Resumo: O artigo analisa, a partir de decisões das 1ª e 2ª Turmas do STJ e da doutrina especializada, se a multa administrativa decorrente de dano ambiental pode ser aplicada também ao poluidor indireto, tal como conceituado pelo art. 3º, IV, da Lei 6.938/81, com fundamento na responsabilidade objetiva prevista na legislação para reparação civil da lesão ao meio ambiente. Analisa também a natureza jurídica da multa ambiental e se, a despeito da redação do art. 72, §3º, da Lei 9.605/98, que exigiu a presença de dolo ou culpa como condicionante para sua imposição, a comprovação do elemento subjetivo é, de fato, obrigatória para toda e qualquer multa ambiental. Além disso, analisa ainda a recente decisão do IBAMA que, no dia 20 de outubro de 2016, autuou o Banco Santander Brasil S/A, impondo-lhe a multa de R$ 47.550.000,00, por ter financiado 95 mil sacas de milho na safra de 2015 em área de 572 hectares nas cidades de Porto dos Gaúchos, Feliz Natal e Gaúcha do Norte, próximas a Sinop (MT), um dos principais polos de produção de grãos do País.
Palavras-chave: Multa ambiental, responsabilidade objetiva, responsabilidade subjetiva (dolo e culpa).
Introdução
Recentemente, no julgamento do AgRg no Agravo em Recurso Especial nº 62.584 – RJ, decidiu a Egrégia 1ª Turma do Colendo Superior Tribunal de Justiça, por maioria de votos, que a multa administrativa decorrente de dano acusado ao meio ambiente somente pode ser imposta contra quem foi o causador direto do dano, não alcançando, de forma objetiva, isto é, independentemente da prova de dolo ou culpa, o poluidor indireto.
Ficou assim ementada a decisão:
“Administrativo e processual civil. Agravo regimental no agravo em recurso especial. Violação ao art. 535 do CPC. Inocorrência. Dano ambiental. Acidente no transporte de óleo diesel. Imposição de multa ao proprietário da carga. Impossibilidade. Terceiro. Responsabilidade subjetiva.
I – A Corte de origem apreciou todas as questões relevantes ao deslinde da controvérsia de modo integral e adequado, apenas não adotando a tese vertida pela parte ora Agravante. Inexistência de omissão.
II – A responsabilidade civil ambiental é objetiva; porém, tratando-se de responsabilidade administrativa ambiental, o terceiro, proprietário da carga, por não ser o efetivo causador do dano ambiental, responde subjetivamente pela degradação ambiental causada pelo transportador.
III – Agravo regimental provido.”
No caso em questão a Ipiranga Produtos de Petróleo S/A contratou a Ferrovia Centro Atlântica S/A para o transporte de combustível, mas na circunscrição do Município de Guapimirim/RJ, ocorreu um derramamento de óleo diesel em área de proteção ambiental e, em decorrência do dano causado ao meio ambiente, o Município lavrou um auto de infração contra a Ipiranga, pelo fato de ser a proprietária da carga, exigindo-lhe o pagamento de uma multa no valor de R$ 5.000.000,00 (cinco milhões de reais).
Ajuizada a execução fiscal pelo ente público municipal, no julgamento dos embargos interpostos pela autuada, a multa foi cancelada e o Município de Guapimirim recorreu ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que reformou a decisão de primeira instância e restabeleceu a multa. Na ocasião, ficou assentado pelo Tribunal de origem que a responsabilidade pelo pagamento da multa seria objetiva em vista do disposto nos arts. 3º, IV e 14, §1º, da Lei 6.938/81, que cuidam, respectivamente, do conceito de poluidor (direto e indireto) e da responsabilidade objetiva.
Foi interposto, então, o Recurso Especial e este não foi inicialmente conhecido, razão por que a Ipiranga interpôs Agravo de Instrumento, ao qual também negou-se provimento, o que foi feito sob o argumento de que a decisão recorrida estava em sintonia com a jurisprudência da Corte, incidindo no caso o óbice da Súmula 83/STJ, segundo a qual “não se conhece do recurso especial pela divergência, quando a orientação do Tribunal se firmou no mesmo sentido da decisão recorrida”. Os julgamentos levados em conta como paradigmáticos para o desprovimento do agravo foram os REsp 467.212/RJ e REsp nº 1.318.051/RJ, ambos da 1ª Turma.
Mais uma vez inconformada, a Ipiranga S/A interpôs Agravo Regimental no Agravo de Instrumento e, por maioria de votos, o Recurso Especial acabou conhecido e provido, afastando-se a possibilidade de execução da multa, tal como a decisão de primeiro grau já havia determinado (vide a ementa acima colacionada).
Pois bem, uma vez contextualizada a questão, o que sobreleva notar é que não há entendimento uniforme no Superior Tribunal de Justiça sobre a possibilidade de imposição de multa ambiental ao poluidor indireto com base na tese da responsabilidade objetiva. A 1ª e a 2ª Turma divergem a respeito e também há divergência entre os Ministros da própria 1ª Turma, havendo a necessidade de que a questão seja dirimida pela 1ª Seção do Egrégio Tribunal a fim de que se tenha um tratamento uniforme da matéria e, por conseguinte, uma pacificação em torno desse tema.
