Resumo: Este artigo visa expor a inconstitucionalidade presente nas infrações ambientais administrativas previstas no Decreto nº 6.514/2008, com base em sua contrariedade ao Princípio da Legalidade. Com efeito, se faz necessária uma breve análise de outro tema amplamente discutido pelos operadores do Direito: o conceito de Princípio da Legalidade; mas isso apenas como base para a compreensão do assunto central que recai sobre a ilegalidade e, por óbvio, a inconstitucionalidade das infrações ambientais referidas. Artigo elaborado com orientação do Professor Dr. Daniel Ferreira.
Palavras-chave: ilegalidade, regulamento, inconstitucionalidade, infrações, ambientais.
Sumário: 1. Introdução. 2. O desenvolvimento do Estado Democrático de Direito: Teoria da Separação dos Poderes e o Princípio da Legalidade. 2.1. A Constituição da República de 1988 e o Princípio da Legalidade. 2.2. Princípio da Legalidade: Extensão e seus debates. 3. Poder Regulamentar. 3.1. Regulamento. 4. Infrações Ambientais Administrativas: Decreto nº 6.514/2008. 4.1. As inovações trazidas pelo Decreto nº 6.514/2008. 5. Conclusão.
1. Introdução
A Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/1998), no que se refere às infrações e sanções ambientais administrativas, era regulamentada pelo Decreto nº 3.179/1999 que foi revogado pelo Decreto nº 6.514/2008. Esse novo regulamento surgiu permeado de críticas quanto a sua constitucionalidade, com base no confronto entre o conteúdo do decreto e o conteúdo permitido constitucionalmente:
“Artigo 84 – Compete privativamente ao Presidente da República:(…)
IV – Sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução; (…) (grifei)”
A partir do dispositivo constitucional aludido vislumbra-se a função para a qual são expedidos os decretos e regulamentos; ou seja, determina-se que tais normas servem como meios para a “fiel execução” das leis. Ora, se para isso servem é de presumir que não estão aptos a inovar no ordenamento jurídico, sendo essa a função dada às leis. Derradeiro, então, que um decreto cujo conteúdo não provém de uma lei, ou melhor, cujo conteúdo não se submete a sua respectiva lei será inconstitucional por não seguir o princípio da legalidade.
O decreto que regulamenta a Lei de Crimes Ambientais teve sua publicação adiada por duas vezes, para receber alguns ajustes. Ainda assim, diversos deputados ingressaram na Câmara Federal com projetos visando a anulação do Decreto 6.514/2008. Como resultado dessas controvérsias, houve a publicação dos Decretos nº 6.686 e nº 6.695, que acrescentaram e alteraram dispositivos do primeiro decreto. Porém, sequer todas essas discussões e a criação de dois novos regulamentos foram capazes de sanar as inconstitucionalidades presentes no decreto regulamentador da Lei nº 9.605/1998, como será evidenciado adiante.
2. O desenvolvimento do Estado Democrático de Direito: Teoria da Separação dos Poderes e o Princípio da Legalidade.
Antes de tratar do princípio da legalidade no Estado Democrático de Direito, cuja existência é de singular importância para esse sistema, é coveniente traçar uma breve noção acerca de seu surgimento.
À época dos teóricos Iluministas do século XVIII e as diversas revoluções desencadeadas na Europa, diante dos abusos de poder dos Estados monárquicos, foram criados mecanismos de restrição ao poder estatal, proteção ao cidadão e, ainda, de manutenção da segurança jurídica, entre os quais encontram-se a separação de poderes e o princípio da legalidade[1].
É notória a mudança da compreensão quanto ao poder estatal. Se não vejamos: Na França, o monarca proclamava que “L’État c’est moi” até o Estado Democrático de Direito advir com antagônica disposição, como se pondera em sua Constituição de 1791[2], para a qual “Não há em França autoridade superior à da lei; o rei não reina senão em virtude dela e é unicamente em nome da lei que poderá ele exigir obediência” (Art. 32, Capítulo II, Constituição Francesa de 1791).
