Resumo: O presente artigo busca estabelecer, por meio de relações lógicas, análise de julgados e pela comparação entre teorias sobre a personalidade jurídica dos animais – em especial, os de estimação – a sua situação perante o Direito de Família brasileiro, principalmente no que tange ao instituto da guarda compartilhada no caso de dissolução da sociedade conjugal. O método utilizado foi a pesquisa bibliográfica, dividindo-se o artigo em dois grandes assuntos intimamente ligados: a personalidade jurídica dos animais perante o ordenamento jurídico brasileiro e a sua possibilidade jurídica de inserção na família, com base no princípio da afetividade. Importante salientar que o mesmo não exaure o tema, devido à complexidade e diversidade de entendimentos doutrinários pertinentes.[1]
Palavras-chave: Animais. Direito de Família. Guarda compartilhada.
Resumen: El presente artículo busca establecer, por medio de relaciones lógicas, análisis de juzgados y por la comparación entre teorías sobre la personalidad jurídica de los animales – en particular, los animales de compañía – su situación ante el Derecho de Familia brasileño, principalmente en lo que se refiere al instituto de la guarda compartida en el caso de disolución de la sociedad conyugal. El método utilizado fue la investigación bibliográfica, dividiéndose el artículo en dos grandes asuntos íntimamente ligados: la personalidad jurídica de los animales ante el ordenamiento jurídico brasileño y su posibilidad jurídica de inserción en la familia, con base en el principio de la afectividad. Es importante resaltar que el mismo no exaure el tema, debido a la complejidad y diversidad de entendimientos doctrinales pertinentes.
Palabras-clave: Animales. Derecho de Familia. Guarda compartida.
Sumário: Introdução; 1 Situação jurídica dos animais frente ao Direito Pátrio; 1.1 Teoria dos animais como bens; 1.2 Teoria dos animais como sujeitos de direito; 1.3 Teoria dos animais como sujeito-objeto; 1.3.1 Da comparação com a condição jurídica de escravo na época do Brasil-Império; 1.3.2 Analogia com pessoas jurídicas; 1.3.3 Animais como seres sencientes e aplicação da teoria em comento no Direito Comparado; 2 Do Direito de Família; 2.1 Conceito contemporâneo de família; 2.2 Princípio da afetividade; 2.2.1 Animais como membros da família; 2.3 Institutos aplicáveis e precedentes jurídicos; Considerações finais; Referências.
INTRODUÇÃO
O presente artigo visa averiguar qual o papel jurídico dos animais no seio familiar, bem como os institutos do Direito de Família a eles pertinentes – aspectos que constituem o cerne e o objetivo central do mesmo. Para tanto, especificamente, serviram de meios para tal construção a análise comparativa tanto de entendimentos doutrinários distintos no que tange à personalidade jurídica dos animais quanto da jurisprudência pátria concernente ao tema.
Nesse sentido, é significativo destrinchar a divisão estrutural do trabalho, cujo corpo de desenvolvimento consiste em duas grandes seções: 1) Situação jurídica dos animais frente ao Direito Pátrio – buscando suscitar a discussão acerca da personalidade jurídica dos animais, segundo as diretrizes explícitas e/ou implícitas no Direito brasileiro e pautando-se no cotejo das leis pertinentes, da doutrina e do contexto fático atual; 2) Do Direito de Família – nessa seção o foco recai, de maneira mais específica, na possibilidade de reconhecimento jurídico da participação animal na família e os institutos aplicáveis, pautando-se na principiologia intrínseca ao Direito de Família brasileiro contemporâneo.
Quanto à metodologia do trabalho, esta se compôs pela pesquisa bibliográfica, debruçando-se, sob a ótica do Direito Ambiental, sobre a Teoria Geral do Direito Civil e sobre o Direito de Família – com enfoque no direito dos animais e seu papel no seio familiar – por meio da consulta de diversas obras doutrinárias bem como da análise da jurisprudência pátria pertinente ao tema.
O trabalho justifica-se frente às polêmicas decisões concedendo “guarda compartilhada” de animais no caso de divórcio – instituto típico do Direito de Família – ensejando discussões e construções doutrinárias diversas acerca da posição dos animais na seara das relações jurídicas: “sujeito de direito ou meramente um objeto?” – em especial, no âmbito familiar.
