Fundos de desenvolvimento regional: considerações sobre a natureza jurídica

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Resumo: O ponto nodal para o raciocínio a ser desenvolvido neste artigo corresponde em saber se os fundos de investimento regional possuem natureza pública ou privada. A questão não é diretamente enfrentada pelos tribunais, que, de maneira maquinal, tratam os fundos de investimento como sendo de natureza pública, mas não atentam para as consequências da premissa firmada. Essa conduta gera posicionamentos paradoxais, como se verá mais a seguir.


Palavras-chave: Fundos de investimento regional, Natureza jurídica, Redução das desigualdades regionais


Sumário: 1. Introdução; 2. A redução das desigualdades regionais mediante incentivos fiscais; 3. Os fundos de desenvolvimento regional; 4. Sistemática dos fundos de desenvolvimento regional; 5. Natureza Jurídica dos fundos de desenvolvimento regional; 5.1. O posicionamento do TCU a partir do processo de tomada de contas especial; 5.2. As divergências entre os membros do Tribunal de Contas da União; 5.3. Críticas à divergência aberta; 6. Conclusão; 7. Referências.


1. Introdução


A concessão de incentivos fiscais, na hipótese dos fundos de investimento regional, é um exemplo de confluência entre o interesse público e o interesse particular do empreendedor. O primeiro se consubstancia no incentivo à atividade econômica indutora de melhorias em indicadores sociais, corolário da função estatal de promoção do bem-estar social, enquanto o segundo se materializa no retorno do investimento realizado e na remuneração aos detentores do capital.


O ponto nodal para o raciocínio a ser desenvolvido neste artigo corresponde em saber se os fundos de investimento regional possuem natureza pública ou privada. A questão não é diretamente enfrentada pelos tribunais, que, de maneira maquinal, tratam os fundos de investimento como sendo de natureza pública, mas não atentam para as conseqüências da premissa firmada. Essa conduta gera posicionamentos paradoxais, como se verá mais a seguir.


2. A redução das desigualdades regionais mediante incentivos fiscais


Os fundos de investimento regional, também chamados de fundos fiscais de investimento, surgiram nos governos militares com o intuito de fomentar o desenvolvimento econômico de regiões de reconhecida carência de poupança privada[1]. Com efeito, visava-se à superação de um quadro de graves distorções regionais evidenciadas pelos diversos indicadores de desenvolvimento.


Nestes casos, a premissa da atuação estatal se coadunava com a incorporação do modelo de Bem-Estar Social pelo Estado brasileiro, pautado por uma atuação diretamente interventora na economia, firmando-se no entendimento de que:


“o subdesenvolvimento não pode ser superado pela mera modernização do país, pois essa não é capaz de romper a assimetria estrutural na capacidade de introduzir e difundir o progresso técnico entre o centro e a periferia e, no interior desta, entre estruturas econômicas e sociais altamente heterogêneas”[2].


Como é se notar, os valores fundantes que levaram à criação dos fundos foram posteriormente consagrados na Constituição Federal de 1988, a qual elegeu a redução das desigualdades regionais como um dos objetivos da República Federativa do Brasil (art. 3º, III). Nesta linha, a Constituição da República, no inciso I do art. 151, autorizou a concessão de incentivos fiscais destinados a promover o equilíbrio do desenvolvimento socioeconômico entre as diferentes regiões do País, estabelecendo de forma complementar, no §6º do art. 150, a necessidade de previsão legal para sua instituição.


3. Os fundos de desenvolvimento regional


Os fundos públicos são constituídos por um conjunto de recursos vinculados ou alocados a uma área específica, com atribuição e responsabilidade para cumprimento de objetivos determinados, mediante execução de programas com eles relacionados.


Conforme destaca Osvaldo Maldonado Sanches, as expressões fundo orçamentário e fundo especial designam tipos excepcionais de programação orçamentária e de gestão de recursos financeiros, sendo que apenas os últimos possuem características mais ou menos definidas na legislação[3], em particular pelo disposto no art. 71 da lei nº. 4.320/64, assim redigido: “constitui fundo especial o produto de receitas especificadas que por lei se vinculam à realização de determinados objetivos ou serviços, facultada a adoção de normas peculiares de aplicação”.