A par disso, julga-se que essas mudanças de paradigma derivaram dos referidos meios de restrição do poder estatal, até desembocarem na forma de Estado que hoje se conhece. Primeiramente, vale apreciar, muito ligeiramente, a Teoria da Separação dos Poderes[3], proposta por Montesquieu em sua obra De L’Espirit des Lois. Para o filósofo iluminista, cada um dos orgãos do poder – Legislativo, Executivo e Judiciário – desempenham funções próprias, para as quais os outros orgãos não são devidamente competentes. Prevê, portanto, uma autonomia entre eles para evitar abusos estatais, fundando-se no Checks and Balances, para o qual “só o poder freia o poder”[4]. Entretanto, apesar de consagrada pela Constituição Federal de 1988, saliente-se que essa teoria não é de todo aplicada. Há de se notar a realização de atividades atípicas entre os poderes desde que dentro dos parâmetros definidos pelo Direito, a exemplo do que se vê com a publicação de regulamentos e decretos em que o Poder Executivo “legisla”[5] para dar “fiel execução” às leis. Exemplo, esse, que se enquadra exatamente no tema em comento. Isto é, aplicando a aludida teoria ao Decreto nº 6.514/2008 se vê que o Poder Executivo exerceu atividade que não faz parte do quadro de suas atividades típicas com respaldo constitucional[6]. No entanto, apesar disso, extrapolou os limites legais previstos e os definidos pela própria separação dos poderes ao inovar o sistema jurídico, haja vista essa ser competência pertinente apenas às leis, portanto, ao Poder Legislativo.
Assim, importa dizer que a competência para modificar o Direito provém das Casas Legislativas, exatamente para combater as possíveis arbitrariedades do Estado caso fosse o detentor dessa competência (como a própria história mostra). A partir daqui já é possível interligar essa divisão de poderes ao princípio da legalidade. Conjuntamente a essa teoria, o emprego do Princípio da Legalidade veio a motivar o Estado Decmocrático de Direito e a delimitar a sua atuação. No que cerne a relação entre esses dois mecanismos de controle, o princípio da legalidade, no que prevê a adequação à lei, estipula que apenas o Poder Legislativo, em sua divisão de competência como orgão parte do poder, será capaz de criar obrigações aos cidadãos. Ou seja, os parlamentares são os responsáveis pela inovação no Direito, justificável, sim, nas distintas palavras de Bobbio, para o qual o legislativo:
“(…) configura-se em uma caixa de ressonância heterogênea para efeito de informação e mobilização da opinião pública; é o orgão que, em tese, devido a sua composição heterogênea e a seu processo de funcionamento, torna a lei não uma mera expressão dos sentimentos dominantes em determinado setor social, mas a vontade resultante da síntese de posições antagônicas e pluralistas da sociedade”
Logo, a separação dos poderes e o princípio da legalidade entrelaçam-se pela promoção das leis como meio primordial de criação do Direito o que se dá de forma legítima apenas pelo Poder Legislativo, como leciona Fabrício Motta, para quem “o princípio da separação de poderes era chamado com o intuito principal de garantir o primado da lei, seu império ou soberania e, simultaneamente, o monismo do Poder Legislativo”[7](grifei).
Quanto ao princípio da legalidade em si, se perfaz necessária uma análise mais detalhada e específica no que cerne ao caso do regulamento tema, visto que é pelo desrespeito ao princípio da legalidade que ele se mostra inconstitucional. Em suma, o princípio da legalidade surgiu no anseio das sociedades revolucionárias em gozarem de segurança jurídica, por meio de normas estáveis, que reproduzissem suas vontades e que possibilitassem um freio aos abusos absolutistas, isso por meio de um poder legislativo eficiente.
2.1. A Constituição da República de 1988 e o Princípio da Legalidade
Sabendo-se que o princípio da legalidade surgiu como forma de moderar a atuação estatal, nada mais prudente que firmá-lo no texto constitucional.
