Liberdade de Iniciativa e Direito à Saúde: Interrupção do Fabrico de Medicamentos no Brasil

Resumo: A Constituição Federal de 1.988 elegeu como um dos fundamentos da República o valor social da livre iniciativa. De igual forma, elevou a saúde à categoria de direito “de todos e dever do Estado”, devendo este garantir o acesso a ações e serviços que promovam sua proteção e recuperação. As duas disposições constitucionais, igualmente válidas e vinculantes, podem entrar em tensão em certas atividades econômicas de grande relevância social, como no caso da fabricação de medicamentos. O presente texto pretende analisar a hipótese de interrupção do fabrico de medicamentos no Brasil, suas conseqüências jurídicas para o direito ao acesso a medicamentos no país e a legalidade de dispositivo regulamentar específico da Agência Nacional de Vigilância Sanitária sobre a matéria.


Palavra–chave: Constituição. Direito à Saúde. Liberdade de Iniciativa.


Sumário: I. Introdução. II. O Estado e as Atividades Econômicas. II. a) Livre Iniciativa e Regulação Estatal. II. b) Registro Sanitário e Produção de Medicamentos no Brasil. III. Conclusões.


I – Introdução


O direito fundamental à saúde reconhecido a todos os brasileiros pelo artigo 196 da Constituição Federal de 1.988 implica não apenas o fornecimento de serviços de atendimento ao cidadão, mas também a garantia de acesso a ações e serviços destinados a manter sua vida e higidez físico-mental[1].


Nesse sentido, parece claro que o acesso a medicamentos providos direta ou indiretamente pelo Estado é parte importante de qualquer política pública destinada a dar efetividade à previsão constitucional quanto à saúde pública e individual.


Sucede, contudo, que a capacidade produtiva do Estado no tocante a produtos farmacêuticos é, em regra, bastante limitada, sendo que mesmo os medicamentos destinados à atenção básica são em sua maioria adquiridos pelos componentes do Sistema Único de Saúde de empresas privadas, orientadas, por óbvio, pela busca de lucro na comercialização de seus produtos.


Assim, pode vir a ser socialmente delicada eventual decisão de um determinado laboratório farmacêutico privado de suspender temporária ou permanentemente a produção de um determinado medicamento seu que, mesmo relevante terapêutica para a população em geral, não se mostre, por qualquer motivo, satisfatoriamente rentável.


A hipótese acima descrita parece ilustrar uma tensão entre o interesse público na continuação do fabrico de determinado medicamento relevante para parcela da população e o interesse individual de seu produtor em operar uma empresa capitalista lucrativa.


Inicialmente, parece tentador invocar o velho princípio administrativista que prega uma suposta superioridade do interesse público sobre o privado para a solução do problema, com óbvio sacrifício do interesse particular na busca por lucros financeiros.


Sucede, entretanto, que o texto constitucional em vigor foi claro ao estabelecer como fundamento da República o valor social do trabalho e a livre iniciativa empresarial (art. 1º, IV). Assim, o dito interesse privado na equação acima descrita mostra-se também constitucionalmente relevante, o que por sua vez afasta respostas simplistas para o problema identificado.


No âmbito da legislação ordinária de normas regulamentares de direito sanitário, importa salientar a possibilidade de suspensão e cancelamento a pedido do registro sanitário de medicamentos, previstos pela Lei nº 6.360/76 e pelo Decreto nº 79.094/77.


Sucede, contudo, que norma regulamentadora sobre a matéria baixada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA indica uma suposta ingerência da autarquia sobre a continuidade da exploração de atividade econômica por particular.


De fato, a Resolução da Diretoria Colegiada da ANVISA nº 48/2009 ressalta a possibilidade de pedido de suspensão temporária do fabrico de medicamento bem como o cancelamento a pedido de seu registro sanitário, submetendo-os, de qualquer forma, a aparente análise e deferimento da Agência.


Tendo, pois, como pano de fundo a tensão entre interesse público na continuidade da produção de medicamento relevante para a saúde pública e o interesse privado na exploração apenas de empresas lucrativas, pretendemos expor adiante algumas idéias iniciais sobre o ato regulatório da ANVISA, utilizando como fundamento apenas as disposições legais e regulamentares já vigentes no subsistema do direito sanitário brasileiro.


