A Emenda Constitucional n° 96/2017 e a manobra do Congresso Nacional

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Resumo: Após o Supremo Tribunal Federal declarar inconstitucional a Lei do Estado de Ceará que regulamentava a prática da vaquejada; o Congresso Nacional, em uma verdadeira manobra, aprovou a Emenda Constitucional n° 96/2017, acrescentando o parágrafo sétimo ao artigo 225 da Constituição Federal, a fim de determinar que não são considerados cruéis os atos desportivos que envolvam animais.

Palavras-chave: Animais; Congresso Nacional; Emenda Constitucional n° 96; Manobra.

Resumen: Después del Supremo Tribunal Federal declarar inconstitucional la Ley del Estado de Ceará que regulaba la práctica de la vaquillada; el Congreso Nacional, en una verdadera maniobra, aprobó la Enmienda Constitucional n ° 96/2017, añadiendo el párrafo séptimo al artículo 225 de la Constitución Federal, a fin de determinar que no se consideran crueles los actos deportivos que involucran animales.

Palabras-clave: Animales; Congreso Nacional; Enmienda Constitucional n ° 96; Maniobra.

Sumário: Introdução. 1. O tratamento dado pela Constituição Federal. 2.

A Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 4983. 3. A Lei nº 13.364/2016. 4. A prática da vaqueja e do rodeio. 5. A manobra do Congresso Nacional. 6. O espetáculo de horror. 7. O Poder Legislativo perdeu a oportunidade de dar mais um passo civilizatório. Conclusão. Referências.

Introdução:

Infelizmente é comum a prática do Congresso Nacional de buscar reverter as decisões do Supremo Tribunal Federal quando estas são desfavoráveis aos seus interesses e com a ADI n° 4983/CE não foi diferente. Uma vez reconhecida que a Lei Estadual n° 15.299/2013 inobservava os ditames do Texto Constitucional e assim, considerada inconstitucional pela Suprema Corte brasileira, o Congresso Nacional em uma tentativa desesperada de defender aqueles que se beneficiam com a prática de atividades de barbárie com animais, promulgou a Emenda Constitucional n° 96/17.

Antes da aprovação da emenda, o presidente Michel Temer sancionou a Lei nº 13.364/2016 que definiu o rodeio, a vaquejada e as demais manifestações como patrimônio cultural imaterial nacional. Dessa forma, o Brasil vem em contramão às decisões nacionais recentes e de outros países que proibiram os esportes com os animais que, por sua vez, os submetem às inúmeras situações penosas.

1. O tratamento dado pela Constituição Federal

A proteção aos animais é tratada, especialmente, no artigo 225, inciso VII, da Constituição Federal, no qual dispõe:

“Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:

VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade”.

Dito isto, a tutela aos animais constitui medida que assegura a concretização do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, direito esse que tem caráter transinvidual, difuso, subjetivo, no qual toda a coletividade é possuidora. Nessa esteira, tal garantia está presente no rol dos direitos fundamentais de 3° Geração ou 3° Dimensão.

Os direitos fundamentais de terceira geração, também nomeados como direito de solidariedade ou de fraternidade, são aqueles direcionados às pessoas determináveis ou indeterminadas.  Também faz parte desta categoria o direito a uma sadia qualidade de vida, à autodeterminação dos   povos, o direito à paz, dentre outros.

Segundo Pedro Lenza em sua obra Direito Constitucional Esquematizado, os direitos de solidariedade são destinados a todos, de forma universal, resultado das incisivas alterações ocorridas durante toda a evolução social. Assim, quando o ser humano é visto sob o ponto de vista da coletividade ele passa a ser sujeito de tais direitos (2013, p. 865):

“Novos problemas e preocupações mundiais surgem, tais como a necessária noção de preservacionismo ambiental e as dificuldades para proteção dos consumidores, só para lembrar aqui dois candentes temas. O ser humano é inserido em uma coletividade e passa a ter direitos de solidariedade ou fraternidade.”

