estado não necessariamente conduz à conclusão de que todas as ações são de responsabilidade solidária da União, Estados-Membros e Municípios. Como objetivos específicos, busca-se compreender a consagração da Saúde como direito universal e a legislação (constitucional e infraconstitucional) que regulamenta o Sistema Único de Saúde, com a divisão de tarefas entre os seus membros.
Para tanto, utiliza-se o método dedutivo, assim compreendido como aquele que parte “de uma verdade universal, para se confirmar um elemento que faz parte desse conjunto maior” (MICHEL, 2015, p.34).
1 A Constituição Federal de 1988: Reflexões sobre Estado Democrático de Direito, Dignidade da Pessoa Humana e Direito à Saúde
Cotejando-se a Constituição Federal de 1988 com as demais Constituições que vigeram no Brasil, verifica-se que pela vez primeira estabeleceu-se um Estado Democrático de Direito e alçou-se a Dignidade da Pessoa Humana à condição de fundamento da própria República[4].
Silva (1995), reportando-se ao regime suplantado pela atual Constituição assinala que outrora priorizava-se a segurança nacional e o próprio regime político, amiúde em detrimento dos direitos dos cidadãos.
Contudo, a partir da redemocratização do País através da Constituição Federal de 1988, seja pela adjetivação dada ao Estado (Democrático) seja pela consagração da Dignidade da Pessoa Humana como pilar da República, busca-se dar ênfase ao cidadão como centro da atuação do poder público. Nesse aspecto, Moraes (2005) observa que a partir da Constituição vigente elencou-se um rol de direitos fundamentais inerentes a todos os cidadãos, com a garantia de condições mínimas para o seu pleno gozo. Para tanto, aliados aos direitos fundamentais previu também a Constituição os direitos sociais: educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados. (BRASIL, 1988).
Os direitos sociais, a propósito, compreendidos como fundamentais “devem regressar ao espaço jurídico-constitucional, e ser considerados como elementos constitucionais essenciais de uma comunidade jurídica bem ordenada” (CANOTILHO, 2008, p. 97). Tavares (2003) observa que esses direitos, classificados como de segunda dimensão, compelem o Poder Público a agir ativamente em proveito dos cidadãos ou segmentos menos favorecidos da Sociedade.
De se destacar que não somente a previsão expressa da Dignidade da Pessoa Humana é uma inovação da atual Constituição brasileira, como também a própria Saúde, eis que até 1988 “nenhum texto constitucional se refere explicitamente à saúde como integrante do interesse público fundante do pacto social” (DALLARI, 1995, p. 23)
É evidente, como observa Paranhos (2007), que a Saúde Pública é um dos requisitos para a existência da Dignidade prevista no art. 1º, III da CF. Contudo, a sua expressa previsão como direito social, e ainda como dever do Estado, ressalta-a como direito universal, oponível por qualquer cidadão em face do Estado.
Nesse último aspecto, observa-se que ademais da consagração da Dignidade da Pessoa Humana (art. 1º, III) e da expressa menção da Saúde como direito social (art. 6º), a Constituição Federal de 1988 ainda estabeleceu que: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (BRASIL, 2018).
A doutrina assinala que essa última norma, apesar do seu conteúdo programático, não pode ser transformada em promessa constitucional inconsequente, sob pena de serem frustradas as justas expectativas da coletividade (NERY JÚNIOR; NERY, 2006).
Além disso, também estabeleceu a Constituição Federal de 1988 que o zelo à Saúde é de competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (art. 23, II).
Deste modo, restam estabelecidas as bases da Saúde como direito social universal, por cujo meio qualquer cidadão pode exigir do Estado as ações ou serviços que se fizerem necessários à sua promoção, proteção, e, especialmente, recuperação.
2 Assistência Farmacêutica: Corolário do Direito à Saúde e Previsão Infraconstitucional
A norma veiculada no art. 196 da Constituição Federal de 1998, além de estabelecer a Saúde como direito de todos e dever do Estado, prossegue garantindo o acesso universal e igualitário às ações e serviços necessários à sua promoção, proteção e recuperação. Deste como, a Assistência Farmacêutica à população, especialmente aos segmentos menos favorecidos, apresenta-se como uma consequência lógica da norma constitucional que garante acesso universal às ações de recuperação da Saúde.
Com o escopo de regulamentar o art. 196 da Constituição Federal de 1988, foi promulgada a Lei 8.080, de 19 de setembro de 1.990, cuja ementa já anuncia: “Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências”. (BRASIL, 1990).
O citado Diploma, que disciplina o funcionamento do Sistema Único de Saúde, sob cujo aspecto se discorrerá com mais propriedade noutro tópico, estabelece textualmente, em seu art. 6º, I, d, que estão inclusas no campo de atuação do Poder Público a execução das ações “de assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica”. (sem destaque no original).
Sob esse ângulo, assinalou o Superior Tribunal de Justiça:
RECURSO ESPECIAL. MANDADO DE SEGURANÇA. FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS. SUS. LEI N. 8.080/90.
O v. acórdão proferido pelo egrégio Tribunal a quo decidiu a questão no âmbito infraconstitucional, notadamente à luz da Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990.
O Sistema Único de Saúde pressupõe a integralidade da assistência, de forma individual ou coletiva, para atender cada caso em todos os níveis de complexidade, razão pela qual, comprovada a necessidade do medicamento para a garantia da vida da paciente, deverá ser ele fornecido. Recurso especial provido. Decisão unânime. (REsp. n. 212.346, Rel. Min. Franciulli Netto, j. em 09 de outubro de 2001.
Assim sendo, o fornecimento de medicamentos à população, como instrumento de recuperação da Saúde, decorre não somente da logicicidade do art. 196 da Constituição Federal de 1988, como também possui expressa previsão na legislação infraconstitucional que o regulamenta.
3 A Compreensão do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça sobre o Direito à Saúde e a Assistência Farmacêutica
O direito à Saúde e, particularmente, o fornecimento de medicamentos (Assistência Farmacêutica) pelo Poder Público têm sido tema de inúmeros recursos submetidos à apreciação do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. Em verdade, é evidente que se a matéria é com frequência enfrentada pelas Cortes Superiores muito mais ainda tem sido examinada pelos juízos de primeira e segunda instâncias (Juízes Singulares e Tribunais de Justiça).
Não por outra razão o Supremo Tribunal Federal reconheceu a repercussão geral[5] e sob esse ângulo julgou o Recurso Extraordinário n. 855.178. No referido julgamento, pronunciou-se no seguinte sentido:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. DIREITO À SAÚDE. TRATAMENTO MÉDICO. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS ENTES FEDERADOS. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. REAFIRMAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA.
O tratamento médico adequado aos necessitados se insere no rol dos deveres do Estado, porquanto responsabilidade solidária dos entes federados. O polo passivo pode ser composto por qualquer um deles, isoladamente, ou conjuntamente. (RE n. 855.178, Rel. Min. Luiz Fux, j. em 05 de março de 2015).
E no voto, assinalou o Ministro Luiz Fux:
O dever de desenvolver políticas públicas que visem à redução de doenças, à promoção, à proteção e à recuperação da saúde está expresso no artigo 196.
A competência comum dos entes da federação para cuidar da saúde consta do art. 23, II, da Constituição. União, Estados, Distrito Federal e Municípios são responsáveis solidários pela saúde, tanto do indivíduo quanto da coletividade e, dessa forma, são legitimados passivos nas demandas cuja causa de pedir é a negativa, pelo SUS (seja pelo gestor municipal, estadual ou federal), de prestações na área de saúde.
O fato de o Sistema Único de Saúde ter descentralizado os serviços e conjugado os recursos financeiros dos entes da federação, com o objetivo de aumentar a qualidade e o acesso aos serviços de saúde, apenas reforça a obrigação solidária e subsidiária entre eles.