Usualmente, os fundos se encontram diretamente ligados a um órgão da Administração Pública, que sobre ele realiza controle imediato, ao tempo em que o Poder Legislativo, com auxílio do Tribunal de Contas, realiza o seu controle externo. Neste ponto, cumpre destacar que o fundo tem como característica a descentralização do processo decisório para a sua administração imediata, constituindo-se também em exceção ao princípio da especialidade do orçamento, segundo o qual os gastos devem estar individualizados no orçamento.


Diante das peculiaridades, Kiyoshi Harada, comentando os arts. 73 e 74 da Lei nº. 4320/64, anota que:


“Salvo determinação em contrário da lei que o instituiu, o saldo positivo do fundo especial apurado em balanço será transferido para o exercício seguinte, a crédito do mesmo fundo. A lei que instituir fundo especial poderá prever mecanismo próprio de controle, prestação e tomada de contas, sem de qualquer modo, elidir o controle externo a ser executado pelo Poder Legislativo, com o auxílio do Tribunal de Contas. Na verdade, o fundo representa sério obstáculo ao efetivo exercício pelo Poder Legislativo de seu poder de fiscalizar e controlar a execução orçamentária, por esvaziar o princípio da especialidade, segundo o qual são discriminados no orçamento anual os créditos cabentes a cada órgão estabelecendo o prazo para efetivação das despesas”[4].


Com o objetivo de evitar a propagação dos fundos, o constituinte originário inseriu no inciso II do art. 9º do art. 165 da Constituição Federal a previsão de que lei complementar deve ser normas de gestão financeira e patrimonial da administração direta e indireta, bem como condições para a instituição e funcionamento de fundos”. A referida lei complementar ainda não existe, de modo que todos os fundos criados após o advento da atual Constituição Federal se deram por meio de emenda constitucional.


No mesmo intuito, o art. 36 do ADCT dispôs que “os fundos existentes na data da promulgação da Constituição, excetuados os resultantes de isenções fiscais que passem a integrar patrimônio privado e os que interessem à defesa nacional, extinguir-se-ão, se não forem ratificados pelo Congresso Nacional no prazo de dois anos”. Acerca disso, Lafayete Josué Petter destaca que:


“A idéia predominante é a de que o controle financeiro e orçamentário das contas públicas, característica de um autêntico modelo democrático, não se compagina com a experiência do passado, onde proliferam fundos desprovidos de efetivo controle social”[5].


Na linha dos desígnios constitucionais para a redução das desigualdades regionais, o Fundo de Investimentos do Nordeste (FINOR) e o Fundo de Investimentos da Amazônia, (FINAM) foram criados, pelo Decreto-Lei nº 1.376/74, com o objetivo principal de promover a diminuição dos acentuados desníveis socioeconômicos entre as regiões Nordeste e Norte para com as regiões desenvolvidas do país[6]. Do mesmo modo, o Fundo de Recuperação Econômica do Estado do Espírito Santo (FUNRES) foi instituído pelo Decreto-Lei nº 880/69, com a finalidade de proporcionar assistência financeira, nas modalidades de participação acionária e de operações de crédito, aos empreendimentos industriais e agropecuários, localizados no Estado do Espírito Santo.


Os fundos de investimento regional, contudo, fogem do contexto dos fundos especiais, dado que, ante as suas peculiaridades são considerados com fundos atípicos, na medida em que não se enquadram nas espécies básicas de fundos especiais. A razão para tal assertiva está no fato de que os recursos destes fundos decorrem principalmente de incentivos fiscais e não apenas de dotações orçamentárias. Além disso, atum mediante instituições financeiras oficiais: o Banco do Nordeste do Brasil (BNB), o Banco da Amazônia (BASA) e o Banco de Desenvolvimento do Estado do Espírito Santo (Bandes)[7].