Com efeito, enquanto a 1ª Turma, por meio dos REsp 467.212/RJ e REsp nº 1.318.051/RJ, consolidou o entendimento de que é possível a responsabilidade objetiva nesses casos, a 2ª Turma, por meio do REsp 1.251.697/PR, e agora parte da própria 1ª Turma, por meio do AgRg no Agravo em Recurso Especial nº 62.584/RJ, entendem que a responsabilidade é subjetiva.
Afinal, qual das posições é juridicamente mais acertada?
O que presente estudo tem por escopo é justamente analisar, do ponto de vista da legislação de regência e da doutrina, se é, ou não, possível a lavratura de auto de infração e imposição de multa contra uma sociedade empresária pelo simples fato de ser a proprietária do material derramado pela transportadora por ela contratada independentemente da comprovação de ter agido com dolo ou culpa.
E para que se chegue a uma conclusão, imperioso que se analise a questão da responsabilidade pelo dano ambiental, o conceito de poluidor (direto e indireto), bem como a natureza jurídica das responsabilidades civil e administrativa, sem o que não é possível chegar-se a um resultado satisfatório.
1. Tríplice responsabilidade pelo dano ambiental
O art. 225, §3º, da CF estabelece que “as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados,” consagrando-se, destarte, a possibilidade de responsabilização do infrator, simultânea ou sucessivamente, perante essas três esferas, que são, como regra, independentes entre si. [1]
Do infrator, portanto, é possível exigir a reparação do dano ambiental causado, sem prejuízo da ação penal cabível e da imposição da multa administrativa. Tomemos, por hipótese, a poluição. Se for causada em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora, configura a infração penal prevista no art. 54 da Lei 9.605/98. Além disso, configura também infração administrativa passível de autuação pela autoridade competente e ambas as infrações não impedem que o autor do dano seja obrigado a recompor o meio ambiente por meio de ação na esfera cível.
A análise do caso em questão pressupõe que três institutos sejam bem definidos: a gestão compartilhada e a corresponsabilidade entre os atores estatais e privados, o poluidor, a responsabilidade civil, bem como a responsabilidade administrativa e as suas respectivas naturezas jurídicas. E o faremos seguindo essa ordem.
2. Corresponsabilidade entre os atores estatais e particulares
Dispõe, com efeito, o art. 225, caput, da CF que a proteção do meio ambiente incumbe a todos, entes públicos e sociedade. Desse imperativo constitucional decorre, portanto, um sistema de gestão compartilhada entre os entes estatais e a sociedade e a responsabilidade de todos os atores, estatais e privados, para com a prevenção, reparação e repressão de danos ambientais. É o que se denomina de corresponsabilidade, segundo a qual todos os elos de uma determinada cadeia produtiva, por exemplo, são igualmente responsáveis pela preservação do meio ambiente e pela sua reparação em caso de dano. Assim, em regra, tanto é possível a responsabilização do produtor de gado em área de preservação permanente, como do frigorífico que o adquire e da instituição financeira que faz a concessão do crédito. Há necessidade, como veremos, de apuração do nexo de causalidade no caso concreto.
Segundo a professora Consuelo Yatsuda Moromizato Yoshida, “sob o influxo da lógica da sustentabilidade e da cultura do cumprimento das normas jurídicas, passa a ser mais apropriada a responsabilidade compartilhada dos diferentes elos da cadeia (atores estatais, econômicos e sociais), o que pressupõe a mobilização e a integração de todos para desempenharem, cada qual, o papel, as funções, os deveres e as atribuições que lhes competem sem se substituírem mutuamente e sem fazer as vezes um do outro.” [2]
3. O poluidor
O art. 3º, IV, da Lei 6.938/81 – Política Nacional do Meio Ambiente conceitua o poluidor como a “pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental”.
De acordo com o conceito legal, poluidor não é somente o causador direto da degradação ambiental, mas todo aquele que concorre para eclosão do resultado danoso da maneira que for, ainda que de forma omissiva como já se reconheceu em relação ao Estado que se omite na fiscalização ambiental (REsp 1.071.741/2009). [3]
Todas as pessoas, naturais ou jurídicas, que de alguma maneira concorrem para o dano ao meio ambiente são consideradas como poluidoras para fins de obrigação de repará-lo. Segundo o Ministro Herman Benjamin, o conceito de poluidor, previsto no art. 14, §1º, da PNMA, deve ser o mais elástico possível, abarcando o poluidor direto (fazendeiro, industrial, madeireiro, minerador, especulador) e aqueles que contribuem indiretamente para o dano ambiental (banco, órgão público financiador, engenheiro, arquiteto, incorporador, corretor, transportador, dentre outros). [4]
Isso não quer dizer, contudo, que não exista a possibilidade de exclusão do nexo causal no caso concreto, conforme defende parte da doutrina[5], mas esse não é o objetivo deste trabalho e o aprofundamento desse ponto específico tiraria o foco da questão principal, que se concentra em saber se é possível a aplicação de multa, com fulcro na responsabilização objetiva, àquele que não foi o causador direto do dano.
Frise-se também que a figura do poluidor indireto prevista na PNMA tem recebido críticas da doutrina em razão de constituir em um conceito jurídico indeterminado, de bastante fluidez, capaz de gerar insegurança jurídica no campo da responsabilização civil em matéria ambiental.
Paulo Antunes Bessa, em artigo intitulado “O conceito de poluidor indireto e a distribuição de combustíveis”, deixou consignado que a indeterminação do conceito tem servido de base para sua utilização de forma aleatória e lotérica, gerando insegurança jurídica.[6]
O Superior Tribunal de Justiça, no entanto, tem reconhecido a figura do poluidor indireto para imputar-lhe a responsabilidade pela reparação do dano ambiental.
