Conceitos e definições do “desvio de poder” no Brasil e no mundo

Conceito.

J. Cretella Jr. (2000) esclarece que “desvio de poder é o uso indevido, que a autoridade administrativa, nos limites da faculdade discrionária de que dispõe, faz da “potestas” que lhe é conferida para concretizar finalidade diversa daquela que a lei preceituara”.

Em outras palavras, desvio de poder é a distorção do poder discricionário, é o afastamento da finalidade do ato.[1]

Já em seu Manual de Direito Administrativo, assim conceitua:

“Desvio de poder é o uso indevido que a autoridade administrativa, dentro de seu campo de discricionaridade, faz da potestas que lhe é conferida para atingir finalidade pública ou privada, diversa daquela que a lei preceituara. Desvio de Poder é o desvio do poder discricionário, é o afastamento da finalidade do ato. É a “aberratio finis legis”.[2]

“Desvio de poder é o uso indevido que o agente público faz do poder para atingir fim diverso do que a lei lhe confere.”[3]

Hely Lopes Meirelles trata o tema como desvio de finalidade:

“(…) os fins da Administração consubstanciam-se na defesa do interesse público, assim entendidas aquelas aspirações ou vantagens licitamente almejadas por toda a comunidade administrada, ou por uma parte expressiva de seus membros. O ato ou contrato administrativo realizado sem interesse público configura desvio de finalidade”.[4]

De Plácido e Silva utiliza o verbete “DESVIO DE PODERES” para assim conceituar: “Possui o mesmo sentido de excesso de poderes, o que demonstra a ação ou atuação de uma pessoa, no exercício de um cargo ou no desempenho de um mandato, além dos limites das atribuições ou dos poderes que lhe são conferidos”.

Já “EXCESSO DE PODER” seria a “expressão usada para indicar todo ato que é praticado por uma pessoa, em virtude de mandato ou de função, fora dos limites da outorga ou da autoridade, que lhe é conferida”.

Odete Medauar conceitua:

“O defeito de fim, denominado desvio de poder ou desvio de finalidade, verifica-se quando o agente pratica ato visando a fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra de competência”.

A autora paulista utiliza a Lei 4.717/5, Lei da Ação Popular, para caracterizar a base legal dos defeitos do ato administrativo, dentre os quais se encontra o desvio de poder. O seu conceito, por sinal, é o do texto legal do art. 2º, alínea e.[5]

Brandão Cavalcanti esclarece: “…em sua essência, o desvio de poder, pressupondo a legalidade do ato administrativo (em tese) e a competência da autoridade, declara, entretanto, que no uso de suas finalidades discricionárias desviou-se a autoridade da finalidade da norma legal ou regulamentar, atribuindo-lhe sentido estranho àquele que orientou o legislador”.[6]

Seabra Fagundes dá uma idéia do seu conceito de desvio de poder ao assinalar que a: “atividade administrativa, sendo condicionada pela lei à obtenção de determinados resultados, não pode a Administração deles se desviar, demandando resultados diversos dos visados pelo legislador”.[7]

Definição.

Cretella Jr. Explica que a expressão desvio de poder também é conhecida pelos nomes excesso de poder, abuso de poder e desvio de finalidade. Aponta que “desvio” é afastamento, mudança de direção, distorção. Já “poder” é faculdade, competência para decidir determinado assunto. Desvio de poder significaria, assim, “…afastamento na prática de determinado ato; poder exercido em direção diferente daquela em vista da qual fora estabelecido”.

Ou seja: “A autoridade, que tem competência ou poder para a edição de determinado ato, manifesta a vontade, praticando-o, dando-lhe nascimento, mas, nessa op0eração, erra de alvo, afasta-se do fim colimado para perseguir finalidade diversa da visada. Incide no desvio de poder”.

