Controle jurisdicional do ato administrativo. Uma abordagem teórica e evolutiva

Resumo: Expõe as hipóteses de revisão dos atos administrativos, ressaltando a possibilidade de controle externo desenvolvido pelo Poder Judiciário, baseado no sistema de Direito Administrativo vigente no Brasil. Menciona, de forma evolutiva, as teorias que legitimam o controle jurisdicional da atividade administrativa. Aponta o surgimento e consagração do Estado Constitucional de Direito e a moderna concepção principiológica de efetivação de direitos. Exibe a abrangência dessa nova percepção constitucional como parâmetro ao desenvolvimento da atividade estatal. Conclui que o controle jurisdicional atingiu seu ápice com a vinculação dos atos administrativos aos princípios constitucionais, ressalvando que tal espécie de controle não visa suprimir integralmente a atuação discricionária, mas adequá-la à parâmetros proporcionais e razoáveis.


Abstract: It exposes the chances of review of the administrative acts, highlighting the possibility of external control developed by the Judiciary, based on the administrative law system in use in Brazil. It mentions, in an evolving way, theories that legitimize the judicial control of the administrative activity. It points the coming and recognition of the Constitutional State and the modern design set of principles for enforcing rights. It shows the scope of this new constitutional perception as a development parameter of the state activity. It concludes that the jurisdictional control reached its peak with the linking of the administrative acts to the constitutional principles, pointing out that this kind of control doesn’t intended suppressing the discretionary action, but adapt it to proportional and reasonable parameters.


Sumário: Introdução. 1. Do controle jurisdicional dos atos administrativos. 1.1. Da atuação arbitrária aos limites da discricionariedade administrativa. 2. Do controle jurisdicional. 2.1. Do controle dos elementos vinculados do ato administrativo. 2.2. Do desvio de poder. 2.3. Dos motivos determinantes. 3. Do controle principiológico dos atos administrativos. 3.1. Do Estado Constitucional de Direito. 3.2. Do controle principiológico dos atos administrativos. Conclusão. Referências Bibliográficas.


Introdução


A consagração do Estado Democrático de Direito, e a consequente delimitação das esferas de atuação dos poderes estatais, representa um longo e dificultoso processo de sujeição do Estado à lei, demarcando os limites das atribuições de cada poder, bem como da intromissão estatal nos direitos dos cidadãos. Sem exceções, todos os sistemas de governo impuseram sua forma de soberania, de maneira que conflitando interesses estatais e privados, sempre prevaleciam àqueles em detrimento desses. Incontáveis são os exemplos de abusos e atrocidades cometidos sob a égide da supremacia do Estado.


Sob o fundamento da preeminência estatal, suprimiam-se os direitos mais basilares. Por essa razão, ao analisar a História, vislumbra-se que a sociedade percorreu árduos caminhos para impor limites à atuação do Estado, travando inúmeras guerras e revoluções durante os séculos, como forma de afronta à essa absoluta soberania. A cada batalha, novos limites eram estabelecidos e, dessa forma, após incontáveis mártires, as conquistas se consolidaram, demarcando por meio da legalidade as linhas limítrofes da interferência estatal na esfera de direitos dos administrados.


Fixada a concepção hodierna de Estado Democrático, instituiu-se necessariamente o sistema de separação dos poderes, que baseado na compreensão equilibrada de pesos e contrapesos, atribuiu ao Poder Legislativo, dentre outros cometimentos, a edição de ordenamentos jurídicos contendo os parâmetros de conduta social e, principalmente, do desenvolvimento da atividade administrativa. Ainda, ao Poder Executivo coube a função de administrar os bens e interesses públicos, segundo os critérios legalmente delimitados. E, por fim, estabeleceu-se ao Poder Judiciário a função de aplicar a legislação vigente aos conflitos de interesses que se erigissem, possibilitando ainda, a revisão das atividades da Administração Pública que suplantassem aos limites legais.


Particularmente, reservou-se ao Poder Executivo a característica de atuar, em alguns casos, conforme discrição própria. Ou seja, sob o fundamento de que inúmeras situações que se apresentavam à Administração Pública careciam de decisões peculiares, devendo necessariamente satisfazer aos fins de interesse público o qual está adstrita a atividade administrativa, restaria ao administrador através de juízo subjetivo optar sempre no sentido de melhor atender a esses interesses. Essa prerrogativa, no entanto, preservou um resquício da atuação soberana e incontestável do Estado, sob a forma de discrição administrativa.


Nesse aspecto, vedava-se qualquer forma de interferência externa, impedindo o Poder Judiciário de revisar tais atos, pois, editados com base na discrição administrativa, revestiam-se de caráter essencialmente político, sendo esta, uma função típica do Poder Executivo. Utilizando-se desse privilégio, permanecia a Administração Pública praticando atos desmedidos sob o pseudofundamento da satisfação ao interesse público.


Restava, portanto, à doutrina especializada estabelecer critérios para cercear as atividades arbitrárias que ainda se manifestavam, de modo a controlar toda ação do Poder Público que extrapolasse o perímetro legalmente demarcado, sendo tais atos passíveis de sindicalização, sob pena de caracterizar arbítrio estatal. Então, se provocado, caberia ao Judiciário controlar e anular os atos do Estado lesivos ao ordenamento jurídico, como típico desempenho de sua função constitucional.


No entanto, o atual controle desempenhado pelo Judiciário percorreu um extenso processo evolutivo, que de forma progressiva ampliou as possibilidades de apreciação judicial dos atos administrativos.


Inicialmente, e de modo embrionário, essa evolução originou-se do restrito controle judicial dos elementos vinculados do ato administrativo, para finalmente, com o advento da concepção do Estado Constitucional de Direito, atingir o ápice das hipóteses de judicialização, ao submeter toda atividade administrativa à carga valorativa dos princípios constitucionais.


1 Do controle jurisdicional dos atos administrativos


1.1 Da atuação arbitrária aos limites da discricionariedade administrativa


É sabido que a eficácia dos atos praticados pela Administração Pública depende estritamente da verificação de sua licitude. Portanto, cumpre salientar que o princípio da legalidade é essencial para o desempenho de toda atividade administrativa, pois libera o Estado para atuar, pautando-se pelos limites impostos pela previsão legislativa. Essa submissão à lei é pressuposto de toda atuação Pública.


O Estado, sob uma análise histórica, sempre gozou de privilégios perante os administrados. Não são escassos os exemplos de arbitrariedades provocadas pelo Poder Público na efetivação da denominada “soberania estatal”. Atitudes desproporcionais e incontestáveis eram típicas de um Estado opressor, manifestamente arbitrário, onde o monarca soberano e absoluto proferia e executava suas decisões de acordo com a conveniência própria, sem relevar qualquer possibilidade de contestação. Cite-se como exemplo dessa época obscura da História Mundial, os impérios absolutistas, que tinham na figura do monarca supremo a própria manifestação do Estado[1].


O direito do rei era praticamente ilimitado, ao ponto de a própria idéia de Estado ser confundida na pessoa do monarca. O soberano detinha todos os poderes, sejam de caráter administrativo, legislativo ou jurisdicional. (COELHO, 2002, p. 40) Não havia, portanto, garantia de direitos quando estes conflitassem com a vontade estatal, e essa supressão acarretou a deflagração indefinida de atividades arbitrárias e ilegais do Estado, durante séculos.


A sociedade clamava por uma transformação. Os cidadãos careciam de garantias para proteção e efetivação de seus direitos ante ao despotismo do Estado Moderno. Entretanto, essa unificação de Estado e monarca era acometida pelo seguinte problema: a confusão das “esferas do público e do privado devido à personificação que a figura real assumia sobre todo o organismo político”. (CADEMARTORI, 2007, p. 37) Daí, que a transformação do Estado somente ocorreria se os seus próprios privilégios fossem atenuados, ou até, em certos casos, suprimidos.


Historicamente, como é sabido, esse avanço adveio de forma gradual. Seria impossível uma transformação repentina de todo um sistema de governo, consagrado e legitimado por outras formas de poder, como a Igreja, por exemplo. Essa modificação ocorreu progressivamente, e, de forma mais concreta, a partir da origem da concepção de Estado de Direito, delimitando a esfera de atuação de cada Poder, e, definindo as competências do desempenho da atividade estatal, para consequentemente submeter toda atuação do Estado, através de seus órgãos, aos limites da legalidade.