Maria Alexandra de Souza Aragão, jurista portuguesa, também consente com a figura do poluidor indireto, conforme se infere do texto a seguir redigido.
“O poluidor-que-deve-pagar é aquele que tem o poder de controle (inclusive poder tecnológico e econômico) sobre as condições que levam à ocorrência da poluição, podendo, portanto, preveni-las ou tomar precauções para evitar que ocorram.”[7]
Portanto, sem olvidar do entendimento do professor carioca Paulo de Bessa Antunes, a sociedade empresária proprietária da carga, no caso a Ipiranga S/A, de acordo com o conceito elástico proposto por parte da doutrina e da jurisprudência do STJ, também pode ser considerada poluidora caso a transportadora por ela contratada venha a causar dano ambiental, daí decorrendo o seu dever de reparar o meio ambiente. E mais, de forma objetiva, isto é, independentemente da comprovação de dolo ou culpa, conforme será visto abaixo, bastando a comprovação do dano, da sua atividade de risco e do nexo de causalidade entre eles.
4. A responsabilidade civil ambiental
Observa-se, de início, que o art. 225, §3º, da CF não menciona expressamente que a reparação do dano ambiental independe da comprovação de dolo ou culpa, isto é, que se trata de responsabilidade objetiva, a exemplo do que fez o art. 21, XXIII, c, da CF, quando cuidou da responsabilidade civil por danos nucleares.
Ocorre que o art. 14, §1º, da PNMA já estabelecia, desde 1981, que “sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade,” e não há nenhuma dúvida na literatura de que ele tenha sido recepcionado pela Constituição Federal de 1988.
Segundo Celso Antônio Pacheco Fiorillo, a responsabilidade objetiva está implícita no dispositivo constitucional em apreço. [8]
O que divide a doutrina nacional é se a responsabilidade objetiva funda-se na teoria do risco integral, que, segundo Édis Milaré[9], não admite nenhuma hipótese de exclusão do nexo causal, nem mesmo o caso fortuito, a força maior ou o fato de terceiro, ou se seria possível o rompimento do nexo de causa e efeito entre a atividade e o resultado danoso nessas hipóteses de fato imprevisível.
Paulo Affonso Leme Machado admite a possibilidade de exclusão do nexo causal. Para ele
“Trata-se de responsabilidade objetiva, conforme o artigo 14, §1º, da Lei 6.938, de 31.8.81. Quem alegar caso fortuito ou a força maior deve produzir a prova de que é impossível evitar ou impedir os efeitos do fato necessário – terremoto, raio, temporal, enchente”. [10]
Segundo a teoria da atividade, que leva em conta o tipo de atividade desenvolvida pelo causador do dano, se potencialmente nociva ao meio ambiente ou não, a responsabilidade continua sendo objetiva, mas admite-se o afastamento do nexo causal.
Para que se possa aferir se os fatos imprevisíveis rompem ou não com o nexo de causa e efeito entre a atividade e o evento danoso o critério a ser considerado é o da atividade de risco, ou seja, se a atividade desenvolvida é, ou não, potencialmente arriscada ao meio ambiente. Se a atividade for de risco, subsistirá a obrigação de reparar o dano ainda que tenha sido consequência de um fato natural, por exemplo. Mas, caso a atividade desenvolvida não seja de risco, esta obrigação restará afastada por quebra o nexo de causalidade.
Assenta-se na ideia de que aquele que desenvolve uma atividade de risco fica responsável pelo dano dela decorrente, ainda que atribuível a fato de terceiro ou à força da natureza.
Dessa forma, a responsabilidade é objetiva, mas existe a possibilidade de que seja afastado o nexo causal caso o evento decorra de força maior e a atividade desenvolvida pelo autor do fato não seja uma atividade de risco.
É o entendimento de Hugo Nigro Mazzilli, para quem se um raio cair numa floresta não haverá como responsabilizar o proprietário, pois decorrente de fato imprevisível da natureza e o proprietário, pelo simples fato de sê-lo, não pode ser responsabilizado neste caso. No entanto, se o mesmo raio cair sobre uma usina nuclear, ainda que tenha tomado todas as precauções para evitar acidente, mesmo assim subsistirá a responsabilidade pela reparação do dano. [11]
Nesse mesmo sentido é o pensamento de Nelson Nery Junior [12] e de Patrícia Faga Iglecias Lemos, segundo a qual
“Em suma, já nos reportando às responsabilidades do proprietário, que mais de perto nos interessam no estudo aqui proposto: o proprietário que não desenvolve atividade de risco, por exemplo – é simplesmente titular do direito de propriedade de área de proteção ambiental -, pode ser responsabilizado por danos ao meio ambiente. Já aquele que desenvolve atividade de risco assume a responsabilidade com base na teoria do risco da atividade. Na primeira hipótese, é possível alegar excludente de força maior, o que não se permite na segunda.”[13]
A teoria da atividade de risco acabou acolhida no art. 927, parágrafo único, do Código Civil de 2002, segundo o qual “haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”.
A teoria da atividade coincide com a do risco integral se a atividade desenvolvida for uma atividade de risco e dela se distancia caso a atividade não seja de risco.
No julgamento do REsp 1.114.398, em que a 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça condenou a Petrobras S/A com fundamento na teoria do risco integral, afastando a excludente da culpa exclusiva de terceiro, poderia também ter se valido da teoria da atividade de risco, pois o resultado seria o mesmo, já que existe um risco potencial ao meio ambiente na atividade por ela desenvolvida.