Desta feita, a inobservância da tutela aos animais constitui sério descumprimento de preceito legal, eis que o Texto Constitucional assegura, através da proteção ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, que os animais não poderão ser tratados de forma cruel, sendo este um direito fundamental de terceira dimensão.

2. A Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 4983

O Supremo Tribunal Federal considerou inconstitucional a Lei do Estado do Ceará, Lei nº 15.299/2013, através da ADI n° 4983. A lei que regulamentava a vaquejada no estado cearense foi considerada em desacordo com a Carta Constitucional sob o argumento que o cuidado com o bem estar do bovino é mais importante que a expressão da cultura de uma região.

A Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 4983 tinha como objeto o conflito de normas entre os artigos 215 e 225, ambos do Texto Maior, no qual versa o primeiro, acerca do direito de manifestação cultural e o segundo, sobre a garantia de não submeter os animais às situações de torturas. Na oportunidade, a Suprema Corte brasileira, em um juízo ponderativo, decidiu pela valorização da proteção aos animais em detrimento da vaquejada.

Na ocasião, ressaltou o relator da ADI em seu o voto, o Ministro Marco Aurélio, a respeito dos danos físicos e mentais causados nos bovinos em decorrência da atividade hedionda no qual são submetidos na vaquejada:

“O autor juntou laudos técnicos que demonstram as consequências nocivas à saúde dos bovinos decorrentes da tração forçada no rabo, seguida da derrubada, tais como fraturas nas patas, ruptura de ligamentos e de vasos sanguíneos, traumatismos e deslocamento da articulação do rabo ou até o arrancamento deste, resultando no comprometimento da medula espinhal e dos nervos espinhais, dores físicas e sofrimento mental. Apresentou estudos no sentido de também sofrerem lesões e danos irreparáveis os cavalos utilizados na atividade: tendinite, tenossinovite, exostose, miopatias focal e por esforço, fraturas e osteoartrite társica”.

Mesmo sendo o Plenário do Supremo favorável à inconstitucionalidade da Lei nº 15.299/2013, tal decisão apenas gerou efeitos para a mencionada norma, sendo incapaz de surtir exigibilidade em todo o território nacional. Assim, o ato do Poder Legislativo de positivar a vaquejada na Constituição como patrimônio cultural imaterial, não causadora de tratamento cruel, não viola a lei, o que não retira o objetivo do Legislativo de superar a decisão do STF, com o objetivo de afastar futura decisão do órgão supremo, que tenha efeito no país todo e que poderia ser prejudicial às manifestações que utilizam do sofrimento animal como forma de atrativo para multidões que ignoram os atos de torturam que são cometidos contra os bovinos, praticados dentro e fora da arena.

3. A Lei nº 13.364/2016

Depois que o Supremo reconheceu a inconstitucionalidade da lei cearense que regulamentava a vaquejada, iniciou-se uma grande estratégia para positivar as manifestações que usam do sofrimento animal como forma de espetáculo. Assim, em 29 de novembro de 2016 foi promulgada a Lei n° 13.364 que dá às mencionadas manifestações caráter patrimonial imaterial.

Assim, uma vez vigente tal lei, bastaria ao Poder Legislativo acrescentar ao artigo 225 da Constituição da República, a redação que versa que não são classificadas como tortura as práticas que tem como objeto os animais, desde que sejam oriundas de expressões culturais, o que foi feito por meio do parágrafo sétimo do mencionado artigo.

É certo que, tanto o Executivo quanto o Legislativo, pouco se importam com o viés de proteção às manifestações culturais que possa possuir a lei. Longe disso, o verdadeiro fim que tem a Lei n° 13.364/16 é conferir segurança jurídica para eventos que são imensuravelmente rentáveis.

