Resumo: O presente artigo tem como objetivo expor algumas considerações acerca da relevância do embargo cautelar ambiental, especialmente no que se refere à essencialidade da observância das disposições legais a seu respeito como forma de garantir os princípios da dignidade da pessoa humana e do meio ambiente hígido. A reserva legal apresenta-se como um instrumento de materialização da função socioambiental da propriedade rural, ao passo em que se presta a delimitar as áreas passíveis de exploração dentro do imóvel. O desrespeito aos limites espaciais da reserva legal ou quanto ao tipo de exploração a ser impingida ao imóvel rural implica responsabilização do infrator nas esferas criminal, cível e administrativa. Dentre as sanções administrativas legalmente previstas está o embargo, que também se apresenta como instrumento acautelatório. O embargo de áreas desmatadas ou queimadas ilegalmente é medida imperiosa, à exceção da hipótese em que a área degradada é utilizada para atividades de subsistência. A legislação define rigorosamente as pessoas que se enquadram como empreendedores rurais de subsistência, não devendo os agentes estatais descuidar da análise minuciosa desse enquadramento quando forem decidir por embargar ou não determinada área, sob pena de restar maculado o princípio da dignidade da pessoa humana ou do meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Palavras-chave: Função Socioambiental da Propriedade. Responsabilidade ambiental. Embargo Cautelar.
Abstract: This article aims to expose some considerations about the relevance of environmental precautionary embargo, especially with regard to the essentiality of the legal provisions relating to him in order to ensure the principles of human dignity and the environment healthy. The legal reserve is presented as an instrument of realization of social and environmental function of land ownership, while that lends itself to define the areas for exploration within the property. Disrespect for the spatial limits of the legal reserve or the type of operation being foisted on the rural property implies accountability of the offender in the criminal sphere, civil and administrative. Among the administrative sanctions provided by law is the embargo, which also presents itself as an instrument acautelatório. The embargo illegally deforested or burned as is imperative, except for the case in which the damaged area is used for subsistence activities. The legislation defines precisely the people who were classified as rural subsistence entrepreneurs, state officials should not overlook the detailed analysis of this framework when deciding whether or not to attach particular area, under penalty remains tainted the principle of human dignity or ecologically balanced environment.
Keywords: Environmental Role of the Property. Environmental responsibility. Embargo Relief.
Sumário: Introdução. 1. A função socioambiental da propriedade rural e a reserva legal. 2. O embargo cautelar de atividades nocivas ao meio ambiente. 3. Delimitação conceitual das atividades de subsistências impeditivas da imposição de embargo. Conclusão
INTRODUÇÃO
Dentre os mecanismos de prevenção de danos ambientais, apresenta-se o embargo cautelar de obras ou atividades lesivas o meio ambiente. A hipótese legal para imposição do embargo pelo Estado é excepcionada em razão de a atividade desenvolvida na área danificada ser enquadrada como de subsistência.
Em função da não visualização precisa da definição normativa das pessoas que exercem tal sorte de atividades, muitos órgão jurisdicionais findam por anular atos dos órgãos ambientais que impõem o embargo cautelar, permitindo que o infrator, mesmo não preenchendo os requisitos legais para tanto, continue danificando o meio ambiente ao invés de repará-lo.
Aqui, com a finalidade de contribuir para o melhor entendimento da aplicação das normas que tratam do embargo cautelar ambiental, será feita uma exposição acerca da reserva legal como mecanismo de execução da função socioambiental da propriedade rural assim como serão tecidos comentários acerca do embargo cautelar como um mecanismo de prevenção de danos. Em sequência, procurar-se-á expor a delimitação conceitual das atividades de subsistência impeditivas da imposição de embargo.