Nas palavras de Gustavo Binenbojm (2008, p. 196),


“Somente a partir do século XIX, com o advento da noção de Estado de direito, é que a idéia da imposição de limites jurídicos às atividades dos órgãos estatais adquiriu consistência teórica e experimentou gradativa difusão. Governo, parlamento e Administração passam, então, a gozar de identidade e lugar próprios na organização estatal. Ali principiou o longo e acidentado percurso da tentativa de captura do poder pela juridicidade.”


Assim, as atitudes arbitrárias foram progressivamente substituídas pelo desempenho de uma atividade estatal dentro dos parâmetros da legalidade. Os atos de afronta aos direitos do cidadão foram suprimidos pelas atividades administrativas legalmente regradas, ao ponto de se impor ao Poder Público a atuação submissa ao crivo de uma ordenança legal, sob pena de considerar esses atos nulos.


Contudo, a antiga atuação abusiva e ilegal do Estado Absolutista sempre encontrou singularidade com a atividade discricionária da Administração Pública. Essa expressão representou durante séculos a efetivação de atitudes arbitrárias, como significado de decisões de cunho subjetivo, isenta de qualquer possibilidade de controle[2].


Cumpre ressaltar, ademais, que desde o início da demarcação do âmbito de atuação dos poderes estatais, reservou-se ao Poder Executivo a prerrogativa de agir discricionariamente, isto é, atuando com certa parcela de liberdade e tomando decisões políticas de acordo com critérios convenientes e oportunos.


Essa distinta possibilidade de atuação encontra fundamento nas circunstâncias e particularidades do caso concreto, que impõem ao Poder Público “a utilização critérios próprios para avaliar ou decidir quanto ao que lhe pareça ser o melhor meio de satisfazer o interesse público que a norma legal visa a realizar”. (MELLO, 2009, p. 424)


Ainda, complementa Gustavo Binenbojm (2008, p. 198-199), o poder discricionário como instrumento de atuação da Administração Pública, dissipou-se com os fundamentos de que essa prerrogativa seria


“(i) necessária, para adequar a disciplina de certas matérias aos casos concretos; (ii) justificável, em face da impossibilidade de o legislador elaborar normas abarcando todos os múltiplos e complexos aspectos da vida social e econômica em que o Estado é chamado a intervir; e (iii) inevitável, diante da própria dinâmica tecnológica, cambiante e imprevisível do mundo moderno, que exige uma atuação rápida e especializada dos gestores públicos.”


Ademais, destaca o autor que tais fundamentos atribuem à discricionariedade um caráter excepcional, congregando “um plexo de competências decisórias externas ao direito”, e fortalecendo a máxima de que a atuação administrativa discricionária é “um espaço decisório totalmente infenso ao controle da jurisdição”.


No entanto, insta observar que essa parcela de liberdade de atuação do Poder Público, utilizando-se de critérios próprios para regular a atividade administrativa, demonstra certo contraste quando comparada à visão legalista introduzida pelo advento do Estado de Direito.


Baseando-se nessa prerrogativa, o Poder Público mantinha-se imune a qualquer controle, ileso a qualquer intervenção ou restrição de suas atividades. Permanecia, assim, a dificuldade de limitar atuações desmedidas e arbitrárias da Administração Pública no uso de sua discrição, sob o pseudoargumento da satisfação ao interesse público.


Coube, dessa forma, aos estudiosos enfrentarem um árduo trajeto para estabelecer parâmetros à atividade discricionária, através de uma busca incessante por teorias que balizassem a revisão jurisdicional e controlassem esse último resquício da atividade soberana e incontestável do monarca. E, nesse sentido, os fundamentos que possibilitam o controle jurisdicional dos atos administrativos sofreram uma constante evolução, atingindo o mais elevado grau de juridicização, conforme será abordado.


2 Do controle jurisdicional


De forma preliminar, cumpre mencionar que hodiernamente os atos editados pela Administração Pública estão sujeitos a duas formas de controle e revisão. Primeiro, permite-se um controle interno, isto é, o próprio órgão estatal é competente para revisar e corrigir seus atos. Ou ainda, em um segundo momento, os atos poderão ser submetidos à apreciação externa, cabendo ao Poder Judiciário verificar-lhes a presença de legalidade e legitimidade. Interessa ao presente artigo abordar as hipóteses de controle jurisdicional, sendo o controle interno tema momentaneamente inoportuno.


Essas possibilidades de controle encontram fundamento no sistema administrativo instaurado pelo Direito Administrativo Brasileiro. Segundo Hely Lopes Meirelles (2009, p. 53) “vigem, presentemente, dois sistemas diferençados: o do contencioso administrativo, também chamado de sistema francês, e o sistema judiciário ou de jurisdição única, conhecido por sistema inglês”.


Através do sistema do contencioso administrativo, a Administração Pública “não se submete à jurisdição comum, destinada a compor as lides privadas, mas sim a Tribunais com competência específica para a aferição dos atos administrativos”. (COELHO, 2004, p. 39)


Entretanto, no Brasil vige o sistema judiciário, no qual o controle administrativo realiza-se por meio da Justiça Comum, e utiliza-se dos meios processuais admitidos pelo Direito Comum, possibilitando ao cidadão ou outro legitimado, provocar o Poder Judiciário quando os atos da Administração ameaçar ou lesar seus direitos. (MEIRELLES, 2009, p. 58-59)


Ademais, o controle externo dos atos administrativos restou consubstanciado na Constituição Federal, art. 5º, inc. XXXV, com a expressa previsão de que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.


Esse sistema tem origem na Inglaterra, derivando da incessante busca do parlamento inglês em controlar os atos absolutos do soberano, conforme lição de Paulo Magalhães da Costa Coelho (2004, p. 40),


“Na Inglaterra, após longo e penoso desenvolvimento histórico com a edição, em 1701, do Act of Settement, é que se reconhece a estabilidade e a competência dos primeiros juízes, assegurando-lhes independência, e criando um embrião do controle administrativo por um órgão autônomo que a história batizará como Poder Judiciário. E sua evolução desaguará no denominado controle jurisdicional ordinário dos atos da administração pública, a cargo exclusivo dos órgãos do Poder Judiciário.”


Assim, nasceu na Inglaterra o embrião de um órgão autônomo e competente para controlar todos os atos da Administração Pública, tendo como principal alvo a polêmica atuação discricionária.


Inicialmente, a instauração desse controle externo despertou na doutrina especializada o desenvolvimento de teorias que possibilitavam a revisão, ainda que pequena, de certos pressupostos do ato administrativo. Com o transcorrer dos anos observou-se uma constante evolução de teses e estudos, desmistificando certos paradigmas até então intocáveis. Nesse caminho, as técnicas e possibilidades de controle evoluíram sobremaneira, de forma progressiva, desde as primeiras hipóteses de controle, até as modernas concepções de sindicalização baseadas nos princípios constitucionais, como se verá a seguir.


2.1 Do controle dos elementos vinculados do ato administrativo


Em um primeiro momento, intentou a doutrina especializada direcionar as possibilidades de revisão aos elementos vinculados do ato administrativo. Durante muitos anos restringiu-se a distinção entre atos administrativos vinculados e discricionários na clássica concepção de que estes últimos permitiriam à Administração Pública atuar com certa liberdade decisória. Na verdade, fazia-se a diferenciação entre eles por meio de sua conceituação ou característica predominante, excluindo a análise sob outros aspectos relevantes.


