Resumo: O trabalho propõe algumas reflexões relacionadas ao direito de acesso à informação e a proteção de dados conferida pela Lei no 10.603/2002, em especial, aos agrotóxicos registrados no Brasil. Ponto central da crítica é a não divulgação dos resultados de testes ambientais conduzidos com esses produtos que, após mais de vinte e cinco anos do estabelecimento do marco regulatório, ainda se configura como barreira ao pleno conhecimento dessas informações, pelo público em geral, ocasionada, entre outros fatores, por um excesso de sigilo e pela não adoção de medidas eficazes de divulgação e de ferramentas que poderiam elevar o debate sobre o manejo adequado desses agentes, como a publicação de perfis ambientais e a disponibilização na internet de bancos de dados com esses resultados. Apresenta dois casos de pedidos de informação por meio da plataforma e-SIC como exercício de cidadania e aplicabilidade da Lei no 12.527/2011. Destaca a necessidade de revisão do enquadramento atribuído aos dados e informações ambientais dos agrotóxicos pela Portaria Normativa IBAMA no 29/2013. [1]
Palavras-chave: Agrotóxicos, Cidadania, Informação, Meio ambiente, Proteção de dados.
Abstract: The paper proposes some reflections concerning to the right of access to information and data protection conferred by Law no 10.603/2002, in particular, the registered pesticides in Brazil. Central point of criticism is the non-disclosure of the results of environmental tests conducted with these products, which – following more than 25 years which the regulatory framework was established – is still a barrier to the full knowledge of this information by the general public, caused by, among other factors, an excess of confidentiality control and the failure in adopting effective measures of dissemination and tools that could raise the debate on the adequate management of these agents, such as the publication of environmental profiles and the availability of databases on the internet with these results. Furthermore, it presents two cases of requests for information through e-SIC platform as an exercise of citizenship and applicability of Law no 12.527/2011. Also, it highlights the need to revise the legal framework regarding environmental data and information on pesticides by the IBAMA’s Ordinance Normative no 29/2013.
Keywords: Citizenship, Data protection, Environment, Information, Pesticides.
Sumário: Introdução. 1. O registro de agrotóxicos no Brasil. 2. O conflito entre o direito ao acesso à informação e a proteção de dados acerca dos resultados de testes ambientais de agrotóxicos registrados no Brasil. 3. O papel do SIC nesse contexto. 4. A Portaria IBAMA no 29, de 28 de novembro de 2013: um descaminho ao direito de acesso à informação. 5. Por que não conhecemos os resultados de testes ambientais de agrotóxicos no Brasil? 6. Conclusão.
Introdução
A grande questão levantada neste breve ensaio diz respeito ao inegável desconhecimento da população brasileira quanto aos resultados de testes ambientais dos produtos agrotóxicos registrados no Brasil. Compreender esse contexto certamente passa pelo debate das questões relacionadas ao conflito entre o direito de acesso à informação e a proteção de dados conferida a tais produtos. Conforme se explicará a seguir “o direito de acesso às informações pode também constituir uma importante diretriz para fins de delinear um mais adequado comportamento do Estado” (CANOTILHO et al., 2013, p. 349).
1. O registro de agrotóxicos no Brasil
O modelo brasileiro de registro de agrotóxicos segue uma lógica tripartite. Conforme estabelecido no marco regulatório, Lei no 7.802, de 11 de julho de 1989, e seu regulamento vigente, o Decreto no 4.074, de 04 de janeiro de 2002, o órgão federal de registro é o da agricultura, que somente aprova o uso desses produtos quando atendidas as diretrizes e exigências das autoridades de saúde e meio ambiente. Nesse contexto, cada ator irá realizar uma avaliação independente e pertinente a sua área de atuação. De tal modo, cumpre ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA, entre outras, a atribuição de realizar a avaliação e classificação ambiental dos produtos agrotóxicos, seus componentes e afins.