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4. A prática da vaqueja e do rodeio

A vaquejada é uma atividade realizada, principalmente, na região do nordeste brasileiro. Nela, uma dupla de vaqueiros, cada qual montados em seu cavalo, perseguem e encurralam o boi na arena, puxando-o pelo rabo até que consigam derrubá-lo. Para que haja pontuação, é necessário que o boi fique com as quatro patas para cima antes de se levantar, caso não fique, não ocorrerá a pontuação.

Cada dupla tentará derrubar cinco bois, sendo que a primeira tentativa equivale a oito pontos, a segunda a nove, a terceira a dez pontos, a quarta a onze e a última a 12 pontos. Ressalta-se que as regras podem ser alteradas conforme a localidade no qual se realiza a atividade desportiva.

De se registrar o fato ocorrido em maio de 2015 no município de Serrinha no estado da Bahia, no qual um boi que era alvo da prática da vaquejada teve seu rabo arrancado. A situação mencionada nada mais é que uma prova do tratamento cruel e bárbaro que são submetidos esses animais.

Já o rodeio é uma prática que tem por escopo a permanência do boiadeiro por oito segundos em cima do boi ou de um cavalo. Há dois árbitros avaliando o desempenho do peão e do animal, sendo que estes pontuarão o competidor em uma nota, que no final, ficará de 0 a 100. O rodeio é dividido em algumas categorias, no qual se destacam: cutiano, sela, laço de bezerro e laço em dupla.

Dito isto, resta claro que nessas competições os animais são submetidos à tortura simplesmente para satisfazer o entretenimento humano. Ressalta-se o duvidoso comportamento social, eis que inúmeras pessoas conseguem se sentir jubilosas diante do extremo sofrimento e da agonia de bois e cavalos, independentemente da nítida violação da dignidade animal que existem nos locais desses eventos. E se ao invés de animais, estivessem ali homens, mulheres ou crianças, qual seria o geral posicionamento social?

5. A manobra do Congresso Nacional

Diante do julgamento do Supremo que resultou na inconstitucionalidade da lei cearense que regulamentava a vaquejada, o Congresso Nacional iniciou a articulação pela positivação constitucional das manifestações que utilizam de animais. Assim, o primeiro ato feito foi a criação da Lei n° 13.364, sancionada pelo Presidente da República, Michel Temer, dando natureza de patrimônio cultural imaterial às expressões em análise.

Entretanto era preciso mais, era necessário dar status constitucional à tutela dessas manifestações. Desse modo, foi promulgada a Emenda Constitucional n° 96 de 2017 a fim de acrescentar o parágrafo sétimo ao artigo 225 do Texto Constitucional, estabelecendo que as atividades desportivas, que são consideradas patrimônio imaterial, não sujeitam os animais às práticas cruéis.

Desta feita, não há dúvidas quanto à finalidade do Congresso Nacional em formular a Emenda à Constituição n° 96/17 que é superar a decisão do STF e de comandar uma verdadeira manobra no que tange à continuação das manifestações como a vaquejada e o rodeio. Ademais, resta nítido a intenção política dessa emenda que não é assegurar o exercício de manifestações vistas como culturais, mas sim de interesse estritamente econômico.

6. O espetáculo de horror

Ao longo desse artigo buscou-se demonstrar que os animais são sim submetidos a maus tratos em determinadas manifestações típicas culturais, como, por exemplo, a vaquejada e o rodeio. Mesmo que existam ações para diminuir a tortura no qual estão sujeitos, o sofrimento mental e físico desses animais ainda permanece.

O posicionamento daqueles que defendem tais manifestações é que essas geram grande retorno econômico e inúmeros postos de trabalho. Além disso, alegam que são expressões artístico-culturais, resultado da identidade de um povo.