II – O Estado e as Atividades Econômicas


a) Livre Iniciativa e Regulamentação Estatal


Qualquer análise do papel do Estado brasileiro sobre a atividade econômica carece de uma revisão das disposições constitucionais sobre a matéria, sendo, pois, imprescindível iniciar o presente texto por uma breve investigação sobre as normas constitucionais pertinentes à matéria.


 


Ao descrever os fundamentos do Estado Democrático de Direito (re)inaugurado com a Constituição Federal de 1.988, a Assembléia Constituinte entendeu por bem explicitar no texto da Lei Maior os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, como se bem vê em seu artigo 1º, IV,:


“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:


(…)


IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa”;


Desse modo, e sem simplificar por demais a questão, vê-se que o Estado brasileiro reserva o jogo econômico à seara ordinária da iniciativa privada, sendo sua atuação em tal campo limitada, em regra, aos casos de imperativo da segurança nacional ou de relevante interesse social. Não é outra, aliás, a dicção do artigo 173 da CF/88, adiante trazido:


“Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.”


Há de ser ressaltado, contudo, que a liberdade de empresa não implica a inexistência de regulamentação jurídica da atividade econômica, mas, antes, que ao particular apenas podem ser impostas as limitações razoáveis previstas (ou autorizadas) em lei. É o que se depreende, por certo, da leitura do disposto no artigo 170, parágrafo único da CF/88:


“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:


(…)


Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.”


Temos, portanto, que (1) a atividade econômica é prioritariamente reservada ao particular, (2) que a deverá exercer nos limites traçados por lei, (3) não podendo o Estado criar-lhe empecilhos sem fundamento em norma aprovada pelo Parlamento.


De fato, não parecer se outra a conclusão da melhor (e já consolidada) doutrina sobre o assunto, como exemplificado pelo trecho da obra de CELSO RIBEIRO BASTOS e IVES GANDRA DA SILVA MARTINS adiante transcrito[2]:


“É aceitável, pois, que dependam de autorização certas atividades sobre as quais o Estado tenha necessidade de exercer uma tutela, quanto ao seu desempenho no atinente à segurança, à salubridade pública etc.”


Dito isto, e de forma ainda preliminar, temos que o Estado encontra-se constitucionalmente legitimado a condicionar em certos casos previstos em lei o início (por meio de exigência de autorizações) ou o desenvolvimento (por meio de regulações determinadas ou autorizadas em lei) de determinadas atividades econômicas pelos particulares.


Por outro lado, se ao Estado mostra-se, em casos excepcionais previstos em lei, condicionar o início ou manutenção de determinada atividade econômica por particulares ao seu consentimento, não pode o mesmo Estado obrigar o agente privado a iniciar ou manter alguma empresa à revelia de seus interesses econômicos.


Entender de modo distinto seria substituir a livre iniciativa pelo dirigismo ou planejamento estatal da economia, em óbvio desrespeito também ao texto do artigo 174 da CF/88, que classifica o planejamento econômico do Estado como indicativo para os particulares. Veja-se, por oportuno, o disposto no mencionado artigo constitucional:


“Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado”.


Nada obstante, é preciso ressaltar que a Constituição Federal de 1.988 não deixou desarmado o Estado brasileiro para casos em que, por falta de interesse ou capacidade, determinada atividade econômica de relevo para a sociedade não venha a ser explorada por particulares. Em casos que tais, e após decisão do Parlamento, encontra-se o Estado autorizado a assumir ele mesmo a atividade relevante (intervenção no domínio econômico por absorção) ou estimular particulares a desenvolvê-la por meio de incentivos econômicos (intervenção por indução[3]).


Desse modo, parece-nos já possível uma conclusão prévia sobre eventual proposta de se manter compulsoriamente a produção de medicamento por empresa privada. De fato, qualquer que seja a relevância social da atividade econômica a ser desenvolvida, não pode o Estado impô-la ao particular, sob pena de malferir não só princípio básico da ordem econômica constitucional, mas mesmo fundamento da República, que é a livre iniciativa.