Sabe-se que ao editar atos vinculados, a Administração Pública está obrigatoriamente adstrita ao respeito da previsão legal. “A lei prescreve, em princípio, se, quando e como deve agir ou decidir”. (GASPARINI, 2007, p. 97) Não há, portanto, qualquer margem de subjetividade para o administrador, restando-lhe somente a total observância da prescrição normativa diante da situação concreta. Nestes casos, “a lei estabelece que, diante de determinados requisitos, a Administração deve agir de tal ou qual forma”. (DI PIETRO, 2007, p. 197)


Por outro lado, basicamente, entende-se que no tocante aos atos discricionários, a lei possibilitaria à Administração uma parcela de liberdade para praticar o ato, segundo critérios de oportunidade e conveniência, com o fim precípuo de satisfazer o interesse público. São os atos que “a Administração pode praticar com liberdade de escolha de seu conteúdo, de seu destinatário, de sua conveniência, de sua oportunidade e do modo de sua realização”. (MEIRELLES, 2009, p. 171)


Esta classificação e conceituação entre atos vinculados e discricionários, sempre dominou o entendimento doutrinário. Contudo, quando se restringe o exame de sua composição, isto é, de sua anatomia[3], verifica-se que atos vinculados e discricionários são compostos pelos mesmos elementos, quais sejam: competência, finalidade, forma, motivo e objeto. Sendo certo, que alguns elementos do ato administrativo são sempre vinculados e imprescindíveis para a legalidade e eficácia de ambas as espécies. Nesse sentido, surge a lição de Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2007, p. 201),


“[…] pode-se afirmar que não existe ato administrativo inteiramente discricionário. No ato vinculado, todos os elementos vêm definidos na lei; no ato discricionário, alguns elementos vêm definidos na lei, com precisão, e outros são deixados à decisão da Administração, com maior ou menor liberdade de apreciação da oportunidade e conveniência.”


Portanto, observa-se que sob essa abordagem estrutural do ato, a distinção entre vinculados e discricionários restringia-se objetivamente pela expressa previsão legal de todos os elementos (ato vinculado), ou ainda, da possibilidade ou não de previsão legal dos elementos motivo e objeto (ato discricionário) e nesse aspecto particular, localiza-se a denominada a discrição.


Quando conjugados, o binômio motivo e objeto originam o denominado mérito administrativo, que embora não seja considerado um requisito do ato administrativo, é indispensável para dar-lhe eficácia e validade, pois a Administração ao empregá-lo passa a atribuir certo valor ao ato praticado.


Segundo Hely Lopes Meirelles (2009, p 158), a distinção é observada, pois


“[…] nos atos vinculados, onde não há faculdade de opção do administrador, mas unicamente a possibilidade de verificação dos pressupostos de direito e de fato que condicionam o processus administrativo, não há que falar em mérito, visto que toda a atuação do Executivo se resume no atendimento das imposições legais. Em tais casos a conduta do administrador confunde-se com a do juiz na aplicação da lei, diversamente do que ocorre nos atos discricionários, em que, além dos elementos sempre vinculados (competência, finalidade e forma), outros existem (motivo e objeto), em relação aos quais a Administração decide livremente, e sem possibilidade de correção judicial, salvo quando seu proceder caracterizar excesso ou desvio de poder.”


Assim, com base nessa técnica de controle, a apreciação dos atos administrativos pelo Poder Judiciário restringia-se ao exame da legalidade do ato, ou seja, à verificação dos pressupostos extrínsecos, os elementos vinculados. E, quando não verificados os elementos previstos na lei, o ato administrativo carecia de legitimidade, pois desbordava aos limites legais.


No entanto, permanecia vedada qualquer intromissão jurisdicional relacionada à parcela discricionária da Administração, quando optasse segundo critérios de oportunidade e conveniência. Em suma, o mérito do ato estaria imune à atuação revisional externa.


Nesse sentido, Gustavo Binenbojm (2008, p. 202), ensina que


“[…] diante de um ato discricionário, isto é, em se verificando que a lei houvesse conferido ao administrador a possibilidade de optar entre praticar ou não um ato e/ou escolher os seus efeitos jurídicos, deveria o magistrado ater-se a aspectos meramente formais na atividade de controle. As razões pelas quais esta ou aquela medida houvessem sido adotadas refugiria ao exame próprio do Poder Judiciário, por fazerem parte da discricionariedade outorgada à autoridade administrativa, consubstanciando-se, tais razões, no próprio mérito do ato”.


Assim, se a discricionariedade administrativa encontrava-se no mérito, representando a possibilidade de escolha do motivo e objeto do ato a ser editado pelo Poder Público, esta opção estritamente política isentava-se de qualquer apreciação jurisdicional.


2.2 Do desvio de poder


Restrito ao exame da legalidade do ato, o Poder Judiciário encontrava-se impedido de sindicalizar atos visivelmente arbitrários e abusivos praticados pela Administração Pública, mas que preenchiam todos os requisitos exigidos pela lei. Felizmente, com o transcorrer do tempo, essa concepção simplista foi sendo superada.


Sob uma nova ótica, a doutrina passou a vislumbrar que a edição dos atos administrativos não deveria apenas preencher friamente os requisitos explícitos da lei, mas sim, respeitar a vontade, a finalidade legal, optando pela atitude mais satisfatória ao interesse da coletividade. Somente dessa forma estaria o agente atuando integralmente segundo os padrões da legalidade.


Nesse sentido, Celso Antonio Bandeira de Mello (2008, p. 15), afirma que a Administração Pública no exercício de suas atividades, realiza a função de gerenciar e zelar pelos interesses públicos. Essa atribuição, como fora mencionado, pauta-se estritamente pelos parâmetros da legalidade. Assim, para o ilustre autor, “desta necessária submissão da administração à lei, percebe-se que o chamado ‘poder discricionário’ tem que ser simplesmente o cumprimento do dever de alcançar a finalidade legal”.


Dessa forma, em todos os casos, é forçoso observar que o exame da realidade fática na aplicação da lei é imprescindível ao atendimento satisfatório daquela finalidade legal. Ou seja, é impossível negar que a intenção de uma determinada norma jurídica vinculativa é estabelecer o único comportamento a ser realizado pela Administração, certo de que essa exclusiva solução atenderá perfeitamente a finalidade legal, alcançando os fins de satisfação ao interesse público pelo qual a norma foi editada. (MELLO, 2008, p. 32)


Esse comportamento ótimo, excelente, perfeito, é implícito a toda norma de caráter público sendo, portanto, estendido aos casos de discrição administrativa. Nesse sentido, conforme o entendimento de Celso Antonio Bandeira de Mello (2008, p. 33),


“O comando da norma sempre propõe isto. Se o comando da norma sempre propõe isto e se uma norma é uma imposição, o administrador está, então, nos casos de discricionariedade, perante o dever jurídico de praticar, não qualquer ato dentre os comportados pela regra, mas, única e exclusivamente aquele que atenda com absoluta perfeição à finalidade da lei.”


E complementa, afirmando que


“O direito administrativo, por isso, não se aglutina – como ingenuamente possam pensar os administradores desmandados – em torna da noção de poder, mas congrega-se ao derredor da idéia de dever e – repita-se – de obsequiosa obediência às finalidades estipuladas no imperativo legal.” (MELLO, 2008, p. 54)


De acordo com esse novo prisma, a atuação discricionária deixa de ser vislumbrada como um poder atribuído ao Poder Executivo, para firmar-se como um dever de adotar a melhor solução ao caso concreto, e atingir ao fim precípuo da lei e do Direito.


Assim, ao desvirtuar a finalidade legal o administrador eiva de vício o ato editado, possibilitando sua apreciação judicial. Ou seja, ante a ocorrência da hipótese fática expressa na lei, e a Administração tratá-la com “um comportamento que desgarra do fim legal é, em suma, uma transgressão da lei”. Ocorre, portanto, explícita violação aos intentos da lei, sendo o controle jurisdicional um controle de estrita legalidade. (MELLO, 2008, p. 57)


Essa alteração ou supressão da finalidade legal, a doutrina denominou de “desvio de poder” ou ainda, em alguns casos, “desvio de finalidade”.


Segundo José Cretella Jr. (1997, p. 31), “desvio de poder é o uso indevido que a autoridade administrativa competente faz do poder discricionário que lhe é conferido, para atingir finalidade diversa daquela que a lei explícita ou implicitamente preceituara”.


Ainda, no entendimento de Celso Antonio Bandeira de Mello (2008, p. 57), o desvio de poder


“Consiste, pois, no manejo de um plexo de poderes (competência) procedido de molde a atingir um resultado diverso daquele em vista do qual está outorgada a competência. O agente se evade do fim legal, extravia-se da finalidade cabível em face da lei.”