A teoria da atividade de risco tem, a nosso juízo, o mérito de permitir a responsabilização do proprietário de uma carga perigosa, como é o caso em questão, ou de uma usina nuclear, como no exemplo do professor Mazzilli, ainda que o dano tenha decorrido de força maior ou de fato de terceiro. E tem também o mérito de impedir a responsabilização do proprietário pelo simples fato de ser o dono do bem quando não desenvolva atividade de risco ao meio ambiente.
No caso das distribuidoras de combustíveis, não há como negar que a atividade desenvolvida constitui uma atividade de risco, vez que armazenam, distribuem e comercializam combustíveis derivados de petróleo que são altamente poluentes e potencialmente prejudiciais à natureza. Transporte de carga perigosa envolve, a toda evidência, atividade de risco.
Dessa forma, não haveria como afastar a sua responsabilidade pela reparação do dano causado pela empresa de transporte por ela contratada, não se perquirindo para tanto se agiu com culpa ou dolo. Na responsabilidade civil incide com toda a força o art. 14, §1º, da Lei 6.938/81.
Há, em verdade, solidariedade passiva entre a contratante e a contratada, solidariedade que decorre da regra inserta no art. 942 do Código Civil. [14] E a solidariedade, como se sabe, permite que a vítima do dano escolha a quem processar, podendo, inclusive, processar todos os responsáveis pelo evento danoso.
A solidariedade passiva tem sido sistematicamente aceita pela jurisprudência, cuidando-se de casos de litisconsórcio facultativo, não necessário. Precedentes: AgRg no AREsp 432409/RJ, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, 2ª Turma, julgado em 25/02/2014, DJe 19/03/2014; REsp 1383707/SC, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, 1ª Turma, julgado em 08/04/2014, DJe 05/06/2014; AgRg no AREsp 224572/MS, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, 2ª Turma, julgado em 18/06/2013, DJe 11/10/2013; REsp 771619/RR, Rel. Ministra DENISE ARRUDA, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 16/12/2008, DJe 11/02/2009; REsp 1060653/SP, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, 1ª Turma, julgado em 07/10/2008, DJe 20/10/2008; REsp 884150/MT, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 19/06/2008, DJe 07/08/2008; REsp 604725/PR, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, 2ª Turma, julgado em 21/06/2005, DJe 22/08/2005; REsp 1377700/PR (decisão monocrática), Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, julgado em 08/09/2014, DJe 12/09/2014; Ag 1280216/RS (decisão monocrática), Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, julgado em 28/03/2014, DJe 03/04/2014.
Contudo, a obrigação de reparar o dano ambiental, que é de natureza civil e reparatória, não se confunde com a obrigação de efetuar o pagamento da multa imposta, que possui natureza predominantemente sancionatória e somente pode ser imposta ao causador direto do dano, conforme, acertadamente, decidiu a 1ª Turma do STJ.
5. A responsabilidade administrativa ambiental
As infrações admirativas ambientais, assim como as infrações penais ambientais, estão disciplinadas na Lei 9.605/98, regulamentadas pelo Decreto n. 6.514/2008, que constitui norma geral sobre a matéria e foi editada pela União com fundamento no art. 24, VI, da Constituição Federal. [15]
“Considera-se infração administrativa ambiental toda ação ou omissão que viole as regras jurídicas de uso, gozo, promoção, proteção e recuperação do meio ambiente” (art. 70 da Lei 9.605/98 e art. 20 do Decreto n. 6.514/2008) e, uma vez, constatada a infração, a autoridade competente no âmbito de cada esfera de governo poderá, balizada pelas diretrizes do art. 6º da mesma legislação, aplicar um das dez sanções previstas no art. 72, quais sejam: I – advertência; II – multa simples; III – multa diária; IV – apreensão dos animais, produtos e subprodutos da fauna e flora, instrumentos, petrechos, equipamentos ou veículos de qualquer natureza utilizados na infração; V – destruição ou inutilização do produto; VI – suspensão de venda e fabricação do produto; VII – embargo de obra ou atividade; VIII – demolição de obra; IX – suspensão parcial ou total de atividades; XI – restritiva de direitos (o inciso X foi vetado).
Para efeito do presente estudo apenas a multa nos interessa, uma vez que é com relação a ela que tem divergido a jurisprudência acerca da possibilidade de imposição ao poluidor indireto utilizando-se da sistemática da responsabilidade objetiva estatuída na Lei 6.938/81.
5.1. Responsabilidade administrativa ambiental e o princípio da legalidade
A infração administrativa ambiental, como de resto qualquer infração administrativa, sujeita-se ao princípio da legalidade, de modo que não cabe a imposição de ato punitivo sem lei que preveja a sanção.
Conforme tem reiteradamente decidido do Superior Tribunal de Justiça, “a aplicação de sanções administrativas, decorrente do exercício do poder de polícia, somente se torna legítima quando o ato praticado pelo administrado estiver previamente definido pela lei como infração administrativa” (AgRg no REsp 1284558 PB 2011/0235494-3, data de publicação: 05/03/2012; REsp 1091486 RO 2008/0213060-6, data de publicação: 06/05/2009; REsp 1080613 PR 2008/0175834-3, data de publicação: 10/08/2009).