No caso particular do FUNRES, este fundo apresenta atipicidades em relação aos outros fundos de investimentos, na medida em que havia uma contrapartida estadual à renúncia federal, esta oriunda da aplicação de 33% do Imposto de Renda devido por pessoas jurídicas domiciliadas no Espírito Santo e aquela de 5% do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços cobrado pelo Estado do Espírito Santo.


4. Sistemática dos fundos de desenvolvimento regional


De acordo com a premissa estabelecida no art. 1º da Lei nº 8.167/91, a pessoa jurídica, como contribuinte, poderia optar, em sua declaração de rendimentos, pela aplicação de parte do Imposto de Renda – IRPJ nos Fundos de Investimentos do Nordeste, da Amazônia, e do Espírito Santo, constituindo-se na figura do investidor. Por esta sistemática, os fundos de investimentos aplicariam os recursos oriundos das opções em projetos considerados prioritários, recebendo das empresas beneficiárias, ou seja, aquelas que recebem os recursos financeiros, debêntures conversíveis em ações ordinárias ou preferenciais. Essa forma de aplicação possibilitava que os fundos decidissem em que projetos investiriam os recursos dos incentivos.


Vale salientar que os fundos de investimentos têm contabilização autônoma nos bancos operadores por exigência da Comissão de Valores Mobiliários – CVM. Atualmente essa contabilidade é regida pela Instrução CVM nº 445/2006[8]. Na dicção do § 1º do art. 3º da Lei nº 8.167/91, após a chegada dos recursos ao Tesouro Nacional, em tese, esse órgão teria o prazo de 15 dias para envio dos valores aos fundos. Entretanto, por conta da realidade administrativa de cada fundo, os procedimentos contábeis acabam se diferenciando em alguns aspectos.


Contudo, a medida provisória nº 2.156-5/01 extinguiu a possibilidade da opção prevista no inciso I do art. 1º da Lei nº 8.167/91, reduzindo substancialmente a margem de liberdade na aplicação dos valores arrecadados[9]. Outrossim, o referido dispositivo manteve, para as pessoas que já tivessem exercido a opção prevista no art. 9º da lei nº 8.167/91 e estivessem em situação de regularidade com o fundo, o direito a continuar realizando depósitos nos fundos de investimento até o final do prazo previsto para implantação de seus projetos[10].


Em termos práticos, o único dos fundos fiscais de investimentos que está ativo, isto é, recebendo e aprovando novos projetos, é o FUNRES, que financia, por meio da subscrição de debêntures conversíveis em ações bem como mediante operações de crédito, pequenas, médias e grandes empresas em todo o Estado do Espírito Santo. O referido fundo é administrado pelo Grupo de Recuperação Econômica do Estado do Espírito Santo (Geres) e o seu agente financeiro é o Banco de Desenvolvimento do Estado do Espírito Santo (Bandes).


Por seu turno, tanto o FINAM quanto o FINOR estão fechados para novos projetos, em face do art. 51, XX, da Medida Provisória nº 2.146-1, de 4 de maio de 2001, com exceção dos projetos enquadrados no mandamento do art. 9º da Lei nº 8.167, de 16/1/1991[11].


Em outras palavras, as pessoas jurídicas ou grupos de empresas coligadas que, isolada ou conjuntamente, detivessem pelo menos 51% do capital votante de sociedade titular de empreendimento de setor da economia considerado, pelo Poder Executivo, prioritário para o desenvolvimento regional, que já tivessem exercido o direito previsto no referido art. 9o da Lei no 8.167/1991 – e que estivessem em situação de regularidade para com a gestão dos projetos – ainda poderiam optar pela aplicação de parcela do imposto de renda devido nesse empreendimento, limitada a 70% do valor das opções a que têm direito, até o final do prazo previsto para a implantação dos seus projetos.


