Resumo: O presente trabalho tem a finalidade de avaliar a possibilidade de aplicação do princípio inscrito no art. 5º, inciso XL, da Constituição Federal de 1988, na análise do cumprimento das metas de qualidade impostas pela Anatel aos entes regulados.
Palavras-Chave: Direito Penal. Princípios. Direito Administrativo Sancionador. Metas de Qualidade. Tempus Regit Actum.
Abstract: This work intends to assess the possibility of applying the principle prescribed in the Article 5º, XL of the Brazilian Constitution in the analysis of the observance of the quality goals imposed by ANATEL to the regulated entities.
Keywords: Criminal Law. Principles. Sanctioning Administrative Law. Quality Goals. Tempus Regit Actum.
Sumário: Introdução. 1. Da Edição de Planos de Metas de Qualidade na Prestação dos Serviços de Telecomunicações por parte da ANATEL. 2. Da Aplicação do Princípio da Retroatividade Benéfica na Análise do Cumprimento das Metas de Qualidade. 3. Conclusão. Referências Bibliográficas.
Introdução.
Deve-se, de início, destacar que cabe ao Poder Público zelar pelo serviço de telecomunicações, regulando o setor, de sorte que a prestação do serviço concedido ou autorizado seja observe a parâmetros de qualidade. É o que se depreende da Lei Geral de Telecomunicações (Lei nº 9.472/1997) e do Decreto nº 4.733/2003:
Lei nº 9.472/1997
“Art. 2° O Poder Público tem o dever de:
I – garantir, a toda a população, o acesso às telecomunicações, a tarifas e preços razoáveis, em condições adequadas;
II – estimular a expansão do uso de redes e serviços de telecomunicações pelos serviços de interesse público em benefício da população brasileira;
III – adotar medidas que promovam a competição e a diversidade dos serviços, incrementem sua oferta e propiciem padrões de qualidade compatíveis com a exigência dos usuários;
IV – fortalecer o papel regulador do Estado;
V – criar oportunidades de investimento e estimular o desenvolvimento tecnológico e industrial, em ambiente competitivo;
VI – criar condições para que o desenvolvimento do setor seja harmônico com as metas de desenvolvimento social do País.”
Decreto nº 4.733/2003
“Art. 3o. As políticas para as telecomunicações têm como finalidade primordial atender ao cidadão, observando, entre outros, os seguintes objetivos gerais: (…)
VII – garantir adequado atendimento na prestação dos serviços de telecomunicações; (…)
IX – estimular a competição ampla, livre e justa entre as empresas exploradoras de serviços de telecomunicações, com vistas a promover a diversidade dos serviços com qualidade e a preços acessíveis à população.
Art. 4o. As políticas relativas aos serviços de telecomunicações objetivam: (…)
VI – a garantia do atendimento adequado às necessidades dos cidadãos, relativas aos serviços de telecomunicações com garantia de qualidade; (…)”
A esses dispositivos, soma-se o art. 3º, inciso I, da LGT, o qual confere ao usuário direito de acesso ao serviços de telecomuincações com padrões de qualidade e regularidade:
Lei nº 9.472/1997
“Art. 3° O usuário de serviços de telecomunicações tem direito:
I – de acesso aos serviços de telecomunicações, com padrões de qualidade e regularidade adequados à sua natureza, em qualquer ponto do território nacional; (…)”
Da leitura dos excertos colacionados, anota-se que a lei conferiu os parâmetros por meio dos quais se percebe a qualidade na prestação dos serviços de telecomunicações. Nesse ponto, trazemos à baila os ensinamentos de J.C. Mariense Escobar (ESCOBAR, 2005, p. 49-50):
“Os serviços de telecomunicações devem adequar-se ao pleno atendimento das necessidades dos usuários, satisfazendo as condições de regularidade, continuidade (quando prestado como serviço público), eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade de tarifas. A sua qualidade, por exemplo, deve ser aferida com observância dos seguintes parâmetros: Regularidade e continuidade: prestação contínua nas condições previstas no contrato (ressalvada a interrupção em situação de emergência ou, após prévio aviso, por razões de ordem técnica ou de segurança de pessoas e bens, ou diante do inadimplemento do usuário); eficiência: oferta em padrões qualitativa e quantitativamente satisfatórios; segurança: adoção de medidas eficazes para conservação e manutenção das instalações utilizadas na sua prestação e para prevenção de acidentes; atualidade: modernização das técnicas, equipamentos e instalações, inclusive melhoria e expansão; generalidade: universalidade na prestação do serviço, de modo a dele poderem dispor todos os usuários, sem discriminação; cortesia: disponibilidade de informações aos usuários, adequada atenção às suas necessidades e polidez no atendimento.”.