Feitas essas considerações, cabem alguns esclarecimentos sobre o marco normativo (legal e regulamentar) acerca do fabrico e comercialização de medicamentos no Brasil.


b) Registro Sanitário e Produção de Medicamentos no Brasil


Assim como ocorre com os demais produtos alcançados pela Lei nº 6.360/76 (marco legal básico da vigilância sanitária no país), a produção e comercialização de medicamentos no Brasil carece de uma autorização prévia por parte do Poder Público, autorização esta denominada de registro sanitário. É o que dispõe de forma iniludível o artigo 12, da mencionada Lei nº 6.360/76:


“Art. 12 – Nenhum dos produtos de que trata esta Lei, inclusive os importados, poderá ser industrializado, exposto à venda ou entregue ao consumo antes de registrado no Ministério da Saúde.”


Há, desse modo, uma condição prévia (em total consonância com o disposto no parágrafo único, do artigo 170 da CF/88) à exploração da atividade econômica de produção e comercialização de medicamentos no Brasil: a obtenção de registro sanitário pelo interessado junto à ANVISA (sucessora, por força da Lei nº 9.782/99, do Ministério da Saúde em tal competência).


O instituto do registro sanitário visa a aferir a segurança e a eficácia terapêutica do uso dos medicamentos por parte da população, resguardando, por conseguinte, o direito público subjetivo à saúde consagrado nos artigos 6º e 196 da CF/88, abaixo transcritos:


“Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.


Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”


Sendo, pois, atividade econômica com óbvio e imenso impacto social, a fabricação e comercialização de medicamentos sofreu minuciosa regulamentação estatal, seja pela Lei nº 6.360/76 e seus atos regulamentadores, seja por atos infralegais expedidos pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária com supedâneo na competência normativa concedida pelo artigo 8º, §1º, I, da Lei nº 9.782/99. Veja-se, por oportuno, o disposto no último dispositivo legal mencionado:


“Art. 8º Incumbe à Agência, respeitada a legislação em vigor, regulamentar, controlar e fiscalizar os produtos e serviços que envolvam risco à saúde pública.


§ 1º Consideram-se bens e produtos submetidos ao controle e fiscalização sanitária pela Agência:


I – medicamentos de uso humano, suas substâncias ativas e demais insumos, processos e tecnologias;


Ora, em que pesem os amplos poderes regulamentares concedidos pelo artigo 8º, §1º, I da Lei nº 9.784/99 à ANVISA, é certo que a atividade da Agência não se encontra escusada de cumprir o disposto na Constituição Federal e nas leis da República. Tanto assim, que a competência normativa reconhecida à autarquia foi expressamente subordinada à “legislação em vigor”. Trata-se, pois, de competência normativa derivada e, portanto, limitada por normas de hierarquia superior.


Na particular hipótese aqui relatada, a suspensão (temporária ou definitiva) do fabrico e comercialização de medicamento por interesse econômico do laboratório responsável, cabe apontar norma expressa sobre a matéria, veiculada pelo artigo 13, do Decreto nº 79.094/77, que regulamentou a Lei nº 6.360/76. Eis a norma trazida pelo mencionado dispositivo:


Art 13 As empresas que desejarem cessar a fabricação de determinada droga ou medicamento, deverão comunicar esse fato ao órgão de vigilância sanitária competente do Ministério da Saúde com antecedência mínima de 180 (cento e oitenta) dias.


Parágrafo único. O prazo a que se refere este artigo poderá ser reduzido em virtude de justificativa apresentada pela empresa, aceita pelo Ministério da Saúde”.


Vê-se que o Presidente da República, ao regulamentar a Lei nº 6.360/76, criou um dever acessório de informar o Poder Público no caso de desinteresse na continuidade de fabrico e comercialização de qualquer medicamento no país. Fê-lo, por certo, no intuito de impedir que importantes políticas públicas de promoção da saúde coletiva fossem comprometidas por decisão empresarial do particular. Trata-se, nesse ponto, de salvaguarda de interesse coletivo sem qualquer sacrifício relevante de direito ou interesse particular por parte do fabricante do medicamento.


Perceba-se, no entanto, que o Decreto nº 79.094/77 não fala em pedido de suspensão, nem defere ao Poder Público (atualmente, a ANVISA) qualquer poder discricionário para interferir na decisão empresarial tomada pelo laboratório farmacêutico. Há apenas a exigência de que o particular comunique sua decisão de “cessar a fabricação de determinada droga ou medicamento” à ANVISA com antecedência de 180 dias. Feita tal comunicação, poderá a interessada interromper normalmente sua atividade ao final do prazo estipulado pelo Decreto, sem a necessidade de qualquer anuência da autarquia.