Destarte, depreende-se que resta caracterizado o desvio de poder diante da distorção de um dos elementos vinculados do ato administrativo, qual seja a finalidade. “O fim de todo ato administrativo, discricionário ou não, é o interesse público. O fim do ato administrativo é assegurar a ordem da Administração, que restaria anarquizada e comprometida, se o fim fosse privado ou particular”. (CRETELLA JR., 1997, p. 37)


Assim, ante a alteração ou desvirtuamento da finalidade legal, brota cristalina a possibilidade do Poder Judiciário apreciar o ato, revisando-o ou anulando-o. Conforme entendimento de Celso Antonio Bandeira de Mello (2008, p. 37), nesses casos o controle judicial ocorreria


“[…] perante eventos desta compostura, em despeito da discrição presumida na regra de direito, se o administrador houver praticado ato discrepante do único cabível, ou se tiver eleito algum seguramente impróprio ante o confronto com a finalidade da norma, o Judiciário deverá prestar a adequada revisão jurisdicional, porquanto, em rigor, a Administração terá desbordado da esfera discricionária, já que esta, no plano das relações jurídicas, só existe perante o caso concreto.”


Gustavo Binenbojm (2008, p. 204) cita que no Brasil, o controle judicial da discricionariedade administrativa foi enfrentado pela primeira vez com a prolação de um acórdão do eminente Seabra Fagundes, na época Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte. Segundo o autor, somente a partir da publicação desta decisão “o controle da discricionariedade administrativa passou a ser difundido no país, onde, até então, era considerado um tabu, completamente insuscetível de qualquer controle jurisdicional”.


Com o decorrer dos anos, essa nova concepção foi amplamente aceita em nossos Tribunais, sendo assente até os dias atuais, conforme se pode vislumbrar de acórdão do Egrégio Supremo Tribunal Federal:


“CONCURSO PÚBLICO. TERCEIRIZAÇÃO DA VAGA. PRETERIÇÃO DE CANDIDATOS APROVADOS. DIREITO À NOMEAÇÃO. É da jurisprudência do Supremo Tribunal que há típica evidência de um desvio de poder quando, uma vez comprovada a existência da vaga, esta é preenchida, ainda que precariamente, caracterizando a preterição do candidato aprovado em concurso. Precedentes. 2. Recurso extraordinário. Não se presta para o reexame das provas e fatos em que se fundamentou o acórdão recorrido. Incidência da Súmula nº 279.” (Supremo Tribunal Federal STF; AI-AgR 594.955-1; BA; Primeira Turma; Rel. Min. Sepúlveda Pertence; Julg. 19/06/2007; DJU 03/08/2007; Pág. 72)


E, ainda:


“ADMINISTRATIVO. REMOÇÃO DE OFÍCIO. MOTIVAÇÃO POLÍTICA. DESVIO DE FINALIDADE. ANULAÇÃO DO ATO. I – Caso em que ficou evidente que a remoção de ofício de servidor público foi determinada com motivação política e, portanto, alheia ao interesse público. II – A Administração optou pela remoção em detrimento do afastamento preventivo, apesar de presentes os requisitos legais do último (art. 147 da Lei nº 8.112/90). Evidencia-se, assim, o caráter punitivo e desproporcional da medida. III – Caracterizado o desvio de finalidade, impõe-se a anulação do ato administrativo viciado. lV – Recurso conhecido e improvido. Remessa necessária conhecida e improvida.” (TRF 02ª R.; AC 197225; Proc. 99.02.12928-5; RJ; Quinta Turma Especializada; Rel. Des. Fed. Antônio Cruz Netto; Julg. 14/11/2007; DJU 07/12/2007; Pág. 341) LEI 8112-1990, art. 147


Assim, diante de flagrante violação à finalidade legal, estaria o Poder Judiciário autorizado a revisar o ato. Não se tratava, entretanto, de intromissão judicial na conveniência e oportunidade (mérito) verificadas para a prática do ato. O objetivo precípuo seria evitar a disseminação de arbitrariedades e desmandos da Administração Pública sob a falsa alegação desse argumento, como no caso abaixo:


“DIREITO ADMINISTRATIVO. DECLARAÇÃO DE DESNECESSIDADE DE CARGO PÚBLICO. EXONERAÇÃO DE AGENTES DE SAÚDE. EXISTÊNCIA DE CONCOMITANTE PROJETO DE LEI PARA CONTRATAÇÃO EM CARÁTER EXCEPCIONAL PARA O MESMO CARGO. DESVIO DE FINALIDADE DO ATO ADMINISTRATIVO. AUSÊNCIA DE PROSSUPOSTOS DE VALIDADE DO ATO. MOTIVO INFUNDADO. NULIDADE. O poder público pode determinar a desnecessidade de cargos públicos com fulcro no art. 41, §3º da CR/88. Contudo, é necessário que haja fundado motivo, ou seja, realidade fática que permita a declaração de desnecessidade do cargo. A imediata elaboração de Lei para contratação de profissionais para o mesmo cargo declarado desnecessário atesta o desvio de finalidade e falta de motivo que permitam a validação do ato administrativo analisado.” (TJ-MG; RN 1.0686.06.169932-4/0011; Teófilo Otôni; Primeira Câmara Cível; Relª Desª Vanessa Verdolim Hudson Andrade; Julg. 16/10/2007; DJEMG 07/11/2007)


Certamente, essa ampliação da esfera de atuação judicial revelou um eficaz meio de sindicalização de atos administrativos abusivos e desproporcionais praticados pelo Poder Público em detrimento aos administrados. Igualmente, a consignação doutrinária e jurisprudencial da teoria do desvio de poder mostrou-se fundamental para o desenvolvimento de outras técnicas de controle, contudo, não foi “suficiente para coibir abusos, que continuavam a manifestar-se diante da mencionada barreira ao controle jurisdicional exercida pela noção de mérito do ato”. (BINENBOJM, 2008, p. 205)


Nesse particular, restava à doutrina e jurisprudência especializada evoluir de forma a abarcar outras situações que se originavam dos contínuos desmandos do Poder Público, sob o falso fundamento da discricionariedade como instrumento essencial para a plena satisfação ao interesse público.


2.3 Dos motivos determinantes


Imune a controles externos mais aprofundados, e, protegida pela isenção da intervenção judicial do mérito administrativo, insistia a Administração Pública na prática de atitudes abusivas e arbitrárias.


Neste passo, prosseguiu a doutrina na análise dos elementos vinculados do ato administrativo, no sentido de atribuir uma maior juridicidade a toda atividade administrativa, culminando com o desenvolvimento de uma nova teoria que atrelava a validade do ato à apreciação da veracidade dos motivos alegados para a sua prática. A essa nova técnica de controle, a doutrina batizou-a de “teoria dos motivos determinantes”.


Irene Patrícia Nohara (2004, p. 73), destaca que essa teoria foi originalmente desenvolvida pelo ilustre jurista Gaston Jèze, com base nas construções jurisprudenciais do Conselho de Estado Francês. Ainda, complementa, afirmando que a teoria dos motivos determinantes desenvolveu-se como uma evolução da teoria do desvio de poder, viabilizando o controle da finalidade e da moralidade do ato editado, englobando e superando a teoria anterior.


Segundo essa teoria, “os motivos que determinaram a vontade do agente, isto é, os fatos que serviram de suporte à sua decisão, integram a validade do ato”. (MELLO, 2009, p. 398)


Nesse mesmo sentido, importa colacionar o ensinamento de Hely Lopes Meirelles (2009, p. 200):


“A teoria dos motivos determinantes funda-se na consideração de que os atos administrativos, quando tiverem sua prática motivada, ficam vinculados aos motivos expostos, para todos os efeitos jurídicos. Tais motivos é que determinam e justificam a realização do ato, e, por isso mesmo, deve haver perfeita correspondência entre eles e a realidade. Mesmo os atos discricionários, se forem motivados, ficam vinculados a esses motivos como causa determinante de seu cometimento e se sujeitam ao confronto da existência e legitimidade dos motivos indicados.”


Assim, procura-se vincular a validade do ato à veracidade dos motivos apresentados para sua edição. Surge, na verdade, mais uma forma de impedir que o administrador público se utilize de motivos fúteis ou falsos para a prática desmedida de atos administrativos.


Frise-se, outrossim, que a validade do ato vincula-se à verdade dos motivos apresentados, mesmo nos casos em que a motivação não é imperiosa, abordando, inclusive, os casos em que o motivo derive de clara discrição administrativa. Nessa esteira, cumpre destacar a lição de Gustavo Binenbojm (2008, p. 206):


“[…] ainda quando se esteja diante de ato cujo motivo não seja previsto em lei (motivo legal discricionário), a validade do ato estará condicionada à existência dos fatos apontados pela Administração como pressuposto fático-jurídico para sua prática, bem como à juridicidade de tal escolha.”