1. A FUNÇÃO SOCIOAMBIENTAL DA PROPRIEDADE RURAL E A RESERVA LEGAL
O direito de propriedade, em sua concepção atual, é limitado em vários aspectos em prol do bem estar social. Como bem aponta Kildare (1997, p. 217), “a propriedade, sem deixar de ser privada, se socializou, com isso significando que deve oferecer à coletividade uma maior utilidade, dentro da concepção de que o social orienta o individual”. Um dessas limitações é gerada pela denominada função socioambiental da propriedade. A Constituição Federal, em seu artigo 186, e o Código Civil, em seu art. 1228, § 1°, fazem menção expressa ela:
“Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I – aproveitamento racional e adequado;
II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;”
“Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
§ 1o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.”
A função social e ambiental da propriedade não representa apenas uma limitação negativa sobre o direito de propriedade do bem, mas também, em muitas situações, o cumprimento de obrigações positivas. É ela que justifica a imposição ao proprietário ou posseiro rural a obrigação de recompor áreas ilegalmente desmatadas dentro do imóvel, mesmo que não tenha sido ele o responsável pelo desmatamento. Dada a sua relevância na conjuntura normativa ambiental, é considerada um princípio do Direito ambiental. Nesse sentido afirma Milaré (2005, p. 169) que:
“É com base nesse princípio que se tem sustentado, por exemplo, a possibilidade de imposição ao proprietário rural do dever de recomposição da vegetação em áreas de preservação permanente e reserva legal, mesmo que não tenha sido ele o responsável pelo desmatamento, certo que tal obrigação possui caráter real – propter rem -, isto é, uma obrigação que se prende ao titular do direito real, seja ele quem for, bastando para tanto sua simples condição de proprietário ou possuidor.”
Uma das medidas limitativas do direito de propriedade sobre imóveis rurais, em atenção a sua função socioambiental, é a obrigatoriedade legal de que toda propriedade rural deve ter uma parcela de sua área destinada á reserva legal, cuja vegetação não poderá ser suprimida, mas apenas utilizada sob o regime de manejo florestal sustentável.
A reserva legal, segundo expressa dicção do inciso III, §2° do art. 1° da Lei n. 7.771/65 – Código Florestal, é a “área localizada no interior de uma propriedade ou posse rural, excetuada a de preservação permanente, necessária ao uso sustentável dos recursos naturais, à conservação e reabilitação dos processos ecológicos, à conservação da biodiversidade e ao abrigo e proteção de fauna e flora nativas”. Destaque-se que não se afigura proibida a exploração da reserva legal, mas apenas limitada. Quanto à parte do imóvel não afetado à reserva legal “ficam permitidas a exploração e supressão das florestas sob o domínio de particulares, mediante prévia autorização do órgão de controle ambiental competente” (MILARÉ, 2005, p. 362), desde que não estejam submetidas a outro regime de proteção.
Toda propriedade ou posse rural deve ter a sua reserva legal aprovada pelo órgão ambiental e averbada junto ao registro público imobiliário. Pertinente se faz a transcrição do art. 16 do Código Florestal:
“Art. 16. As florestas e outras formas de vegetação nativa, ressalvadas as situadas em área de preservação permanente, assim como aquelas não sujeitas ao regime de utilização limitada ou objeto de legislação específica, são suscetíveis de supressão, desde que sejam mantidas, a título de reserva legal, no mínimo:
I – oitenta por cento, na propriedade rural situada em área de floresta localizada na Amazônia Legal;
II – trinta e cinco por cento, na propriedade rural situada em área de cerrado localizada na Amazônia Legal, sendo no mínimo vinte por cento na propriedade e quinze por cento na forma de compensação em outra área, desde que esteja localizada na mesma microbacia, e seja averbada nos termos do § 7o deste artigo;
III – vinte por cento, na propriedade rural situada em área de floresta ou outras formas de vegetação nativa localizada nas demais regiões do País;
IV – vinte por cento, na propriedade rural em área de campos gerais localizada em qualquer região do País.