Sua previsão está expressa por meio do mesmo dispositivo de constituições anteriores, o qual determina que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” constante no artigo 5º, inciso II. Simplismente a partir desse inciso, largas discussões já passam a ser travadas; questinamentos acerca do significado de “em virtude de lei” está entre delas e é o que convém discutir com relação ao Decreto nº6.514/2008, presente no próximo tópico de forma mais delongada. Por ora, limite-se a identificar a presença desse princípio basilar na Constituição Federal.
Há, do mesmo modo, há previsão expressa quanto a aplicação desse princípio no âmbito da administração pública, junto ao artigo 37, caput, da Constituição Federal, além de enumerar diversos outros princípios cabíveis àquela. Nesse ponto se torna viável conceituar o princípio da legalidade, em suas duas particulares acepções: no que tange aos particulares e no tocante à administração pública.
Inúmeros doutrinadores manifestam-se com o intuido de conceituar e delimitar a distinção entre a aplicabilidade do princípio da legalidade para a administração pública e para seus administrados. Para Hely Lopes Meirelles,
“A legalidade , como princípio de administração (CF, art. 37, caput), significa que o administrador público está, em toda a sua atividade funcional, sujeito aos mandamentos da lei e às exigências do bem comum, e deles não se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido e exporse a responsabilidade disciplinar, civil e criminal, conforme o caso”.[8]
Ao encontro do pensamento de Hely Lopes, confrontando aquele viés da legalidade na administração ao viés no particular, Moreira Neto preceitua que:
“A submissão das relações humanas à lei é condição da convivência, de imemorial concepção. No Direito Privado prevalece a autonomia da vontade, agindo a lei como um limite da ação; no Direito Público não existe autonomia da vontade e a lei é o próprio e único fundamento da ação do Estado”.[9]
Aqui poderiam ser citados exaustivos conceitos, que, em suma, trariam a mesma acepção da legalidade aos particulares com base na autonomia de vontade, pela qual são autorizados a fazer tudo que a lei não proibir; ao passo que no âmbito da Administração Pública, o que prevalece é a vinculação à lei, pela qual deverão fazer apenas aqueilo determinado por ela. Essa conceituação vêm não só do que dispõe a Constituição Federal, mas também de diplomas mais amplos, como a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), a qual prescreve que “a liberdade consiste em fazer tudo aquilo que não prejudica a outrem; assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem outros limites que os que asseguram aos membros da sociedade o gozo desses mesmos direitos. Esses limites somente podem ser estabelecidos em lei”[10].
A Carta Magna de 1988 traz, ainda, inúmeros dispositivos que visam proteger a legalidade, entre eles os institutos da ação popular, habeas data, habeas corpus, mandado de injunção e o mandado de segurança[11]. Não obstante, há ainda o artigo 84, inciso IV, pré citado na Introdução a este trabalho. Vigoram também indicações destinadas a alguns ramos específicos, ad exemplus, a Legalidade Penal[12] e a Legalidade Tributária[13].
Em vista disso, vislumbra-se a importância que o legislador constituinte destinou ao princípio. Em sua ilustre lucidez, Celso Antônio Bandeira de Melo trata do princípio da legalidade como um princípio “capital para a configuração do regime jurídico-administrativo”[14]. Tanto o é que impossível seria demonstrar a ilegalidade do Decreto n.6.514 sem pronunciá-lo. Ou seja, justamente pela importância outorgada pela Constituição Federal ao princípio da legalidade é que sucede a análise da inconstitucionalidade do referido regulamento com base na usurpação de competência (confronto com a tripartição dos poderes) e a exacerbação nos limites de regulamentação (confronto com o princípio da legalidade, principal foco nesta obra). A par disso, é imprescindível a compreensão do princípio da legalidade, não só conhecendo seus conceitos ou os dispositivos que se referem a ele, mas, sobretudo, avaliando sua extensão.
