Resumo: O artigo propõe-se a abordar a invasão de competências pela União em matéria legislativa de organização e prestação de serviço público de transporte coletivo municipal. Objetiva-se discorrer sobre o transporte público coletivo municipal, seu regime jurÃdico de prestação, a celeuma entre os serviços de transportes executivos e táxi, e, ainda, como a polÃtica nacional de mobilidade urbana instituÃda pela União exorbitou de sua competência, impondo efeitos concretos e jurÃdicos em matéria de interesse dos MunicÃpios.
Palavras-chave: Competência. Serviços públicos. Transportes. União. MunicÃpios.
Abstract: This article proposes to address the invasion of powers by the Union's legislative organization and delivery of public service of municipal public transportation. The objective is to discuss the municipal public transportation, their legal status to provide the stir among executives and taxi transport services, and also the national urban mobility policy instituted by the Federal Government overstepped its powers by imposing concrete effects and legal in matters of interest to municipalities. For theme analysis uses up the constitutional provisions concerning the competences of the Union and the municipalities and the relevant infrastructure legislation. It is used also the research sources an administrative background doctrine and case law.
Keywords: Competence. Public services. Transport. Union. Municipalities.
Sumário: Introdução; 1. Serviço público de interesse local. 2. Regime jurÃdico para a prestação de serviço de transporte coletivo municipal. 3. Táxi e serviços executivos de transportes urbanos. 4. PolÃtica nacional de mobilidade urbana com desvio de competências. Considerações finais. Referências bibliográficas.
Introdução
O artigo 21, XX, da Constituição da República dispõe que compete à União instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos.
Os serviços públicos poderão ser prestados diretamente pelo Poder Público (União, Estados, Distrito Federal e MunicÃpios) ou sob regime de concessão ou permissão, sempre mediante licitação pública, conforme preconiza o artigo 175 da Constituição da República.
A delimitação de competências municipais referentes à prestação de serviços públicos pelo Poder Público local vem delineada no artigo 30 da Constituição Federal. Tais competências decorrem da autonomia dos entes federados no que tange às competências legislativas e administrativas que alcançam os interesses locais.
Ao redigir as competências dos MunicÃpios, o poder constituinte originário de 1988 (art. 30, V, CF) estabeleceu que o ente federativo municipal seria competente para organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluÃdo o de transporte coletivo, que tem caráter essencial.
1. Serviço público de interesse local
Diversos são os serviços públicos de interesse local, ou seja, aqueles que alcançam a parcela populacional residente em determinado MunicÃpio. No entanto, alguns destes serviços são previstos no Texto Constitucional, como o transporte coletivo (art. 30, V, CF), os programas de educação infantil e ensino fundamental (artigo 30, VI, CF), além dos serviços de atendimento à saúde da população (art. 30, VII, CF), sendo os dois últimos serviços prestados por meio de cooperação técnica e financeira da União e do Estado ao qual o MunicÃpio está vinculado.
O caráter local e essencial do serviço de transporte público coletivo, bem como a competência municipal para sua prestação não causam atualmente grandes divergências doutrinárias e jurisprudenciais. Com a Constituição Federal de 1988, os serviços públicos considerados essenciais, como é o caso do transporte público, passaram a integrar um novo patamar jurÃdico e de gestão pública, como bem define o constitucionalista Léo Ferreira Leoncy, ao discorrer sobre o controle de constitucionalidade e as polÃticas públicas, para o ilustre professor
“As polÃticas públicas passaram a ser vistas como o caminho necessário à concretização de tais direitos, como uma forma, portanto, de traduzir o programa constitucional em efetiva ação estatal, com a disponibilidade concreta de bens e serviços aos legÃtimos beneficiários. Em sÃntese, as polÃticas públicas passaram a ser vistas como instrumentos da viabilização de direitos fundamentais sociaisâ€.[1]
O Supremo Tribunal Federal[2] já se manifestou sobre o tema em sede de ação direta de inconstitucionalidade e de recurso extraordinário, consolidando o entendimento de que "a prestação de transporte urbano, consubstanciando serviço público de interesse local, é matéria albergada pela competência legislativa dos MunicÃpios, não cabendo aos Estados-membros dispor a seu respeito."
O Professor José Afonso da Silva destaca a importância do dispositivo e seu caráter constitucional. Assim leciona o mestre constitucionalista
“O transporte coletivo urbano é, por princÃpio, serviço público local, pelo que não seria necessário destaca-lo no inciso em exame. Contudo, foi bom fazê-lo, especialmente para ressaltar constitucionalmente seu caráter de serviço público essencial, que, por natureza, também já o seria sem necessidade de dizê-lo expressamente. Mas, ao fazê-lo, dá-se-lhe dignidade constitucional, mas também porque, ainda que essencialmente serviço local, fica sujeito a diretrizes fixadas pela União por força do art. 21, XXâ€.[3]
A polÃtica tarifária resultante da prestação do serviço de transportes esbarra em interpretações mais restritas, necessitando de maiores esclarecimentos e provimento do Poder Judiciário. O Supremo Tribunal Federal[4] entendeu que o benefÃcio de “meia passagem†para estudantes no âmbito municipal garantido por norma estadual (Constituição Estadual) invade a competência local, não havendo ofensa constitucional quanto à concessão do benefÃcio pelo Estado-Membro no transporte coletivo intermunicipal.
2. Regime jurÃdico para a prestação de serviço de transporte coletivo municipal
Em obediência ao artigo 175 da Constituição Federal, o Congresso Nacional editou a Lei 8.987, de 13 de fevereiro de 1995. A referida norma infraconstitucional, de aplicação nacional, trata do regime jurÃdico de contratação das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial do contrato e de sua prorrogação, as condições de caducidade, fiscalização e rescisão contratual na prestação do serviço, os direitos dos usuários, a polÃtica tarifária e a obrigação de manter serviço adequado.
As condições contratuais acima enumeradas, bem como a possibilidade de prestação direta ou indireta do serviço de transportes públicos determina a sua classificação como um serviço delegável, que segundo o professor José dos Santos Carvalho Filho[5] “são aqueles que, por sua natureza ou pelo fato de assim dispor o ordenamento jurÃdico, comportam ser executados pelo Estado ou por particulares colaboradoresâ€.
A modalidade preferencial pela Administração Pública Municipal para a exploração dos serviços públicos locais é a permissão, dada a sua maior flexibilidade para a intervenção do Poder Público quando prestado de forma inadequada ou mesmo para melhor adaptação técnica e operacional.
Como bem observa o saudoso Hely Lopes Meirelles em sua brilhante obra Direito Administrativo Brasileiro
“A permissão, por sua natureza precária, presta-se à execução de serviços ou atividades transitórias, ou mesmo permanentes, mas que exijam frequentes modificações para acompanhar a evolução da técnica ou as variantes do interesse público, tais como o transporte coletivo, o abastecimento da população e demais atividades cometidas a particulares, mas dependentes do controle estatalâ€.[6]
A Lei de Concessões e Permissões dispõe no parágrafo único do artigo 1º o seguinte: “a União, os Estados, o Distrito Federal e os MunicÃpios promoverão a revisão e as adaptações necessárias de sua legislação à s prescrições desta Lei, buscando atender as peculiaridades das diversas modalidades dos seus serviçosâ€. Portanto, poderão os entes federados legislar e administrar seus serviços de acordo com suas necessidades estruturais e orçamentárias para uma melhor qualidade na prestação ao contribuinte local.
3. Táxi e serviços executivos de transportes urbanos
O entendimento doutrinário e jurisprudencial acerca da exploração do serviço de transporte por meio de táxi é de que tal serviço público pode ser delegado a particulares nas modalidades de permissão ou autorização, sempre por licitação, garantindo-se a preservação do princÃpio da isonomia entre os pretendentes delegatários do serviço essencial conforme o cumprimento dos requisitos impostos na lei municipal.
O Superior Tribunal de Justiça já se manifestou em sede de Recurso em Mandado de Segurança[7], negando provimento ao recurso, em que os impetrantes (recorrentes) pretendiam a outorga imediata sem licitação para permissão na exploração do serviço de transporte de táxi no Distrito Federal em virtude da omissão do Poder Público na realização de estudos e levantamentos para novas permissões.
Em algumas capitais e regiões metropolitanas brasileiras foi implementado o controverso transporte urbano executivo. O serviço é disponibilizado por meio de reservas em aplicativos acessados por intermédio da rede de telefonia móvel. O usuário solicita o serviço por meio eletrônico, podendo escolher o tipo de veÃculo, horários, trajetos, dentre outras comodidades.
No entanto, ainda não há uma regulamentação para este serviço de transporte executivo. As empresas que exploram a atividade argumentam que seguem os preceitos da livre iniciativa e da livre concorrência, princÃpios que regem a ordem econômica (art. 170, caput e inciso IV da CF). Por sua vez, os taxistas e suas cooperativas alegam que as referidas empresas não são submetidas a processo licitatório, concorrendo de forma desleal com as cooperativas de táxi, permissionárias ou autorizadas para a prestação de um serviço pelo ente federado competente (MunicÃpio).
Recentemente, em decisão liminar, a 12ª Vara CÃvel do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo determinou a suspensão da atividade e funcionamento do aplicativo Uber no MunicÃpio de São Paulo. A decisão monocrática no processo 1040391-49.2015.8.26.0100[8] teve como fundamento o art. 4º, VIII, da Lei nº 12.587/2012, em que se considera "transporte público individual: serviço remunerado de transporte de passageiros aberto ao público, por intermédio de veÃculos de aluguel, para a realização de viagens individualizadas", o art. 5º, XIII, da Constituição Federal[9] e, ainda, a Lei Municipal de São Paulo nº 15.676/12 que dispõe ser "vedado o transporte remunerado individual de passageiros sem que o veÃculo esteja autorizado para esse fim".
4. PolÃtica nacional de mobilidade urbana com desvio de competências
Lecionando sobre a repartição de competências, o mestre Alexandre de Moraes[10] ensina que o princÃpio básico para a distribuição de competências constitucionais é o princÃpio da predominância do interesse em que “à União caberá aquelas matérias e questões de predominância do interesse geral, ao passo que aos Estados referem-se as matérias de predominante interesse regional e aos MunicÃpios concernem os assuntos de interesse localâ€.
Exercendo a competência legislativa atribuÃda à União para instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos, assegurada no artigo 21, XX da Carta Magna, o Congresso Nacional editou a Lei 12.587 de 2012, instituindo as diretrizes da PolÃtica Nacional de Mobilidade Urbana.
Ocorre que em 2013, o Congresso Nacional alterou a referida norma por meio da Lei 12.865, acrescentando o artigo 12-A[11] ao texto normativo. O referido dispositivo, em seu parágrafo segundo, impôs a sucessão hereditária ao direito de exploração do serviço de táxi em caso de falecimento do outorgado.
Embora o parágrafo terceiro condicione as transferências de outorga a terceiros em caso de falecimento à prévia anuência do Poder Público Municipal, obedecendo ao prazo da outorga e aos requisitos fixados, é flagrante a invasão de competência legislativa pela União que afeta especificamente um interesse local, traduzindo-se em verdadeira inconstitucionalidade material.
Considerações finais
Conclui-se, portanto, que os MunicÃpios como entes federados autônomos poderiam estabelecer em suas normas a melhor forma de exploração dos serviços públicos de interesse local, especificamente o transporte em táxi, e, após a devida autorização legal, bem como sua regulamentação, o serviço de transporte executivo urbano.
Logo, propõe-se que o estabelecimento de formas de transferência do serviço público local e demais especificidades sejam normatizadas pelos MunicÃpios, da melhor forma que atendam aos anseios da coletividade e da Fazenda Pública municipal, cabendo à União somente as diretrizes, ou seja, os aspectos gerais que direcionem os demais entes federativos, garantindo a devida repartição de competências, e, consequentemente, a constitucionalidade de suas normas.
Informações Sobre o Autor
Gildazio Barbosa Nascimento
Advogado. Graduado em Direito pela Universidade Católica de Brasília – UCB. Pós-Graduando (lato sensu) em Direito Administrativo pelo Instituto de Direito Público Brasiliense – IDP.