1. Da Edição de Planos de Metas de Qualidade na Prestação dos Serviços de Telecomunicações por parte da ANATEL.
É com base em tal ideário que a Agência edita, de tempos em tempos, um Regulamento de Gestão da Qualidade dos vários serviços de telecomunicações. Por meio deles, a Agência elabora índices que devem ser alcançados pelas prestadoras e, por meio deles, consegue avaliar a qualidade da prestação do serviço de telecomunicações. Tratam-se de metas que são revistas de tempos em tempos, para que a regulamentação da Agência seja condizente com a evolução do setor. Depreende-se de tais normas que a Anatel busca que a prestação do serviço regulado, do ponto de vista da qualidade do usuário, esteja sempre em constante evolução, motivo pelo qual edita, periodicamente, metas de qualidade de observância obrigatória para as prestadoras do setor. Desta forma, a prestação do serviço de telecomunicações, seja no regime público, seja no regime privado, sujeita-se a controle por parte da Agência Reguladora, tendo em vista os regramentos constitucionais, legais, regulamentares e contratuais, estes últimos previstos em Termo de Autorização ou Contrato de Concessão.
Nesse ideário, repise-se, é fácil perceber que os Planos Gerais de Metas de Qualidade e os Regulamentos de Indicadores de Qualidade mostram-se como instrumentos importantes que a Agência possui para aferir a qualidade na prestação do serviço regulado.
Outrossim, deve-se ter em mente que tais diplomas intentam estabelecer uma evolução na prestação do serviço de telecomunicações, com vistas a assegurar sua qualidade. Em outras palavras, a Anatel, na edição de tais documentos, impõe o cumprimento de metas por parte das prestadoras, as quais, quando cumpridas, alcançam sua finalidade, que é a de alcançar os objetivos das políticas públicas de telecomunicações. Ou seja, em cada momento histórico, percebe-se a necessidade de se impor às prestadoras do setor o cumprimento de determinadas metas, sendo aqui perfeitamente cabível uma análise que observe a ideia de vedação ao retrocesso.
2. Da Aplicação do Princípio da Retroatividade Benéfica[1] na Análise do Cumprimento das Metas de Qualidade.
Com efeito, tormentosa é a questão da aplicação da regulamentação sancionadora no tempo, procurando-se, pois, apurar se a previsão constitucional do art. 5º, inciso XL da Constituição Federal para o Direito Penal é aplicável ao Direito Administrativo Sancionador ou se, a este último campo, aplica-se o princípio do tempus regit actum. Por meio do dispositivo constitucional, a regra geral é que a norma penal desfavorável ao acusado não retroagirá. A retroação apenas se justifica no caso da lei penal configurar-se como mais benigna a ele.
A doutrina não é unânime quanto à possibilidade ou não da utilização de preceitos de Direito Penal na análise do Direito Administrativo Sancionador. Para os fins do presente trabalho, deve-se ter mente que as disposições aplicáveis ao Direito Penal possuem peculiaridades próprias, principalmente em razão de poder restringir a liberdade do indivíduo, erigido a direito fundamental pela Constituição Federal de 1988. São dificuldades intrínsecas ao Direito Penal e que apenas servem para a interpretação das normas deste campo do saber.
Assim, na hipótese em que a Agência decida pela edição de um novo Plano de Metas, é possível inferir que os patamares de qualidade exigidos pelo Plano anterior, apesar de importantes para a determinação das novas metas, devem ceder lugar a estas. No entanto, continuam sendo exigíveis, aplicando-se o Plano anterior aos fatos fiscalizados na sua vigência, podendo a Anatel instaurar processo administrativo para averiguar o seu cumprimento mesmo após a edição do novo Plano. Na verdade, fala-se, aqui, em aplicação ao princípio segundo o qual tempus regit actum, aplicando-se ao caso concreto a lei vigente quando da prática do ato. Entendimento diverso, qual seja, admitir a retroatividade benéfica, faria com que a interpretação jurídica chegue a absurdos, senão vejamos.
Acerca da lei penal no tempo, asseveram Eugênio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli (2001, p. 227-228):
“O princípio da irretroatividade da lei penal tem caráter constitucional, de modo que a lei penal deve ser entendida como aplicável somente aos fatos que tenham ocorrido após a sua entrada em vigência. Como conseqüência necessária do princípio da legalidade, ficam eliminadas as chamadas leis ex post facto.