Conforme Irene Patrícia Nohara (2004, p. 79), existem certas circunstâncias em que os pressupostos de direito são demasiadamente amplos, permitindo certa discricionariedade do agente. Entretanto, a análise dos motivos que ensejaram a edição do ato administrativo consiste no exame de seus pressupostos fáticos, situação que extrapola o simples conteúdo da regra jurídica, e possibilita ao Poder Judiciário, se verificada a inexistência do motivo alegado, invalidar o ato.


Dessa forma, inexistindo os motivos argüidos para a prática do ato cabe ao Judiciário declarar sua invalidade. Não há, portanto, que se discutir a legitimidade dessa espécie de controle jurisdicional, entendimento já sedimentado nos Tribunais brasileiros:


“REINTEGRAÇÃO. SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. ATO ADMINISTRATIVO. RESCISÃO CONTRATUAL. NULIDADE. TEORIA DOS MOTIVOS DETERMINANTES. A empregadora, empresa integrante da Administração Pública, que não se utiliza da dispensa ad nutum, mas especifica os motivos pelos quais rescindiu o contrato de trabalho, fica vinculada às razões declinadas, em abono à teoria dos motivos determinantes. Deve, portanto, comprovar os motivos, possibilitando ao empregado o direito à ampla defesa. Do contrário, impõe-se o reconhecimento da nulidade do ato administrativo, com conseqüente reintegração do obreiro ao anterior posto de trabalho. Recurso da Reclamada a que se nega provimento.” (TRT 09ª R.; Proc. 13713-2006-009-09-00-5; Ac. 13645-2007; Primeira Turma; Rel. Des. Ubirajara Carlos Mendes; DJPR 01/06/2007)


E, ainda, no mesmo sentido:


“ADMINISTRATIVO. CONSTRUÇÃO. EMBARGO. TEORIA DOS MOTIVOS DETERMINANTES. A motivação do ato administrativo de embargo da obra, segundo a qual esta não estaria devidamente registrada na Prefeitura, por força da teoria dos motivos determinantes, vincula a Administração Pública, devendo, pois, ser verdadeira, sob pena de nulidade. Construção devidamente autorizada pelo Poder Público, nulidade do embargo.” (TJ-CE; AC 2005.0022.3396-9/1; Terceira Câmara Cível; Rel. Des. José Arísio Lopes da Costa; DJCE 28/11/2007; Pág. 28)


Consolidada pela doutrina e jurisprudência, a técnica de controle dos motivos do ato administrativo prosseguiu seu caminho teórico e evolutivo. A controlabilidade dos elementos vinculados do ato discricionário atingiu seu clímax com o desenvolvimento da tese que torna obrigatória a motivação de todo ato administrativo discricionário, como requisito de sua eficácia.


Basicamente, a teoria dos motivos determinantes evolveu no sentido de que havendo opção discricionária do agente público na escolha do motivo alegado para a prática do ato, resta imperiosa sua motivação, sob pena de retirar-lhe a validade. No Brasil, essa teoria teve como expoente o insigne professor Celso Antonio Bandeira de Mello (2008, p. 103-104):


“Deveras, o que torna exigente a motivação quando não imposta explicitamente pela lei, é a necessidade de sua existência como meio para aferir-se a consonância do ato com as condições e a finalidade normativamente previstas. A motivação é instrumento de garantia dos administrados. Donde, há de ser considerada indispensável nos casos em que a ausência de motivação contemporânea ao ato impeça ulterior certeza de que foi expedido segundo os exatos termos e requisitos da lei.”


E, conclui:


“[…] a motivação é da essência do ato, requisito indispensável de sua validade, segundo entendemos, nas hipóteses em que a motivação a posteriori não pode garantir de modo absolutamente induvidoso que motivos ulteriormente aduzidos preexistam e eram suficientes para sua válida produção, por coincidirem com o requerido pela lei.”


Assim, se o motivo é vinculado à edição do ato administrativo, a falta de motivação não o invalida, pois própria previsão legal autorizadora da prática do ato já prescreve os motivos. Entretanto, se “a escolha do motivo for discricionária (ou sua apreciação comportar alguma discricionariedade) ou ainda quando o conteúdo do ato for discricionário, a motivação é obrigatória”. (MELLO, 2008, p. 105)


E, nesse sentido, manifestou-se a jurisprudência pátria:


“APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA. REEXAME NECESSÁRIO. ADMINISTRATIVO. REMOÇÃO DE PROFESSORA MUNICIPAL DE UMA ESCOLA PARA OUTRA. ATO E MOTIVAÇÃO. INEXISTÊNTES. CONFIRMADA A SENTENÇA EM REEXAME NECESSÁRIO. 1. Não tem direito a inamovibilidade a integrante do magistério público municipal, podendo a Administração removê-la por critérios de oportunidade e conveniência. No entanto, atento a Teoria dos Motivos Determinantes, imperioso que o ato de remoção seja fundamentado, sob pena de nulidade. 2. O Ato Administrativo deve estar revestido dos requisitos legais e o controle judicial exercido de acordo com os princípios administrativos e constitucionais. 3. Sendo assim, diante da inexistência, sequer da Portaria com a motivação para remoção da impetrante, tenho que a confirmação da sentença se impõe, pois a nulidade foi bem aplicada no juízo monocrático. 4. Recurso Voluntário conhecido para manter inalterada a sentença singular que concedeu a impetrante a segurança para determinar o restabelecimento da carga horária de 200 horas/ mês, com os seus conseqüentes vencimentos, como também o retorno para a Escola de Ensino Fundamental José Jaime Benevides.” (TJ-CE; AC 2005.0006.8184-0/1; Terceira Câmara Cível; Rel. Des. Celso Albuquerque Macedo; DJCE 13/12/2007; Pág. 23)


Nessa mesma esteira:


“ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. PENALIDADE DISCIPLINAR. MOTIVAÇÃO. EXERCÍCIO DO DIREITO DE DEFESA. NECESSIDADE. ANULAÇÃO DO ATO. Conforme dispõe o artigo 475, I, do Código de Processo Civil, a sentença preferida contra a União está sujeita à remessa oficial, no caso tida por interposta. -Pretende a Autora a anulação da Portaria nº 01, de 17/12/1984, da Diretora do Serviço de Cadastramento Processual do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, por meio da qual lhe foi aplicada a penalidade de repreensão, alegando que foi impedida de exercer defesa. -Na contestação e nas razões de apelação, a legalidade do ato foi defendida, sob o fundamento da desnecessidade de motivação do ato, pois as supostas faltas da servidora foram presenciadas pela autoridade que aplicou a penalidade. -Mesmo antes do advento da Constituição de 1988, que passou a exigir o contraditório e a ampla defesa nos processos administrativos (art. 5º, LV, CF), já era necessária a aplicação do princípio da ampla defesa nas esferas civil e administrativa, consoante disposto no artigo 153, §15, da Constituição anterior. -A motivação sempre foi necessária em qualquer ato administrativo, seja ele vinculado ou discricionário, pois possibilita o controle da legalidade da atuação da Administração Pública pelo Poder Judiciário. -Precedentes. -Apelação e remessa oficial improvidas”. (TRF 03ª R.; AC 26477; Proc. 90.03.018356-2; SP; Turma Suplementar da Primeira Seção; Rel. Juiz Conv. Noemi Martins; DJU 05/12/2007; Pág. 434)


Por derradeiro, fortaleceu-se o entendimento da necessidade de motivação dos atos administrativos discricionários com a edição da Lei n. 9.784/1999, que previu expressamente em seu art. 2º, a obrigatoriedade da atividade administrativa federal observar o princípio da motivação, dentre outros.


Com efeito, a sindicalização judicial dos elementos vinculados do ato administrativo alçou significantes conquistas no sentido de minimizar as variadas formas de expressão arbitrária da discricionariedade administrativa. Contudo, permaneciam inacessíveis inúmeras outras atividades da Administração Pública, perpetradas sob o manto do mérito administrativo. Seria necessário ir além, estabelecer uma maior juridicidade e limites ao administrador público, e, o desenvolvimento da teoria da vinculação direta aos princípios constitucionais e administrativos pôde empreender um controle mais apurado da atividade administrativa discricionária, conforme será tratado em seguida.