O art. 70 da Lei 9.605/98 e art. 20 do Decreto n. 6.514/2008 cumprem esse papel de dar suporte legal à atividade administrativa sancionadora para os casos de infração ambiental. O Decreto n 6.514/2008 é da espécie regulamentar por força do que preceitua o artigo 80 da Lei n.º 9.605/98 e sua fonte de validade é de índole constitucional (artigo 84, IV, da CF).
5.2. Natureza jurídica da multa administrativa em geral e a desnecessidade, como regra, de comprovação de dolo ou culpa
A multa administrativa decorre, de maneira geral, de manifestação do poder de polícia administrativa e tem natureza jurídica punitiva, sancionatória.
Na tradicional classificação dos atos administrativos proposta por Hely Lopes Meirelles a multa administrativa equivale aos atos punitivos, que “são os que contêm uma sanção imposta pela Administração àqueles que infringem disposições legais, regulamentares ou ordinatórias dos bens ou serviços públicos. Visam a punir e reprimir as infrações administrativas ou a conduta irregular dos servidores ou dos particulares perante a Administração”.[16] E a consequência que disso decorre é que não pode ser aplicada contra quem não foi o causador direto do dano com supedâneo na teoria da responsabilidade objetiva, pena de violação de preceito direito fundamental conforme será visto adiante.
Além disso, a sua imposição independe da comprovação de culpa em sentido amplo do infrator (dolo ou culpa em sentido estrito), bastando a realização da conduta descrita na norma reguladora. É o que leciona a doutrina especializada sobre o tema.
Para Celso Antônio Bandeira de Mello,
“É muito discutido em doutrina se basta a mera voluntariedade para configurar a existência de um ilícito administrativo sancionável, ou se haveria necessidade ao menos de culpa. Quando menos até o presente, temos entendido que basta a voluntariedade, sem prejuízo, como é claro, de a lei estabelecer exigência maior perante a figura tal ou qual”. [17]
Para Hely Lopes Meirelles, “a multa administrativa é de natureza objetiva e se torna devida independentemente da ocorrência de culpa ou dolo do infrator”[18], posicionamento que também é defendido por Régis Fernandes de Oliveira, segundo o qual “basta a voluntariedade, isto é, o movimento anímico consciente e capaz de produzir efeitos jurídicos. Não há necessidade de demonstração de dolo ou culpa do infrator; basta que, praticando o fato previsto, dê causa a uma ocorrência punida pela lei”. [19]
Como exemplo desses assertos, o art. 136 do CTN dispõe que “a responsabilidade por infrações da legislação tributária independe da intenção do agente ou do responsável e da efetividade, natureza e extensão dos efeitos do ato”. De igual sorte o art. 20 da Lei 8.88494 preceitua que constitui infração contra ordem econômica, independentemente de culpa, os atos que tenham por objeto limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa, bem como os que visam dominar mercado relevante de bens ou serviços, aumentar arbitrariamente os lucros e exercer de forma abusiva posição dominante.
Portanto, a multa administrativa possui natureza jurídica punitiva, mas a sua incidência independe de dolo ou culpa do infrator, bastando a voluntariedade da conduta, vale dizer, o Direito Administrativo sancionador exige menos do que o Direito Penal, que, como se sabe, não admite a responsabilidade objetiva.
5.3. Natureza jurídica mista da multa ambiental
A Lei 9.605/98 disciplina duas espécies de multa no capítulo dedicado às infrações administrativas.
A primeira delas, a multa simples, prevista no art. 72, II, da Lei 9.605/98, tem cabimento sempre quando o agente: I – advertido por irregularidades que tenham sido praticadas, deixar de saná-las, no prazo assinalado por órgão competente do SISNAMA ou pela Capitania dos Portos, do Ministério da Marinha; II – opuser embaraço à fiscalização dos órgãos do SISNAMA ou da Capitania dos Portos, do Ministério da Marinha.
A segunda, a multa diária, prevista no art. 72, III, da Lei 9.605/98, tem cabimento sempre que o cometimento da infração se prolongar no tempo. Esta tem por escopo desestimular o causador do dano a prosseguir com a conduta degradadora do meio ambiente. Possui, pois, natureza jurídica coercitiva. Aquela, de seu lado, assume, segundo entendemos, duas funções distintas: sancionatória e reparadora, o que implica que tenha natureza jurídica igualmente mista: sancionatória e reparadora.
Quanto à natureza punitiva da multa simples, nenhuma dúvida existe, vez que resulta da prática de conduta contrária a alguma norma em vigor. O art. 3º do Decreto n. 6.514/2008, na mesma esteira da dicção do art. 71 da Lei 9.605/98, preceitua que as infrações administrativas serão punidas com as algumas sanções, dentre elas a multa simples, de tal sorte que a singela interpretação literal desses dispositivos leva à conclusão de que se trata de uma sanção. Além disso, como visto acima, cuida-se de manifestação de ato administrativo punitivo.
Contudo, é possível entender que também possui natureza reparatória.
Dispõe, com efeito, o art. 73 da Lei 9.605/98 que os valores arrecadados com o pagamento de multas por infração ambiental serão revertidos ao Fundo Nacional do Meio Ambiente, criado pela Lei nº 7.797/1989, Fundo Naval, criado pelo Decreto nº 20.923/1932, e aos fundos estaduais ou municipais de meio ambiente, conforme dispuser o órgão arrecadador.
E a destinação dos valores arrecadados com a multa simples assume significativa importância na definição da sua natureza jurídica, uma vez que, ao se definir a natureza jurídica do instituto pela função que ele exerce no ordenamento, forçoso é reconhecer que essa multa possui, a despeito de ser sancionatória, também natureza jurídica reparatória.
Diante dessa constatação, surge a seguinte indagação: possuindo ela natureza jurídica reparatória e punitiva (natureza mista) seria possível a imposição a terceiro, considerado poluidor indireto para fins civis, com base na responsabilidade objetiva?
Cremos que mesmo nesse caso não seria possível, pois ela permanece predominantemente com natureza jurídica de sanção e dessa maneira encontrando óbice em preceito constitucional.
Em suma, a despeito de a multa administrativa constituir uma sanção, a multa administrativa ambiental, em razão da destinação do produto de sua arrecadação, possui também natureza reparatória, pois os valores podem ser revertidos em favor do meio ambiente lesado. Ocorre que, mesmo nesse caso, por manter a feição punitiva, a sua aplicação a terceiros, com fundamento da responsabilidade objetiva, continua encontrando impedimento na impossibilidade de imposição de pena a quem não foi o autor da conduta violadora da norma jurídica.
6. O tratamento da multa ambiental na Lei 9.605/98 – a inclusão dos elementos subjetivos: negligência e dolo
Como visto no item 5.2 acima, a multa administrativa independe de comprovação de culpa em sentido amplo, bastando a voluntariedade da conduta.
O art. 72, §3º, da Lei 9.605/98, porém, na contramão da PNMA, previu que a multa ambiental será aplicada sempre que o agente, com negligência ou dolo: I – advertido por irregularidades que tenham sido praticadas, deixar de saná-las, no prazo assinalado por órgão competente do SISNAMA ou pela Capitania dos Portos, do Ministério da Marinha; II – opuser embaraço à fiscalização dos órgãos do SISNAMA ou da Capitania dos Portos, do Ministério da Marinha.
Dessa maneira, ao fazer alusão a elementos subjetivos que são típicos da responsabilidade civil extracontratual subjetiva, teria o legislador ordinário, segundo parte da doutrina, exigido a comprovação de culpa lato sensu para imposição de multa qualquer que seja a infração ambiental.
É o que entende Paulo Affonso Leme Machado.
Para ele, apesar de ter havido um retrocesso em matéria de defesa do meio ambiente e “um desserviço aos objetivos da própria Lei 9.605/98”[20],
“das dez sanções previstas no artigo 72 da Lei 9.605/98 (incs. I a IX), somente a multa simples utilizará o critério da responsabilidade com culpa; e as outras nove sanções, inclusive a multa diária, irão utilizar o critério da responsabilidade sem culpa ou objetiva, continuando a seguir o sistema da Lei 6.938/81, onde não há necessidade de ser aferidos o zelo e a negligência do infrator submetido ao processo.”[21]
A despeito desse entendimento, segundo entendemos correto, permanece possível, como regra, a lavratura de auto de infração contra o causador direto do dano independentemente da comprovação de dolo ou culpa.
7. O contrassenso da exigência de dolo ou culpa pelo art. 72, §3º, da Lei 9.605/98
A exigência do art. 72, §3º, da Lei 9.605/98, além de ter ido na contramão da PNMA, vai também de encontro ao sistema da multa administrativa em geral, que, como visto, se contenta com a realização da conduta ilícita que se subsome ao dispositivo legal independentemente da comprovação do elemento subjetivo.
A multa administrativa ambiental, como espécie do gênero multa administrativa, deve ter o mesmo tratamento desta, somente admitindo tratamento diverso quando a lei assim dispuser de forma expressa, tal como ocorreu o art. 72, §3º, da Lei 9.605/98. Uma interpretação sistêmica do Direito Administrativo sancionador impõe essa conclusão.
Cuidando-se de exceção ao sistema geral das multas administrativas, o dispositivo legal em questão deve ser interpretado de forma restritiva e dessa maneira tem aplicação somente para as hipóteses expressamente nele mencionadas, quais sejam quando o infrator deixar de sanar tempestivamente as irregularidades constatadas pela autoridade ambiental (I) ou opuser embaraço a fiscalização dos órgãos do SISNAMA ou da Capitania dos Portos, do Ministério da Marinha (II). Nos demais casos de infração ambiental, nada obsta que a multa continue sendo aplicada de forma objetiva em razão apenas da prática da conduta lesiva ao meio ambiente.
A essa mesma conclusão já havia chegado Nicolau Dino Neto e Flávio Dino. Para eles
“A defeituosa redação dada ao §3º pode ensejar interpretações equivocadas que em muito dificultariam a imposição da sanção de multa – “pena administrativa por excelência”, conforme ensinamento de Ruy Cirne Lima, referido por Vladimir Passos de Freitas. Por primeiro, poder-se-ia considerar que somente se caracterizados culpa ou dolo seria possível a aplicação de multa; em segundo lugar, em face do inciso I, ter-se-ia como imprescindível a prévia aplicação da pena de advertência – relativa ao mesmo fato – para que fosse imposta a multa. Contudo, estas leituras, além de reduzirem de modo expressivo a eficácia do sistema de sanções administrativas, gerariam uma série de contradições impossíveis de serem explicadas, tais como: por que exigir o elemento subjetivo somente quando a sanção aplicável for a de multa? Por que exclusivamente esta sanção deve vir antecedida da pena de advertência? É imperativo, portanto, buscar-se uma interpretação que concilie a letra da norma com o espírito e lógica interna do sistema. Com este escopo, a melhor alternativa consiste em considerar-se o dispositivo em análise como veiculador de regras excepcionais, logo insuscetível de interpretação ampliativa. Assim sendo, conclui-se que a presença de culpa ou dolo por parte do infrator só é exigível caso se cuide de embaraço à fiscalização ou de inobservância de prazo para superar irregularidades sanáveis. Nesta última hipótese, a autoridade competente somente poderá impor a pena de multa após o fluxo do prazo atribuído ao infrator e a ele comunicado por escrito quando da notificação da imposição da pena de advertência. Contudo, este iter não é necessário quando se trata de irregularidades insanáveis, caso em que não há qualquer sentido em se conferir tal prazo ao infrator (nem a lei assim expressamente determina). No mesmo diapasão, em outros casos, que não os discriminados expressamente, será possível a aplicação da pena de multa independentemente de caracterização de culpa por parte do poluidor, de acordo com o que determinar cada tipo infracional específico – conforme demonstrado anteriormente.” [22]
Como sugerem os autores, a nosso juízo com acerto, não existe motivo razoável para exigir-se o elemento subjetivo para imposição de multa e não exigi-lo para imposição de sanções outras até mesmo mais severas do ponto de vista da restrição do direito do infrator, como, por exemplo, ocorre com a suspensão parcial ou total de atividades.
Ante tudo o que foi exposto até aqui, não obstante o art. 72, §3º, da Lei 9.605/98 tenha exigido a presença de dolo ou culpa como condicionante para imposição de multa administrativa ambiental, a sua aplicação, por se tratar de regra excepcional dentro da seara do Direito Administrativo e contrastar frontalmente com a Lei 6.938/81, fica circunscrita às hipóteses que expressamente menciona, isto é, quando houver embaraço a fiscalização ou inobservância de prazo para superar irregularidades sanáveis. Nos demais casos segue a regra geral de que basta a voluntariedade da conduta, o que também ocorre nos casos de imposição das demais penalidades previstas nos incisos do art. 72 da Lei 9.605/98, dentre as quais estão, além da suspensão das atividades, a suspensão de venda e fabricação de produto e embargo de obra ou atividade.
8. Princípio da intranscedência da pena
Questão que tem suscitado controvérsia no Superior Tribunal de Justiça e junto aos operados do direito, diz respeito à possibilidade de imposição de multa ambiental àquele que, malgrado não tenha sido o causador direto do dano, pode ser considerado poluidor indireto para efeito de responsabilização civil e, por conseguinte, ser acionado judicialmente para reparação do dano com fundamento na responsabilidade objetiva prevista no art. 14, §1º, da Lei 6.938/81.
Não cremos possível essa imposição.
Como visto, a multa ambiental, ainda que se possa compreendê-la como mecanismo de reparação do dano, já que existe permissivo legal para que o produto de sua arrecadação seja utilizado em prol do meio ambiente, conserva a feição punitiva e dessa forma somente pode ser aplicada contra quem foi o autor do dano, pena de violação da garantia fundamental prevista no art. 5º, XLV, da CF, que consagra o princípio da intranscedência subjetiva das sanções.
O princípio da responsabilidade pessoal, que remonta à Declaração dos Direitos do Homem e Cidadão, de 1789, e à Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, apregoa que uma pena somente pode ser imposta ao autor da infração.
Conforme já reconheceu o Supremo Tribunal Federal, essa garantia não tem aplicação restrita ao Direito Penal, atingindo o Direito Administrativo em razão do seu caráter sancionador.
Confira-se.
“(…) – O postulado da intranscendência impede que sanções e restrições de ordem jurídica superem a dimensão estritamente pessoal do infrator. Em virtude desse princípio, as limitações jurídicas que derivam da inscrição, no CAUC, das autarquias, das empresas governamentais ou das entidades paraestatais não podem atingir os Estados-membros ou o Distrito Federal, projetando, sobre estes, consequências jurídicas desfavoráveis e gravosas, pois o inadimplemento obrigacional – por revelar-se unicamente imputável aos entes menores integrantes da administração descentralizada – só a estes pode afetar. – Os Estados-membros e o Distrito Federal, em consequência, não podem sofrer limitações em sua esfera jurídica motivadas pelo só fato de se acharem administrativamente vinculadas, a eles, as autarquias, as entidades paraestatais, as sociedades sujeitas a seu poder de controle e as empresas governamentais alegadamente inadimplentes e que, por tal motivo, hajam sido incluídas em cadastros federais (CAUC, SIAFI, CADIN, v.g.). (…)” (AC 1033 AgR-QO/DF, Pleno, rel. Min. Celso de Mello, j. 25/05/2006, DJ 16/06/2006).
Em caso semelhante ao ementado no início deste artigo, a 2ª Turma do STJ entendeu, com fundamento no princípio da intranscedência da pena, pela impossibilidade de se cobrar do filho a multa ambiental por ele ter simplesmente herdado a propriedade do pai, antes autuado (STJ – REsp: 1.251.697 PR 2011/0096983-6, Relator: Ministro Mauro Campbell Marques, Data de Julgamento: 12/04/2012, 2ª Turma, Data de Publicação: DJe 17/04/2012).
Também pela violação ao princípio da instranscedência das sanções é que se afigura inconstitucional o art. 134 do Código de Trânsito Brasileiro, que responsabiliza solidariamente o vendedor de veículo pelas penalidades impostas ao comprador se não comunicar a venda ao órgão de trânsito.