Ora, a razão para o disposto no Decreto é deveras simples. Primeiro, a lei por ele regulamentada (Lei nº 6.360/76) não trouxe qualquer condicionamento para a cessação do fabrico de medicamentos pelos particulares. Não havia, assim, fundamento legal para impor uma continuidade compulsória na fabricação de medicamentos à revelia do interesse do particular, por mais relevante que fosse a droga.


De outro giro, ainda que presente alguma determinação legal sobre a matéria, pairariam sérias dúvidas sobre sua constitucionalidade em face do disposto na vigente CF/88 que, como visto linhas acima, não parece autorizar, como regra, a imposição pelo Estado da exploração de determinada atividade econômica pelos particulares.


Desse modo, vê-se que a comunicação de que trata o artigo 13 do Decreto nº 79.094/77 não carece de qualquer ato da ANVISA para produzir seus naturais efeitos, não havendo que se falar, nesse passo, em eventual pedido de suspensão ou em seu deferimento por esta Agência, tal como poderiam pensar alguns.


Assim, parece-nos necessário apontar a ilegalidade do disposto na Resolução da Diretoria Colegiada nº 48/2009, ato normativo que parece presumir um poder da Agência sobre a continuidade da produção de medicamentos à revelia do particular interessado.


Veja-se, por oportuno, o disposto nos artigos 194-196 e 203-204 da mencionada Resolução:


“DA SUSPENSÃO TEMPORÁRIA DE FABRICAÇÃO


Art. 194. Refere-se à suspensão temporária da fabricação de um produto registrado não implicando o cancelamento do seu registro.


Art. 195. A solicitação deverá ser protocolizada com 180 dias de antecedência da paralisação de fabricação, exceto em situações emergenciais.


Art. 196. A suspensão temporária da fabricação de um produto registrado só poderá ser implementada após análise e conclusão favorável da Anvisa, observadas outras regras específicas para esta petição.


Parágrafo único. A empresa poderá implementar a suspensão caso não haja manifestação da Anvisa no período de 180 dias.


Capítulo XXIV


DO CANCELAMENTO DO REGISTRO


Seção II


Do cancelamento de registro do medicamento


Art. 203. Refere-se ao cancelamento do registro de todas as apresentações do medicamento.


Art. 204. O cancelamento do registro do medicamento só poderá ser implementado após análise e conclusão favorável da Anvisa, observadas outras regras específicas para esta petição. O cancelamento só poderá ser solicitado após a aprovação da Suspensão Temporária de Fabricação nos termos do Capitulo XXII exceto para os medicamentos que não foram comercializados.”


De fato, tal como externado nas premissas acima, não há fundamento legal suficiente para condicionar a cessação do fabrico e comercialização de medicamentos no Brasil a qualquer ato discricionário da Administração Pública, bastando, para a legalidade da medida tomada pelo particular, o aviso prévio dentro do prazo de 180 (cento e oitenta) dias de que fala o artigo 13 do Decreto nº 79.094/77.


Ainda nesse diapasão, descabe à ANVISA apreciar (deferindo ou indeferindo) a comunicação feita pelo laboratório interessado (que, como já se disse, não é pedido, mas mera informação) tal como previsto nos dispositivos da RDC nº 48/2009 acima mencionados.


Por certo, poderá a Agência, por meio de ato normativo próprio e específico, regulamentar a forma da comunicação de que fala o artigo 13, do Decreto nº 79.094/77, exigindo, por exemplo, que o laboratório interessado na descontinuidade de determinado medicamento informe dados atualizados sobre as quantidades vendidas, os principais compradores e outras informações relevantes para a garantia da continuidade de políticas públicas de saúde.


Saliente-se, no entanto, que tais deveres acessórios de informação, passíveis de serem impostos com fundamento na competência regulatória concedida à Agência pelo artigo 8º, §1º, I, da Lei nº 9.782/99, não podem implicar derrogação do disposto no artigo 13, do Decreto nº 79.094/77, nem impor ao particular a continuidade compulsória da produção de determinado medicamento ou droga.