2.2. Princípio da Legalidade: Extensão e seus debates
O princípio da legalidade, como manifesto no artigo 5º do texto constitucional, ao trazer a expressão “em virtude de lei”, abre margem a discussões acerca do sentido dado pelo legislador constituinte à “lei”. A doutrina discute os limites do princípio da legalidade no sentido de que sua abrangência recaia sobre a lei em sentido formal ou sobre todo o ordenamento jurídico. Destaque-se que são esses limites que determinarão quais normas estão ou não de acordo com o princípio da legalidade.
Desta feita, é de grande relevância aludir a divisão do princípio da legalidade trazida por boa parte da doutrina em supremacia da lei e reserva legal.
Inicia-se aqui a distinção por meio da conceituação de supremacia da lei, que defini-se pela prevalência da lei sobre outros atos normativos. Comumente, na doutrina há a classificação da supremacia da lei como uma vinculação à lei, em sentido negativo. Ou seja, se não houver uma lei que determine algo, o administrador deterá o poder para se “auto-regular”, seja, por exemplo, por intermédio de decretos autônomos[15]. Segundo esses apontamentos, a supremacia da lei não prevalece no sistema juíridico pátrio no que permeia o Público, mas apenas ao privado. A idéia consagrada tradicionalmente no ordenamento brasileiro, para o Direito Administrativo, é a de reserva legal, em que a lei, mais do que ser superior aos atos infralegais, é quem habilita a atuação do Poder Público. Ou seja, o administrador só poderá atuar se houver expressamente lei que o autorize. Essa concepção foi trazida ao Brasil pelo professor Helly Lopes Meirelles, com base nas idéias do professor italiano Guido Zanobini[16]. Disso tudo é que provém a clássica definição de legalidade em que “ao privado, tudo que não é proibido é permitido, e, ao público, tudo que não é permitido é proibido”[17].
Essas duas concepções da legalidade permanecem vigentes, entretanto, atualmente restam repensadas e relativizadas. Agora, há a consagração da teoria da aplicação horizontal dos direitos fundamentais[18], pela qual esses direitos protegem os cidadãos não só com relação ao Estado, mas também com relação às interações privadas. Há aplicação, portanto, dos direitos fundamentais nas relações privadas, o que importa na vinculação dos particulares a esses direitos e, por conseguinte, a criação de obrigações sem fundamento em uma lei expressa. Noutros termos, é possível haver vinculação e criação de obrigações mesmo sem lei em sentido formal, desde que respeitados os atos normativos superiores.
Um caso levado a julgamento ao STF, reluz essa nova percepção da legalidade. Trata-se do julgamento do Recurso Extraordinário nº 201.819/RJ, interposto pela União Brasileira de Compositores (UBC) visando a reforma da decisão pela qual um de seus sócios, que havia sido excluído sem motivação, ampla defesa e contraditório, pôde ser readmitido. A discussão se deu com base na alegação de que não havia lei impositiva sobre a forma de exclusão de um membro da associação. Todavia, conforme a decisão cuja ementa encontra-se logo na sequência, devem ser observadas outras disposições além da lei:
“SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIÃO BRASILEIRA DE COMPOSITORES. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO.I. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados.” (201819 RJ , Relator: ELLEN GRACIE, Data de Julgamento: 10/10/2005, Segunda Turma, Data de Publicação: DJ 27-10-2006 PP-00064 EMENT VOL-02253-04 PP-00577)
A decisão no sentido de que não é apenas lei que vincula os comportamentos, inclusive dos particulares, ampliou a visão acerca da expressão em “virtude de lei”. Assim, as previsões constitucionais, acima de quaisquer outras, estabelecem como as condutas se darão.
A nova idéia de legalidade passa, então, pela constitucionalização do Direito, em que o administrador deve observar não apenas a lei em sentido formal mas também os outros atos normativos do Direito[19], visto que a primeira é um elemento do segundo. A partir disso, fala-se hoje, no princípio da juridicidade[20], ou da legalidade em sentido material, cuja raiz pode ser observada à Lei 9.784/1999, que regula o processo administrativo federal:
“Art. 2o. A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.
Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de:
I – atuação conforme a lei e o Direito;”
Ao tratar da “lei” e do “Direito” como entes distintos, o dispositivo abre margem a interpretação do princípio da legalidade em sua visão mais ampla, na qual a administração pública – e o particular, como aferido naquela decisão do STF – deve vincular-se ao que a lei e o Direito dispõem.
Em consonância com todo o enunciado, para Fabrício Motta:
“(…) o princípio da legalidade deve ser visto sob um prisma diferenciado que abranja a totalidade do ordenamento, notadamente dos princípios e valores constitucionais. Ao lado da exigência de lei em sentido formal para a disciplina de determinadas matérias e para a habilitação à prática de determinados atos pela Administração, devem coexistir outras formas de manifestação da legalidade”. (grifei)
Não é outro o entendimento de Moreira Neto ao afirmar que “é preciso ter e mente que a legalidade deve ser entendida sempre no sentido amplo, de submissão ao Direito, em todas as suas expressões”[21]. Na mesma orientação segue Celso Antônio Bandeira de Mello ao indicar que é o sistema legal, e não meramente a lei formal, que deve fundamentar todas as atividades da administração e estabelecer as obrigações aos particulares[22]. Coaduna com este entendimento, a ilustre Prof Maria Sylvia Zanela Di Pietro ao estabelecer que o principio da legalidade exige obediência à lei e ao direito, visto que ao falar de obediencia à lei se exige conformidade com a lei formal e ao falar de obediência ao Direito está se exigindo conformidade com princípios, direitos fundamentais, interesse publico, além das leis formais, ou seja, todos os valores que decorrem implicita ou explicitamente da Constituição Federal[23].
Desta feita, o princípio da legalidade reporta-se às leis no duplo sentido, formal e material. A par disso, devem ser analisados os limites do poder regulamentar, visto que os regulamentos e decretos – atos do Executivo – devem ser repeitados sempre que embasados em sua lei fundamentadora, como forma de respeito ao próprio princípio da legalidade e separação dos poderes.
3. Poder Regulamentar
O poder regulamentar é uma espécie de poder normativo[24], pelo qual o chefe do Poder Executivo, nos âmbitos Federal, Estadual e Municipal, detem capacidade de editar atos gerais e abstratos, no que se assemelham às leis por sua força normativa, entretanto, de caráter complementar a estas, visto que o poder regulamentar não presta o condão de inovar o Direito.
Tomando por base os apontamentos iniciais relativos à separação dos poderes, tem-se o Poder Regulamentar como a
“faculdade que ao Presidente da República – ou chefe do Poder Executivo, em geral, Governador e Prefeito – a Constituição confere para dispor sobre medidas necessárias ao fiel cumprimento da vontade legal, dando providências que estabeleçam condições para tanto. Sua função é facilitar a execução da lei, especificá-la de modo praticável e, sobretudo, acomodar o aparelho administrativo, para bem observá-la”[25].
Por meio da singular anotação de Geraldo Ataliba, verifica-se a delimitação de competências ao Legislativo – ao qual cabe criar as leis, basicamente – e ao Executivo – ao qual cabe a administração dos interesses públicos, cumprindo fielmente as disposições elaboradas pelo Executivo e criando formas para esse cumprimento por parte dos cidadãos administrados. Essa idéia é resumida por Pontes de Miranda, com grande simplicidade, ao dizer que “legislar e regulamentar leis são funções que a Constituição pôs em regras de competência de um e outro poder”[26].
Sabendo-se, assim, que o poder regulamentar é de alçada do Poder Executivo e que por meio dele é que os Decretos e Regulamentos tem sua criação permitida (art. 84, IV) incumbe tratar dos regulamentos para, enfim, abordar especificamente o Decreto nº 6.514/2008 e sua relação com o princípio da legalidade e todo o trazido até aqui.
3.1. Regulamento
A concepção de regulamentos possui previsão constitucional expressa e bem delimitada, como já apresentado no presente trabalho, pelo artigo 84, inciso IV, por exemplo.