Todavia, por meio deste não se visa exaurir totalmente o tema, limitando-se, exclusivamente, a contribuir com o tema mediante a fundamentação e sustentação de um posicionamento, dentre tantos outros igualmente respeitáveis – visto que o Direito em si é uma construção humana com viés dinâmico, sendo, essencialmente, a discussão e a divergência as suas molas propulsoras.
1 SITUAÇÃO JURÍDICA DOS ANIMAIS FRENTE AO DIREITO PÁTRIO
Para compreender essa situação jurídica, se faz imprescindível tecer determinadas considerações acerca do fenômeno jurídico e do “funcionamento” da norma e do ordenamento jurídico em si para, enfim, adentrar o mencionado assunto.
Complexidades à parte, uma das principais teorias acerca desse funcionamento é a dita “Teoria Tridimensional do Direito”, de Miguel Reale, na qual, basicamente, o direito se constitui de uma ligação intrínseca dos elementos fato, valor e norma – tão bem explicado nas palavras de Sílvio de Salvo Venosa:
“Analisam-se os três elementos, fato social – valor – norma (grifos do autor), dentro de uma implicação de reciprocidade e de polaridade.[…]
Em linguagem mais singela, ao fato social atribui-se um valor, o qual se
traduz numa norma. Nesse triângulo ou, mais propriamente, nessa dimensão tridimensional, sob qualquer das faces que se analise, sempre haverá essa implicação recíproca. Analisando-se pelo lado da norma, por exemplo, esta é fruto de um fato social ao qual foi atribuído um valor.”[2]
Dessa maneira, a norma – e o ordenamento jurídico em si – se constitui da valoração de fatos, ou seja, se forma e ganha corpo com base e fundamento em visões axiológicas, ou ainda melhor, em premissas éticas, afeitas à Filosofia, mas fundantes do direito – cumprindo, ainda, salientar que a interação fato-valor-norma é intrínseca e de cunho recíproco.
Nesse sentido, podemos conceber o Direito Ambiental (no qual se insere a biosfera e, portanto, o direito dos animais) sob três perspectivas ou sistemas éticos, quais sejam, o antropocentrismo, o biocentrismo e o ecocentrismo.
O antropocentrismo, segundo Édis Milaré, “[…] é uma concepção genérica que, em síntese, faz do Homem o centro do Universo, ou seja, a referência máxima e absoluta de valores (verdade, bem, destino último, norma última e definitiva etc.), de modo que desse “centro” gravitem todos os demais seres por força de um determinismo fatal.”[3]
Essa visão se faz presente em significativa parcela do nosso ordenamento, a exemplo da Carta Magna de 1988, que trata, no seu artigo 225, do meio ambiente, tratando-o como “bem de uso comum do povo” e “direito de todos” – evidenciando que a proteção ambiental é direito exclusivamente do ser humano, relegando, por conseguinte, os animais a meros “objetos” desprovidos de direitos. Na esteira desse raciocínio, Frederico Amado esclarece que “Por essa linha, a proteção ambiental serve ao homem, como se este não fosse integrante do meio ambiente, e os outros animais, as águas, a flora, o ar, o solo, os recursos minerais não fossem bens tuteláveis por si sós, autonomamente, independente da raça humana.”[4]
Como “evolução” dessa primeira vertente – haja vista a imensidão de críticas que a mesma suscitou – surgiu o biocentrismo, tendo por fator fundante o valor vida. Essa reação, nas palavras de Édis Milaré, “[…] focalizou os seres vivos, particularmente os que estão mais ao alcance humano, desembocando num movimento biocêntrico, isto é, repelindo o antropocentrismo e dando origem ao “biocentrismo” – um sistema de pensar e agir que fazia dos seres vivos o centro das preocupações e dos interesses.”[5] (grifos nossos)
Com base nessa perspectiva, o direito se ocuparia diretamente com os seres vivos – conforme preceitua Frederico Amado:
“Por essa linha, a vida é considerada um fenômeno único, tendo a natureza valor intrínseco, e não instrumental, o que gerará uma consideração aos seres vivos não integrantes da raça humana.