§ 2o A vegetação da reserva legal não pode ser suprimida, podendo apenas ser utilizada sob regime de manejo florestal sustentável, de acordo com princípios e critérios técnicos e científicos estabelecidos no regulamento, ressalvadas as hipóteses previstas no § 3o deste artigo, sem prejuízo das demais legislações específicas. (…)
§ 4o A localização da reserva legal deve ser aprovada pelo órgão ambiental estadual competente ou, mediante convênio, pelo órgão ambiental municipal ou outra instituição devidamente habilitada, devendo ser considerados, no processo de aprovação, a função social da propriedade, e os seguintes critérios e instrumentos, quando houver:
I – o plano de bacia hidrográfica;
II – o plano diretor municipal;
III – o zoneamento ecológico-econômico;
IV – outras categorias de zoneamento ambiental; e
V – a proximidade com outra Reserva Legal, Área de Preservação Permanente, unidade de conservação ou outra área legalmente protegida. (…)
§ 8o A área de reserva legal deve ser averbada à margem da inscrição de matrícula do imóvel, no registro de imóveis competente, sendo vedada a alteração de sua destinação, nos casos de transmissão, a qualquer título, de desmembramento ou de retificação da área, com as exceções previstas neste Código. § 9o A averbação da reserva legal da pequena propriedade ou posse rural familiar é gratuita, devendo o Poder Público prestar apoio técnico e jurídico, quando necessário.
§ 10. Na posse, a reserva legal é assegurada por Termo de Ajustamento de Conduta, firmado pelo possuidor com o órgão ambiental estadual ou federal competente, com força de título executivo e contendo, no mínimo, a localização da reserva legal, as suas características ecológicas básicas e a proibição de supressão de sua vegetação, aplicando-se, no que couber, as mesmas disposições previstas neste Código para a propriedade rural.”
A reserva legal é algo que está aderido inseparavelmente a um imóvel rural. Negócios jurídicos que tenham como objeto transmitir a propriedade ou posse do imóvel terão como repercussão a obrigação de manter incólume ou de reparar a vegetação inserida nos limites de sua reserva legal. “Efetivamente, a reserva legal é uma característica da propriedade florestal que se assemelha a um ônus real que recai sobre o imóvel e que obriga o proprietário e todos aqueles que venham a adquirir tal condição” (ANTUNES, 2009, p. 543).
É digno de nota que a reserva legal de imóveis rurais em que se detém meramente a sua posse, em razão de o mero posseiro não ter legitimidade para averbá-la junto ao cartório de imóveis, deve ser registrada junto ao órgão ambiental por meio de termo de ajustamento de conduta a ser firmado pelo posseiro. Outro ponto destacável é o que garante ao agricultor familiar, seja ele posseiro ou pequeno proprietário, a averbação gratuita, inclusive, precedida de apoio técnico e jurídico do poder público.
Assim, é fácil concluir que a reserva legal dos imóveis rurais presta-se a delimitar bem as parcelas desse que poderão ser objeto dessa ou daquela modalidade de exploração. Destaque-se que a mera averbação da reserva legal não permite o uso da área remanescente ilimitadamente. Com efeito, para tanto, o empreendedor submeter-se-á às normas limitativas específicas assim com necessitará das autorizações e licenças previstas em Lei.
2. O EMBARGO CAUTELAR DE ATIVIDADES NOCIVAS AO MEIO AMBIENTE
A não observância das normas que regulamentam a delimitação, registro e utilização da reserva legal e da área remanescente implica tripla responsabilização, nas esferas cível, administrativa e criminal. Com efeito, como bem destaca Fiorillo ( 2009, p. 61), “o art. 225, § 3° da Constituição Federal previu tríplice responsabilidade do poluidor (tanto a pessoa física como jurídica) do meio ambiente.”
A responsabilidade civil ambiental destaca-se por ser qualificada pela desnecessidade de comprovação de qualquer elemento subjetivo por parte do causador do dano (dolo ou culpa). Trata-se de responsabilidade objetiva. Nesse sentido afirma, categoricamente, Fiorillo (2009, p. 62):
“A responsabilidade civil pelos danos causados ao meio ambiente é do tipo objetiva, em decorrência de o art. 225, § 3°, da Constituição Federal preceituar a obrigação de reparar os danos causados ao meio ambiente, sem exigir qualquer elemento subjetivo para configuração da responsabilidade civil. Como já salientado, o art. 14, § 1°, da Lei n. 6.938/81 foi recepcionada pela Constituição, ao prever a responsabilidade objetiva pelos danos causados ao meio ambiente e também a terceiros.”