5. Natureza Jurídica dos fundos de desenvolvimento regional


Conforme já se afirmou alhures, a utilização dos fundos de investimento regional se dá mediante a convergência dos interesses público (Estado fomentador do desenvolvimento regional) e privado (particular empreendedor). Neste sentido, saber se os fundos de desenvolvimento em questão possuem natureza pública ou privada não é uma tarefa das mais fáceis.


5.1. O posicionamento do TCU a partir do processo de tomada de contas especial


No âmbito do Tribunal de Contas da União, a temática dos fundos de investimento regional fora objeto de análise em alguns julgados. Firme na linha de que os fundos de investimentos são públicos, por diversos anos foram instauradas tomadas de contas especiais com vistas à apuração de desvios de recursos públicos nos projetos incentivados por intermédio dos fundos de investimento regional, independente de ter havido ou não concorrência das autoridades administrativas para a malversação dos recursos[12].


Todavia, a jurisprudência da Corte de Contas da União evoluiu no sentido de que a competência da Corte de Contas para instaurar tomada de contas especial (TCE) estaria restrita às hipóteses em que o administrador público causa dano ao erário. Assim, o TCU somente poderia instaurar TCE, no âmbito dos projetos incentivados pelos fundos de investimento, quando, em conjunto com o administrador público, o particular fosse arrolado pela prática de atos lesivos aos cofres públicos[13].


A bem da verdade, a linha de raciocínio da Corte parece estar fincada mais em questões pragmáticas do que propriamente jurídicas, pois, se o tribunal continua a afirmar que os recursos são públicos, não há como entender que o particular está indene da obrigação de prestar contas pela aplicação de tais recursos. Lembre-se que compete ao TCU “julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público” (art. 71, II, da Constituição Federal).


Com efeito, é de se observar que a interpretação do instrumento da tomada de contas especial pelo Supremo Tribunal Federal, à luz do art. 71, II, da Constituição Federal, é a seguinte:


“A competência do Tribunal de Contas da União para julgar contas abrange todos quantos derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte dano ao erário, devendo ser aplicadas aos responsáveis, em caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas, as sanções previstas em lei, lei que estabelecerá, entre outras cominações, multa proporcional ao dano causado aos cofres públicos (art. 71, II, da CB/1988 e art. 5º, II e VIII, da Lei 8.443/1992). A tomada de contas especial não consubstancia procedimento administrativo disciplinar. Tem por escopo a defesa da coisa pública, buscando o ressarcimento do dano causado ao erário. Precedente (MS 24.961, Rel. Min.Carlos Velloso, DJ de 4-3-2005).” (MS 25.880, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 7-2-2007, Plenário, DJ de 16-3-2007.)


5.2. As divergências entre os membros do Tribunal de Contas da União


Em dissonância com o entendimento de que os recursos sejam públicos, os Ministros Benjamin Zymler e Walton Alencar Rodrigues já encamparam entendimento peculiar quanto à natureza jurídica dos fundos de investimento regional.


 No processo que resultou na Decisão nº. 199/2001, da Segunda Câmara do TCU, o Ministro Benjamin Zymler, avaliando a situação do Finor, partiu da premissa de que ao contribuinte pessoa jurídica seria facultado o direito de optar por investir parte do imposto de renda devido nas regiões incentivadas. Deste modo, ao exercer dita opção, parte do tributo devido pela empresa seria destinado ao fundo de investimento regional, de modo que ela se tornaria uma quotista do fundo, escolhendo, a partir daí, quais os projetos beneficiários dos recursos correspondentes à sua quota.


Diante desta sistemática, o ministro asseverou que:


Os recursos que se destinam aos financiamentos não são, portanto, recursos públicos stricto sensu, pois pertencem, em última instância, às empresas privadas optantes. Todavia, são recursos cuja gestão é de responsabilidade de ente público (SUDENE) e devem ser aplicados dentro da finalidade prevista, qual seja, a promoção do desenvolvimento regional. O Estado, no desempenho de seu papel de catalisador do desenvolvimento econômico e redutor das desigualdades sociais e regionais (arts. 3, III, 170, VII, e 174 da Constituição Federal), busca a parceria com a iniciativa privada, que, por meio dos projetos incentivados, promove elevação no nível de emprego e de renda. O interesse público no bom andamento dos projetos selecionados é, portanto, inarredável.