De efeito, inspirada no biocentrismo, nasceu a defesa dos direitos dos animais (abolicionismo), movimento que vai de encontro à utilização dos animais como instrumentos do homem, sua propriedade, chegando a colocá-los como sujeitos de alguns direitos, notadamente os animais sencientes e autoconscientes.”[6]
Mesmo com a “nobreza” que lhe é característica, esse sistema ético não passou alheio à “críticas”, uma vez que se ocupa dos elementos vivos do planeta Terra mas priva os elementos inanimados e inorgânicos de sua tutela especial. Essa foi a semente para o surgimento do ecocentrismo – tão bem descrito por Édis Milaré:
“Na realidade, o biocentrismo teve seus efeitos positivos, porém restritos a uma camada da biosfera. Por essa razão, não chegou a lançar raízes profundas, como veio a acontecer, posteriormente, com o ecocentrismo. Mesmo assim, a transpiração biocêntrica tem passado o sopro renovador, apresar de restrito. Os estudos da moderna Cosmologia passaram a exigir muito mais porque o Cosmos – no caso o planeta Terra – passou a ser centro de uma visão holística e de uma abordagem sistêmica, para encarar a sua totalidade e a sua complexidade. Chegou, então, a hora dos seres inanimados que, apesar de sua condição inorgânica, têm função vital no organismo de Gaia.”[7]
Notadamente, esse sistema ético se ocupa da natureza como um todo – sendo esta a detentora dos seus próprios direitos.
Feita a análise sob o prisma ético-filosófico que envolve o funcionamento do direito, passa-se à análise da situação jurídica dos animais no direito brasileiro.
Segundo a Teoria Geral do Direito Civil, a relação jurídica é constituída por 3 elementos, quais sejam, sujeitos (pessoas), objeto e vínculo jurídico. “A Parte Geral do Código Civil objetiva regulamentar esses elementos da relação jurídica, ou seja, as pessoas, os bens e os fatos jurídicos em sentido lato.”[8]
De maneira sintética e para fins de análise da situação jurídica dos animais, entender-se-á pessoa como sendo “o ente físico ou coletivo suscetível de direitos e obrigações, sendo sinônimo de sujeito de direito.”[9] Por objeto, entende-se aquilo sobre o qual recai o direito do sujeito e, por vínculo jurídico, a ligação de cunho jurídico entre sujeitos e objeto, que se manifesta como fato jurídico lato sensu. Ilustrando esse entendimento, tem-se como exemplo de relação jurídica a compra e venda de uma casa, na qual os sujeitos (pessoas) são o proprietário e o comprador; o objeto (bem) é a casa e o vínculo jurídico (fato jurídico) é o “contrato” de compra e venda.
Nesse diapasão, emerge o problema da situação jurídica dos animais, calcada em polêmica e discussão doutrinária, em face da civilística tradicional frente à legislação especial que visa proteger os animais. Com base nisso, urge analisar qual o “papel” dos animais no contexto de uma relação jurídica. “Na doutrina encontramos posicionamentos divergentes. Uns os consideram sujeitos, outros os consideram objetos e há quem diga que eles são sujeito-objeto.”[10]
1.1 Teoria dos animais como bens
É a teoria adotada pela civilística clássica e encontra fundamento no art. 82 do Código Civil de 2002, que assim enuncia: “São móveis os bens suscetíveis de movimento próprio (grifei), ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social.” Nesse sentido, os animais são tutelados apenas como sendo propriedade de alguém, não possuindo nenhuma esfera jurídica própria.
1.2 Teoria dos animais como sujeitos de direito
Tal teoria concebe os animais como legítimos sujeitos de direito por força da legislação especial – em geral, toda a legislação ambiental concernente à fauna – que os tutela e ampara, reconhecendo personalidade jurídica e uma esfera jurídica própria de cada animal, na qual orbitam direitos provenientes de sua condição de ser vivo. Por exemplo, nesse entendimento, os animais possuem o direito de não serem maltratados, feridos ou mutilados ( art. 32 da Lei nº 9.605, de 1998).
