Lei de improbidade e insegurança jurídica

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Súmula: Fonte espúria da Lei 8.429/92. Improbidade é conceito equivoco. Lei vulnera o princípio da segurança jurídica. Falta de definição enseja arbítrio judicante.

A lei penal dispensou-se de conceituar o crime. Sucede que a doutrina já plasmara seus elementos constitutivos: tipicidade, punibilidade e culpabilidade. Coube-lhe apenas descrever as condutas que o configuram.

A lei “civil” de improbidade imitou a lei penal. Errou. É que não há conceito “a priori” de improbidade. Neste campo invadido pela legislação, diferentemente dos penalistas, os doutrinadores desengajados logo perceberam a inutilidade da busca de um sentido preciso àquela falta de atributo moral.

Duas causas motivaram a rendição desta categoria de cientistas jurídicos: a pletora de escritos, de extração corporativa, laudatórios do furibundo conteúdo punitivo da Lei nº. 8.429/92, e sua pressurosa aplicação pelos juizes e tribunais, tangidos pelo clamor da mídia. Isso, apesar do casuísmo da referida Lei cujo teor limita-se a enumerar ações arbitrariamente reputadas contrárias à probidade. Entretanto, os eventuais destinatários da Lei ainda hoje permanecem desinformados acerca do real significado da probidade, alçada como valor supostamente protegido pela mal concebida regulação. Daí as desproporcionadas sanções infligidas a agentes político-administrativos, sem a prévia demonstração do indispensável coeficiente de desonestidade ou má-fé. Ele é afirmado por presunção.

Impossível não extrair desse panorama obscuro, uma quase encoberta espécie de inconstitucionalidade da Lei nº. 8429/92, a acrescer-lhe a farta coleção de vícios alhures denunciados.

Segundo o art. 37, § 4º, da CF/88, os atos de improbidade administrativa devem ser punidos na forma da lei. Ante o silêncio da Carta Magna, cumpria ao legislador ordinário definir a improbidade administrativa, ou, a exemplo da Lei nº. 4.717/65 (ação popular), estabelecer critérios objetivos à sua conceituação. Ao integrar parcialmente o mencionado preceito constitucional, nasceu como lei incompleta. Tal incompletude revela-se abusiva da função de legislar.

Com efeito, o STF tem erguido diferentes barreiras de natureza axiológica à discrição inerente ao poder legiferante. As RTJ 184/869, 182/1103, 180/873, 178/23, 177/119, 176/578 contém decisões e votos, que traduzem a crescente aplicação de tais modalidades de limite à discrição política. É exemplar a declaração de inconstitucionalidade de lei por ausência de razoabilidade, a teor do seguinte acórdão daquela Corte: “As normas legais devem observar, no processo de sua formulação, critérios de razoabilidade que guardem estrita consonância com os padrões fundados no princípio da proporcionalidade, pois todos os atos emanados do Poder Público devem ajustar-se à cláusula que consagre, em sua dimensão material, o princípio do substantive process of law”. “A exigência de razoabilidade – que visa inibir e a neutralizar eventuais abusos do Poder Público, notadamente no desempenho de suas funções normativas – atuam, enquanto categoria fundamental de limitação de excessos emanados do Estado, como verdadeiro parâmetro de aferição da constitucionalidade material dos atos estatais”. (MC na ADIn 2.667-DF – Pleno do STF – RTJ 190/875).

Entre os catedráticos, desenvolve-se doutrina norteada por essa mesma diretriz. Enumero algumas obras: “Princípio da Proporcionalidade no Direito Constitucional Brasileiro”, Raquel Denize Stumm, Liv. do Advogado Edit., 1995; “Direitos Humanos Fundamentais”, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Saraiva, 1995; “Controle da Constitucionalidade – Aspectos Jurídicos e Políticos”, Gilmar Ferreira Mendes, Saraiva, 1990; “O Princípio da Proporcionalidade e o Controle da Constitucionalidade das Leis Restritivas de Direitos Fundamentais”, Suzana de Toledo Barros, Brasília Jurídica, 2000; “Juízes Legisladores?”, Mauro Capelletti,  Sergio A. Fabris Edit., P. Alegre; “Due Processo of Law Sustative – Limite ao Legislativo para Legislar Com Razoabilidade e Racionalidade – A Corte Warren – Revolução Constitucional”, Leda Borchat Rodrigues, Civilização Brasileira, 1991; “Razoabilidade das Leis”, Caio Tácito, RDA 204/1.

Nessa perspectiva, avulta a inconstitucionalidade no art. 11, caput, da Lei nº. 8.429/92, visto como a imposição de gravosas sanções ao agente público cuja conduta descumpra os deveres de honestidade e lealdade às instituições, agride o princípio da segurança jurídica (art. 5º, caput, da CF/88).

De fato, a insegurança jurídica configura-se como um dos defeitos viscerais da lei, já que a mencionada garantia constitucional compreende a possibilidade objetiva, por parte dos particulares, de conhecer os direitos e benefícios, deveres e encargos que dada situação jurídica encerra.

A propósito, o Ministro Gilmar Mendes, ainda Procurador da República e como integrante da comissão elaboradora do Manual de Redação da Presidência da República, produziu relevante contribuição doutrinária cuja pertinência com o tema aqui versado torna obrigatório mencionar: “O princípio do Estado de Direito exige que as normas jurídicas sejam dotadas de alguns atributos, tais como precisão ou determinalidade, clareza e densidade suficiente (Canotilho, Direito Constitucional, Coimbra, 1986, p. 310) para permitir a definição das posições juridicamente protegidas e o controle de legalidade da ação administrativa”. Mais adiante, completa a idéia: “O princípio da segurança jurídica, elemento fundamental do Estado de Direito, exige que as normas sejam pautadas pela precisão e clareza, permitindo que o destinatário das disposições possa identificar a nova situação jurídica e as conseqüências que dele decorrem. Devem ser evitadas, assim, as formulações obscuras, imprecisas, confusas ou contraditórias” (“Questões Fundamentais da Técnica Legislativa”, Revista Trimestral de Direito Público, nº. 1, 1993, p. 262).

Traçar modos predeterminados de conduta, em obséquio à segurança jurídica, eis uma das finalidades da lei, segundo José Afonso da Silva: “A lei é efetivamente o ato oficial de maior realce na vida política. Ato de decisão política por excelência, é por meio dela, enquanto emanada da atuação da vontade popular, que o poder estatal propicia ao viver social modos predeterminados de conduta, de maneira que os membros da sociedade saibam, de antemão, como guiar-se na realização de seus interesses”. (“Curso de Direito Constitucional Positivo”, Edit. Malheiros, 10ª, ed., 1995, p.122).

No assegurar a objetividade da ação, Miguel Reale faz recair o requisito da certeza da norma jurídica. Segundo Reale, “a forma (norma) do Direito é uma exigência de certeza e esta, consoante límpida demonstração de Lópes de Oñate, exige uma abstrata formulação normativa, mas abstrata somente na medida indispensável para manter de maneira precisa a estrutura da ação, ou seja, para torná-la objetiva e historicamente concreta” (“Filosofia do Direito”, Saraiva, 1975, 7ª ed., 2º. vol., p. 530).

Dos três fatores contidos na idéia de Direito, na lição de Gustav Radbruch, a de justiça, de finalidade e de segurança, destacamos este último por sua consonância com estas razões. “Esse terceiro elemento é a segurança, a certeza, condição de paz social. Mas esta segurança, esta certeza, exige, por sua vez, a positividade do direito”. E ainda: “A positividade do direito vem assim a ser, ela própria um pressuposto de sua certeza. Não pode haver direito certo que não seja positivo; e do mesmo modo, pode dizer-se que assim como a positividade é da essência do próprio conceito de um direito certo, assim é da essência do direito positivo o ser certo”. (“Filosofia do Direito”, 6ª ed., 1979, Armênio Amado, Editor, Coimbra, 1979, p. 160).

É saliente a imprecisão dos consignados “deveres” de honestidade e lealdade, seja em qualquer espécie de ato humano. Ambas constituem virtudes eminentemente morais. Logo, pertencem ao mundo indevassável da consciência individual. Seria preciso dizer mais para fulminar a honestidade e lealdade, postas no art. 11, caput, da Lei nº. 8.429/92, como categorias extremamente imprecisas e, por isto mesmo, atentatórias à garantia constitucional da segurança jurídica?

Vale recordar José Carlos Barbosa Moreira, que repudia a anulação de ato por defeito moral exclusivo: “O ato só pode ser anulável quando contenha algum defeito jurídico. Não bastaria ao autor popular afirmar que o ato atenta contra a moralidade administrativa; é preciso que se conjugue isso com a indicação de alguma infração à disposição de lei – lei em sentido lato, qualquer norma jurídica; do contrário cairíamos aqui num subjetivismo total, e isso, evidentemente, não é desejável porque daria margem a aventuras judiciais” (apud “Improbidade Administrativa – Questões Polêmicas e Atuais” – Autores diversos – Edit. Malheiros, 2001, p. 289).

Mesmo na doutrina laudatória do absolutismo ético transmitido pela Lei nº. 8.429/92 encontra-se, no ponto, voz afinada com o escólio de Barbosa Moreira: “Fica, de qualquer maneira, evidenciado o íntimo relacionamento entre a probidade e a moralidade. No campo das relações sociais a imprecisão desses conceitos permite uma adaptação no tempo e no espaço. No campo das relações jurídicas, entretanto, por força do superprincípio da segurança jurídica, é preciso, pelo menos, reduzir a imprecisão mediante a indicação de parâmetros que possam identificar, à luz do Direito, o que é moral e o que é imoral”. (“Improbidade Administrativa”, Fabio Medina Osório, Edit. Síntese, PA, 1988, 2ª ed., p. 158, apud “Improbidade Administrativa – Questões Polêmicas e Atuais”, Edit. Malheiros, Autores diversos, 2001, p. 24).

Portanto, a incerteza que os atributos morais – honestidade e lealdade, latentes no indigitado preceito legal em comento – projetam no espírito do intérprete, favorece a sua aplicação voluntarista e seletiva. Aquela, arbitrária, fere a segurança jurídica; esta, discriminatória, fere a isonomia, ambos valores protegidos pelo art. 5º, caput, da CF/88.

Sua inconstitucionalidade, pois, conquanto sutil, pode ser argüida na via da defesa, de preferência no juízo de admissibilidade da ação concernente a ato de improbidade fundada na Lei nº. 8.429/92.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Reginaldo Fanchin

 

O autor é membro do Instituto dos Advogados do Paraná.

 


 

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