No entendimento de Pontes de Miranda os regulamentos são atos infralegais emitidos pelo Poder Executivo, o qual deve observar o princípio da legalidade e as divisões de competência, sempre os submetendo às leis superiores. Em suas palavras,
“Naturalmente, há as regras jurídicas inferiores à lei que se editam administrativamente, pelo estado de necessidade, que se revela, mas ainda é questão de legalidade e de poderem ou não ser editadas. ‘Serão em virtude de lei ’. O decreto somente pode veicular ao ato ou à omissão se cabe na competência do Presidente da República, ou do Governador, ou de Prefeito a regra jurídica que se decreta. Dá-se o mesmo a propósito dos regulamentos: com eles se regula, não se legisla”[27].
Outros doutrinadores amparam essas determinações legais, como Celso Antônio Bandeira de Mello, para quem o regulamento é
“Ato geral e (de regra) abstrato, de competência privativa do chefe do Poder Executivo, expedido com a estrita finalidade de produzir as disposições operacionais uniformizadoras necessárias à execução da lei cuja aplicação demanda atuação da Administração Pública” – 17
Na mesma esteira, para Geraldo Ataliba,
“Regulamento é ato administrativo normativo, veiculado por decreto, expedido no exercício da função regulamentar, contendo disposições, dirigidas aos subordinados do editor, regulando (disciplinando) o modo de aplicação das leis administrativas, cuja execução lhe incumbe” [19].
Afere-se desses conceitos que o regulamento deve estar pautado nos limites estabelecidos pela Constituição Federal e pela própria lei a ser regulamentada. Essa ideia de respeito às normas superiores é o que gerará a discussão acerca da legalidade e inconstitucionalidade do decreto que regulamenta as infrações ambientais administrativas no Direito brasileiro. Assim como Hans Kelsen doutrinou, o ordenamento jurídico, em sua totalidade, é composto por um grupo de normas hierarquizadas, constituindo a conhecida pirâmide jurídica, de tal modo, “[…] o fundamento de validade de uma norma apenas pode ser a validade de uma outra norma”, sendo Constituição Federal o topo. Destarte, as normas inferiores buscam sua validade em normas superiores.
No caso em exame, o regulamento analisado não encontra fundamento em sua norma superior, ou seja, a Lei 9.605/1998 não dá base legal para disposições presentes no Decreto 6.514/2008, como a pena de perda de veículos transportadores utilizados no cometimento das possíveis infrações enquanto a lei de Crimes Ambientais fala em apreensão. Ademais, este mesmo decreto sequer encontra fundamento na Constituição Federal, visto que viola os diversos dispositivos que determinam desde o emprego legalístico dos regulamentos até mesmo o princípio da legalidade.
4. Infrações Ambientais Administrativas: Decreto nº 6.514/2008
A Lei de Crimes Ambientais, Lei nº 9.605/1998, traz oitenta e dois artigos distribuídos em oito capítulos[28], sendo que em seu capitulo VI trata das infrações administrativas na esfera ambiental, e é dela, então, que se abre espaço para o surgimento do Decreto nº 6.514/2008 que regulamenta a referida lei nesse aspecto. Ou seja, de tal modo a Lei 9.605 traz em seu bojo a tipificação de crimes que sofrem, portanto, tutela penal e que representam seu objeto primeiro, mas traz também as infrações administrativas na seara ambiental, ao passo que estas carecem de explicações que não se encontram nesta lei. Com isso é que foi proposta a regulamentação destes dispositivos (do artigo 70 ao artigo 76) por meio de um Decreto Presidencial, conforme a própria Constituição Federal prevê ao consentir a expedição de decretos para que a lei possa ser bem aplicada naquilo que ela já prevê.