Insta, ainda, citar precioso comentário concernente ao tema da doutora e professora de Direito Ambiental Edna Cardozo Dias:
“O animal como sujeito de direitos já é concebido por grande parte de doutrinadores jurídicos de todo o mundo. Um dos argumentos mais comuns para a defesa desta concepção é o de que, assim como as pessoas jurídicas ou morais possuem direitos de personalidade reconhecidos desde o momento em que registram seus atos constitutivos em órgão competente, e podem comparecer em Juízo para pleitear esses direitos, também os animais tornam-se sujeitos de direitos subjetivos por força das leis que os protegem. Embora não tenham capacidade de comparecer em Juízo para pleiteá-los, o Poder Público e a coletividade receberam a incumbência constitucional de sua proteção. O Ministério Público recebeu a competência legal expressa para representá-los em Juízo, quando as leis que os protegem forem violadas. Daí, pode-se concluir com clareza que os animais são sujeitos de direitos, embora esses tenham que ser pleiteados por representatividade, da mesma forma que ocorre com os seres relativamente incapazes ou os incapazes, que, entretanto, são reconhecidos como pessoas.”[11]
1.3 Teoria dos animais como sujeito-objeto
Essa teoria é a que mais se coaduna com a realidade fática atual dos animais, em especial os domésticos, pois confere a eles uma condição jurídica peculiar: possuiriam uma esfera jurídica própria sobre a qual orbitam direitos inerentes a sua condição de ser vivo – tal como as leis especiais preconizam – sem, contudo, elidir-lhes a condição de objeto – ainda podem ser comprados, vendidos ou doados.
Dessa forma “há o entendimento de que os animais pertencem à outra categoria, podendo ser considerados, ao mesmo tempo, sujeito e objeto de uma relação jurídica”[12] , se aproximando da realidade exatamente porque, dentre outros fatores, eles estão cada vez mais presentes e se relacionando afetivamente com os seres humanos, de modo a serem até mesmo considerados “membros da família” – todavia, entende-se que essa personalidade jurídica a eles conferida por essa teoria é de caráter precário ou limitado, uma vez que não recebem todos os direitos que os seres humanos, mas apenas os inerentes à condição de ser vivo. Por exemplo, um animal teria o direito de “viver de maneira minimamente digna”, não sendo, então, maltratado, ferido ou morto gratuitamente pelos seres humanos – resguardada sua condição de objeto.
1.3.1 Da comparação com a condição jurídica de escravo na época do Brasil-Império
Os escravos no Brasil-Império possuíam um status jurídico semelhante ao proposto por essa teoria com destino aos animais. “No tempo do Império, apesar de serem considerados coisas, alguns escravos ainda poderiam se casar e juntar dinheiro para comprar a sua própria liberdade.”[13] Tal compra se dava com a figura jurídica da Carta de Alforria, que “consistia num documento que o proprietário de terra concedia ao seu escravo depois de receber certa quantia por ele. Era uma espécie de atestado de liberdade do escravo, onde o patrão abria mão da posse do escravo.”[14]
Nesse contexto, o escravo vivia em uma condição jurídica em que possuía alguns direitos – tal como sujeito de direito “extremamente precário” – sem afastar a sua predominante condição de objeto.
1.3.2 Analogia com pessoas jurídicas
Segundo Maria Helena Diniz, quando trata da Teoria da Realidade das Instituições Jurídicas, “Como a personalidade humana deriva do direito (tanto que este já privou seres humanos de personalidade — os escravos, p. ex.), da mesma forma ele pode concedê-la a agrupamentos de pessoas ou de bens que tenham por escopo a realização de interesses humanos. A personalidade jurídica é um atributo que a ordem jurídica estatal outorga a entes que o merecerem.”[15] (grifos nossos)
Da mesma maneira como o ordenamento outorga personalidade jurídica às pessoas jurídicas para que possam atingir suas finalidades, também pode outorgá-la (precariamente, frise-se) aos animais, uma vez que estes também possuem finalidades relevantes frente aos humanos, que vão desde o trabalho (como os animais de tração) até finalidades afetivas (animais de estimação, por exemplo, que cada vez mais se veem atrelados afetivamente aos seres humanos), com um fator de extrema relevância que os diferencia das pessoas jurídicas: esses têm vida própria e independente da vontade humana, ao passo que aquelas têm sua existência atrelada a tal vontade.