A responsabilidade criminal ambiental está prevista tanto na Lei n. 9.605/98 quanto em outras Leis esparsas. Sua maior peculiaridade é a possibilidade de penalização da pessoa jurídica.
A responsabilidade administrativa decorre da existência de tipos ou condutas previstas na legislação ambiental como não permitidas associada à previsão de sanções administrativas para os transgressores. Trata-se medida afeta ao poder de polícia “enquanto atividade da Administração Pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato em razão de interesse público” (FIORILLO, 2009, p. 66). É importante aqui destacar que, em se tratando de meio ambiente, o poder de polícia estaria fundado não só no interesse público, mas também em interesse difuso, dada a natureza do bem ambiental.
A Lei n. 9.605/98, além de dispor sobre os crimes ambientais, também o fez quanto às sanções administrativas por condutas lesivas ao meio ambiente. Em seu artigo 72, enumera as sanções aplicáveis, destacando que poderão elas ser estipuladas cumulativamente:
“Art. 72. As infrações administrativas são punidas com as seguintes sanções, observado o disposto no art. 6º:
I – advertência;
II – multa simples;
III – multa diária;
IV – apreensão dos animais, produtos e subprodutos da fauna e flora, instrumentos, petrechos, equipamentos ou veículos de qualquer natureza utilizados na infração;
V – destruição ou inutilização do produto;
VI – suspensão de venda e fabricação do produto;
VII – embargo de obra ou atividade;
VIII – demolição de obra;
IX – suspensão parcial ou total de atividades;
X – (VETADO)
XI – restritiva de direitos.”
Por não ser possível ao legislativo vislumbrar todas as hipóteses de ações lesivas ao meio ambiente que deverão ser coibidas com a estipulação de uma das sanções administrativas acima enumeradas, a tipificação das condutas puníveis em âmbito administrativo ficou sob o encargo do poder executivo que, no exercício de seu poder de polícia regulamentar, pautado em razões de conveniência e oportunidade, deve editar as normas restritivas e indicar as respectivas sanções por descumprimento. Em âmbito federal, isso foi realizado pelo Decreto n. 6514/2008. Destaque-se que o Decreto apenas regulamenta de forma mais detalhada o que prevê a Lei n. 9.605/98, especialmente em seus artigos 70 e 80:
“Art. 70. Considera-se infração administrativa ambiental toda ação ou omissão que viole as regras jurídicas de uso, gozo, promoção, proteção e recuperação do meio ambiente.(…)
Art. 80. O Poder Executivo regulamentará esta Lei no prazo de noventa dias a contar de sua publicação.”
Nesse sentido, afirma Milaré (2009):
“Contudo, a incidência do princípio da legalidade, salvo disposição legal em contrário, não implica o rigor de se exigir que as condutas infracionais sejam previamente tipificadas, uma a uma, em lei, tal como ocorre no direito penal. Basta, portanto, a violação de preceito inserto em lei ou em normas regulamentares, configurando o ato como ilícito, para que incidam sobre o caso as sanções prescritas, estas sim, em texto legal formal.”
As sanções administrativas acima enumeradas, em obediência aos princípios constitucionais do contraditório e ampla defesa, apenas podem ser aplicadas após a deflagração e tramitação de um processo administrativo de apuração em que seja garantido o direito de defesa do interessado com possibilidade de produção ampla de provas nesse sentido. O rito do processo administrativo federal de apuração de infrações ambientais está determinado pela Instrução Normativa IBAMA n. 14/2009.
Não se deve confundir, todavia, sanções com medidas cautelares que tenham como objetivo impedir a continuidade da ação danosa ao meio ambiente. O embargo de obra ou atividade, além de configurar mecanismo punitivo, apresenta-se como um mecanismo acautelatório adotado pela administração em atenção aos princípios da prevenção e da precaução. O embargo de natureza cautelar tem como objetivo imediato cessar o dano ambiental constatado e evitar que ele se perpetue ou que gere novos danos ou riscos. Isso porque os danos ao meio ambiente são, na maioria das vezes, de difícil reparação ou até irreparáveis.