Compreender o destino e o comportamento dessas substâncias no ambiente é tarefa complexa, intrínseca aos fatores de difícil controle como a ação dos ventos, o carreamento por águas de chuvas, as condições de degradação e volatilização, presença de erosões no solo, entre outras. Ainda, conforme escreve Rafaela Rebelo, “ao mesmo tempo, vários organismos não alvos podem ser expostos a estas substâncias no meio ambiente” (REBELO, 2013, p.1). Conforme Solomon et al. (2010, p. 5-6), a contaminação ambiental oriunda por tais produtos é de grande preocupação mundial desde os anos de 1960, devendo o registro e a utilização serem rigorosamente regulados a fim de minimizar riscos ao meio ambiente.
O texto constitucional brasileiro também consagrou a importância do controle de substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente[2]. Portanto, impõe-se ao poder público e à coletividade o dever de zelar por um ambiente ecologicamente equilibrado. Para tal, cabe ao Estado a avaliação das informações disponíveis sobre os agrotóxicos, intervindo no seu uso de modo a minimizar seus impactos ambientais, e ao cidadão, o exercício do controle social, que somente pode ser posto no plano da eficácia mediante o domínio dos dados entregues às autoridades reguladoras.
2. O conflito entre o direito ao acesso à informação e a proteção de dados acerca dos resultados de testes ambientais de agrotóxicos registrados no Brasil
Em decorrência da Lei de Acesso à Informação – LAI, no 12.527, de 18 de novembro de 2011, que objetiva garantir o acesso à informação previsto no inciso XXXIII do art. 5º, no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição Federal, temos definido um ambiente jurídico mais favorável à efetivação do acesso, pelo público em geral, aos dados em posse estatal. Nas palavras de Canotilho et al. (2013, p. 349), ao contemplar o acesso à informação, a Constituição quer também garantir a livre comunicação dessa informação. E, em uma sociedade moderna e democrática, não poderia ser diferente, tendo em vista que o acesso à informação “trata-se de um dos meios tendentes a viabilizar o controle popular sobre a coisa pública, corolário da cidadania” (PAULO; ALEXANDRINO, 2017, p. 153).
Antes disso, o art. 2o da Lei 10.650, de 16 de abril de 2003, determinou aos órgãos e entidades da Administração Pública, integrantes do SISNAMA, a disponibilização de documentos, expedientes e processos administrativos que tratem de matéria ambiental e a fornecer todas as informações ambientais, especialmente as relativas a substâncias tóxicas e perigosas. Tal mecanismo é de suma importância para a garantia de manutenção do próprio sistema, que implica em fluxo constante de entradas e saídas que se retroalimentam. Assim, a informação é produto valoroso desse sistema. “Por que informação? Porque esta é a seiva que circula no tronco, nos galhos, nos ramos, nas folhas, nos tecidos todos e nos mínimos elementos que perfazem essa árvore frondosa, o SISNAMA” (MIRALÉ, 2009, p. 304).
Ainda a respeito da importância da publicidade de tais dados, o art. 7o da Portaria IBAMA no 84, de 15 de outubro de 1996, reconhece que a divulgação de informações relativas à avaliação e ao controle ambiental, de produtos agrotóxicos e afins, contribuem para o uso seguro desses produtos e, consequentemente, reduzem seus efeitos negativos para o meio ambiente. Esse mesmo artigo determina que as empresas titulares de registro devem encaminhar ao IBAMA as informações relativas à classificação do potencial de periculosidade ambiental a serem divulgadas, conforme modelo estabelecido pela própria norma. Como ora mencionado, a informação, em sentido amplo do termo, é fluxo principal do SISNAMA. Conforme ensina Milaré “nele estão compreendidas as comunicações, as deliberações, as orientações, as avaliações, os licenciamentos e outras formas congêneres de ações e produtos” (MIRALÉ, 2009, p. 309). Deste modo, percebemos que na esfera do Estado, a divulgação da informação sobre os agrotóxicos registrados no Brasil é um dever da Administração, que deve buscar meios para disponibilizar seu livre acesso ao público em geral.