O Decreto 6.514 de 22 de julho de 2008 já surgiu envolto por uma série de irregularidades, brevemente citadas no trecho introdutório deste artigo. Muito se discutiu após sua publicação. No segundo semestre do ano de 2008 foram reconhecidas algumas irregularidades no decreto visto que extrapolavam os limites deixados pela Lei de Crimes Ambientais, nas palavras do próprio Ministro do Meio Ambiente à época, Carlos Minc. Tanto havia que no fim do mesmo ano foi publicado o Decreto 6.686/2008, que promoveu algumas correções no outro decreto. Entretanto, analisando-se ainda o Decreto 6.514 vislumbram-se inúmeras irregularidades remanescentes. Outrossim, as modificações trazidas pelo decreto “corretor”, além de insuficientes, são, notadamente, para “o povo ver”; ou seja, houve correção apenas daqueles dispositivos que foram apresentados pela mídia ao público, enquanto a correção que deveria ser feita seria muito mais ampla, abrangendo o diploma ao todo. Ademais, não bastasse a contrariedade com a lei a que deveria estar submetido, o decreto, em suas outras disposições, não faz muito mais que copiar os tipos penais descritos na própria lei. Ou seja, não traz o detalhamento da lei, como haveria de ser, mas sim uma réplica de seus mandamentos.
Pois bem, o Decreto nº 6.514 está aí, posto e vigente no ordenamento jurídico nacional e cabe agora apresentar o porquê ele nem deveria ter ingresso nesse sistema.
4.1. As inovações trazidas pelo Decreto nº 6.514/2008
Após toda a explanação acerca do que vem a ser o regulamento, desde suas bases na separação dos poderes e no princípio da legalidade, é incontroverso que apenas a lei inova primariamente o Direito no Brasil. Assim sendo, as novidades introduzidas pelo decreto em questão são, ao menos, refutáveis. Tanto se falam nessas “novidades”, mas vale aponta-las, sequer algumas.
Uma das criações do decreto foi a pena de perdimento de veículos transportadores utilizados de alguma forma na realização da infração, cuja previsão na lei paradigma se limita à apreensão, senão vejamos:
“Lei 9.605/1998 – Art. 72. As infrações administrativas são punidas com as seguintes sanções, observado o disposto no art. 6º: (…)
IV – apreensão dos animais, produtos e subprodutos da fauna e flora, instrumentos, petrechos, equipamentos ou veículos de qualquer natureza utilizados na infração;”
Em nenhum outro momento a Lei de Crimes Ambientais anuncia a perda do veículo. Antes da vigência do Decreto 6.514, vigorava o Decreto 3.179 que estabelecia de forma correlata à lei, prevendo de forma detalhada a apreensão:
“Art. 2º – As infrações administrativas são punidas com as seguintes sanções:(…)
§ 6º – A apreensão, destruição ou inutilização, referidas nos incisos IV e V do caput deste artigo, obedecerão ao seguinte: (…)
VIII – os veículos e as embarcações utilizados na prática da infração, apreendidos pela autoridade competente, somente serão liberados mediante o pagamento da multa, oferecimento de defesa ou impugnação, podendo ser os bens confiados a fiel depositário na forma dos arts. 1.265 a 1.282 da Lei no 3.071, de 1916, até implementação dos termos antes mencionados, a critério da autoridade competente;”
Ou seja, o Decreto 3.179 era mais apto a sua função visto que estabelecia a forma como se deveria proceder no caso da apreensão, agindo em seu papel de fidelizar a execução legal. Já a previsão constante no atual decreto regulamentador das infrações ambientais administrativas copia o disposto no artigo 72, IV da lei em comento e, no que tange a inovação, determina o seguinte:
“Art. 134. Após decisão que confirme o auto de infração, os bens e animais apreendidos que ainda não tenham sido objeto da destinação prevista no art. 107, não mais retornarão ao infrator, devendo ser destinados da seguinte forma: (…)
V – os demais petrechos, equipamentos, veículos e embarcações descritos no inciso IV do art. 72 da Lei nº 9.605, de 1998, poderão ser utilizados pela administração quando houver necessidade, ou ainda vendidos, doados ou destruídos, conforme decisão motivada da autoridade ambiental.”