A garantia da legalidade (art. 5º, II e XXXIX, CF/88) tem claro sentido de impedir que alguém seja punido por um fato que, ao tempo do cometimento, não era delito, ou de impedir que ao condenado seja aplicada uma pena mais grave do que aquela legalmente prevista ao tempo da realização do fato delituoso. Posto que esse – e não outro – é o objeto da proscrição da lei penal ex post facto, o princípio geral da irretroatividade da lei penal reconhece uma importante exceção, consistente na admissão de efeito retroativo da lei penal mais benigna. (…)
Pode ocorrer que, além da lei vigente ao tempo do fato e da vigente ao tempo da sentença, no período intermédio entre elas tenham sido editadas outra ou outras leis e, ainda, que outras sejam sancionadas durante o cumprimento da pena. Faz-se necessário determinar como opera o princípio da retroatividade da lei penal mais benigna também nesses casos. (…)
Tal como a CA de Direitos Humanos e também o inciso XL do art. 5º da CF/88, o CP estabelece, expressamente, a exceção ao princípio da irretroatividade no caso de lei mais benigna, tanto aquela sancionada antes da sentença como durante sua execução. O parágrafo único do art. 2o fixa: ‘A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado’.”
Nesse passo, admitindo-se a ideia de retroação do diploma mais benéfico no caso de edição de um novo Plano de Metas de Qualidade, seria imperioso reconhecer que os processos sancionadores cuja sanção tenha por base o Plano anterior não poderiam mais subsistir. Ainda, em caso de a Anatel, por meio de um processo administrativo ter aplicado sanção à determinada empresa por esse mesmo fato, esta penalidade também seria discutida. Finalmente, poder-se-ia inclusive excluir a possibilidade de execução dessa sanção, que também seria afastada por força do princípio da lei mais benigna.
No caso de Planos Gerais de Metas para a Qualidade, que pressupõem, necessariamente, a alteração das metas de qualidade com base no momento histórico e, por conseguinte, a substituição de um diploma por outro, essas consequências estariam fadadas a ocorrer, o que esvaziaria por completo o trabalho da Agência nessa seara e, por conseguinte, seu poder sancionador.
Reforçando a opinião acima, relativamente à aplicação da retroatividade benéfica no Direito Administrativo sancionador, seguem os ensinamentos de Rafael Munhoz de Mello (2007, p. 153-156). Vejamos:
“Com respeito devido aos autores que entendem de outra forma, parece acertada a posição defendida por Fabio Medina Osório. A regra é a irretroatividade das normas jurídicas, sendo certo que as leis são editadas para regular situações futuras. O dispositivo constitucional que estabelece a retroatividade da lei penal mais benéfica funda-se em peculiaridades únicas do direito penal, inexistentes no direito administrativo sancionador.
Com efeito, a retroatividade da lei penal mais benéfica tem por fundamento razões humanitárias, relacionadas diretamente à liberdade do criminoso, bem jurídico diretamente atingido pela pena criminal. Como ensinam Carlos Enrico Paliero e Aldo Travi, é o princípio do favor libertatis que justifica a retroatividade da lei penal mais benigna, considerando-se a gravidade da pena de prisão e os efeitos que tal medida produz sobre o condenado, só superados pelos efeitos da pena de morte. No direito administrativo sancionador não há espaço para o argumento, sendo certo que a sanção administrativa não pode consistir em pena de prisão. (…)
De fato, o direito penal tem por objeto normas que tipificam como criminosas condutas consideradas pelo legislador como gravemente contrárias à ‘consciência ético-jurídica do povo’. No direito administrativo sancionador ocorre algo diferente, como já foi ressaltado: as normas jurídicas disciplinam o exercício da função administrativa, estabelecendo, em alguns casos, deveres e obrigações aos particulares. As infrações administrativas, em regra, consistem em condutas que representam a inobservância de tais deveres e obrigações, razão pela qual Alejandro Nieto entende que ‘los tipos sancionadores administrativos no son autônomos sino que se remiten a outra norma en la que se formula una orden o una prohibición’. Portanto, não há que se falar em juízo de desvalor ético no direito administrativo sancionador – argumento que justifica também a retroatividade da lei penal mais benigna.
Por tais fundamentos, não se pode transportar para o direito administrativo sancionador a norma penal da retroatividade da lei que extingue a infração ou torna mais amena a sanção punitiva. No direito administrativo sancionador aplica-se ao infrator a lei vigente a época da adoção do comportamento ilícito, ainda que mais grave que lei posteriormente editada. Diversamente do que ocorre no direito penal, assim, não há no direito administrativo sancionador o princípio da retroatividade da lei mais benéfica ao infrator.