3 Do controle principiológico dos atos administrativos


3.1 Do Estado Constitucional de Direito


A instituição do Estado Democrático de Direito, e a consequente delimitação da esfera de atuação dos poderes estatais, finalizou um longo processo de afirmação de competências e atribuições do Estado para com os cidadãos.


Até o estabelecimento das bases democráticas atuais, o sistema de poder percorreu extenso e tortuoso trajeto, desde as mais remotas formas de organização estatal, o absolutismo monárquico, o Estado liberal e social, e tantas outras transformações históricas.


Nesse caminho, vislumbrou-se que com a decadência dos impérios absolutistas, erigiu-se em contrapartida, um sistema de poder onde a supremacia política e jurídica fixou-se como exclusiva atribuição do Poder Legislativo, tendo a lei como único instrumento de proteção e garantia de direitos. Nas palavras de Luiz Henrique Urquhart Cademartori (2007, p. 61):


“Nesse novo modelo, sob o império da lei, que passou a ser considerado a instância máxima contra o arbítrio dos governantes, abriram-se novas oportunidades de ampliar a discricionariedade do poder estatal. Isto porque a lei, como instância soberana, não obedecia, ela própria, a nenhuma limitação de conteúdo quanto ao que pudesse ser legislado.”


Nesse sentido, introduzia-se a necessidade – obrigatória até os dias atuais – de que toda atividade estatal estivesse estritamente vinculada aos pressupostos legais. No entanto, formou-se a concepção de que “qualquer poder deveria ser conferido pela lei, sendo o seu exercício e procedimentos exclusivamente por ela outorgados sem a observância de quaisquer parâmetros axiológicos”. (CADEMARTORI, 2007, p. 61)


Dessa forma, possibilitava-se ao Estado realizar todo tipo de atividade, abusivas e arbitrárias, desde que sua atuação fosse balizada pelo ordenamento jurídico. Sob essa ótica, afastou-se o Direito da realidade social, de modo que a formalização absoluta e extrema da legislação disseminou a máxima de que “não havia limites para a atuação do legislador e os juízes e administradores eram meros repetidores do texto legal”. (BINENBOJM, 2008, p. 127)


Ainda, nos dizeres de Luiz Henrique Urquhart Cademartori (2007, p. 61):


“Como conseqüência dessa dissociação, esvaziou-se do Direito qualquer referência substancial, tornando-se ele um simples receptáculo de quaisquer decisões adotadas via processo legislativo. Diante desse quadro, tanto o modelo político quanto o modelo jurídico ficaram reduzidos a uma convenção formal e vazia de qualquer orientação pragmática ou de qualquer pretensão de adequação à realidade social.”


E, sob a concepção sacralizada de que a lei seria o único instrumento garantidor de direitos, sendo, portanto, considerada de conteúdo inquestionável, acabaram-se por legitimar as maiores atrocidades do século XX. Conforme afirma Gustavo Binenbojm (2008, p. 129):


“De fato, quando se pensava ter-se alcançado o mais elevado grau de desenvolvimento da civilização ocidental, a lei, expressão da vontade geral cujo conteúdo independe de maiores questionamentos, foi capaz de legitimar as práticas nazi-facistas, que criaram talvez a maior cicatriz da história do século passado. A constatação de que a lei é insuficiente para trazer justiça e liberdade fez com que ela perdesse a aura de superioridade moral que havia incorporado com a Revolução Francesa.”


Dessa forma, “a lei deixou de ser um tipo de salvaguarda frente ao Estado e se transformou em mecanismo de legitimação do poder político e expressão da vontade estatal”. (CADEMARTORI, 2007, p. 63) Nesse caminho, o sistema retornava à tão combatida concepção de autoritarismo e centralização do poder, não mais reunido nas mãos de único soberano, mas de um Estado estruturalmente concebido.


Assim, essa concepção absoluta da legalidade não tardaria a demonstrar sinais de transformação, restando incapaz de atender às exigências sociais que a própria lei pretendia albergar.


Essa evolução culminou com a progressiva implantação e legitimação de uma moderna concepção axiológica, na busca por um “novo modelo de Estado, capaz de restaurar a eficácia do Direito como limite ao poder da lei.” (CADEMARTORI, 2007, p. 63) E, ainda, adequado à realidade social, sendo apto a garantir os direitos mais basilares de ordem eminentemente fundamental. Dessa forma, observou-se que somente através do estabelecimento de uma Constituição que o Estado de Direito encontraria sua essência, a ponto de estruturar todo o seu arcabouço, como conteúdo e forma. (COELHO, 2004, p. 03)


Surgia, portanto, um novo modelo estatal, sob a denominação de Estado Constitucional de Direito, que nas palavras de Luiz Henrique Urquhart Cademartori (2007, p. 64), se caracteriza:


“[…] por afirmar o caráter normativo das Constituições, que passaram a integrar um plano de juridicidade superior e com isso, acentuaram-se estas, como linhas de princípio vinculantes e indisponíveis para todos os poderes do Estado.”


Desse modo, com a fixação da prerrogativa legiferante do Poder Legislativo, delimitando o sentido estrito de atuação do Executivo, e, por fim, a legitimação da inspeção revisional do Poder Judiciário, representava o sistema ideal e complexo de separação de poderes com seus respectivos contrapesos, como forte obstáculo à prática de qualquer atuação desmedida.


No Brasil, expressamente consagrado no art. 2º da Constituição Federal, a confluência e atuação igualitária desses poderes tende a construir um Estado capaz de atingir os objetivos fundamentais, bem como garantir todos os direitos e interesses amparados pela Lei Maior.


Como ordenamento hierarquicamente superior, a Constituição Federal buscou prever todas as atribuições e prerrogativas de cada um desses poderes, definindo seus deveres e cometimentos indispensáveis ao pleno desenvolvimento do Estado. Assim, normas de caráter constitucional devem ser consideradas como primordiais na aplicação do Direito e, consequentemente balizadora de toda atividade estatal, consagrando uma nova ordem, uma moderna ótica, sob a égide do Estado Constitucional de Direito.


Dessa forma, a hegemonia da lei como exclusiva fonte de direitos, é substituída progressivamente por uma moderna concepção constitucional, representada por princípios capazes de nortear as mais variadas formas de manifestação social. O Direito, portanto, percorre uma fase de transição, de substituição de dogmas e paradigmas. Nas palavras de Germana de Oliveira Moraes (2004, p. 185):


“[…] vivemos uma época de transição: de transição do Direito ‘por regras’, antes reconduzível ao legalismo, ao Direito ‘por princípios’, consectário do reconhecimento da insuficiência da lei, porque nem sempre capaz de realizar a Justiça, da lei como parâmetro exclusivo ou primordial das condutas da sociedade.”


3.2 Do controle principiológico dos atos administrativos


Sob os fundamentos dessa nova concepção constitucional do Direito, todos os demais ramos da ciência jurídica passaram por modificações, provocando uma radical transformação de suas bases teóricas. E, nesse sentido, a Constituição deixou de ser representada como uma mera codificação de normas hierarquicamente superiores, para ocupar uma posição essencial de validade para todo ordenamento jurídico, capaz de orientar toda a atividade estatal na incumbência de efetivar direitos e garantias fundamentais.


Nas palavras de Paulo Magalhães da Costa Coelho (2004, p. 51-52):


“A antiga visão que reduzia a Constituição a um mero modelo retórico, programático e de linhas de intenções absolutamente tênues não tem mais lugar no moderno constitucionalismo. Antes, ao contrário, no moderno constitucionalismo, a Constituição ocupa o coração da ordem jurídica nacional e tem uma missão dirigente e vinculadora dos poderes do Estado.”


E, nos moldes do Estado Constitucional de Direito impõe-se ao Poder Público, como principal garantidor de direitos, a observância de valores superiores, isto é, a obediência aos princípios constitucionais.