(…) ‘Por essa razão, vejo que os fatos apurados não tipificam, ainda, as condições necessárias à instauração de Tomada de Contas Especial, como sugerido pela unidade técnica. Existe uma relação contratual entre a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia e as empresas titulares dos projetos beneficiários do FINAM. A omissão na adoção das providências legalmente requeridas ou então a caracterização do envolvimento dos administradores da SUDAM nas fraudes levantadas pela Secretaria da Receita Federal levariam ao reconhecimento da ação de agente público nos danos causados ao Erário.


A jurisprudência do Tribunal de Contas da União firmou-se no sentido de que a ocorrência de dano ao Erário, sem a participação de agente público, não está submetida à jurisdição do Tribunal’.”


5.3. Críticas à divergência aberta


Com a devida vênia, não há como acatar o posicionamento que abriu divergência na Corte de Contas da União, até porque entendemos haver contradição na fundamentação. Ora, se no início da explanação restou destacado que “os recursos que se destinam aos financiamentos não são recursos públicos stricto sensu, pois pertencem, em última instância, às empresas privadas optantes”, como compatibilizar a assertiva com a conclusão, ao final, de que não haveria competência da Corte porquanto o eventual “dano ao erário” não contaria com a participação do administrador?  Lembre-se que o erário representa o conjunto de recursos financeiros públicos, isto é, os dinheiros e bens do Estado[14]. Essa simples constatação denota o desacordo das idéias.


Ademais, cabe destacar que tais fundos de investimento regional não são possuidores de um patrimônio. Na verdade, eles são um patrimônio, um condomínio formado por valores oriundos tanto dos particulares quanto do próprio Poder Público. Nessa linha, observe-se, por exemplo, que o que diz o art. 1º, alínea b, do Decreto nº. 880/69, prevê que o Fundo de Recuperação Econômica do Estado do Espírito Santo têm na sua composição “dotações governamentais de origem federal ou estadual, bem como auxílios, subvenções, contribuições, doações de entidades públicas ou privadas, nacionais, internacionais ou estrangeiras”.


Nota-se, portanto, que a assertiva de que os fundos de investimento são compostos de recursos privados é equivocada, ou, no mínimo, incompleta, haja vista a existência de valores decorrentes de dotações orçamentários em sua composição.


Há de se ter em mente ainda que o simples fato de o particular ser possuidor de cotas do fundo de investimento é incapaz de retirar a natureza pública do fundo, convertendo-o em privado. Trata-se de circunstância completamente irrelevante para a determinação do regime jurídico aplicável.


No caso, os fundos de investimento regional são considerados fundos públicos porque se encontram inequivocamente submetidos ao regime jurídico-administrativo delineado sob dois princípios de matriz constitucional: da supremacia do interesse público sobre o particular e da indisponibilidade do interesse público pela Administração[15].


Ora, em qualquer hipótese, a gestão do fundo deve obediência necessária ao interesse público consubstanciado na finalidade constitucional de reduzir as desigualdades regionais (art. 3º, III, da Constituição Federal). Vale dizer, qualquer ato de gestão praticado pela administração do fundo em desobediência ao interesse público constitui desvio de finalidade, devidamente punível tanto na esfera administrativa, quanto na cível, quanto na criminal. Aqui, portanto, não vigora a autonomia da vontade que rege a ordem privada.


Sobre esse ponto, nem se diga que o art. 9º da lei nº. 8.167/91 poderia significar a prevalência do interesse privado, na medida em que assegura “às pessoas jurídicas ou grupos de empresas coligadas que, isolada ou conjuntamente, detenham pelo menos cinqüenta e um por cento do capital votante de sociedade titular de empreendimento de setor da economia considerado, pelo Poder Executivo [projeto, na redação original da lei], prioritário para o desenvolvimento regional, a aplicação, nesse empreendimento, de recursos equivalentes a setenta por cento do valor das opções”.