Em outras palavras, a finalidade do embargo cautelar é impedir a continuidade do dano ambiental, propiciando a regeneração do meio ambiente e viabilizando a recuperação da área degradada. Ele representa uma medida coercitiva adotada pela administração, com a finalidade acima descrita, no exercício do seu poder de polícia, que vem a ser “a atividade do Estado consistente em limitar o exercício de direitos individuais em benefício de interesse público” (DI PIETRO, 2006, P. 101). Vale lembrar que a defesa do meio ambiente – através de medidas preventivas, especialmente – é um dos princípios constitucionais da ordem econômica, nos termos do que se encontra previsto nos artigos 170 e 225 da Constituição Federal[1] e que o instituto do embargo presta-se a materializar tal princípio.
O embargo como medida cautelar administrativa ambiental está expressamente previsto no art. 45 da Lei 9.784/99 e no art. 101 do Decreto 6.514/2008:
“Art. 45. Em caso de risco iminente, a Administração Pública poderá motivadamente adotar providências acauteladoras sem a prévia manifestação do interessado.”
“Art. 101. Constatada a infração ambiental, o agente autuante, no uso do seu poder de polícia, poderá adotar as seguintes medidas administrativas:
I – apreensão;
II – embargo de obra ou atividade e suas respectivas áreas;
III – suspensão de venda ou fabricação de produto;
IV – suspensão parcial ou total de atividades;
V – destruição ou inutilização dos produtos, subprodutos e instrumentos da infração; e
VI – demolição.
§ 1o As medidas de que trata este artigo têm como objetivo prevenir a ocorrência de novas infrações, resguardar a recuperação ambiental e garantir o resultado prático do processo administrativo.” (grifos nossos)
O embargo cautelar é ato vinculado, de forma que se estiver presente o pressuposto para sua aplicação, qual seja, a necessidade de se resguardar o meio ambiente da continuidade da infração ambiental ou garantir o resultado prático do processo administrativo de apuração, deverá o agente público empregá-lo. Nesse sentido afirma Neiva (2011) “que o embargo passa a ser considerado ato vinculado, que conta com previsão legal explícita nesse sentido. Dessa maneira, se o agente público verifica a ocorrência do motivo ou pressuposto objetivo do ato administrativo”.
Em se tratando de infração ambiental consistente em desmatamento ou queimadas ilegais, segundo expressa dicção do art. 16 do Decreto n. 6.514/2008, deverão ser embargadas “quaisquer obras ou atividades nelas localizadas ou desenvolvidas, excetuando as atividades de subsistência”.
Em caso de choque aparente entre princípios constitucionais, deve-se utilizar a sistemática da relativização de um princípio em face do outro em cada caso concreto. Quanto ao aparente conflito entre os princípios da dignidade da pessoa humana e o do direito difuso a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, o ordenamento jurídico brasileiro já realizou esse trabalho de ponderação e relativização, estabelecendo em sua legislação infraconstitucional a hipótese em que um princípio vai sobrepor-se ao outro no caso concreto, qual seja, o não embargo de áreas utilizadas em atividades de subsistência. Prevalecerá, assim, o princípio da dignidade da pessoa humana sobre o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, nos casos de desmatamento para utilização em atividades de subsistência.
Com base nessa exceção à imposição do embargo cautelar, diversos autuados têm procurado o poder judiciário com a finalidade de ter o ato de embargo incidente sobre sua atividade ou área desmatada anulado ou suspenso. O Judiciário, por inúmeras vezes, em flagrante desatenção à definição legal daqueles considerados praticantes de atividades de subsistência acaba por deferir pleitos ilegais. Nesse contexto, faz-se de suma importância delimitar o que vêm a ser atividades de subsistência à luz da legislação brasileira.