De acordo com esse novo modelo estatal, a Administração Pública restou vinculada ao respeito dos princípios constitucionais, portadores de uma carga valorativa superior, contendo os mais basilares direitos da pessoa humana. De forma que, “a Administração não pode eximir-se dos direitos e interesses dos cidadãos, já que ela própria é uma manifestação da subordinação do Estado ao social, ou seja, ao externo”. (CADEMARTORI, 2007, p. 151)


Deixa de reinar, portanto, a legalidade como absoluto parâmetro da atividade estatal, substituindo a compreensão do “Direito reduzido à legalidade pela noção de juridicidade, não sendo mais possível solucionar os conflitos com a Administração Pública apenas à luz da legalidade estrita.” (MORAES, 2004, p. 30)


Assim, nesse contexto, a aplicação do Direito desloca-se da concepção estrita do legalismo à carga axiológica cujos princípios são portadores. Evolui-se obrigatoriamente da tradicional e irrestrita observância ao princípio da legalidade como único fundamento da atuação administrativa, para a concepção atual de obediência aos demais princípios constitucionais.


Na lição de Juarez Freitas (2004, p. 212), “haverá de sempre ser tomado em consideração o princípio da legalidade, porém de modo jamais excludente ou inflacionado a ponto de depreciar ou desvincular a autoridade administrativa dos demais princípios”.


Ainda, nos dizeres de Paulo Magalhães da Costa Coelho (2004, p. 50):


“Os princípios refletem um posicionamento ideológico do Estado e da Nação frente aos diversos valores da humanidade. Bem por isso, a administração pública, na gestão do Estado, na condução das políticas públicas e em suas relações com os administrados, não pode ignorá-los; antes, ao contrário, está a eles vinculada, mesmo nas hipóteses de atuação discricionária. Toda atividade administrativa se desenvolve debaixo do ordenamento jurídico que dela exige o cumprimento de certos requisitos formais e outros, ainda, materiais. Não basta que a atividade respeite a regra de competência e se dê pelo devido processo legal formal. É preciso mais do que isso, é preciso que o ato emanado, ainda que de natureza discricionária, esteja em harmonia com os fins e os valores do ordenamento jurídico.”


Restava, portanto, ultrapassado o método legalista de controle jurisdicional da atividade administrativa. Assim, o modelo de revisão baseado nos elementos vinculados do ato administrativo seria progressivamente substituído por uma espécie mais ampla de sindicalização, qual seja, baseada na observância aos princípios. “Nessa nova realidade política, o modelo paradigmático francês do controle da legalidade do ato não satisfaz mais as exigências constitucionais”. (CADEMARTORI, 2007, p.152)


Nesse sentido, importa destacar o entendimento de José Afonso da Silva (2008, p. 428):


“Que o Judiciário venha ampliando esse controle, em observância daquelas regras antes não-jurídicas, mas agora constitucionalizadas (moralidade, probidade, finalidade pública, impessoalidade etc.), a que a Administração deve adequar-se para poder dar às suas decisões caráter de razoabilidade, de logicidade, de congruência, faltando o qual as decisões se manifestam viciadas de excesso de poder, saindo, por assim dizer do campo da discricionariedade para ingressar no limiar da arbitrariedade.”


E, com base nessas afirmações, verifica-se que a atuação jurisdicional de controle dos atos que manifestamente afrontem aos princípios constitucionais, encontra legitimação e validade em uma ordem superior de mandamentos, dotados de valores transcendentais, tendo como fundamento direitos e garantias dos administrados. Na visão de Luiz Henrique Urquhart Cademartori (2007, p. 152), toda atividade administrativa “é atividade condicionada juridicamente na qual não existem poderes implícitos ou imunes a um controle e onde a garantia jurisdicional contra os atos da Administração tende, assim como as outras garantias jurisdicionais, à tutela dos direitos e interesses dos cidadãos”.


Nesse passo, insta declinar a lição de Germana de Oliveira Moraes (2004, p. 112):


“A constitucionalização desses princípios da Administração Pública e dos princípios gerais do Direito gerou para o Poder Judiciário a possibilidade de verificar além da conformidade dos atos administrativos com a lei, ao exercer o controle de seus aspectos vinculados, à luz do princípio da legalidade, também aspectos não vinculados desses atos, em decorrência dos demais princípios constitucionais da Administração Pública, da publicidade, da impessoalidade e de moralidade, do princípio constitucional da igualdade e dos princípios gerais da razoabilidade e proporcionalidade.”


Surge, destarte, uma compreensão inovadora de controle da atividade administrativa, de forma a evitar as múltiplas arbitrariedades que ainda se perpetravam. A sindicalização por princípios tende a direcionar a atuação pública não somente ao atendimento estrito da legalidade, mas vinculá-la à observância holística de valores inerentes ao mais elevado ordenamento jurídico, a Constituição.


Dessa forma, encontram-se sujeitos ao controle jurisdicional todos os atos administrativos que atentarem contra qualquer princípio, independentemente da sua conformação integral à lei. Pois, segundo os fundamentos dessa perspectiva, “amplia-se o âmbito restrito das regras (leis e atos normativos em geral) e adentra-se a esfera dos princípios como normas que deverão constatar a adequação ou não do ato em questão ao ordenamento jurídico do Estado Constitucional”. (CADEMARTORI, 2007, p. 153)


Nesse sentido, importa colacionar jurisprudência recente:


“DIREITO ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. CONCURSO PÚBLICO. ANULAÇÃO. NÃO-PREVISÃO DE VAGAS PARA AFRODESCENDENTES. CANDIDATOS APROVADOS EM NÚMERO INFERIOR AO DE VAGAS OFERECIDAS. OFENSA AOS PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E DA PROPORCIONALIDADE. RECURSO PROVIDO. 1. A anulação de concurso público no qual foram aprovados candidatos em número inferior ao de vagas oferecidas, sob o fundamento de que não fora observada lei estadual que determina a reserva de 10% das vagas para candidatos afrodescendentes, fere os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. 2. Recurso ordinário provido.” (STJ; 5ª Turma; ROMS 200701496646; Rel. Arnaldo Esteves Lima – DJE 14/09/2009)


Ainda, na mesma direção:


“ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. DEMISSÃO. PRINCIPIO DA PROPORCIONALIDADE E RAZOABILIDADE. VERIFICAÇÃO DA CORRESPONDÊNCIA ENTRE A PENA APLICADA E A CONDUTA PRATICADA. POSSIBILIDADE DE CONTROLE PELO JUDICIÁRIO. PRECEDENTES DESTA CORTE E DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. CONDUTA DESIDIOSA. CARACTERIZAÇÃO. REEXAME DE MATÉRIA FÁTICA. SÚMULA N.º 07 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 1. Ao Judiciário, nos termos da jurisprudência dominante nos Tribunais Superiores, cabe anular a demissão imposta ao servidor, fundamentado no fato de não haver a necessária proporcionalidade entre o fato apurado e a pena aplicada, sendo certo que sua atuação deve ser pautada pelo princípio da proporcionalidade que rege o controle judicial do ato administrativo. Precedentes. 2. A pretendida inversão do julgado implicaria, necessariamente, o reexame dos fatos e provas carreadas aos autos, o que não se coaduna com a via eleita, consoante o enunciado da Súmula n.º 07 do Superior Tribunal de Justiça. 3. Recurso especial não conhecido.” (STJ; 5ª Turma; RESP 200501097879; Rel. Laurita Vaz; DJE: 20/04/2009)


Desse modo, observa-se que a vinculação da atividade administrativa aos princípios constitucionais encontra-se cediça nos Tribunais nacionais, não restando dúvidas quanto à possibilidade de judicialização de atos administrativos avessos à ordem principiológica.


Não se trata, entretanto, de supressão ao desenvolvimento da atuação política, necessária ao satisfatório desempenho da atividade administrativa. Impõe-se, certamente, a manutenção da liberdade de opção discricionária do administrador. Porém, amparado por essa concepção principiológica, amplia-se a possibilidade de revisão jurisdicional de atos que desbordem os fundamentos e valores constitucionais. Nas palavras de Juarez Freitas (2004, p. 229):


“Por tudo, sem desrespeito à autonomia e independência da Administração Pública, não se deve aceitar ato administrativo exclusivamente político, pois todos os atos (e respectivas motivações) da Administração Pública devem guardar fina sintonia com as diretrizes eminentes do Direito Administrativo (em especial, aquelas agasalhadas nos arts. 37 e 70 da CF).”