Destarte, com base no que resolve o decreto, o infrator não terá direito de reaver seu veículo apreendido, como sempre foi estabelecido na Lei nº 9.605. Houve um desvirtuamento da apreensão para a perda; o intuito daquela era que a multa fosse paga o mais rápido possível para que se retornasse ao mínimo status quo; porém, a pena de perdimento afastou essa intenção da lei. Deste modo, é manifesta a criação de uma nova pena pelo decreto regulamentador.
Não só essa nova pena foi concebida naquele decreto, mas também a vedação a aplicação da sanção de advertência em um certo lapso de tempo, como indica o artigo 7º do decreto com a seguinte redação: Fica vedada a aplicação de nova sanção de advertência no período de três anos contados do julgamento da defesa da última advertência ou de outra penalidade aplicada. A afronta propagada nessa questão se dá com relação ao artigo 72, §2º[29] da lei fundamentadora do decreto, que não estabelece nenhuma delimitação temporal para a aplicação da sanção bem como sua redação não dá margem à delimitação regulamentar. Ademais, em momento algum ao longo da Lei há motivação para essa regulamentação. Logo, mais uma ilegalidade está presente do Decreto.
Essas não são as únicas ilegalidades que eivam o Decreto nº 6.514; ainda seria possível citar muitas outras. Mas, para finalizar este rol exemplificativo, tem-se uma das criações mais rechaçadas do Decreto: o artigo 55. Conforme esse dispositivo, a ausência de averbação em cartório da área de reserva legal implica em multa diária de R$ 50,00 (cinquenta reais) a R$ 500,00 (quinhentos reais) por hectare ou fração da área de reserva legal, o que nunca foi previsto pela Lei de Crimes Ambientais. Portanto, bastam essas ilegalidades para demonstrar o quão despropositado é este decreto. O fato é que, independente de haver uma, duas, ou todas as disposições ilegais, a ilegalidade é elemento presente no Decreto 6.514/2008.
5. Conclusão
Diante de todos os apontamentos, se faz clara a percepção das ilegalidades e inconstitucionalidade presente no Decreto nº 6.514/2008, haja vista que extrapola o princípio da legalidade ao dispor além daquilo que a Lei de Crimes Ambientais a permite. Ademais, dessa mesma forma extrapola os limites constitucionais previstos no artigo 84, IV. No restante, o decreto apenas faz copiar os crimes ambientais previstos na lei como infrações ambientais em sua regulamentação[30].
Nesse contexto, é evidente a impossibilidade de permanência desse decreto no sistema jurídico brasileiro, visto que afronta, acima de tudo, o próprio Estado Democrático de Direito. Nas palavras de Pontes de Miranda é possível fazer um apanhado do que se vê nesse caso:
“(…) quando se diz que só a lei pode impor fazer-se, ou deixar de fazer alguma coisa, quer-se exprimir que não importa qual o conteúdo do ato. Se ao Estado importa que se faça, ou não se faça “alguma coisa” que o diga em lei. Naturalmente, há as regras jurídicas inferiores à lei que se editam administrativamente, pelo estado de necessidade, que se revela, mas ainda é questão de legalidade e de poderem ou não ser editadas. “Serão em virtude de lei”. O decreto somente pode veicular ao ato ou à omissão se cabe na competência do Presidente da República, ou do Governador, ou de Prefeito a regra jurídica que se decreta. Dá-se o mesmo a propósito dos regulamentos: com eles se regula, não se legisla”
Vale citar o ensinamento de Bandeira de Mello, para quem
“(…) violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer, a desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos; é a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade; […] isso porque, com ofendê-lo, abatem-se as vigas que o sustêm e alui-se a toda a estrutura nelas esforçada.”
Assim sendo, a violação esposada pelo Decreto que regulamenta as infrações administrativas ambientais expõe sua ilegalidade e inconstitucionalidade como uma contrariedade ao próprio Estado Democrático de Direito e à segurança jurídica que o baseia. Nestes termos, seria plausível sua retirada do ordenamento jurídico, evitando-se, assim, o afrouxamento da condição de Justiça à qual tanto se lutou ao longo do tempo.
Informações Sobre o Autor
Maria Ivone Godoy
Acadêmica de Direito do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA.