Resumo: Esta argumentação parte do método teórico-explanatório para identificar, através de revisão bibliográfica e jurisprudencial, o processo evolutivo da responsabilidade civil do Estado pelos atos de seus agentes no Direito brasileiro. No intuito de alcançar este objetivo serão apresentadas as principais teorias que tiveram aplicação no Brasil e quais os seus aspectos mais importantes. Logo em seguida serão apontadas algumas interpretações dadas pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça a estas teorias a fim de demonstrar onde há divergência sobre o tema.
Palavras-chave: Direito Administrativo. Responsabilidade Civil. Jurisprudência.
Abstract: This argumentation part of the theoretical explanatory method for to identify through literature review and case, the evolutionary process of the liability of the State for the acts of its agents in the Brazilian Law. In order to achieve this goal will present the main theories that have application in Brazil and what are the most important aspects. Soon afterwards will present some interpretations given by the Supremo Tribunal Federal and the Superior Tribunal de Justiça these theories to demonstrate where there is disagreement on the subject.
Keywords: Administrative Law. Liability. Jurisprudence.
Sumário: Introdução. I. Responsabilidade Civil e administração pública: um resgate histórico. II. Teoria do risco e suas exceções: discussões relevantes nos Tribunais Superiores. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
Este artigo utiliza-se do método teórico-explanatório, com revisão bibliográfica e análise jurisprudencial sobre o tema e visa demonstra a evolução histórica do instituto da responsabilidade civil do Estado referente aos atos de seus prepostos perante terceiros e verificar quais teorias foram e são aplicadas no Direito brasileiro.
Além disso, após a identificação da teoria dominante serão apresentados aspectos jurisprudenciais relevantes que demonstram os pontos controvertidos da aplicação dessa teoria e quais as principais exceções à regra.
I. RESPONSABILIDADE CIVIL E ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: UM RESGATE HISTÓRICO
Inicialmente, antes de adentrar em uma análise jurisprudencial relativa à responsabilidade civil extracontratual das pessoas jurídicas de direito público e das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos é necessário e interessante promover uma abordagem histórica acerca da responsabilidade civil do Estado.
Segundo a doutrina mais apurada, existem pelo menos três vertentes doutrinárias que defendem posicionamentos sobre o dever da Administração Pública de reparar danos causados por seus prepostos.
A primeira delas seria a teoria da irresponsabilidade. De acordo com Priscila Petereit de Paola Gonçalves (2008, p. 261) a Constituição de 1824 promulgada por Dom Pedro I adotava a teoria regalista, a qual determinava que o Estado não detinha qualquer responsabilidade sobre os danos causados por seus agentes a terceiros. Neste contexto, observa-se que o artigo 179, número 29 da Carta de 1824 dispunha que “os empregados públicos são estritamente responsáveis pelos abusos e omissões praticados no exercício de suas funções, e por não fazerem efetivamente responsáveis aos seus subalternos”.
Note-se que esta perspectiva adotada pelo Imperador da época refletia os ideais preconizadores do Estado absolutista vigente, onde o administrador era imbuído de uma espécie de soberania que o afastava de qualquer responsabilização perante seus súditos. De acordo com Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2007) “qualquer responsabilidade atribuída ao Estado significaria colocá-lo no mesmo nível que seu súdito, em desrespeito à sua soberania”.
É importante esclarecer, conforme ensinamentos de Matheus Carneiro Assunção (2008) que os precursores da teoria regalista ou da irresponsabilidade do Estado foram a Inglaterra com o “the king can do no wrong” e a França onde vigorava a máxima “e ler oi ne peut mal feire”, concepções estas que foram duramente criticadas até que os Estados Unidos da América em 1946 publicaram o “Tort Claim Act”, seguido da Inglaterra que editou o “Crow Proceeding Act” em 1947.
No Brasil, em momento histórico distinto, mesmo com a adoção do regime republicano, a Constituição de 1891 manteve a postura regalista determinando em seu artigo 82 que “os funcionários públicos são estritamente responsáveis pelos abusos e omissões que incorrerem no exercício dos seus cargos, assim como pela indulgência ou negligência em não responsabilizarem efetivamente seus subalternos”.
Embora os dois diplomas legais sugerissem que o Estado estaria blindado e não seria passível de responsabilização pelos atos de seus agentes a doutrina obteve um papel importante em contraposição a estas ideias. Autores como Rui Barbosa[1] e Amaro Cavalcanti[2] sustentavam que existiria uma responsabilidade solidária entre o Estado e os seus agentes. Logo, existia uma premente necessidade de que o cidadão lesado provasse a culpa do agente público, caminhado assim, para a sustentação de uma segunda teoria, a teoria da responsabilidade com culpa.
Na teoria da culpa civil ou da responsabilidade subjetiva a ideia é a de que o Estado poderia ser responsabilizado pelos atos danosos, todavia, esta responsabilização prescindiria da demonstração de culpa.
Nesta toada, é de se observar que tal argumentação dividia os atos estatais em atos de império e atos de gestão. De acordo com Galdiana dos Santos Silva (2013), os atos de império seriam os praticados pelo administrador público em decorrência das prerrogativas que lhes eram concedidas em razão da sua condição de autoridade, prerrogativas estas que autorizavam que tais atos fossem impostos unilateralmente e coercitivamente aos particulares. Quanto aos atos de gestão, a mesma autora assevera que estes eram praticados pela administração em igual patamar dos administrados, sendo tais atos aqueles destinados à conservação e desenvolvimento do patrimônio público, além da gestão dos serviços por ela oferecidos. Pelos atos de gestão a administração poderia ser civilmente responsabilizada, contudo, pelos atos de império não.
Seguindo essa corrente, o Código Civil de 1916 consagrou em seu artigo 15 a responsabilidade civil, contudo, houve a declaração de inconstitucionalidade do referido dispositivo legal. Acerca do tema Priscila Gonçalves afirma:
“O Código Civil, um dos primeiros textos legais que tratou especificamente da responsabilidade do Estado, dispõe no artigo 15: “As pessoas jurídicas de direito público são civilmente responsáveis por atos dos seus representantes que nessa qualidade causem danos a terceiros, procedendo de modo contrário ao direito ou faltando a dever prescrito por lei, salvo o direito regressivo contra o causador do dano”.
“Contudo, esse artigo do Código Civil, ante o artigo 82 da Constituição, foi tido como inconstitucional. Mas, durante o período vigente, foi interpretado de maneira dúbia pelos juristas. De acordo com Clóvis Bevilácqua, o artigo 15 teria sido redigido conforme jurisprudência assente nos Tribunais, que pode ser verificada durante a Era Vargas (1930-1945). Na Constituição Federal de 1934, o artigo 171 registra: “Os funcionários públicos são responsáveis solidariamente com a Fazenda Nacional, Estadual ou Municipal, por quaisquer prejuízos decorrentes de negligência, omissão ou abuso no exercício de seus cargos contra a Fazenda Pública, e fundada em lesão praticada por funcionário, este será sempre citado como litisconsorte” (GONÇALVES, 2008, p. 269).
Nota-se então que a Constituição de 1937, outorgada por Getúlio Vargas, adotou a responsabilidade solidária nos mesmos moldes da Constituição de 1934. Logo, tanto o Estado quanto seu agente teriam obrigação de reparar os danos causados, todavia, a administração poderia efetuar o pagamento integral e posteriormente cobrar do funcionário culpado metade da quantia devida.
Embora o positivismo jurídico fosse reinante à época e muitos magistrados obedecessem com rigor o disposto em lei, a doutrina não se conformava com a aplicação da teoria da responsabilidade com culpa, de modo que muitos juristas se contrapuseram veementemente a esta perspectiva. Diante disso, Amaro Cavalcanti defendia que:
“[…] Assim como a igualdade dos direitos, a igualdade de encargos é hoje fundamental no Direito Constitucional dos povos civilizados. Portanto, dado que um indivíduo seja lesado nos seus direitos, como condição ou necessidade do bem comum, segue-se que os efeitos da lesão, ou dos encargos de sua reparação, devem ser igualmente repartidos por toda a coletividade, isto é, satisfeitos pelo Estado, a fim de que, por este modo se restabeleça o equilíbrio da Justiça cumulativa” (CAVALCANTI, 1957, p. 11).
Rui Barbosa também era um crítico das teorias da irresponsabilidade e da responsabilidade com culpa, defendendo que assim como as pessoas jurídicas de direito privado, o Estado responderia pelos atos praticados por seus prepostos. Sobre o tema o doutrinador citado assim escreveu:
“O funcionário é preposto do Estado, e entre preponente e preposto a responsabilidade é solidária. Declarar, pois, a responsabilidade do preposto não é excluir a do preponente, como declarar a do preponente não seria negar a do preposto. Antes, sendo as duas ligadas entre si, a confissão de qualquer dellas será o reconhecimento da outra” (BARBOSA, 1934, p. 399-400).
Em virtude de todo esse embate doutrinário, segundo Priscila Gonçalves (2008, p. 267), a teoria da responsabilidade do Estado pelos atos de seus prepostos foi consagrada em diversas legislações, citando a autora o Decreto Legislativo nº. 1.151 de 05/01/1904 que reconheceu a responsabilidade da União pelos atos dos funcionários do serviço de higiene, o Decreto 221 de 1984 através do qual seriam anuláveis os atos ilegais ou exorbitantes da administração pública, o Decreto nº. 1.939 de 1908 que tornava anuláveis os atos ilegais e exorbitantes dos municípios e o Decreto 2.945 de 1925, que permitia a condenação da União por lesões a direitos individuais.
Então, somente em 1946 a Constituição passou a prever a responsabilidade objetiva do Estado, o que foi mantido pelas Cartas Magnas de 1967, 1969 e 1988. Sobre o tema José dos Santos Carvalho Filho (2007, p. 475) afirma que “a responsabilidade objetiva resultou de acentuado processo evolutivo”. O mesmo autor assevera ainda que as teorias publicistas trouxeram dupla garantia. A primeira, conferida aos particulares, assegurava que estes seriam ressarcidos pelo Estado independentemente de comprovação de culpa, já a segunda, protegia os agentes públicos de serem responsabilizados por atos praticados no exercício de suas funções.
Atualmente, as teorias publicistas se dividem em duas, de modo que a responsabilidade com culpa não foi completamente abolida do ordenamento jurídico brasileiro. Assim, vige ainda a teoria da culpa do serviço ou culpa administrativa e a teoria da responsabilidade objetiva.
Diante disso, Carvalho Filho (2012), ressalta que a teoria da culpa administrativa, tal como experimentada atualmente, foi consagrada pela doutrina de Paul Duez, que afirmava que bastava ao agente provar o mal funcionamento do aparelho público, ainda que fosse impossível identificar o servidor responsável pela ineficiência do serviço. Assim, averiguar-se-ia a chamada culpa anônima ou falta do serviço.
Destarte, segundo ensinamentos de Galdiana Silva (2013):
“A falta do serviço se dá quando o serviço público é omisso, não funciona, funciona com retardo ou com falhas. Em qualquer dos casos, o Estado responde independentemente de qualquer comprovação de culpa do agente público. O ônus do lesado era apenas comprovar o elemento culpa do Estado” (SILVA, 2013).
Em contraposição a certos aspectos dessa corrente, autores como José dos Santos Carvalho Filho (2012) afirmam que por ser o Estado dotado de maior poderio que o particular este teria que arcar com um risco natural proveniente de sua atividade, quer seja, o risco administrativo.
Sendo assim, se torna dispensável que o cidadão lesado demonstre o elemento subjetivo quando pretende a reparação de um dano. Basta apenas que demonstre a existência desse dano e o nexo de causalidade entre o prejuízo sofrido e a atividade estatal. Di Pietro (2007) afirma que nesta teoria a ideia de culpa é substituída pelo nexo de causalidade entre o funcionamento do serviço público e o prejuízo amargado pelo terceiro. Logo, torna-se irrelevante o estado de funcionamento do serviço.
A teoria do risco, segundo Hely Lopes Meirelles (2003) se subdivide em duas nuances. A primeira delas, a teoria do risco administrativo propriamente dita, não é absoluta, de modo que comporta exceções, tais como as hipótese excludentes de responsabilidade. Já a teoria do risco integral, não admite qualquer tipo de exceção, tornando a administração responsável por todos os danos causados por seus agentes no exercício da função.
Embora se possa afirmar que a legislação pátria, especialmente pelo disposto no parágrafo 6º do artigo 37 da Constituição de 1988 adote a teoria do risco administrativo, Alexandre Mazza (2011) sustenta que em algumas situações a teoria do risco integral é aplicada no Brasil, tais como nas relações de trabalho de emprego público onde o servidor seja vítima de acidente de trabalho, indenização coberta pelo seguro obrigatório de veículos automotores (DPVAT), atentados terroristas em aeronaves, dano ambiental e dano nuclear.
Por tudo exposto, pode se concluir que hodiernamente, a responsabilidade civil do Estado é, pois, a que impõe à Fazenda Pública a obrigação de compor o dano causado a terceiros por agentes públicos, no desempenho de suas atribuições ou a pretexto de exercê-las.
II. TEORIA DO RISCO E SUAS EXCEÇÕES: DISCUSSÕES RELEVANTES NOS TRIBUNAIS SUPERIORES
Para que seja aplicada prescinde da verificação de alguns elementos. Sobre eles o Pretório Excelso afirma:
A teoria do risco administrativo, consagrada em sucessivos documentos constitucionais brasileiros desde a Carta Política de 1946, confere fundamento doutrinário à responsabilidade civil objetiva do Poder Público pelos danos a que os agentes públicos houverem dado causa, por ação ou por omissão. Essa concepção teórica, que informa o princípio constitucional da responsabilidade civil objetiva do Poder Público, faz emergir, da mera ocorrência de ato lesivo causado à vítima pelo Estado, o dever de indenizá-la pelo dano pessoal e/ou patrimonial sofrido, independentemente de caracterização de culpa dos agentes estatais ou de demonstração de falta do serviço público. Os elementos que compõem a estrutura e delineiam o perfil da responsabilidade civil objetiva do Poder Público compreendem (a) a alteridade do dano, (b) a causalidade material entre o eventus damni e o comportamento positivo (ação) ou negativo (omissão) do agente público, (c) a oficialidade da atividade causal e lesiva, imputável a agente do Poder Público, que tenha, nessa condição funcional, incidido em conduta comissiva ou omissiva, independentemente da licitude, ou não, do comportamento funcional (RTJ 140/636) e (d) a ausência de causa excludente da responsabilidade estatal (RTJ 55/503 – RTJ 71/99 – RTJ 91/377 – RTJ 99/1155 – RTJ 131/417)."(BRASÍLIA, ATF. RE 109.615, Rel. Ministro Celso de Mello, DJ 02/08/96) (Grifo nosso).
Conforme observado em todo esse trabalho argumentativo o artigo 37, § 6º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 adotou como regra a teoria do administrativo, ônus suportado pelas pessoas jurídicas de direito público e pelas pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos.
Nesta toada, cumpre citar o referido artigo para assim delimitar o seu âmbito de aplicação:
“Art. 36 – A Administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
§6 – As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos, responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.”
De acordo com Galdiana Silva (2013) e conforme afirmado previamente, o dispositivo constitucional contempla a teoria da responsabilidade objetiva do Estado e a da responsabilidade subjetiva do agente, isto quando trata da ação regressiva do qual o Estado é titular diante do preposto que agiu com dolo ou culpa.
Sobre a aplicação do dispositivo em comento a autora afirma que:
“No que toca a responsabilidade objetiva, responde o Estado independente da prova de sua culpa ou dolo, necessária apenas a comprovação do dano causado à vítima. Analisando o dispositivo, em sua primeira parte, vemos duas categorias de pessoas a ser consideradas responsáveis: as pessoas jurídicas de direito público (União, Estados, Municípios, Distrito Federal, Territórios e suas autarquias) e as pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos. Na última categoria estão inseridas as fundações públicas de direito privado, empresas públicas, sociedades de economia mista, empresas permissionárias e concessionárias de serviços públicos.
A saber que o dano suportado pelo particular deve ser originado pela prestação do serviço público (nexo causal) e causado por agentes que estejam a serviço pessoas jurídicas acima citadas, podendo ser agentes políticos, administrativos ou particulares em colaboração com a Administração, independente do recebimento de contraprestação pela Fazenda Pública” (SILVA, 2013).
Além disso, ressalta Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2007) que a responsabilidade extracontratual do Estado corresponde à obrigação de reparar danos causados a terceiros em decorrência de comportamentos comissivos ou omissivos, materiais ou jurídicos, lícitos ou ilícitos, imputáveis aos agentes públicos.
Embora a autora seja muito concisa e adequada em sua explanação é possível ressaltar que todas as pessoas jurídicas prestadoras de serviços públicos, ou seja, aquelas que assumem um múnus público, seja em caráter temporário ou permanente, tem obrigação de reparar os danos por elas ocasionados independentemente da demonstração de culpa.
É necessário entender que o conceito de agente público aqui é amplo, sendo considerado, na perspectiva de Celso de Mello (2003, p. 227), “quem quer que desempenhe funções estatais enquanto as exercita”. Logo, os agentes em colaboração a até mesmo o depositário judicial são considerados agentes para fins de responsabilização.
Embora seja um posicionamento criticável, o Supremo Tribunal Federal tem proferido reiteradas decisões no sentido de que não é necessário que o agente esteja no exercício de suas funções. Segundo o entendimento esposado, o Estado responde objetivamente pelos atos de seus agentes de folga, mas que estejam atrelados à sua condição profissional.
Diante disso, a Suprema Corte brasileira decidiu no RE 160.401 de relatoria do Ministro Carlos Velloso, que o Estado é responsável de maneira objetiva pelos atos praticados por soldado à paisana quando se utiliza de arma da corporação. Este é o mesmo precedente constante do RE 291.035/SP.
Neste contexto, verifica-se também que a expressão serviços públicos é bastante flexível, de modo que o Supremo, no RE 115.370/PR, condenou ente público a reparar danos ocasionados por obra pública e no RE 180.602/SP condenou a administração pública municipal a reparar os danos causados por animal em via de circulação, dada a inexistência de serviço de fiscalização que se enquadraria como polícia administrativa.
Uma outra perspectiva interessante a ser pontuada, que converge com a teoria da culpa administrativa, é a de que o Supremo tem aceito a ideia de culpa anônima do serviço nos casos de omissões e insuficiência do serviço, desde que comprovado o nexo de causalidade. Sobre o tema tem-se a seguinte decisão:
“Tratando-se de ato omissivo do poder público, a responsabilidade civil por tal ato é subjetiva, pelo que exige dolo ou culpa, esta numa de suas três vertentes, a negligência, a imperícia ou a imprudência, não sendo, entretanto, necessário individualizá-la, dado que pode ser atribuída ao serviço público, de forma genérica, a falta do serviço. A falta do serviço — faute du service dos franceses — não dispensa o requisito da causalidade, vale dizer, do nexo de causalidade entre a ação omissiva atribuída ao poder público e o dano causado a terceiro. Latrocínio praticado por quadrilha da qual participava um apenado que fugira da prisão tempos antes: neste caso, não há falar em nexo de causalidade entre a fuga do apenado e o latrocínio." (BRASÍLIA, STF. RE 369.820. Rel. Ministro Carlos Velloso, DJ 27/02/04).
Outro aspecto controvertido no que se refere à responsabilidade civil do Estado atenta-se à responsabilidade do Estado por atos jurisdicionais. Existem precedentes editados por aquela Corte no sentido de que o Estado somente poderia ser responsabilizado por atos jurisdicionais em casos excepcionais e previstos em lei conforme julgado no RE 219.117 de relatoria do Ministro Ilmar Galvão, tais como o erro judiciário e prisão além do tempo devido. Todavia, existem decisões que condenam a fazenda pública a reparar danos causados por atuação de magistrado. Neste sentido, argumenta o Ex-Ministro Néri da Silveira que a Fazenda Pública seria legitima a atuar no polo passivo de demanda que questiona atos jurisdicionais:
“A autoridade judiciária não tem responsabilidade civil pelos atos jurisdicionais praticados. Os magistrados enquadram-se na espécie agente político, investidos para o exercício de atribuições constitucionais, sendo dotados de plena liberdade funcional no desempenho de suas funções, com prerrogativas próprias e legislação específica. Ação que deveria ter sido ajuizada contra a Fazenda Estadual — responsável eventual pelos alegados danos causados pela autoridade judicial, ao exercer suas atribuições —, a qual, posteriormente, terá assegurado o direito de regresso contra o magistrado responsável, nas hipóteses de dolo ou culpa. Legitimidade passiva reservada ao Estado. Ausência de responsabilidade concorrente em face dos eventuais prejuízos causados a terceiros pela autoridade julgadora no exercício de suas funções, a teor do art. 37, § 6º, da CF/88” (BRASÍLIA, STF. RE 228.977. Rel. Ministro Néri da Silveira, DJ 12/04/02).
Em seu voto, o Ministro Néri da Silveira afirma a existência de responsabilidade objetiva por danos provenientes de atos jurisdicionais. O iminente jurista afirma que:
“A autoridade judiciária não tem responsabilidade civil pelos atos jurisdicionais praticados. Os magistrados enquadram-se na espécie agente político, investidos para o exercício de atribuições constitucionais, sendo dotados de plena liberdade funcional no desempenho de suas funções, com prerrogativas próprias e legislação específica. Ação que deveria ter sido ajuizada contra a Fazenda Estadual — responsável eventual pelos alegados danos causados pela autoridade judicial, ao exercer suas atribuições —, a qual, posteriormente, terá assegurado o direito de regresso contra o magistrado responsável, nas hipóteses de dolo ou culpa. Legitimidade passiva reservada ao Estado. Ausência de responsabilidade concorrente em face dos eventuais prejuízos causados a terceiros pela autoridade julgadora no exercício de suas funções, a teor do art. 37, § 6º, da CF/88” (BRASÍLIA, STF. RE 228.977. Rel. Ministro Néri da Silveira, DJ 12/04/02).
Não obstante a existência das discussões acima delineadas, outro aspecto se destaca pela sua relevância. Via de regra, o Poder Legislativo não pode ser responsabilizado pela edição de normas jurídicas, contudo, o Superior Tribunal de Justiça tem entendido que o Estado só responde (em forma de indenização ao indivíduo prejudicado) por atos legislativos quando inconstitucionais, assim declarados pelo Supremo Tribunal Federal” (BRASÍLIA, STJ. Resp. 201.972. Rel. Ministro Demócrito Reinaldo, DJ 30/08/1999).
Neste contexto, José dos Santos Carvalho Filho (2007) afirma que “[…] é plenamente admissível que, se o dano surge em decorrência de lei inconstitucional, a qual evidentemente reflete a atuação indevida do órgão legislativo, não pode o estado simplesmente eximir-se da obrigação de repará-lo” (CARVALHO FILHO, 2007).
Um outro ponto que merece destaque quanto à prática da responsabilidade civil do Estado no Brasil gira em torno da responsabilidade por ato omissivo. Via de regra, nos casos de omissão estatal aplicar-se-ia a teoria subjetiva, sendo necessária a demonstração de dolo ou culpa, contudo, as Cortes Superiores tem admitido a atribuição de culpa genérica do serviço público. Neste aspecto tem-se os seguintes julgados:
“Recurso extraordinário. 2. Morte de detento por colegas de carceragem. Indenização por danos morais e materiais. 3. Detento sob a custódia do Estado. Responsabilidade objetiva. 4. Teoria do Risco Administrativo. Configuração do nexo de causalidade em função do dever constitucional de guarda (art. 5º, XLX). Responsabilidade de reparar o dano que prevalece ainda que demonstrada a ausência de culpa dos agentes públicos. 5. Recurso extraordinário a que se nega provimento” (BRASÍLIA, STF. RE 272.839/MT, Rel. Ministro GILMAR MENDES, DJ 08/04/2005).
“CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL DAS PESSOAS PÚBLICAS. ATO OMISSIVO DO PODER PÚBLICO: LATROCÍNIO PRATICADO POR APENADO FUGITIVO. RESPONSABILIDADE SUBJETIVA: CULPA PUBLICIZADA: FALTA DO SERVIÇO. C.F., art. 37, § 6º. I. – Tratando-se de ato omissivo do poder público, a responsabilidade civil por tal ato é subjetiva, pelo que exige dolo ou culpa, esta numa de suas três vertentes, a negligência, a imperícia ou a imprudência, não sendo, entretanto, necessário individualizá-la, dado que pode ser atribuída ao serviço público, de forma genérica, a falta do serviço. II. – A falta do serviço – faute du service dos franceses – não dispensa o requisito da causalidade, vale dizer, do nexo de causalidade entre a ação omissiva atribuída ao poder público e o dano causado a terceiro. III. – Latrocínio praticado por quadrilha da qual participava um apenado que fugira da prisão tempos antes: neste caso, não há falar em nexo de causalidade entre a fuga do apenado e o latrocínio. Precedentes do STF: RE 172.025/RJ, Ministro Ilmar Galvão, "D.J." de 19.12.96; RE 130.764/PR, Relator Ministro Moreira Alves, RTJ 143/270. IV. – RE conhecido e provido.” (BRASÍLIA, STF. RE 369.820/RS, Rel. Ministro CARLOS VELLOSO, DJ 27/02/2004).
“ADMINISTRATIVO – RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR ATO OMISSIVO – QUEDA DE ENTULHOS EM RESIDÊNCIA LOCALIZADA À MARGEM DE RODOVIA. 1. A responsabilidade civil imputada ao Estado por ato danoso de seus prepostos é objetiva (art. 37, § 6º, CF), impondo-se o dever de indenizar quando houver dano ao patrimônio de outrem e nexo causal entre o dano e o comportamento do preposto. 2. Somente se afasta a responsabilidade se o evento danoso resultar de caso fortuito ou força maior, ou decorrer de culpa da vítima. 3. Em se tratando de ato omissivo, embora esteja a doutrina dividida entre as correntes da responsabilidade objetiva e da responsabilidade subjetiva, prevalece, na jurisprudência, a teoria subjetiva do ato omissivo, só havendo indenização culpa do preposto. 4. Recurso especial improvido.” (BRASÍLIA, STJ. REsp 721.439/RJ. Rel. Ministra ELIANA CALMON, DJ 31.08.2007).
Por tudo exposto vê-se que existe ainda um grande embate argumentativo no que se refere à responsabilidade civil do Estado no Brasil. Embora a regra seja a existência de responsabilidade objetiva, ficou demonstrado que tal regra não é absoluta e que a jurisprudência tem atenuado alguns conceitos a fim de conferir maior abrangência à responsabilidade da administração pública.
CONCLUSÃO
Diante de todos os argumentos aqui delineados pode-se concluir que no Brasil vigora a teoria do risco administrativo ou a teoria da responsabilidade objetiva do Estado, todavia, há de se ressaltar que esta não é uma regra absoluta, pois existem casos em que são adotadas a teoria da responsabilidade civil com culpa e a responsabilidade absoluta.
Além disso, é importante enfatizar que até se chegar à adoção da teoria do risco administrativo, houve intensa produção doutrinária com críticas aos institutos até então experimentados.
Ademais, infere-se que o tema ainda não é algo pacífico na jurisprudência brasileira, pois, conforme apresentado, existem situações onde os juristas divergem quanto à aplicação ou não da teoria do risco administrativo, tais como nas situações de omissão estatal ou de erros legislativos e judiciais.
Sendo assim, cabe concluir que cabe aos operadores do direito promover, através da pesquisa, debates onde serão discutidos os argumentos e verificados quais deles são mais adequados à prática jurídica brasileira.
Informações Sobre o Autor
Poliana Alves Brandão
Advogada graduada pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Pós-graduanda em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Assessora jurídica da Câmara Municipal de Gouveia-MG