Assim sendo, e se porventura estabelecido por meio de Resolução da Diretoria Colegiada desta Agência o dever de informar à ANVISA os dados relevantes sobre o medicamento cuja fabricação se deseja cessar, mostrar-se-ia de todo recomendável o envio das informações coletadas ao Ministério da Saúde, órgão federal com competência para traçar as políticas públicas referentes a medicamentos no país.


De fato, foi clara a Lei nº 9.782/99 ao reservar ao Ministério da Saúde o papel central de definição das políticas de vigilância sanitária no país, aí incluída a de acesso a medicamentos, como bem se vê na transcrição de seu artigo 2º, §1º, I, adiante trazida:


“Art. 2º Compete à União no âmbito do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária:


I – definir a política nacional de vigilância sanitária;


(…)


§1º A competência da União será exercida:


I – pelo Ministério da Saúde, no que se refere à formulação, ao acompanhamento e à avaliação da política nacional de vigilância sanitária e das diretrizes gerais do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária;” (…)


(grifos nossos)


III – Conclusões


Diante dos argumentos até agora trazidos, concluí-se que a suspensão ou interrupção do fabrico de medicamento pelo particular, não importando qual sua relevância social, não pode ser impedido pelo Poder Público, sob pena de violação ao princípio constitucional da livre iniciativa, trazido pelo artigo 1º, IV e 170, parágrafo único da CF/88. Não pode o Estado brasileiro obrigar o particular a explorar determinada atividade econômica de forma compulsória, ainda que temporariamente.


Por outro lado, ressalta-se que a competência normativa da Agência Nacional de Vigilância Sanitária sobre produtos submetidos ao regime administrativo da vigilância sanitária, dentre os quais se incluem os medicamentos, permite-lhe regular a forma da comunicação de cessação de fabrico de que trata o artigo 13, do Decreto nº 79.094/77. Nesse sentido, pode a Agência, por meio de ato normativo próprio, exigir o encaminhamento de dados que entenda relevantes ou imprescindíveis à avaliação do impacto da descontinuidade da produção do medicamento na saúde pública e nos programas mantidos pelo Estado. Não poderá, contudo, impor a continuidade da fabricação ao particular desinteressado, ou de qualquer maneira negar vigência ou efetividade ao disposto no artigo 13, do Decreto nº 79.094/77.


Como já ressaltado alhures, o Estado brasileiro não pode determinar a exploração de qualquer atividade econômica específica aos particulares. De igual sorte, não poderia, por exemplo, determinar compulsoriamente a colaboração de particulares na transferência de conhecimentos ou tecnologias que detenham ao Estado ou a entes privados que se afigurem como competidores no regime de mercado.


De fato, necessitando o Estado da propriedade ou conhecimento particular, deverá negociar sua aquisição com seu titular ou, em casos extremos, utilizar-se dos instrumentos jurídicos da desapropriação ou requisição civil, reservados, de qualquer maneira, à competência do Poder Executivo central (e não à ANVISA).


Como conclusão final, entendemos que os artigos 196 e 204 da Resolução da Diretoria Colegiada da ANVISA nº 048/2009 mostram-se ilegais, na medida em que implicam a possibilidade de uma continuidade forçada na fabricação de medicamentos por laboratórios particulares.


 


Referências bibliográficas:


BASTOS, Celso Ribeiro e MARTINS, Ives Gandra da Silva. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo, 2.000. Editora Saraiva. 2ª Edição.

GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. São Paulo: 2003. Malheiros Editores, 8ª Edição.

 

Notas:

[1] Vide, p.ex., o AI 604.949-AgR do Supremo Tribunal Federal, da Relatoria do Min. Eros Grau.

[2] BASTOS, Celso Ribeiro e MARTINS, Ives Gandra da Silva. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo, 2.000. Editora Saraiva. 2ª Edição, pág. 43.

[3] Veja-se a seminal obra de EROS ROBERTO GRAU sobre a matéria, em especial seu capítulo 3: GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. São Paulo: 2003. Malheiros Editores, 8ª Edição.


Informações Sobre o Autor

Victor V. Carneiro de Albuquerque

Procurador Federal. Especialista em Direito Regulatório pela Universidade de Brasília – UnB.


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