1.3.3 Animais como seres sencientes e aplicação da teoria em comento no Direito Comparado
Segundo matéria divulgada pela Agência Câmara Notícias, quando da aprovação em 2015, pela Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara dos Deputados, de proposta (PL 6799/13, de autoria do deputado Ricardo Izar – PSD-SP) que considera os animais não humanos como sujeitos de direitos despersonificados, o deputado Arnaldo Jordy (PPS-PA) argumentou que “países como Suíça, Alemanha, Áustria, França e, mais recentemente, a Nova Zelândia já alteraram seus códigos no sentido de reconhecer que os animais não humanos necessitam de uma classificação "sui generis", que possibilite torná-los detentores de direitos despersonificados.”[16]
Dessa maneira, cumpre primeiramente entender o que é um sujeito de direitos despersonificados, que é aquele que “somente pode praticar os atos jurídicos que a lei lhes autoriza ou aqueles correspondentes à sua função essencial.”[17]
Desse modo, o direito pátrio, seguindo tendência dos referidos países, outorgaria ao animais um status jurídico sui generis, utilizando-se do mesmo critério destes, qual seja “que os animais são seres sencientes, que sentem dor, emoção, e que se diferem do ser humano apenas nos critérios de racionalidade e comunicação verbal […]”[18].
Insta, ainda, verificar que tal projeto, mesmo não outorgando personalidade jurídica aos animais (os considera sujeito de direitos despersonalizados), essencialmente segue a Teoria dos animais como sujeito-objeto, pois os coloca em uma nova categoria jurídica: entre a pessoa e o objeto. Cabendo ainda citar entendimento de Hans Kelsen, tão bem resumido nas palavras da professora Maria Helena Diniz:
“Para Kelsen o conceito de sujeito de direito não é necessário para a descrição do direito, é um conceito auxiliar que facilita a exposição do direito. De forma que a pessoa natural, ou jurídica, que tem direitos e deveres, é um complexo destes direitos e deveres, cuja unidade é, figurativamente, expressa no conceito de pessoa. A pessoa é tão somente a personificação dessa unidade. Assim sendo, para esse autor a "pessoa" não é, portanto, um indivíduo ou uma comunidade de pessoas, mas a unidade personificada das normas jurídicas que lhe impõem deveres e lhe conferem direitos. Logo, sob o prisma kelseniano é a "pessoa" uma construção da ciência do direito, que com esse entendimento afasta o dualismo: direito objetivo e direito subjetivo.”[19]
Dessa lição é possível inferir que, no âmbito jurídico, os sujeitos, os objetos e as relações ocupam suas respectivas posições na relação jurídica porque assim dispõe o Direito vigente, podendo este “alterar” a posição daqueles. Em suma, o fato do Código Civil brasileiro dispor que os animais são objetos não elide que o próprio Direito lhes outorgue personalidade jurídica ou ainda, um status jurídico diverso.
2 DO DIREITO DE FAMÍLIA
Verificadas as possibilidades jurídicas dos animais frente ao direito pátrio como um todo passa-se, então, a essa análise sob o prisma de um ramo jurídico específico: o Direito de Família.
Nesse capítulo, o foco centra-se sobre a possibilidade de inserção jurídica dos animais na família – embora, psicologicamente, já o sejam, devido ao tratamento de “filhos” empregados por algumas famílias – bem como os institutos jurídicos concernentes ao Direito de Família a eles aplicáveis.
2.1 Conceito contemporâneo de família
O conceito de família é um típico conceito que se atrela intimamente ao tempo e à ideologia predominante. Transitou, historicamente, dos conceitos mais amplos – como os clãs, tribos e agrupamentos antigos – até os mais restritivos – como o agrupamento familiar constituído exclusivamente a partir da união de um homem e uma mulher e sua prole, sendo então, por natureza, um conceito extremamente variável.
No sistema jurídico contemporâneo brasileiro, embora a Constituição Federal de 1988 (CRFB/88) disponha de um rol de entidades familiares enumeradas em seu artigo 226, entendem, tanto a jurisprudência pátria quanto a doutrina, que tal enumeração não exaure o conceito de família, sendo meramente exemplificativo.