Entretanto, resta o questionamento acerca de qual valor jurídico é mais relevante, se é o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado ou o pleno exercício das manifestações culturais. Acredita-se que a proteção aos animais deve prevalecer, eis que mesmo existindo relevância e tutela constitucional o direito à livre expressão cultural, essa garantia não pode ser imune às demais previsões do Texto Constitucional, ainda mais quando tais previsões estão relacionadas à dignidade e ao bem estar dos animais.

Ademais, não seria razoável que o Estado consentisse com qualquer violação de direito, posto que além de ser garantia do animal, é também direito fundamental de terceira dimensão no qual são titulares todas as pessoas.

Nesse sentido, o argumento de geração de emprego e de estímulo à economia não pode sobressair, eis que se ao invés de tratamento cruel aos animais, fosse o homem o objeto dessas manifestações, a lei daria guarida às alegações de rentabilidade econômica e de criação de trabalho em detrimento da dignidade humana? Pode aparentar absurda tal indagação, mas não nos esqueçamos de que há alguns anos havia a previsão da escravidão em nossa legislação.

De mais a mais, parte do público que vão às manifestações em comento não tem como principal motivo da ida assistir as ações que envolvem os animais. Essa fração de pessoas também se interessa pelos grandiosos shows que acontecem nesses locais, motivo pelo qual ainda haverá a geração de trabalho e a rentabilidade financeira nessas regiões sem colocar em risco a saúde dos animais.

7. O Poder Legislativo perdeu a oportunidade de dar mais um passo civilizatório

Do mesmo modo que ocorreu com a rinha de galo e com a farra do boi que, inicialmente, eram consideradas práticas desportivas, patrimônio cultural de uma região, e que, uma vez levada a questão à análise do Supremo, este órgão decidiu pela inconstitucionalidade dessas manifestações, impedindo que as mencionadas expressões fossem realizadas no país, espera-se que o mesmo aconteça com a vaqueja, com o rodeio e com as demais manifestações do mesmo tipo.

Desta feita, poderia ter partido do Poder Legislativo o passo que avança a sociedade brasileira na caminhada civilizatória, mas isso não ocorreu. Há vários outros países, como, exempli gratia, a Inglaterra e a Escócia, que deram maior importância à proteção do bem estar do animal do que ao mero divertimento humano que se satisfaz com o uso da crueldade com os animais.

A alegação que essas manifestações são resultado da cultura de um povo não pode ser usada para justificar a continuação e a proteção constitucional das expressões culturais que submetem os animais à tortura.

Conclusão

Portanto resta claro que a Emenda Constitucional n° 96/17 nada mais é que o resultado da manobra realizada pelo Congresso Nacional para superar a decisão do Supremo Tribunal Federal no que tange à inconstitucionalidade da Lei n° 15.299/2013 e consequentemente, da vaquejada no estado do Ceará.

A Constituição da República prevê o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, sendo este um direito de terceira geração. Mesmo assim, o Presidente da República conferiu ao rodeio, à vaquejada e às demais expressões da mesma natureza, caráter de patrimônio cultural. Logo, o Congresso Nacional promulgou a Emenda Constitucional n° 96/17 que deu proteção constitucional a essas manifestações.

Nesse sentido, não pode prevalecer o direito à expressão cultural em relação ao direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, eis que toda norma jurídica para ter validade precisa respeitar os demais direitos que possuem patamar constitucional, especialmente quando tais direitos tutelam as garantias fundamentais do homem e a defesa do animal.

 

Referência:
BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a efetividade de suas normas. 7. ed. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2003.
BRASIL. Senado. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília. DF: Congresso Nacional, 1988.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4983. In: STF.jus.br. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=4983&classe=ADI&origem=AP&recurso=0&tipoJulgamento=M>>. Acesso em: 10 jul 2017.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2016.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 17ª Edição, Ed. Saraiva, 2013.
NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.

Informações Sobre o Autor

Micaela Afonso Lamounier

Advogada graduada pela Universidade de Itáuna UIT. Atuante na advocacia cível trabalhista e previdenciária

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