Isso porque, para que a optante faça a escolha por determinado projeto/empreendimento, este necessariamente haverá de ter passado pelo crivo do Poder Público, cujo filtro, obviamente, reside no interesse público inerente ao art. 3º, III, da Constituição Federal. Em outras palavras, a escolha do particular não é totalmente livre, ao seu arbítrio, mas livre segundo os projetos reputados como de interesse público pelo Poder Executivo. É uma liberdade regrada, pois, antes da escolha do particular, há uma escolha do Poder Público que determina as hipóteses de validade para uma segunda opção.


A propósito, acaso tais fundos não fossem públicos, seriam inaplicáveis as disposições da lei nº. 7.134/83, que prevêem a obrigatoriedade de aplicação dos créditos e financiamentos de organismos governamentais e daqueles provenientes de incentivos fiscais, exclusivamente nos projetos para os quais foram concedidos. Se os fundos fossem privados, com base em que teoria poderia o Poder Público impor sanções administrativas ao particular?


A par disso, convém anotar que o próprio art. 2º da lei nº. 7.134/83 dispõe que os infratores ficam sujeitos às seguintes penalidades: a) não se beneficiarão de nenhum outro empréstimo de organismo oficial de crédito e nem poderão utilizar recursos de incentivos fiscais, por um período de 10 (dez) anos (inciso I); b) terão que saldar todos os débitos, vencidos e vincendos, relativos ao crédito ou financiamento cuja aplicação foi desviada, no prazo de 30 (trinta) dias, contados da constatação da irregularidade (inciso II).


O poder de sancionar nesses casos é uma manifestação clara do poder extroverso do Estado[16], não havendo como tal se fazer presente se estivéssemos diante de uma regulação estritamente privada. No direito privado, a questão se resolveria com a mera apuração de perdas e danos. E só. Não haveria que se falar em submissão ao regime jurídico-administrativo.


Acerca desse ponto, faz-se oportuno transcrever parcialmente a ratio decidendi da Decisão nº. 558/93 do plenário do TCU, seguida no Acórdão 442/2002, do mesmo órgão colegiado:


Assim, dentre as normas que alcançam os responsáveis por projetos incentivados pelo FINOR está a Lei nº 7.134/83, que estabelece taxativamente: “terão que saldar seus débitos, vencidos e vincendos, relativos ao crédito ou financiamento cuja aplicação foi desviada”.


Por sua vez, a Lei nº 8.167, de 16.01.91, que foi bem mais explicita ao tratar do assunto, estabelece, “verbis”: “Art. 12 A aplicação dos recursos dos fundos será realizada em estrita consonância com os objetivos do projeto e em conformidade com todas as cláusulas condicionantes quando da sua aprovação pelo Conselho Deliberativo das Superintendências de Desenvolvimento Regional. § 1º O descumprimento do disposto no “caput” deste artigo resultará: I – no cancelamento, pelo Conselho Deliberativo da respectiva Superintendência, dos incentivos aprovados; II – no recolhimento, pela empresa beneficiária, ao banco operador, das quantias recebidas, corrigidas monetariamente, segundo a variação do BTNF, a partir da data de seu recebimento, acrescidas de multa de vinte por cento e de juros de um por cento ao mês, deduzidas, no caso de aplicação de recursos sob a forma de debêntures, as parcelas já amortizadas”.


E mesmo que as regras específicas do Fundo fossem omissas em relação à matéria, os responsáveis por projetos incentivados haveriam de ser alcançados pelas normas de administração financeira, ante o caráter público dos recursos do FINOR, como evidenciado no Voto condutor do “Decisum” de 24.10.90.(…)


Contudo, recursos do FINOR, portanto públicos, foram liberados para finalidades específicas, sem que os objetivos fossem atingidos em sua plenitude e sem que se apresentasse justificativa razoável para o descumprimento das condições previamente definidas.”


É interessante notar que, no julgamento da TC 524.039/1993-3, o Plenário do Tribunal de Contas enfrentou a questão da natureza dos recursos, mormente em face do posicionamento peculiar dos Ministros Benjamin Zymler e Walton Alencar Rodrigues. Naquela oportunidade, o renomado administrativista Lucas Rocha Furtado, no exercício da Procuradoria-Geral do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União, contrariou aquele entendimento.


Para o então Procurador-Geral do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União, os recursos dos fundos de investimento regional são públicos e, por isso, sujeitos à fiscalização do Tribunal de Contas da União. Veja-se, pois, exceto, da sua manifestação:


O Fundo de Investimentos do Nordeste – Finor foi instituído pelo Decreto-Lei nº 1.376, de 12/12/74 (art. 2º). De acordo com o art. 3º, era constituído por recursos provenientes dos incentivos fiscais; subscrições, pela União Federal, de quotas inconversíveis em ações; subscrições voluntárias por pessoas físicas e jurídicas, de direito público ou privado; eventuais resultados de aplicações dos recursos previstos neste artigo e outros recursos previstos em lei.


O art. 4º previa que os recursos do Fundo seriam aplicados sob a forma de subscrição de ações e de participação societária de que trata o artigo 1º, § 1º, inciso II, do Decreto-lei nº 1.134, de 16/11/70, em empresas que tivessem sido consideradas aptas para receber incentivos fiscais pelas agências de desenvolvimento regional ou setorial.


Em outras palavras, os recursos do Finor constituem-se da seguinte maneira: empresas optam por aplicar parte do imposto de renda devido no referido Fundo, ao invés de o pagarem integralmente ao fisco.


A Resolução TCU º 206, de 27 de novembro de 1980, que dispunha sobre o exercício da auditoria financeira e orçamentária, o julgamento das contas dos responsáveis por bens e valores públicos e dava outras providências, previa dentre seus considerandos que ‘os gestores dos fundos especiais de que trata a Seção IV do Capítulo II desta Resolução estão sujeitos à jurisdição do Tribunal de Contas (Lei nº 4.320/64, art.74, e Decreto-Lei nº 1.376/74).’


Assim, em nossa opinião, os recursos do Finor referentes ao presente processo são passíveis de fiscalização pelo TCU.”


Na linha esposada no parecer do Procurador-Geral do Ministério Público de Contas, a composição plenária do TCU acompanhou o voto do Ministro Ubiratan Aguiar, que destacou expressamente que “os recursos provenientes do FINOR são públicos e mais, eram administrados por uma entidade pública, no caso a SUDENE, que respondia pela boa e regular aplicação daqueles recursos perante os investidores”.


6. Conclusão


Conforme se observa, não há plausibilidade no entendimento de que os fundos de investimento regional são de natureza privada. Neste sentido, note-se que, ao eventualmente se encampar a referida tese, seria até de se questionar o que estaria a fazer o Poder Executivo a promover os chamados processos apuratórios de desvio de recursos públicos, que tramitam perante o Ministério da Integração Nacional.


A par disso, haveria de se questionar a razão pela qual os responsáveis pelos recursos dos fundos de investimento regional são passiveis de responsabilização por ato de improbidade que causa dano ao erário, na forma da lei nº. 8.429/92.


Do mesmo modo, também seriam desprovidas de sentido as seguidas recomendações do Tribunal de Contas da União para que o Ministério da Integração Nacional, “em conjunto com a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e Advocacia-Geral da União, intensifique as cobranças administrativas e judiciais em curso”[17].


 


Referências

BULHÕES, Octávio Gouveia de; et al. Evolução do capitalismo no Brasil. Rio de Janeiro, Bloch, 1976.

CANO, W. Auge e inflexão da desconcentração econômica regional no Brasil. Anais da Anpec. Salvador. 1995, p. 628-644.

CONTI, José Maurício. Federalismo fiscal. São Paulo: Manole, 2004.

COSTA, Roberto Teixeira da; VELLOSO, João Paulo dos Reis. A modernização do capitalismo brasileiro: reforma do mercado de capitais. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991.

FREITAS, Ney José de. Ato administrativo: presunção de validade e a questão do ônus da prova. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 96.

GUIMARÃES, Juarez. A trajetória intelectual de Celso Furtado In: Celso Furtado e o Brasil. TAVARES, Maria da Conceição (org.). São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000.

HARADA, Kiyoshi. Direito Financeiro. 3. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2008.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2001.

PETTER, Lafayete Josué. Direito Financeiro e tributário. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2005.

SANCHES, Osvaldo Maldonado. Fundos federais: origens, evolução e situação atual na administração federal. Revista de Administração Pública, 2002, v. 56, n. 4, p. 627-670.

SILVA, Plácido e. Vocabulário Jurídico.v. II. Rio de Janeiro: Forense, 1989.

 

Notas:

[1] Cf. BULHÕES, Octávio Gouveia de; et al. Evolução do capitalismo no Brasil. Rio de Janeiro, Bloch, 1976, p. 204.

[2] GUIMARÃES, Juarez. A trajetória intelectual de Celso Furtado In: Celso Furtado e o Brasil. TAVARES, Maria da Conceição (org). São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000, p. 28.

[3] Fundos federais: origens, evolução e situação atual na administração federal. Revista de Administração Pública, 2002; v.56, n.4; p. 627-670.

[4] Direito Financeiro e tributário. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 106.

[5] Direito Financeiro. 3. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2008, p. 123

[6] CANO, W. Auge e inflexão da desconcentração econômica regional no Brasil. Anais da Anpec. Salvador, 1995, p. 628-644.

[7] SANCHES, Osvaldo Maldonado. Ob. cit. p. 644.

[8] Sobre a regulação do mercado de incentivos fiscais, cf. COSTA, Roberto Teixeira da.; VELLOSO, João Paulo dos Reis. A modernização do capitalismo brasileiro: reforma do mercado de capitais. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991, p. 85.

[9] Cf. CONTI, José Maurício. Federalismo fiscal. São Paulo: Manole, 2004, p. 124.

[10] De acordo com o art. 4º da Lei nº 9.532/97, c/c o art. 32, XVIII, da medida provisória nº 2.156-5/01, as pessoas jurídicas optantes sob a égide do art. 9º da Lei nº 8.167/91, tributadas com base no lucro real, podem manifestar a opção pela aplicação do imposto em investimentos regionais na declaração de rendimentos ou no curso do ano-calendário, nas datas de pagamento com base no lucro estimado, apurado mensalmente, ou no lucro, apurado trimestralmente.

[11] A antiga redação do art. 9º da lei nº. 8.167/1991 previa que “as agências de desenvolvimento regional e os bancos operadores assegurarão às pessoas jurídicas ou grupos de empresas coligadas que, isolada ou conjuntamente, detenham, pelo menos, cinqüenta e um por cento do capital votante de sociedade titular de projeto beneficiário do incentivo, a aplicação, nesse projeto, de recursos equivalentes a setenta por cento do valor das opções de que trata o art. 1º, inciso I.”

[12] Neste sentido, Acórdão nº. 94/1999-Plenário. Min. Rel. Adhemar Ghisi.

[13] Neste sentido, Cf. Decisões 31/98, 521/98, 522/98, 523/98, 706/98, 154/99, 513/99, 213/2000, e 379/2000, todas do plenário do Tribunal de Contas da União.

[14] Cf. SILVA, Plácido e. Vocabulário Jurídico. v. II. Rio de Janeiro: Forense, 1989, p. 182.

[15] Cf. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 26-27.

[16] FREITAS, Ney José de. Ato administrativo: presunção de validade e a questão do ônus da prova. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 96.

[17] V.g. Acórdão nº. 846/2008 do plenário do Tribunal de Contas da União.


Informações Sobre o Autor

Diego Franco de Araújo Jurubeba

Procurador Federal. Graduado em Direito pela UFPE. Pós Graduado em Direito Público. Consultor Jurídico do Ministério da Integração Nacional


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