3. DELIMITAÇÃO CONCEITUAL DAS ATIVIDADES DE SUSBISTÊNCIA IMPEDITIVAS DA IMPOSIÇÃO DE EMBARGO
A Lei n. 11.326, de 24 de julho de 2006, que estabelece as diretrizes para a formulação da Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimento Rurais Familiares, em seu art. 3°, conceitua o agricultor familiar e o empreendedor familiar rural:
“Art. 3o Para os efeitos desta Lei, considera-se agricultor familiar e empreendedor familiar rural aquele que pratica atividades no meio rural, atendendo, simultaneamente, aos seguintes requisitos:
I – não detenha, a qualquer título, área maior do que 4 (quatro) módulos fiscais;
II – utilize predominantemente mão-de-obra da própria família nas atividades econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento;
III – tenha percentual mínimo da renda familiar originada de atividades econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento, na forma definida pelo Poder Executivo;
IV – dirija seu estabelecimento ou empreendimento com sua família.
§ 1o O disposto no inciso I do caput deste artigo não se aplica quando se tratar de condomínio rural ou outras formas coletivas de propriedade, desde que a fração ideal por proprietário não ultrapasse 4 (quatro) módulos fiscais.
§ 2o São também beneficiários desta Lei:
I – silvicultores que atendam simultaneamente a todos os requisitos de que trata o caput deste artigo, cultivem florestas nativas ou exóticas e que promovam o manejo sustentável daqueles ambientes;
II – aqüicultores que atendam simultaneamente a todos os requisitos de que trata o caput deste artigo e explorem reservatórios hídricos com superfície total de até 2ha (dois hectares) ou ocupem até 500m³ (quinhentos metros cúbicos) de água, quando a exploração se efetivar em tanques-rede;
III – extrativistas que atendam simultaneamente aos requisitos previstos nos incisos II, III e IV do caput deste artigo e exerçam essa atividade artesanalmente no meio rural, excluídos os garimpeiros e faiscadores;
IV – pescadores que atendam simultaneamente aos requisitos previstos nos incisos I, II, III e IV do caput deste artigo e exerçam a atividade pesqueira artesanalmente.
V – povos indígenas que atendam simultaneamente aos requisitos previstos nos incisos II, III e IV do caput do art. 3º;
VI – integrantes de comunidades remanescentes de quilombos rurais e demais povos e comunidades tradicionais que atendam simultaneamente aos incisos II, III e IV do caput do art. 3º.”
Segundo o citado dispositivo legal, será agricultor familiar ou empreendedor rural familiar aquele que preencher simultaneamente alguns requisitos legais, quais sejam, não deter propriedade rural superior a 04 módulos fiscais; utilizar predominantemente mão de obra familiar no exercício de suas atividades econômicas; ter percentual mínimo da renda familiar originada dessas atividades; dirigir o empreendimento com sua família. Observe-se que o parágrafo segundo, ainda valendo-se dos critérios previstos no caput, descreve aqueles que também são considerados praticantes de atividades rurais familiares.
A Lei n. 8.213/91, que regulamenta o plano de benefícios do regime geral de previdência social, em seu art. 16, garantiu cobertura previdenciária específica ao agricultor familiar e ao empreendedor familiar, qualificando-os como segurados especiais. Em se tratando da legislação ambiental, o Código Florestal, em seu art. 1°, § 2°, I, e o art. 29, § 1° da Instrução Normativa IBAMA n°14/2009, regulamentando o disposto no inciso III da Lei n. 11.326/2006 e reproduzindo os demais critérios, definiram as atividades de subsistência familiar como aquelas em que a renda bruta do grupo familiar seja proveniente de atividades agropecuárias, silviculturais ou de extrativismo rural em, no mínimo, 80%:
“Art. 29 No caso de áreas irregularmente desmatadas ou queimadas, o agente fiscal embargará quaisquer obras ou atividades nelas localizadas ou desenvolvidas, exceto as atividades de subsistência familiar, em que a decisão pelo embargo ou suspensão da atividade cabe à autoridade julgadora.