Isso não significa que o legislador ordinário esteja impedido de dispor que a lei mais vantajosa retroaja. Não ofende disposição constitucional alguma a norma que estabeleça benefício de tal natureza, pois a garantia constitucional da irretroatividade existe para impedir que a situação dos particulares seja agravada por disposição editada após a prática do fato delituoso. O Código Tributário Nacional, por exemplo, expressamente dispõe que ‘comine penalidade menos severa que a lei vigente ao tempo da sua prática’ retroaja (art. 106, II, “c”). Trata-se de norma excepcional, que se aplica apenas no campo dos ilícitos tributários, mas que pode ser estendida a outros campos do direito administrativo sancionador, se assim dispuser o legislador ordinário.” (grifos nossos)
De todo modo, ainda que fosse cabível a aplicação de preceitos penais ao Direito Administrativo Sancionador, entender-se-ia que a natureza jurídica das normas de qualidade, periodicamente editadas pela Agência, exatamente por seu caráter não permanente, mais se assemelhariam às chamadas leis temporárias e excepcionais:
“Chama-se usualmente de lei excepcional aquela que limita a sua vigência a um tempo determinado, incerto, mas caracterizado pela presença de uma circunstância excepcional. (…) A lei excepcional é uma lei que, frente a uma circunstância extraordinária, perde a vigência. (…)
A lei temporária é a que possui, em seu próprio texto, o tempo de sua vigência e que o perde com o seu transcurso. Trata-se de uma lei que, diversamente da excepcional (que vige por tempo limitado por um fato futuro, que não se sabe quando será produzido), vige por tempo certo e determinado.
O art. 3º do CP estabelece que, nos caso de leis temporárias e excepcionais, não vigora a retroatividade da lei posterior mais benigna, estabelecida no art. 2º. Trata-se de uma limitação à regra do art. 2o, que foi consagrada no Código de 1940, que se mantém no texto vigente. Seu fundamento seria a perda da eficácia intimidatória preventiva destas leis, se não fosse estabelecida a exceção.”(ZAFFARONI, PIERANGELI, 2001, p. 230)
Isso porque, no âmbito do Direito Penal, as leis temporárias e excepcionais, ainda que revogadas, aplicam-se aos fatos ocorridos durante sua vigência, o que decorre exatamente das peculiaridades de tais espécies normativas.
Conclusão
Existem dificuldades que impedem a aplicação de preceitos de Direito Penal (como o princípio da retroatividade benéfica) ao Direito Administrativo Sancionador. Ora, os bens jurídicos tutelados são distintos, sendo que, no caso do primeiro campo, a possibilidade de limitação à liberdade do indivíduo deve ser considerada na interpretação de suas regras. Tal não ocorre com o Direito Administrativo Sancionador.
Especificamente no caso concreto trazido à análise no presente trabalho, consistente na edição de Planos de Metas de Qualidade dos vários serviços de telecomunicações por parte da ANATEL, pressupõe-se a evolução dessas metas, no sentido de que não se pode falar em vedação ao retrocesso. Com efeito, na edição de um novo Plano de Metas de Qualidade, deve a Anatel ter o cuidado de manter os direitos já alcançados, observando a necessidade de que, a cada documento, mais garantias devem ser agregadas ao patrimônio jurídico do consumidor. No entanto, pode ocorrer de a entidade reguladora entender pela desnecessidade de uma determinada meta naquele novo cenário do setor, extirpando-a de sua regulamentação, ou, mesmo, dispor que determinada meta, em um determinado momento regulatório, deveria ser mais rigorosa, flexibilizando-a no próximo diploma regulamentar. Ainda assim, subsistirá a necessidade de os players do setor cumprirem aquelas metas, considerando os fatos ocorridos sob a égide da regulamentação que as previam.
Entender pela possibilidade de aplicação do princípio da retroatividade benéfica na hipótese em comento seria possibilitar a revisão das sanções aplicadas com base no Plano de Metas de Qualidade anterior sempre que um novo Plano fosse editado, esvaziando o poder sancionatório da Agência (desconsiderando que cabe a ela avaliar os índices e metas de qualidade que devem ser cumpridos pelas prestadoras naquele momento), bem como autorizar o retrocesso para fins de análise da qualidade na prestação dos serviços de telecomunicações.
Informações Sobre o Autor
Marina Georgia de Oliveira e Nascimento
Procuradora Federal em Brasília – DF