Portanto, hodiernamente, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal está pacificada no sentido de que todos os Entes da Federação (União, Estados-Membros e Municípios) têm solidária responsabilidade na reparação da Saúde através do fornecimento de medicamentos.
Em sentido idêntico também tem se manifestado o Superior Tribunal de Justiça, a exemplo da Decisão proferida no Recurso Especial n. 1.689.744:
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. ASSISTÊNCIA MÉDICO-HOSPITALAR. TRATAMENTO FORA DO DOMICÍLIO – TFD. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS ENTES FEDERATIVOS. CONCLUSÃO DO ACÓRDÃO. FATOS E PROVAS. JUÍZO DE VALOR. REVISÃO. SÚMULA 7/STJ.
- É assente o entendimento de que a Saúde Pública consubstancia direito fundamental do homem e dever do Poder Público, expressão que abarca a União, os Estados-membros, o Distrito Federal e os Municípios, todos em conjunto.
- O Superior Tribunal de Justiça, em reiterados precedentes, tem decidido que o funcionamento do Sistema Único de Saúde – SUS é de responsabilidade solidária dos entes federados, de forma que qualquer deles tem legitimidade para figurar no polo passivo de demanda que objetive o acesso a medicamentos.
- Outrossim, se o Tribunal de origem, soberano na análise probatória, decidiu ser o recorrido o detentor do direito ao tratamento fora do domicílio (TFD), não cabe ao STJ adentrar esse mérito, tendo em vista o óbice da Súmula 7/STJ.
- Recurso Especial de que não se conhece. (REsp. 1.689.944, Rel. Min. Herman Benjamin, j. em 17 de outubro de 2017.
Esse julgamento é trazido à baila porque na própria Ementa consta o reiterado pronunciamento do STJ quanto à responsabilidade solidária da União, Estados-Membros e Município no custeio de medicamentos.
Deste modo, observa-se que nas Cortes Superiores (STF e STJ) é pacífica a solidariedade objeto do presente estudo, entendimento compartilhado também pela doutrina (MARTINS, 2008).
4 O Sistema Único de Saúde (SUS): Matriz Constitucional e Regulamentação Infraconstitucional
A Constituição Federal de 1988 ao mesmo tempo em que consagra a Saúde como direito de todos e dever do Estado (art. 196), atribuindo a competência comum pelo seu zelo à União, Estados-Membros e Municípios (art. 23, II), dispõe que “As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único” (art. 197), devendo obedecer, dentre outras diretrizes, a assistência integral e a descentralização.
Por sua vez, o art. 200 prescreve um rol, não taxativo, de atribuições do Sistema Único de Saúde, delegando à legislação infraconstitucional a sua regulamentação, bem como, o estabelecimento de outras tarefas. É o que se infere da leitura do citado dispositivo: “Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei” (sem destaque no original). (BRASIL, 1988).
Nesse diapasão, conforme visto em tópico anterior, foi promulgada a Lei Ordinária n. 8.080, de 19 de setembro de 1990, a fim de disciplinar o funcionamento do Sistema Único de Saúde e as suas ações, dentre as quais, a Assistência Farmacêutica integral (art. 6º, I, d) (BRASIL, 1990). Portanto, a Lei n. 8.080/90 foi editada seguindo a matriz constitucional, isto é, as normas dos art. 197 e 200 da Constituição Federal de 1988.
De acordo com a Lei n. 8.080/90, “O conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público, constitui o Sistema Único de Saúde (SUS)” (art. 4º). (BRASIL, 1990).
No que toca à Assistência Farmacêutica, observa-se que a Lei 8.080/90 atribui à direção nacional do Sistema Único de Saúde a definição e coordenação da assistência de alta complexidade (art. 16, III, a), o apoio técnico e financeiro aos demais Entes (XIII) e a descentralização das ações de saúde (XV); à direção estadual o apoio técnico e financeiro aos Municípios e a execução supletiva das ações e serviços de saúde (art. 17, III); e aos Municípios, gerir e executar os serviços públicos de saúde. (BRASIL, 1990). Portanto, nos termos dos dispositivos mencionados (que na esteira do art. 200 da CF regulamentam a prestação dos serviços e ações de Saúde pelo Estado – art. 196), aos Municípios cabe a gestão primária da saúde, inclusive, a assistência farmacêutica com atuação suplementar dos Estados-Membros, exceto nos casos de alta complexidade, cuja competência é da União. E mesmo à Assistência Farmacêutica pelos Municípios cooperam financeiramente a União e os Estados-Membros, conforme prevê a Lei (BRASIL, 1990).
5 A Regulamentação da Assistência Farmacêutica pelo Sistema Único de Saúde (SUS)
Como visto acima, a Lei n. 8.080/90 foi editada em complemento aos arts. 196 a 200 da Constituição Federal de 1988, isto é, para disciplinar a execução das ações e serviços de Saúde, tal como a Assistência Farmacêutica, e a atuação do Sistema Único de Saúde (SUS) e seus órgãos (ou esferas), federal, estadual e municipal.
Além dos dispositivos já abordados no tópico anterior, foram inseridos na Lei n. 8.080/90 pela Lei n. 12.402, de 28 de abril de 2011 os seguintes preceitos:
Art. 19-M. A assistência terapêutica integral a que se refere a alínea d do inciso I do art. 6o consiste em:
I – dispensação de medicamentos e produtos de interesse para a saúde, cuja prescrição esteja em conformidade com as diretrizes terapêuticas definidas em protocolo clínico para a doença ou o agravo à saúde a ser tratado ou, na falta do protocolo, em conformidade com o disposto no art. 19-P
Pela Lei n. 12.466, de 24 de agosto de 2011, foram ainda previstas as seguintes competências às comissões formadas pelos órgãos dos Entes Federativos responsáveis pela gestão do Sistema Único de Saúde:
Art. 14-A. As Comissões Intergestores Bipartite e Tripartite são reconhecidas como foros de negociação e pactuação entre gestores, quanto aos aspectos operacionais do Sistema Único de Saúde (SUS).
Parágrafo único. A atuação das Comissões Intergestores Bipartite e Tripartite terá por objetivo:
I – decidir sobre os aspectos operacionais, financeiros e administrativos da gestão compartilhada do SUS, em conformidade com a definição da política consubstanciada em planos de saúde, aprovados pelos conselhos de saúde;
II – definir diretrizes, de âmbito nacional, regional e intermunicipal, a respeito da organização das redes de ações e serviços de saúde, principalmente no tocante à sua governança institucional e à integração das ações e serviços dos entes federados;
E regulamentando a Lei n. 8.080/90 foi também editado pelo Presidente da República o Decreto n. 7.508, de 28 de junho de 2011, do qual se extrai, sobre o tema, as seguintes regras:
Art. 25. A Relação Nacional de Medicamentos Essenciais – RENAME compreende a seleção e a padronização de medicamentos indicados para atendimento de doenças ou de agravos no âmbito do SUS.
[…]
Art. 26. O Ministério da Saúde é o órgão competente para dispor sobre a RENAME e os Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas em âmbito nacional, observadas as diretrizes pactuadas pela CIT.
[…]
Art. 28. O acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica pressupõe, cumulativamente:
I – estar o usuário assistido por ações e serviços de saúde do SUS;
II – ter o medicamento sido prescrito por profissional de saúde, no exercício regular de suas funções no SUS;
III – estar a prescrição em conformidade com a RENAME e os Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas ou com a relação específica complementar estadual, distrital ou municipal de medicamentos; e
IV – ter a dispensação ocorrido em unidades indicadas pela direção do SUS.
Com efeito, o Decreto n. 7.508/2011 seguiu a dinâmica da Portaria n. 3.916, de 30 de outubro de 1998, que aprovou a Política Nacional de Medicamentos, prevendo a adoção uma relação nacional de remédios a serem distribuídos pelos Estados-Membros e Municípios com participação financeira da União. A Portaria estabeleceu a seguinte diretriz:
Integram o elenco dos medicamentos essenciais aqueles produtos considerados básicos e indispensáveis para atender a maioria dos problemas de saúde da população. Esses produtos devem estar continuamente disponíveis aos segmentos da sociedade que deles necessitem, nas formas farmacêuticas apropriadas, e compõem uma relação nacional de referência que servirá de base para o direcionamento da produção farmacêutica e para o desenvolvimento científico e tecnológico, bem como para a definição de listas de medicamentos essenciais nos âmbitos estadual e municipal, que deverão ser estabelecidas com o apoio do gestor federal e segundo a situação epidemiológica respectiva.
E em complemento, dispôs:
4.2. Assistência farmacêutica
Em conformidade com as diretrizes relativas à reorientação da assistência farmacêutica anteriormente explicitadas, especialmente no que se refere ao processo de descentralização, as três esferas de Governo assegurarão, nos seus respectivos orçamentos, os recursos para aquisição e distribuição dos medicamentos, de forma direta ou descentralizada.
Nesse contexto, a aquisição de medicamentos será programada pelos estados e municípios de acordo com os critérios técnicos e administrativos referidos no Capítulo 3 “Diretrizes”, tópico 3.3 deste documento. O gestor federal participa do processo de aquisição dos produtos mediante o repasse Fundo-a-Fundo de recursos financeiros e a cooperação técnica.
Por vezes, a Portaria n. 1.897, de 26 de julho de 2017, do Ministério da Saúde, atendendo a diretriz de hierarquização do Sistema Único de Saúde (art. 198 da CF), atualizou a Relação Nacional de Medicamentos (RENAME), dividindo essa relação em: a) Componente Básico de Assistência Farmacêutica – medicamentos distribuídos obrigatoriamente pelos Municípios; b) Componente Estratégico da Assistência Farmacêutica – remédios adquiridos pela União a serem repassados aos Estados-Membros e Distrito Federal para destinação posterior aos Municípios; e, c) Componente Especializado da Assistência Farmacêutica – fármacos com custos mais elevados ou de maior complexidade, divididos em três grupos, de responsabilidade da União, dos Estados-Membros e dos Municípios, respectivamente.
Uma leitura sistêmica, destarte, das normas que disciplinam a Assistência Farmacêutica pelo Sistema Único de Saúde indica que aos Municípios compete adquirir e distribuir aqueles medicamentos elencados no rol do Componente Básico e no Grupo 3 da Componente Especializado; aos Estados-Membros cabe repassar aos Municípios os remédios do Componente Estratégico adquiridos pela União e aqueles elencados no Grupo 2 do Componente Especializado; à União, contribuir financeiramente com os demais entes, adquirir os fármacos do Componente Estratégico e aqueles que integram o Grupo 1 do Componente Especializado.
Por fim, garantindo o regular funcionamento de um sistema hierarquizado e, especialmente, a Assistência Farmacêutica integral, dos Estados-Membros (com o auxílio financeiro da União) é a responsabilidade do fornecimento (suplementar) de todo e qualquer medicamento não previsto na Relação Nacional de Medicamentos (art. 17, III da Lei n. 8.080/90).
Considerações Finais
Encerrada a pesquisa tem-se como importantes algumas considerações: sob o vigente Estado Democrático de Direito a Dignidade da Pessoa Humana foi alçada à condição de fundamento da República. E como consequência, também constitucionalmente foi consagrada a Saúde como direito universal e dever do Estado, de zelo comum à União, Estados-Membros e Municípios. Compreende o direito à Saúde, as ações e serviços necessários à prevenção, promoção e recuperação.
Contudo, sendo evidentemente complexa a prestação de toda a gama de ações e serviços de Saúde, a própria Constituição em vigor previu a criação de um Sistema Único de Saúde a ser integrado, de forma hierarquizada, por órgãos dos três Entes da Federação, delegando à legislação infraconstitucional a sua regulamentação.
Nesse esteio, Leis Ordinárias, Decreto e Portarias foram editados no propósito de preservar o regular funcionamento do Sistema Único de Saúde e garantir, dentre outras coisas, a Assistência Farmacêutica integral à população. Para tanto, estabeleceu-se uma relação de medicamentos a serem fornecidos pelos Municípios, outros pelos Estados-Membros e União, sendo ainda, prevista a assistência suplementar dos Estados-Membros (com a participação financeira da União) naqueles casos não compreendidos nas relações atribuídas a cada um dos Entes Federativos.
A propalada solidariedade, portanto, não se confirma numa leitura sistêmica da legislação, constitucional e infraconstitucional, que rege o funcionamento do Sistema Único de Saúde e a Assistência Farmacêutica.
A propósito, compreender como solidária a responsabilidade da União, Estados-Membros e Municípios para o fornecimento de todo e qualquer medicamento, isto é, admitir-se que qualquer dos Entes pode figurar no polo passivo das demandas judiciais voltadas à obtenção de Assistência Farmacêutica pode pôr em risco as finanças sobretudo do Ente mais frágil, o Município, com o comprometimento de ações de saúde pública, desonerando, por outro lado, aqueles que nas regras do Sistema Único de Saúde são os efetivamente responsáveis (Estados-Membros com auxílio financeiro da União).
Todavia, faz-se necessário assinalar que o Supremo Tribunal Federal (em regime de repercussão geral) e o Superior Tribunal de Justiça (em reiterados julgamentos) têm reafirmado a solidariedade de todos os Entes da Federação no custeio de medicamentos à população.
Referências
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Regulamenta a Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a organização do Sistema Único de Saúde – SUS, o planejamento da saúde, a assistência à saúde e a articulação interfederativa, e dá outras providências. Disponível em http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/decreto/d7508.htm. Acesso em 13 de fevereiro de 2018.
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Informações sobre o autor:
Valdemiro Adauto de Souza
Advogado. Bacharel em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Especialista em Direito Administrativo e Gestão Pública pela Faculdade Cidade Verde (Maringá-PR). Currículo lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/ visualizacv.do?id=K4227103E9
[1] A expressão é utilizada por ROSA (2017) para definir as decisões judiciais que vão sendo repetidas, irrefletidamente, muitas vezes, sem amparo legal. O autor cita, para exemplificar o “princípio in dubio pro societate”, comumente utilizado como fundamento de sentenças de pronúncia, que além de não possuir qualquer previsão legal ofende a presunção de inocência (art. 5º, LVII da CF).
[2] Ilustra essa reiteração jurisprudencial o REsp n. 1.689.944 em cujo julgamento assentou-se, conforme se verá com mais propriedade adiante, que o “Superior Tribunal de Justiça, em reiterados precedentes, tem decidido que o funcionamento do Sistema Único de Saúde – SUS é de responsabilidade solidária dos entes federados, de forma que qualquer deles tem legitimidade para figurar no polo passivo de demanda que objetive o acesso a medicamentos”. (BRASIL, 2017).
[3] Esse tema tem sido objeto de preocupação e debates pela Confederação Nacional dos Municípios, como se depreende da matéria publicada em http://www.cnm.org.br/comunicacao/noticias/stj-decide-por-multa-em-caso-de-descumprimento-de-decisao-judicial-no-fornecimento-de-medicamentos.
[4] Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
[…]
III – a dignidade da pessoa humana; (BRASIL, 2018)
[5] A repercussão geral é reconhecida quando considerada a existência de “questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico que ultrapassem os interesses subjetivos do processo” (art. 1.035, § 1º do Código de Processo Civil) (BRASIL, 2015).