Noutro giro, no cumprimento dessa importante missão, que é efetivar a publicação das informações recebidas acerca dos agrotóxicos em uso regular no Brasil, precisa ser observado o equilíbrio com outros dispositivos legais de nosso ordenamento jurídico que buscam garantir proteção à informações prestadas aos órgãos governamentais, em razão do esforço científico e econômico despendido, relativos à propriedade industrial, ao segredo de negócio[3] ou aquelas imprescindíveis à segurança da sociedade ou do Estado. Nesse sentido, podemos compreender que, no exercício do direito fundamental à informação, a publicidade é princípio geral sendo o sigilo a exceção. Justen Filho Marçal (2016, p. 65) ensina que a publicidade desempenha duas funções complementares. Por um lado, assegura a todos o poder de obter informações relativas às ações e omissões praticadas por agentes estatais e por outro eleva a possibilidade de que práticas reprováveis sejam reveladas.
A lei que regula o processo administrativo[4] elenca como critério a divulgação oficial dos atos administrativos, ressalvadas as hipóteses de sigilo previstas na Constituição. Para Celso Antônio Bandeira de Mello “na esfera administrativa o sigilo só se admite, a teor do art. 5o, XXXIII, precitado, quando imprescindível à segurança da sociedade e do Estado” (MELLO, 2013, p. 118). Não parece haver dúvidas então de que o conhecimento acerca das propriedades desses agentes, classificados como agrotóxicos, é de interesse de todos, devendo ser imediatamente disponibilizados a quem possa interessar. Sendo assim, "o procedimento de registro de agrotóxicos tem caráter público. Resguarda-se o segredo industrial, mas o direito à informação tem amparo constitucional" (MACHADO, 2008, p. 606).
Entretanto, existem partes no processo de registro dos agrotóxicos que, a priori, não são de interesse coletivo e que poderiam ocasionar uma concorrência desleal entre empresas, caso fosse disponibilizado tais informações. Para tratar o assunto, e regular essa ponderação entre direitos, foi editada a Lei nº 10.603, de 17 de dezembro de 2002, que regula a proteção, contra o uso comercial desleal, de informações relativas aos resultados de testes ou outros dados não divulgados apresentados às autoridades competentes como condição para aprovar ou manter o registro para a comercialização de produtos farmacêuticos de uso veterinário, fertilizantes, agrotóxicos seus componentes e afins. A proteção conferida por essa lei envolve dois aspectos importantes: a não utilização, pelas autoridades competentes, dos resultados de testes ou outros dados em favor de terceiros; e a não divulgação de tais informações, exceto quando necessário para proteger o público.
Os prazos de proteção são variáveis[5], de no mínimo um a dez anos, contados a partir da concessão do registro ou até a primeira liberação das informações em qualquer país, o que ocorrer primeiro. Novas entidades, químicas ou biológicas, podem ter sua proteção estendida ao máximo, por até dez anos. Para produtos que não utilizem novas entidades o prazo é menor, sendo de até cinco anos. Já para quaisquer outros dados fornecidos após a concessão do registro dos produtos compreendidos no escopo da lei, enquadram-se no prazo remanescente concedido aos dados do registro correspondente, respeitando-se o mínimo de um ano de proteção, como dito antes.
A esta altura o leitor pode estranhar o aparecimento da expressão “entidade química ou biológica”, sendo necessário esclarecer a definição de agrotóxicos adotada no Brasil. Conforme lei[6], compreendem os produtos agrotóxicos os agentes de processos físicos, químicos ou biológicos, destinados ao uso nos setores de produção, no armazenamento e beneficiamento de produtos agrícolas, nas pastagens, na proteção de florestas, nativas ou implantadas, e de outros ecossistemas e também de ambientes urbanos, hídricos e industriais, cuja finalidade seja alterar a composição da flora ou da fauna, a fim de preservá-las da ação danosa de seres vivos considerados nocivos. Portanto, não apenas os agentes químicos são considerados agrotóxicos.
Até aqui, buscou-se apresentar o conflito que, de um lado, tem o legítimo direito coletivo ao conhecimento das características dos agrotóxicos e, de outro, o dever de resguardar os interesses econômicos, pelo manto temporário do sigilo, em prol daqueles que empenharam seus recursos no registro de tais produtos. Cumpre destacar que, no entendimento de Machado (2008, p. 607), a divulgação de informações dos resultados de testes ou outros dados de avaliação de agrotóxicos, compreendidos como cenários de exposição, ponderações a respeito dos riscos ambientais envolvidos no uso de tais produtos, entre outros, não visa favorecer concorrentes de um determinado agrotóxico, mas tem por finalidade proteger o público, sendo a omissão, em casos revelados de risco ou perigo, passível a responsabilização da autoridade perante os danos causados à população e ao meio ambiente.
3. O papel do SIC nesse contexto
O Sistema Eletrônico do Serviço de Informações ao Cidadão (e-SIC) possibilita que qualquer pessoa, física ou jurídica, encaminhe pedidos de acesso à informação, acompanhe o prazo e receba a resposta da solicitação realizada para as autoridades governamentais do Poder Executivo Federal[7]. O uso dessa ferramenta é preponderante em relação ao exercício do controle social em comento. De qualquer lugar com acesso a internet, rompendo as barreiras geográficas, é possível o envio de solicitações às diversas autoridades federais, incluindo o próprio IBAMA, o que certamente favorece a possibilidade de acesso à informação e a participação popular no controle estatal. De fato, o acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania[8]. Para Cardon (2012, p. 1), a internet estimula experiências que ultrapassa o limiar entre representantes e representados, favorecendo o desenvolvimento de competências críticas.
Uma breve consulta à plataforma e-SIC[9] trouxe a tela duas solicitações interessantes ao tema tratado, o pedido no 08417, de 22/07/2016, e o pedido no 14261, de 16/11/2015. A seguir serão comentados, brevemente, esses dois casos concretos que foram direcionados ao IBAMA e seus respectivos tratamentos dados pela autarquia. Todos os documentos aqui expostos são públicos, de livre acesso a quem se interessar, e se encontravam disponíveis no sítio informado, quando da consulta realizada.
O pedido no 08417/2016 refere-se à solicitação de todos os pareceres técnicos do IBAMA relativos à liberação de agrotóxicos e defensivos agrícolas emitidos desde o ano de 2005. Na resposta enviada ao solicitante[10] foi adotada tese de que os pareceres técnicos de avaliação ecotoxicológica de agrotóxicos, gerados pelo IBAMA, podem conter informações de natureza sigilosa, como citações de métodos ou fórmulas empregadas na fabricação dos produtos, composição, descrição do processo de produção, entre outras. Em função disso, para obtenção dos pareceres solicitados, o requerente deveria obter autorização formal, de cada empresa titular de registro dos produtos objeto de seu interesse, para acesso às informações desejadas. Tal procedimento foi justificado pela possibilidade de violação aos institutos de segredo de negócio ou comércio, propriedade industrial e de proteção de informação não divulgada submetida para aprovação da comercialização de produtos, assegurados pela Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996 e Lei nº 10.603, de 17 de dezembro de 2002.
Já o pedido no 14261/2015 tratava a solicitação dos resultados numéricos, método empregado, nome do laboratório, data de conclusão, se de acordo com Boas Práticas Laboratoriais – BLP ou não, dos estudos ecotoxicológicos dos produtos agrotóxicos: Decorum; Dez; Dinaxine; DMA 806 BR; Dociar; Navajo; Pooper; 2,4-D Amina CCAB 806 SL; 2,4-D Amina 806 SL Genbra; 2,4-D 806 RN e 2,4-D 806 SL Alamos. Em resposta[11] ao cidadão, o IBAMA forneceu os nomes dos laboratórios que conduziram os ensaios e os resultados numéricos para cada produto e organismo não alvo testado, ou seja, não houve a caracterização de que tais informações constituam segredo de negócio ou que estejam revestidas por qualquer outro manto de sigilo.
Verifica-se na análise dos casos, que o conflito entre o exercício do direito fundamental do cidadão, em conhecer as propriedades de produtos agrotóxicos, frente à proteção de dados entregues pelos agentes econômicos, que investem em estudos e testes para aprovar ou manter os registros de seus produtos, foi tratado, pelo IBAMA, considerando duas abordagens distintas. A primeira é de que existem nos pareceres referentes às avaliações ambientais de agrotóxicos informações sigilosas, protegidas por legislação especial. Já a segunda abordagem expressa pela autarquia foi de que as informações referentes aos testes ambientais são de interesse público e podem ser disponibilizadas, como de fato ocorreu no atendimento ao pedido no 14261/2015.
É preciso notar que, embora seja positiva a ação de requerer informações ao Estado, é imperioso que tal solicitação detenha um mínimo de razoabilidade, proporcionalidade e que observe ao interesse em questão. José Afonso da Silva (2014, p. 130-131) comenta que se é certo que o poder público há de ser transparente, certo também é a não obrigação estatal a despender tempo e recursos com pedidos genéricos e que demandem, da administração, esforço desproporcional. Nesse contexto, embora não conste na justificativa trazida pelo IBAMA, na resposta ao pedido no 08417/2016, a negativa à solicitação poderia ter decorrido em função do estabelecido no regulamento da LAI, o Decreto no 7.724, de 16 de maio de 2012, que determina[12] o não atendimento de pedidos genéricos, desproporcionais ou que exijam trabalhos adicionais de análise, interpretação ou consolidação de dados e informações, já que se pleiteava um grande número de dados correspondente a uma década de trabalho da autarquia frente ao assunto.
4. A Portaria IBAMA no 29, de 28 de novembro de 2013: um descaminho ao direito de acesso à informação
Na contramão das garantias ao acesso de dados relativos aos agrotóxicos, o IBAMA publicou a Portaria Normativa no 29, de 28 de novembro de 2013[13] que classifica, quanto ao grau de sigilo, diversas informações do IBAMA no âmbito da LAI. Atenção única é dada aqui ao caso dos agrotóxicos, objeto de interesse deste trabalho. No respectivo ato, informações como requerimentos, declarações ou mesmo os estudos, fundamentais para a produção de conhecimento acerca dos riscos associadas ao uso de agrotóxicos, são categorizadas como secretas, com fundamentos na LAI e seu regulamento, o que confere a estes dados um sigilo de quinze anos. Destaca-se aqui o posicionamento de Uadi Lammêgo Bulos (2017, p. 209), ao afirmar que a legislação infraconstitucional não deve limitar a amplitude do direito ao acesso à informação, pois durante muito tempo, no Brasil, foi comum autoridades negarem informações baseando-se em argumentos esdrúxulos e numa legislação afrontadora das liberdades públicas.
Certamente a Portaria no 29/2013, em relação aos agrotóxicos, excedeu em muito os prazos de proteção já estabelecidos na Lei no 10.603/2002. Ressalta-se que os resultados de estudos para organismos não alvo, ou seja, aqueles organismos que possam eventualmente sofrer os efeitos adversos[14] dos produtos avaliados, são de interesse geral e não podem, de forma alguma, constituir segredo de negócio ou comércio, bem como não devem ser vistos, tampouco, como secretos. É obrigação da repartição pública o fornecimento de dados a quem possa interessar, onde “não se justifica o sigilo de seus atos processuais, a não ser que o próprio interesse público o determine, como, por exemplo, se estiver em jogo a segurança pública” (DI PIETRO, 2011, p. 72). Muito pertinente ao tema aqui exposto é a colocação de Celso Antônio Bandeira de Mello, ao comentar o princípio da publicidade, quando afirma que “não pode haver um Estado Democrático de Direito, no qual o poder reside no povo (art. 1o, parágrafo único, da Constituição), ocultamento aos administrados dos assuntos que a todos interessam” (MELLO, 2013, p. 117)
Nesse sentido, deve-se destacar que os documentos que compõem um dossiê de registro de agrotóxicos não são imprescindíveis à segurança do Estado[15], ou seja, não são atingidos, quanto a classificação, pelas regras da LAI e deveriam, após esgotada a proteção tratada na Lei no 9.603/2002, serem categorizados como públicos e disponibilizados, de ofício, para toda a sociedade. Para José Afonso da Silva (2014, p. 132) a segurança do Estado se relaciona com a garantia de sua inviolabilidade, especialmente em face de Estados estrangeiros, como questões militares, de relações exteriores que envolvam interesses externos ou casos em que se revele risco a ordem pública. Nas palavras de Canotilho et al. (2013, p. 350) a desinformação e a ocultação indevida de informações, sob o escudo amplo e indefinido de uma segurança da sociedade e do Estado, pode ser meio do agente público furtar-se da responsabilidade decorrente de seus atos e, além disso, estimula o desinteresse do administrador público pela decisão proba e eficaz, decorrente de uma não fiscalização ampla das ações das autoridades.
Cumpre destacar que nossa suprema corte[16] ressaltou que “o direito de acesso às informações de interesse coletivo ou geral – a quem fazem jus cidadãos e, também, os meios de comunicação social – qualifica-se como instrumento viabilizador do exercício de fiscalização social a que estão sujeitos os atos do poder público”. Parece cristalino então, o fato de que os dados relativos aos resultados de testes ambientais conduzidos com agrotóxicos são informações de interesse geral, necessários à boa gestão do uso destes praguicidas, ao efetivo controle social e a comunicação dos riscos e perigos à proteção das pessoas e aos compartimentos ambientais como águas superficiais e subterrâneas, sedimentos, o solo, o ar ou mesmo a contaminação direta de diversos organismos não alvo por tais agentes.
5. Por que não conhecemos os resultados de testes ambientais de agrotóxicos no Brasil?
Muito embora o Ibama, quando provocado, forneça os resultados de testes ambientais de agrotóxicos registrados no país é de se destacar que passados mais de vinte e cinco anos da edição do marco regulatório ainda não temos, no Brasil, um banco de dados público com os resultados desses estudos. As consequências dessa ausência de informações são graves porque limitam a participação popular quanto ao acesso de dados essenciais à compreensão dos riscos associados aos agrotóxicos em uso no país. Solomon et al. (2010, p. 276), comentam que a avaliação de risco possui uma função crucial para desempenhar um planejamento estratégico e definir rumos, além de ajudar a sociedade a determinar prioridades ambientais e fornecer dados ao próprio manejo do risco.
Adiciona-se a isso o fato do Brasil se destacar, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (2012; 2015), como maior consumidor de agrotóxicos da América Latina, figurando também entre os maiores utilizadores mundiais desses produtos, com um consumo anual estimado[17] de aproximados 7 kg.ha-1 de ingrediente ativo por área plantada no ano de 2012. Nos anos 2000 esse número superava em pouco a marca de 3 kg.ha-1 de ingrediente ativo por área plantada, o que evidencia um uso cada vez mais intensivo desses produtos no controle de pragas agrícolas.
É necessário esclarecer que a crítica aqui adotada não diz respeito à informações que possam constituir segredo de negócio ou comércio, ou seja, aquelas dotadas de valor econômico e que podem conferir vantagem competitiva ao titular sobre seus concorrentes, que foram apresentadas às autoridades para fins de registro ou sua manutenção, no intuito de caracterizar seus produtos e possibilitar uma melhor compreensão de seus processos. Pondera-se, no entanto, sobre a esquiva do dever legal em divulgar os resultados dos testes entregues pelos titulares de registros de agrotóxicos. Conforme aponta Barbosa et al. (2015, p. 2), atualmente existem cerca de 380 ingredientes ativos autorizados pelo Ministério da Agricultura para os 1670 produtos formulados[18] utilizados nas culturas brasileiras.
Conforme Portaria Normativa IBAMA no 84, de 15 de outubro de 1996[19], as informações a serem divulgadas relativas à classificação do potencial de periculosidade ambiental ou ao registro devem ser apresentadas, pelas empresas titulares de registro dos agrotóxicos, em até trinta dias após emissão do registro de seus produtos. Ocorre que também sobre essas informações não se encontra à disposição da sociedade, em bancos públicos ou outros meios de divulgação a coletividade, os dados de testes que subsidiaram a avaliação ambiental, incluindo nesse rol, aqueles executados em solos nacionais que, em tese, apontam para o comportamento desses produtos em condições típicas do Brasil.
Albuquerque et al. (2016, p. 1) apontam para o caso da ausência de dados sistematizados de monitoramento em água doce disponíveis nas agências governamentais e da escassez dessas informações na própria literatura, muito embora tenham sido os inseticidas a classe de produtos que apresentou maior risco potencial para a vida aquática. “Sem a implementação de um programa nacional de monitoramento de pesticidas em água doce e a definição adequada de padrões de qualidade de água, não é possível avaliar os riscos que os pesticidas representam para a vida aquática no Brasil” (ALBUQUERQUE et al., 2016, p. 1). É claro que a cobrança em torno de um monitoramento eficaz diz respeito a uma etapa posterior ao registro, porém, assim como ocorre com os dados de entrada, lacunas também são observadas quanto a divulgação de dados de controle do uso desses produtos.
Embora não seja o objeto deste ensaio esgotar todas as razões que levam ao quadro de não divulgação sistematizada dos resultados de testes ambientais conduzidos com agrotóxicos, mas contribuir para o necessário debate do tema, é preciso citar que não são incomuns as notícias de falta de pessoal e de recursos, dos mais diversos, para explicar as fragilidades associadas a gestão praticada pelas autoridades de meio ambiente no Brasil. Certamente, a área ambiental é relativamente recente no país e, infelizmente, não ocupa o plano de relevo destacado que mereceria no plano estatal, incluindo o orçamentário. Talvez essa lacuna de publicidade que se aponta também se relaciona com esse contexto e por tal, as reflexões aqui realizadas remetem-se às medidas mais realistas e factíveis que poderiam viabilizar a concretização do direito de acesso às informações frente ao instituto da proteção de dados, na justa medida que a legislação impõe.
Estamos então diante de um cenário onde a insuficiência quanto à divulgação dos resultados de estudos conduzidos com produtos agrotóxicos em uso regular no Brasil acarreta um desconhecimento, por parte da sociedade em geral, de características importantes desses agentes e seus possíveis impactos negativos sobre o meio ambiente. Não se nega aqui a conjuntura de que, certamente, muitas das substâncias utilizadas em nosso país possuem dados disponíveis em literatura aberta, no âmbito internacional, entretanto atenta-se ao fato de que alguns desses testes são conduzidos em solo nacional e que, nos termos da legislação em vigor, muitas das informações constantes nos dossiês desses produtos são públicas e deveriam ser sistematicamente publicadas pelas autoridades governamentais. Soma-se a isso a limitação imposta pela Portaria Normativa no 29/2013, quanto ao acesso à essas informações, para construção de um quadro onde é imposto a sociedade brasileira o desconhecimento dos resultados de testes ambientais de agrotóxicos no Brasil e de outras informações relevantes a compreensão de seus perigos e riscos associados.
6. Conclusão
É certo de que não se pretendeu demonstrar, neste breve escrito, qualquer má fé pelo poder público, em especial às autoridades ambientais, incluindo o IBAMA, quanto à divulgação dos resultados de testes ambientais de agrotóxicos recebidos por ocasião do registro ou manutenção deste. Objetivou-se acrescentar ao debate sobre a lacuna dessas informações que, por dever legal, devem estar disponíveis ao público em geral. Em que pese o conflito existente entre o direito de acesso à informação e a proteção de dados dos produtos agrotóxicos, verifica-se que essa inércia perante a divulgação de dados não protegidos compromete o pleno exercício da cidadania e o desenvolvimento de pesquisas acadêmicas que certamente poderiam contribuir positivamente ao manejo mais adequado do uso desses agentes.
Na contramão do Estado Gerencial[20], a edição da Portaria Normativa no 29/2013 limita a transparência, fator de inegável destaque na consolidação do exercício de cidadania, já que restringe o conhecimento de informações extremamente relevantes a uma maior participação de atores importantes ao cenário da gestão eficiente do uso de agrotóxicos como integrantes da academia, movimentos organizados, entidades de defesa do meio ambiente ou qualquer pessoa que, por desconhecimento desses dados, deixam de exercer com maior alcance um importante papel em uma sociedade democrática. Uadi Lammêgo Bulos (2017, p. 208) afirma que o sujeito ativo desse direito compreende tanto o nacional quanto o estrangeiro, pois a Constituição fala em “todos”, sem cercear a titularidade do comando, sendo o mais abrangente possível. Por tal, é preciso suprir esse distanciamento entre o direito constituído, de acesso à informação, e o direito realmente exercido pela população. Para isso é preciso que o Estado brasileiro adote medidas eficazes de ampla divulgação desses resultados de testes, buscando ferramentas que possibilitem o maior alcance possível.
Uma alternativa interessante para a resolução desse quadro é promoção da publicação, por parte do IBAMA, de monografias ou perfis ambientais contendo os resultados dos testes ecotoxicológicos dos agrotóxicos registrados no país, que não devem, em tempo algum, serem classificados como segredo de negócio ou comércio, e dados apresentados pelas empresas necessários à comunicação do perigo ou risco desses agentes ao público, a segurança de organismos não alvo e a qualidade ambiental. No mesmo sentido, a autarquia deveria revisar o ato que categorizou como secretas informações que, não se relacionam com a Segurança Nacional e, sem nenhuma dúvida, são de relevante interesse a sociedade. Além do que, tal portaria conferiu sigilo maior que aquele definido pelo legislador, que já havia ponderado sobre o equilíbrio entre o direito de acesso à informação e o interesse econômico da proteção de dados quando da edição da Lei no 10.603/2002. Logo, não há dúvidas de que houve uma falha no processo de enquadramento dos assuntos tratados, culminando em conflito com um princípio que certamente rege o direito à informação que é o da divulgação máxima. "Este princípio envolve a presunção de que toda informação sob o controle de órgãos públicos deve estar sujeita à divulgação e essa presunção somente poderá ser afastada quando houver risco prevalente de lesão a um interesse público ou privado legítimo" (MENDEL, 2009, p. 31).
Igualmente importante, seria o uso da internet como meio de divulgação dessas informações, não apenas quando solicitadas pelo e-SIC, mas de forma sistematizada, em bancos de dados que permitissem o manejo desses dados, possibilitando um maior reflexo na discussão do tema que, em função da condição do país enquanto consumidor desses produtos, a cada dia aumenta sua relevância. Indo além da redução de distâncias geográficas, o uso da grande rede pode configurar um espaço de interação, que pode servir não apenas para informar, mas para propiciar um tratamento singularizado das informações acerca dos resultados de testes de produtos agrotóxicos. Refletindo acerca da importância dessa ferramenta pelo poder estatal, Silveira (2001, p. 83) destacou a importância do desenvolvimento de sistemas para integrar e ampliar ações de governo em benefício da cidadania, em um contexto de novo “paradigma da sociedade da informação”, onde os conteúdos disponibilizados pelas autoridades devem, progressivamente, facilitar o exercício da cidadania. Ao escrever acerca da liberdade de informação, Canotilho et al. (2013, p. 349) nos ensina que ela deve ocorrer em sentido amplo, onde o Estado tem o dever de preservar um nível mínimo, não apenas medíocre, de acesso da população às informações, como condição de pleno exercício da liberdade de opinião, de forma a garantir sua livre comunicação, especialmente quando o Estado é o único detentor de certos dados.
Informações Sobre o Autor
Alan Alves Ferro
Acadêmico de Direito na Universidade de Brasília – UnB. Possui Graduação em Química pela UnB 2003 e foi aluno do curso de Bacharelado em Ciências Ambientais da mesma instituição UnB 2011. Possui Especialização Lato Sensu em Docência do Ensino Superior pela Faculdade Albert Einsten – FALBE 2008. Analista Ambiental do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA e Professor da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal – SEDF. http://lattes.cnpq.br/9407754855082651