Nesse sentido, cabe citar parte da ementa da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4277-DF, que tratou da união homoafetiva, mas que tão bem conceituou o termo família consoante a interpretação sistemática da CRFB/88:
“3. TRATAMENTO CONSTITUCIONAL DA INSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA. RECONHECIMENTO DE QUE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL NÃO EMPRESTA AO SUBSTANTIVO “FAMÍLIA” NENHUM SIGNIFICADO ORTODOXO OU DA PRÓPRIA TÉCNICA JURÍDICA. A FAMÍLIA COMO CATEGORIA SÓCIO-CULTURAL E PRINCÍPIO ESPIRITUAL. DIREITO SUBJETIVO DE CONSTITUIR FAMÍLIA. INTERPRETAÇÃO NÃO-REDUCIONISTA. O caput do art. 226 confere à família, base da sociedade, especial proteção do Estado. Ênfase constitucional à instituição da família. Família em seu coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico, pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais heteroafetivos ou por pares homoafetivos. A Constituição de 1988, ao utilizar-se da expressão “família”, não limita sua formação a casais heteroafetivos nem a formalidade cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa. Família como instituição privada que, voluntariamente constituída entre pessoas adultas, mantém com o Estado e a sociedade civil uma necessária relação tricotômica. Núcleo familiar que é o principal lócus institucional de concreção dos direitos fundamentais que a própria Constituição designa por “intimidade e vida privada” (inciso X do art. 5º). Isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos que somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família. Família como figura central ou continente, de que tudo o mais é conteúdo. Imperiosidade da interpretação não-reducionista do conceito de família como instituição que também se forma por vias distintas do casamento civil. Avanço da Constituição Federal de 1988 no plano dos costumes. Caminhada na direção do pluralismo como categoria sócio-político-cultural. Competência do Supremo Tribunal Federal para manter, interpretativamente, o Texto Magno na posse do seu fundamental atributo da coerência, o que passa pela eliminação de preconceito quanto à orientação sexual das pessoas. (grifei) (STF – ADI: 4277 DF, Relator: Min. AYRES BRITTO, Data de Julgamento: 05/05/2011, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-198 DIVULG 13-10-2011 PUBLIC 14-10-2011 EMENT VOL-02607-03 PP-00341)”[20]
Evidencia-se, dessa maneira, uma interpretação pluralista e abrangente do termo família, o qual passa a ter uma conotação afetiva mais latente em seu cerne conceitual. Nesse sentido, preceitua Flávio Tartuce:
“Na esteira do entendimento de inclusão e alargamento de proteção, leis específicas trazem conceitos ampliados de família, havendo séria dúvida se tais construções devem ser utilizadas apenas nos limites das próprias legislações ou para todos os efeitos jurídicos. Vejamos:
– A Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) dispõe no seu art. 5.º, ll, que se deve entender como família a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa.[…]
Como se pode notar, as novas categorias legais valorizam o afeto, a interação existente entre as pessoas no âmbito familiar. Destaque-se que a tendência é a de que tais construções sejam utilizadas em todos os âmbitos, em um sentido de complementaridade com as outras leis. Ambos os conceitos legais podem servir perfeitamente para conceituar a família contemporânea.”[21] (grifei)
2.2 Princípio da afetividade
A doutrina e a jurisprudência apontam, como visto no tópico 2.1, a afetividade como um dos principais elementos fundantes e estruturais da instituição denominada família, conforme corrobora Flávio Tartuce: “O afeto talvez seja apontado, atualmente, como o principal fundamento das relações familiares. Mesmo não constando a expressão afeto do Texto Maior como sendo um direito fundamental, pode-se afirmar que ele decorre da valorização constante da dignidade humana e da solidariedade.”[22]
Em consonância com esse entendimento encontra-se a jus psicanalista Giselle Câmara Groeninga, que afirma que “O papel dado à subjetividade e à afetividade tem sido crescente no Direito de Família, que não mais pode excluir de suas considerações a qualidade dos vínculos existentes entre os membros de uma família, de forma que possa buscar a necessária objetividade na subjetividade inerente às relações. Cada vez mais se dá importância ao afeto nas considerações das relações familiares; aliás, um outro princípio do Direito de Família é o da afetividade.”[23]
Em face desse entendimento, urge analisar a faceta jurídica do presente princípio sob a luz da ementa de um julgado redigida pela Ministra Nancy Andrighi, transcrita a seguir:
“O Direito não regula sentimentos, mas define as relações com base neles geradas, o que não permite que a própria norma, que veda a discriminação de qualquer ordem, seja revestida de conteúdo discriminatório.[…]
A quebra de paradigmas do Direito de Família tem como traço forte a valorização do afeto e das relações surgidas da sua livre manifestação, colocando à margem do sistema a antiga postura meramente patrimonialista ou ainda aquela voltada apenas ao intuito de procriação da entidade familiar. Hoje, muito mais visibilidade alcançam as relações afetivas, sejam entre pessoas de mesmo sexo, sejam entre o homem e a mulher, pela comunhão de vida e de interesses, pela reciprocidade zelosa entre os seus integrantes.[…](STJ – REsp: 1026981 RJ 2008/0025171-7, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 04/02/2010, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 23/02/2010)” (grifei)
Com base no exposto percebe-se que, atualmente, no Direito de Família brasileiro a afetividade se tornou um dos fundamentos instituidores de entidade familiar – além dos laços sanguíneos e de afinidade – como, por exemplo, das famílias anaparentais – aquelas nas quais não há pais e filhos. Juridicamente, “[…] o STJ entendeu que o imóvel em que residem duas irmãs solteiras constitui bem de família, pelo fato delas formarem uma família (STJ, REsp 57.606/MG, 4.ª Turma, Rel. Min. Fontes de Alencar, j. 11.04.1995, DJ 15.05.1995, p. 13.410).”[24]
2.2.1 Animais como membros da família
Assumindo que os animais possuem uma esfera jurídica própria – mesmo que precária (Teoria dos animais como sujeito-objeto – tópico 1.3) – podem ser considerados membros sui generis da família, tendo em vista que, notoriamente, diversas famílias criam laços afetivos de grande relevância no âmbito jurídico, sobretudo quando há a separação de um casal onde ambos cultivaram tal afeto, encontrando como fundamento jurídico o princípio da afetividade, mormente nas relações familiares. Tais laços se evidenciam quando a família acolhe o animal e o insere na rotina familiar de uma maneira tão íntima, tratando-o como um verdadeiro “filho” e o “assumindo nessa condição” perante o meio social em que vivem.
Cumpre, ainda, citar que, devido à precariedade de sua personalidade jurídica, aos animais não são aplicáveis todos os institutos jurídicos do Direito de Família, senão aqueles que visam os cuidados a eles destinados e também à dignidade de seus “guardiões” – tendo em vista que o princípio da afetividade, como visto antes, é um corolário do princípio da dignidade da pessoa humana e da solidariedade – sendo um desserviço privar um dos cônjuges do afeto para com seu bicho de estimação por conta da dissolução da sociedade conjugal.
2.3 Institutos aplicáveis e precedentes jurídicos
Dada a precariedade da personalidade jurídica dos animais – conforme sustentado nos respectivos tópicos – nem todos os institutos do Direito de Família lhes são aplicáveis, sendo exemplos de aplicação, de acordo com alguns precedentes judiciais, a guarda compartilhada ou guarda unilateral – segundo consta dos artigos 1.583 e seguintes do Código Civil/2002 – dependendo do caso concreto.
Por se tratarem de ações concernentes ao Direito de Família, em geral, tramitam em segredo de justiça e, por conseguinte, não é possível ter acesso às sentenças e acórdãos. Todavia, muitas vezes são noticiados nos meios de comunicação. Exemplo disso é a matéria publicada pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), sob o título “Justiça de SP determina guarda compartilhada de animal de estimação durante processo de divórcio”, em 24 de fevereiro de 2016 – transcrita, em parte, a seguir:
“A Segunda Vara de Família e Sucessões de Jacareí (SP) estabeleceu a guarda alternada de um cão entre ex-cônjuges. O juiz Fernando Henrique Pinto, membro do IBDFAM, reconheceu que os animais são sujeitos de direito nas ações referentes às desagregações familiares.
Conforme o juiz, o cão não pode ser vendido, para que a renda seja dividida entre o antigo casal. Além disso, o juiz afirmou que por se tratar de um ser vivo, a sentença deve levar em conta critérios éticos e cabe analogia com a guarda de humano incapaz. O magistrado citou alguns estudos científicos sobre o comportamento de animais e leis relacionadas ao tema e afirmou que diante da realidade científica, normativa e jurisprudencial, não se pode resolver a partilha de um animal (não humano) doméstico, por exemplo, por alienação judicial e posterior divisão do produto da venda, porque ele não é uma “coisa”.
O casal está em processo de dissolução conjugal e, provisoriamente, a guarda do cão será alternada: uma semana de permanência na casa de cada um. A ação tramita em segredo de justiça por envolver questão de Direito de Família.