Assim, o ato administrativo pode emanar de órgão competente, formar-se de acordo com o que preceitua a lei, ao mesmo tempo que pode trazer, dentro de si, vício originário, que é o desvio ou excesso de poder.[8]

O autor paulista indica ainda que os autores que buscaram uma noção exata do desvio de poder chegaram ao estabelecimento de uma conclusão única, sintética, estando presentes na mesma: a autoridade administrativa, a competência e o uso do poder discricionário, para fim distinto do conferido pela lei.[9]

Para Roger Bonnard, como para a doutrina francesa em geral, é utilizada a expressão détournement de pouvoir: “A designação é bastante expressiva porque a ilegalidade consiste em que um poder foi exercido com fim diverso daquele em vista do qual foi estabelecido. O poder concedido é desviado de seu fim”.[10] Leon Duguit comenta decisões do Conselho de Estado Francês e observa que a corte utiliza a expressão “excès de pouvoir”

Vitor Nunes Leal menciona o desvio de poder como espécie do gênero excès de pouvoir.[11]

Sabino Álvares-Gendin inclui o desvio de poder no excesso de poder.[12]

Caio Tácito resume: “A noção do abuso de poder de autoridade administrativa é equivalente ao excés de pouvoir do direito francês”.[13]

Seabra Fagundes também esclarece: “Terá havido aí desvio de finalidade, ou seja, o que os franceses denominam détournement de pouvoir”.[14]

Resumidamente, “desvio de poder” é o “desvio do poder discricionário”. É o afastamento da finalidade do ato.[15]

Mesmo sofrendo tantas influências dos direitos francês e italiano, o direito administrativo brasileiro, segundo Cretella Jr.: “Inversamente do que ocorre na França e na Itália, em que a teoria do desvio do poder é de cunho eminentemente jurisprudencial, ali nascendo, desenvolvendo-se e adquirindo linhas precisas, entre nós, não são muitos os julgados que acolhem a figura em apreço como razão de decidir, esforçando-se, neste particular, a doutrina, e despontando com relativa timidez, aqui e ali, em importantes decisões, principalmente em casos de desapropriação e demissão de funcionário”.[16]

O desvio de poder pode ser entendido como o uso indevido que o agente faz do poder discricionário para atingir fins diversos dos que a lei determina. Ressalte-se, deste modo, a importância do elemento fim no desvio de poder para configurar a sua própria existência.

Sendo o ato administrativo um ato jurídico, exige-se a presença de vários componentes para que atue validamente em seu campo próprio.

“Como ato jurídico que é, o ato administrativo exige a presença de vários componentes para que atue validamente em seu campo próprio. A ausência (ou presença viciada) de alguns desses elementos age como efeito imediato à produção de atos inexistentes, nulos ou anuláveis, conforme o grau maior ou menor da ocorrência verificada no processo etiológico do ato”.[17]

Cretella Jr. apresenta importante conclusão ao ressaltar a importância dos elementos “motivo” e “fim” como o espírito do ato administrativo, presentes em seu interior, elementos subjetivos e profundos.

Em função do que já foi dito, apresenta-se “…o fim legal como o teto, a baliza, a faixa demarcadora do poder discricionário, limite em que esbarra a discricionariedade. A importância do conhecimento desse limite é grande devido ao fato de aí se constituir a defesa do cidadão contra a arbitrariedade administrativa”.

A conclusão de Waline é a seguinte:

“A lei só permite que o administrador se manifeste no interesse público. “Desvia”, pois, seus poderes do fim legal a autoridade que os põe a serviço de interesses puramente privados”.[18]

Ainda pode ser dito o seguinte: “Em numerosos casos, a intenção do legislador, conferindo determinados poderes à Administração, é para que os utilize, não para “qualquer” interesse público, mas exclusivamente em vista de fim perfeitamente determinado. Neste caso, todo uso desse poder com finalidade, mesmo de utilidade pública, mas diversa daquela prevista e desejada pelo legislador, constitui, segundo alguns autores, desvio de poder, configurando caso de nulidade do ato administrativo”.[19]

Para Vitor Nunes Leal: “Se a Administração, no uso do seu poder discricionário, não atendeu ao fim legal, a que está obrigada, entende-se que abusou do seu poder”.[20]

Resumidamente, então, seriam cinco os elementos que devem ser levados em conta, na formação do ato administrativo: manifestação da vontade, motivo, objeto, forma e fim.[21]

J. Guimarães Menegale já explicava que: “Certamente não é necessário que o ato percorra toda a gama das disposições, contrariando-as, para caracterizar-se a nulidade. Mas, também, como há disposições, cuja violação se pode reparar, nem sempre a nulidade é insanável e, sanada, o ato poderá  prevalecer. Em outros termos, por vezes não é possível encontrar no ato um preceito jurídico – o ato jurídico – , o ato juridicamente não existe; de outras vezes, o preceito contido no ato não pode atuar, porque está deformado, não produz efeito – o ato é totalmente nulo; finalmente, o preceito não está íntegro, mas ainda assim atua – o ato é parcialmente nulo”.[22]

Afonso Rodrigues Queiro, já assinalava: “Primeiro que tudo, (sic) são limites do poder discricionário os chamados por Laun limites externos: a competência, a forma e os pressupostos do fato (“materiellrechtliche Voraussetzungen”). Mas, além destes, existem os que se podem chamar limites internos do poder discricionário, que também devem ser respeitados pelos agentes da Administração. Limites internos, porque se referem ao exercício da própria faculdade discricionária, a escolha dos fins imediatos do procedimento administrativo”.[23]

Fernando Prieto, professor da Universidade Complutense de Madrid assim aborda o desvio de poder:

“A doutrina do Direito administrativo e a jurisprudência elaboraram com astúcia jurídica o conceito de “desvio de poder”. É aquela atuação de uma autoridade dentro de sua competência, ou seja, dentro do campo de suas faculdades, que utiliza seu poder para uma finalidade distinta daquela para a qual lhe foi concedida. Esta figura permite um controle do poder que se alinha muito mais finamente que o habitual de negar a competência da autoridade. Os administrativistas conhecem muito bem esta figura e os estudantes de Direito a aprendem contemplando-la em muitos exemplos.

No caso que nos ocupa, é evidente que o Governo tem a faculdade regulamentar de desenvolver a lei.[24] Esta faculdade é exercida por meio de decretos que devem estar de acordo com o que a lei estabelece. Mas devem estar de acordo não apenas com a letra da lei, senão também com o seu espírito, com o que a lei pretende”.

A doutrina e a jurisprudência ensinam que o desvio de poder é causa de nulidade do ato administrativo”.[25]

Diego Gomes e Garcia, também na Espanha informa: “…no que nossas leis administrativas e nossa jurisprudência tem considerado um desvio de poder, isto é, “o exercício de potestades administrativas para fins distintos dos fixados pelo Ordenamento Jurídico”.[26]

Maria Sylvia Zanella Di Pietro aborda a questão dos vícios que podem atingir os atos administrativos iniciando com os vícios relativos à competência e à capacidade. São os vícios relativos ao sujeito.[27]

Em relação aos vícios relativos à competência, a autora fala da usurpação de função, do excesso de poder e da função de fato.

Ao tratar do excesso de poder, que se constitui na ultrapassagem dos limites da competência do agente, lembra que, juntamente com o desvio de poder, que é vício relativo à finalidade, lembra que o primeiro é uma das espécies de abuso de poder. O abuso de poder poderia ser definido, então, em sentido amplo, como: “o vício do ato administrativo que ocorre quando o agente exorbita de suas atribuições (excesso de poder), ou pratica o ato com finalidade diversa da que ocorre implícita ou explicitamente da lei (desvio de poder)”.

Tanto o excesso de poder como o desvio de poder, poderiam ser configurados crimes de abuso de autoridade, caso o agente público incida em alguma das infrações previstas na Lei nº 4.898, de 9 de dezembro de 1965, alterada pela Lei nº 6.657, de cinco de junho de 1979.[28]

Em outras obras mais recentes é possível encontrar o tratamento da questão do desvio de poder no Brasil e no mundo.[29]

Observações finais

Desvio de poder é uso indevido de faculdade legal.

É a distorção de um poder de escolha do administrador público.

É a utilização de uma liberdade de escolha legalmente conferida direcionada a fins não previstos na lei.

É o ato praticado a partir da disposição legal, mas que não se dirige ao interesse público.

É a atividade administrativa que desvia da lei para obter resultados diversos dos visados pela mesma.

Em relação à sua definição, por desvio de poder também se entende excesso de poder, abuso de poder e desvio de finalidade. Desvio é afastamento, mudança de direção. Poder é faculdade, competência para decidir determinado assunto. O Desvio de poder seria, assim, o afastamento na prática de ato de poder visando a objetivos não previstos na lei.

Partindo-se da natureza muito semelhante de conceitos e definições, haja vista a sua diferença ser quase que basicamente filosófica, entende-se que, tanto os conceitos quanto as definições de desvio de poder vão analisar todas as realidades envolvidas nas situações em que o agente público, ao exercer a sua competência legalmente estabelecida, o faz não com vistas ao interesse público, comum, de toda a sociedade, mas para obter objetivos particulares, para si ou para outrem.

Notas
[1] Ob. Cit. Ant. P. 292.
[2] Manual … (2000:176-177).
[3] Manual … (2000:177).
[4] MEIRELLES, Hely Lopes. “Direito Administrativo Brasileiro” – 24ª ed. atualizada por Eurico Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho. São Paulo: Malheiros Editores, 1999. P.81.
[5] “Direito Administrativo Moderno”, 5ª edição revista e atualizada, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001. Pp. 179-182.
[6] BRANDÃO CAVALCANTI, Tratado de direito administrativo, 3ª ed., 1956, vol.IV, p.490. apud CRETELLA JR  (1998:315).
[7] SEABRA FAGUNDES, O Controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário, 3ª ed., 1957, p.89. apud CRETELLA JR  (1998:315-316).
[8] (2001:273).
[9] (1998:316-317).
[10] Precis de droit administratif, 1953, p.228  apud CRETELLA JR. (2001:273), nota 79.
[11] Problemas de direito público, 1960, os. 286 e 290 apud CRETELLA JR. (2001:273), nota 80.
[12] Trtado General del derecho administrativo, 1958, vol. I, p. 31 apud CRETELLA JR. (2001:273), nota 80.
[13] O abuso de poder administrativo no Brasil, p. 9, apud CRETELLA JR. (2001:273), nota 81.
[14] O Controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário, 5ª edição, 1979, p.71 apud CRETELLA JR. (2001:273), nota 82.
[15] CRETELLA JR. (2001:274).
[16] CRETELLA JR. (2001:276).
[17] CRETELLA JR. (2001:274).
[18] Marcel WALINE, Droit Administratif, 9ª ed., 1963, p.451 apud CRETELLA JR. (2001:275).
[19] Marcel WALINE, Droit Administratif, 9ª ed., 1963, p.451 apud CRETELLA JR. (2001:276).
[20] Problemas de Direito Público, 1960, p.285 apud CRETELLA JR. (2001:276).
[21] CRETELLA JR. (1998:318).
[22] Direito administrativo e Ciência da administração, 3ª ed., 1957, p.78. apud  CRETELLA JR (1998:317).  
[23]Reflexões sobre a teoria do “desvio de poder” em direito administrativo, 1940,  p.56. apud  CRETELLA JR. (1998:318).
[24] (de explicar a lei, diriamos nós).
[25] http://www.libertaddigital.com/opiniones/opi_desa_19154.html.
[26] Diego Gómez i García (DNI 19.881.386 –W)President d’Escola Valenciana – Federació d’Associacions per la Llengua. http://www.fev.org/diego4.htm
[27] Direito Administrativo, SP: Atlas, 2004, p.229.
[28] (2004:229).
[29] La Desviación de Poder en la reciente Jurisprudencia, Autor: Jaime Sánchez Isac, Materia: D. Administrativo, Referencia: 2181076, Páginas: 153, Resumen: I. Introducción. * Definición de desviación de poder. * Desviación de poder e incompetencia. La potestad discrecional. * Clases de desviación de poder. * La prueba de la desviación de poder. II. La desviación de poder en la reciente Jurisprudencia. * Definición de desviación de poder. * Prueba de la desviación de poder. La desviación de poder y recurso de apelación. * Denegación de la desviación de poder. * La desviación de poder y las distintas materias. http://www.bayerhnos.com/base_dades/pagina.php?id_llibre=730

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Francisco Mafra.

 

Doutor em direito administrativo pela UFMG, advogado, consultor jurídico, palestrante e professor universitário. Autor de centenas de publicações jurídicas na Internet e do livro “O Servidor Público e a Reforma Administrativa”, Rio de Janeiro: Forense, no prelo.

 


 

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