Ademais, em respeito ao princípio da separação dos poderes do Estado, consagrado no art. 2° da Constituição Federal, não cabe ao Poder Judiciário adentrar na esfera de atuação típica do Poder Executivo, praticando atos de administração. Há, certamente, “uma área de atuação exclusiva da Administração Pública, cujas manifestações são mérito do ato discricionário e a valoração administrativa dos conceitos jurídicos indeterminados de prognose.” (MORAES, 2004, p. 110) Nesses casos, a intervenção jurisdicional representa abuso dos limites constitucionalmente delineados.


Verifica-se, nesse sentido, que o Judiciário tem atuado com prudência, delimitando cuidadosamente as hipóteses de controle, eximindo-se de adentrar na esfera meritória do ato administrativo, fruto de decisão eminentemente política. Nessa direção, convém colacionar o seguinte julgado:


“ADMINISTRATIVO. MILITAR. MUDANÇA DOS CRITÉRIOS CLASSIFICATÓRIOS PARA VAGA NO CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO DE CABOS DO CORPO DE FUZILEIROS NAVAIS. COMPETÊNCIA DO COMANDO DO CORPO DE FUZILEIROS NAVAIS DA MARINHA PARA FIXAR AS REGRAS RELATIVAS AO MAPA DE PONTUAÇÃO PARA PROMOÇÕES. ATO DISCRICIONÁRIO. Recurso de apelação interposto em face da sentença que julgou improcedente pedido de reintegração aos quadros do Corpo de fuzileiros Navais da Marinha do Brasil, bem como à matricula no Curso de Especialização para Cabos. A alteração das regras de acesso ao referido curso se insere no poder discricionário da Administração Militar. Assim, somente na hipótese de ilegalidade, ou inobservância dos princípios orientadores da Administração Pública, dentre eles, a razoabilidade, a proporcionalidade e a moralidade, se justificaria a intervenção do Judiciário, o que não é o caso dos autos. Recurso improvido.” (TRF 02ª R.; AC 2002.51.01.012648-5; Oitava Turma Especializada; Relª Juíza Fed. Conv. Maria Alice Paim Lyard; Julg. 04/12/2007; DJU 14/12/2007; Pág. 333)


Assim, importa ressaltar que permanece a vedação à revisão jurisdicional do mérito administrativo. Resguarda-se, portanto, esse privilégio da Administração Pública quando realizar opções políticas, de acordo com a oportunidade e conveniência do interesse público. No entanto, sob a égide do constitucionalismo, conserva-se certa carga vinculativa dos atos administrativos aos princípios constitucionais, sem a qual não apresentam legitimidade.


Desse modo, observa-se que o controle jurisdicional baseado nos princípios não se erige como obstáculo à plena atuação discricionária da Administração. Intenta-se, na realidade, estabelecer parâmetros e limites na utilização dessa prerrogativa, como uma nova forma a evitar o prolongamento de medidas abusivas e arbitrárias cometidas sob o manto da discrição administrativa.


Conclusão


Do exposto, conclui-se ser indispensável reservar à Administração Pública uma parcela de atuação discricionária, de forma a aferir a melhor opção dentre as situações que se impõem, e, que atenda satisfatoriamente aos interesses públicos. Embasado nesse privilégio, possibilita-se ao Poder Público realizar decisões de cunho eminentemente político, segundo critérios próprios de oportunidade e conveniência. Assim, importa dizer que o poder discricionário é prerrogativa essencial para o pleno exercício da atividade administrativa.


Forçoso dizer, entretanto, que a discrição administrativa sempre foi considerada e exercida pela Administração Pública como um direito de uso ilimitado, não havendo quaisquer parâmetros na utilização desse exclusivo privilégio. E, em razão dessa concepção soberana e isenta de qualquer controle, manifestaram-se as mais variadas formas de arbitrariedade. Isto é, não obstante a reconhecida supremacia dos interesses públicos, a atuação administrativa, por inúmeras vezes, utilizando-se de sua discrição própria e sob o falso argumento da satisfação desses interesses, tem lesado sobremaneira direitos fundamentais dos cidadãos, extrapolando os limites da legalidade.


E, em resposta a essa invasão na esfera de direitos privados, desbordando os critérios legais, a doutrina tem caminhado na busca por um controle mais rígido da atividade administrativa, estabelecendo novas técnicas de forma a possibilitar uma maior revisão de atos administrativos manifestamente ilegais.


Assim, em razão das incontáveis atividades arbitrárias deflagradas pelo Estado, a doutrina desenvolveu durante séculos um denso conteúdo teórico acerca das possibilidades de controle jurisdicional da atividade administrativa, através das mais variadas técnicas de sindicalização judicial.


Nesse sentido, e baseado no sistema de direito administrativo vigente no Brasil, permite-se à própria Administração revogar seus atos, porém, não o fazendo, cabe ao Poder Judiciário apreciá-los para aferir sua legitimidade. Essa função revisional dos atos administrativos por meio do Poder Judiciário encontra fundamento no art. 5º, inc. XXXV da Constituição Federal, onde “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.


Esse controle externo, exercido pelo Poder Judiciário, tem produzido consideráveis efeitos, anulando e reduzindo significativamente a prática de atos administrativos de conteúdo lesivo ou desmedido. Não restam dúvidas, portanto, da grande contribuição doutrinária ao desenvolver formas mais apuradas de revisão de atos administrativos ilegais.


Conforme fora demonstrado, as possibilidades de sindicalização evoluíram sobremaneira, iniciando-se com a total verificação dos elementos vinculados do ato administrativo, passando pela obrigatoriedade de motivação dos atos editados, e, alcançando seu ápice com a instituição do Estado Constitucional de Direito e o controle exercido por meio dos princípios.


No entanto, consoante mencionado, deve o Poder Judiciário respeitar alguns limites quando o conteúdo do ato administrativo referir-se à parcela de decisão política resguardada exclusivamente à apreciação administrativa. Tais atos, destarte, isentam-se de qualquer controle. Nesses casos, impõe-se a privativa verificação política do administrador, situações as quais somente a Administração Pública é capaz de aferir se o ato será oportuno e conveniente, e se trará, conseqüentemente, benefícios ao interesse público.


E, nesse entendimento, resta impedido o Judiciário de adentrar à esfera meritória do ato administrativo, sob pena de atuar como se Administração fosse, afrontando diretamente o princípio da separação dos poderes do Estado, expresso no art. 2º da Constituição Federal.


Assim, as variadas possibilidades de controle jurisdicional surgiram como resposta à infinidade de abusos perpetrados pela Administração Pública sob o falso fundamento da satisfação do interesse público. Entretanto, observa-se que todas essas técnicas não buscaram excluir a parcela de discrição reservada ao Poder Executivo, suprimindo essa indispensável prerrogativa de desempenho da atividade administrativa. Intentou-se, na verdade, limitar essa atuação discricionária, conformando-a a critérios estritamente legais ou ainda, principiológicos, sempre no sentido de minimizar os abusos cometidos por maus administradores.


 


Referências bibliográficas

BINENBOJM, Gustavo. Uma Teoria do Direito Administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

BRASIL, Supremo Tribunal Federal; AI-AgR 594.955-1 – BA; Primeira Turma; Rel. Min. Sepúlveda Pertence; Julg. 19/06/2007; DJU 03/08/2007; Pág. 72. Disponível em http://www.stf.jus.br> Acesso em 24 jul. 2009.

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Notas:

[1] Neste sentido Luiz Henrique Urquhart Cademartori (Discricionariedade Administrativa no Estado Constitucional de Direito. 2. ed. rev. e atual. Curitiba: Juruá, 2007. p. 37), destaca que essa forma de governo era legitimada por princípios consuetudinários como o “regis voluntas suprema (a vontade do rei é a lei); quad principi placuit legis habet vigorem (aquilo que agrada ao príncipe tem força de lei) ou the king can not wrong (o rei não pode errar).”

[2] Conforme o Dicionário Houaiss (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 1053) o vocábulo “discricionário” significa “livre de condições, de restrições; arbitrário, discricional, ilimitado”.

[3] Expressão utilizada por Celso Antonio Bandeira de Mello (Curso de Direito Administrativo. 26. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 385)


Informações Sobre o Autor

Diogo Fantinatti De Campos

Acadêmico de Direito pela Faculdade Estadual de Direito do Norte Pioneiro – Fundinop/UENP


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