Para a advogada Marianna Chaves, diretora nacional do IBDFAM, este caso começa a destacar uma realidade no Brasil que já foi revelada em alguns outros países, como os Estados Unidos. “Os animais de companhia passaram a ser enxergados pelas pessoas, nos últimos tempos, de maneira diferente. São considerados, muitas vezes, genuínos membros da entidade familiar e, por alguns casais, os seus filhos. Obviamente, em caso de ruptura, seria questão de tempo até o Judiciário ser procurado para decidir o destino desses filhos de quatro patas e, como bem colocou o Fernando Henrique Pinto nessa decisão sensível e vanguardista, os animais não devem ser considerados meras “coisas”. Assim, faz mais sentido socorrer-se do direito das famílias através do recurso ao instituto da guarda do que qualquer outro instrumento de direito das coisas”, comenta.”[25] (grifos nossos)
Nesse sentido, visando facilitar o processo em caso de disputa pela guarda do animal, bem como em caso de perda ou roubo deste, cartórios do estado do Paraná lançaram um projeto de “certidão de nascimento para pets” ou “PetLegal”, conforme noticiado na reportagem “Cartórios do Paraná vão emitir registro de nascimento a animais de estimação”, publicado em 27 de julho de 2017 – sendo alterado no dia seguinte – pelo jornal Gazeta do Povo:
“A partir do dia 7 de agosto de 2017, tutores de animais de estimação no Paraná poderão solicitar uma certidão de nascimento para seus pets com nome, sobrenome da família e até foto. O registro valerá para todos os tipos de animal, incluindo os exóticos.
“O documento vai detalhar a raça, a cor e o porte do animal, assim como algumas características específicas, como marcas que facilitem a sua identificação”, afirma Arion Cavalheiro Jr., diretor de Registros de Títulos e Documentos da Associação dos Notários e Registradores do Paraná (Anoreg-PR).
A certidão de nascimento também terá uma foto do pet, que pode ser tirada no cartório ou entregue pelos tutores. O objetivo do registro é compilar o máximo possível de informações para facilitar em casos de perda ou roubo do animal e também em disputas de guarda.
Batizado de PetLegal, o serviço estará disponível, a princípio, nas cidades de Curitiba, Campo Largo, Francisco Beltrão, Paranavaí, Fazenda Rio Grande, Colombo e Maringá. Apenas os cartórios de Registro de Títulos e Documentos emitirão a certidão para pets.”[26] (grifos do autor)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Do exposto, é possível inferir a plausibilidade jurídica das decisões, em sede do Direito de Família, de guarda compartilhada de animais, a partir da interpretação sistemática do nosso ordenamento jurídico e à luz dos princípios que o regem.
O objetivo central do trabalho conseguiu, em parte, atingir o seu intento – analisar a situação jurídica dos animais frente ao Direito de Família – pautando-se em uma teoria com uma visão mais moderna e ligada ao Direito Ambiental hodierno, na contramão da civilística tradicional. Todavia, encontrou-se limitado pela dificuldade de acesso aos julgados relativos ao Direito de Família (por, em geral, tramitarem em segredo de justiça), além da natural limitação devido a uma alta gama de posições doutrinárias, tendo em vista que a doutrina brasileira – e mundial – não é uníssona quanto a esse tema.
Insta, ainda, salientar que o conteúdo deste não possui por finalidade desmerecer outros entendimentos acerca do tema, senão enriquecer e colaborar com o Direito brasileiro por meio das discussões em nível acadêmico-jurídico que possa suscitar, em prol de seu aperfeiçoamento e amoldamento com o contexto fático-social atual. Cabendo repisar que o trabalho não exaure o tema, pelo contrário, a partir deste se sugere um aprofundamento sobre a aplicação do Direito de Família aos animais e acerca das teorias sobre a personalidade jurídica destes e seus fundamentos, bem como um estudo no Direito Comparado sobre os referidos temas.
Hironaka. Coordenação: Aguida Arruda Barbosa e Cláudia Stein Vieira. São Paulo: RT, 2008. v. 7,
p. 28. Apud TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: Volume Único, 2016, pp. 1193.
Informações Sobre o Autor
Marcio da Silva Bianchessi
Acadêmico do curso de Direito na UNIVALI – campus Itajaí