§ 1º São consideradas atividades de subsistência familiar aquelas realizadas na pequena propriedade ou posse rural familiar, explorada mediante o trabalho pessoal do proprietário ou posseiro e de sua família, admitida a ajuda eventual de terceiro, cuja renda bruta seja proveniente de atividades ou usos agrícolas pecuários ou silviculturais ou de extrativismo rural em 80% no mínimo.
§ 2º A pequena propriedade segue o regime previsto no inc. I do art. 3º. da Lei nº 11.428, de 2006 para aquelas situadas no Bioma Mata Atlântica e no inc. I do § 2º do art.1º da Lei nº 4771, de 1965 para aquelas situadas nos demais biomas brasileiros.”
“Art. 1° As florestas existentes no território nacional e as demais formas de vegetação, reconhecidas de utilidade às terras que revestem, são bens de interesse comum a todos os habitantes do País, exercendo-se os direitos de propriedade, com as limitações que a legislação em geral e especialmente esta Lei estabelecem. (…)
§ 2o Para os efeitos deste Código, entende-se por:
I – pequena propriedade rural ou posse rural familiar: aquela explorada mediante o trabalho pessoal do proprietário ou posseiro e de sua família, admitida a ajuda eventual de terceiro e cuja renda bruta seja proveniente, no mínimo, em oitenta por cento, de atividade agroflorestal ou do extrativismo, cuja área não supere:
(grifo nosso)
Como se observa, a caracterização das pessoas que exercem atividades de subsistência são bem abrangentes, porém os critérios estabelecidos para tanto são bem precisos e objetivos, não deixando margem para dúvidas objetivas. Como bem destaca Altafin (2007):
“A delimitação legal do conceito de agricultor familiar combina como critérios o tamanho da propriedade, predominância familiar da mão-de-obra e da renda, e gestão familiar da unidade produtiva. Tal delimitação, como não poderia deixar de ser, é abrangente o suficiente para incluir a diversidade de situações existentes no país.”
Ante a existência de uma delimitação conceitual legal bastante precisa sobre a figura daqueles que praticam atividades de subsistência assim como das áreas exploráveis de uma propriedade rural, não são admissíveis equívocos grosseiros quanto à aplicação da exceção legal consistente em não se permitir o embargo cautelar de áreas desmatadas ou queimadas.
CONCLUSÃO
O direito de propriedade não pode ser exercido de forma ilimitada, de maneira que a propriedade rural é gravada com algumas funções sociais, dentre elas a ambiental. A reserva legal apresenta-se como um instituto que tem como objetivo garantir o cumprimento dessa função, ao tempo em que se presta a delimitar a parcela explorável do imóvel.
A vedação de exploração das parcelas delimitadas ou a exploração das mesmas em dissonância com a legislação é excepcionada na hipótese de o embargo a ser imposto pelo Estado incidir sobre área utilizada para a prática de atividades de subsistência. Acontece que essa exceção tem sido banalizada pelo poder judiciário ao deferir a suspensão de embargos corretamente impostos sem um contexto probatório no processo que se preste a infirmar a presunção de veracidade e legitimidade do ato administrativo consistente no embargo.
Devem os agentes estatais ambientais, ao lavrar um termo de embargo, registrar a inexistência dos requisitos legais que enquadrem o infrator da legislação ambiental como praticante de atividades de subsistência, como medida tendente proporcionar a transparência da veracidade e legalidade de seu ato administrativo e robustecer a defesa do mesmo. Da mesma forma, deve o Judiciário, ao se deparar com a alegação de que a parte é praticante de atividades de subsistência, atentar detidamente para a efetiva comprovação do preenchimento dos requisitos legais acima comentados. Tais cautelas de parte dos agentes estatais, além de representarem a ideal observância de seus deveres funcionais, apresentam-se como contundente elemento de garantia da preservação ambiental, ao passo que impedirão que infratores não respaldados pela exceção legal continuem degradando o meio ambiente.
Referências
Informações Sobre o Autor
Paulo de Tarso Souza de Gouvêa Vieira
Procurador Federal. Professor Universitário. Bacharel em Direito pela UFPE, Especialista em Direito Público pela Universidade Maurício de Nassau – PE e Mestrando em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas – UEA