Além do princípio constitucional em questão, tem-se, como derradeiro argumento em favor da impossibilidade de aplicação da multa a terceiros com base na responsabilidade objetiva o fato que
“o uso do vocábulo “transgressores” no caput do art. 14, comparado à utilização da palavra “poluidor” no § 1º do mesmo dispositivo, deixa a entender aquilo que já se podia inferir do princípio da intranscendência das penas: a responsabilidade civil por dano ambiental é subjetivamente mais abrangente do que a responsabilidade administrativa e penal, não admitindo estas últimas que terceiros respondam a título objetivo por ofensas ambientais praticadas por outrem”. (STJ – REsp: 1.251.697 PR 2011/0096983-6, Relator: Ministro Mauro Campbell Marques, Data de Julgamento: 12/04/2012, 2ª Turma, Data de Publicação: DJe 17/04/2012).
A multa ambiental, portanto, aplica-se ao causador do dano ambiental independentemente da averiguação do elemento subjetivo do infrator, bastando a voluntariedade da conduta. Nas hipóteses arroladas no art. 72, §3º, da Lei 9.605/98, excepcionalmente, haverá necessidade de comprovação de dolo ou culpa.
Isso não significa, contudo, que possa ser aplicada, de forma objetiva, contra quem não deu causa por comportamento próprio à eclosão do dano, pena de violação da garantia constitucional do princípio da intranscedência subjetiva das sanções conforme decidiu a 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça no AgRg no Agravo em Recurso Especial nº 62.584 – RJ.
9. A multa aplicada ao Banco Santander
No dia 20 de outubro de 2016 o IBAMA autuou o Banco Santander Brasil S/A (Auto de Infração n. 9.067.377), impondo-lhe a multa de R$ 47.550.000,00, por ter, segundo noticiado no jornal O Estado de São Paulo, financiado 95 mil sacas de milho na safra de 2015 em uma área de 572 hectares nas cidades de Porto dos Gaúchos, Feliz Natal e Gaúcha do Norte, próximas a Sinop (MT), um dos principais polos de produção de grãos do País.
A autuação se deu pelo fato de a instituição financeira ter concedido financiamento para plantio em áreas que já constavam como embargadas em uma lista pública por causa de plantações irregulares anteriores.
A lista de terras embargadas pelo IBAMA é pública e a consulta dessa relação é providência impositiva a qualquer agente interessado em financiar ou realizar o plantio, ou seja, antes de conceder o crédito ao empreendedor deve a instituição financeira informar-se se a localização da área não tem irregularidades. É uma obrigação que decorre tanto de resolução do Banco Central como da Lei 12.846/2014, chamada de Lei Anticorrupção.
Com efeito, a Resolução nº 4.327, de 25 de abril de 2014, do Banco Central do Brasil, publicada no DOU de 28/4/2014, Seção 1, p. 22, e no Sisbacen, dispõe sobre as diretrizes que devem ser observadas no estabelecimento e na implementação da Política de Responsabilidade Socioambiental pelas instituições financeiras e impõe a obrigação de elas manterem uma estrutura de governança compatível com o seu porte, a natureza do seu negócio, a complexidade de serviços e produtos oferecidos, bem como com as atividades, processos e sistemas adotados, para que identifiquem o risco socioambiental como um componente das diversas modalidades de risco a que estão expostas.
Estabelece o art. 6º da Resolução que o gerenciamento do risco socioambiental das instituições financeiras deve considerar: (I) sistemas, rotinas e procedimentos que possibilitem identificar, classificar, avaliar, monitorar, mitigar e controlar o risco socioambiental presente nas atividades e nas gerações da instituição; (II) registro de dados referentes às perdas efetivas em função de danos socioambientais, pelo período mínimo de cinco anos, incluindo valores, tipo, localização e setor econômico objeto da operação; (III) avaliação prévia dos potenciais impactos socioambientais negativos de novas modalidades de produtos e serviços, inclusive em relação ao risco de reputação; e (IV) procedimentos para adequação do gerenciamento do risco socioambiental às mudanças legais, regulamentares e de mercado.
A Lei 12.846/2013, de seu lado, acolhendo o entendimento doutrinário sobre a desnecessidade de demonstração de dolo ou culpa no caso de infração administrativa (vide item 5.2), previu, de forma expressa, que é objetiva a responsabilidade administrativa de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública (art. 1º) e definiu, no art. 5º, que são considerados lesivos à administração pública todos os atos que atentem contra o patrimônio público nacional ou estrangeiro, contra princípios da administração pública ou contra os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, estabelecendo, em rol exemplificativo, algumas condutas que configuram a infração, dentre as quais o ato de “financiar, custear, patrocinar ou de qualquer modo subvencionar a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei” (art. 5º, II), hipótese que se amolda ao caso sob análise.
A sanção decorrente de infração administrativa é a multa, cujo valor pode varia de R$ 6.000,00 a R$ 60.000.000,00 a depender da gravidade da infração, da vantagem auferida ou pretendida pelo infrator, da consumação ou não da infração, do grau de lesão ou perigo de lesão, do efeito negativo produzido pela infração, da situação econômica do infrator, da cooperação da pessoa jurídica para a apuração das infrações, da existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e da aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica e, por fim, do valor dos contratos mantidos pela pessoa jurídica com o órgão ou entidade pública lesados (art. 7º).
Note-se que o caso em questão difere daquele em que a multa é aplicada, com fulcro na responsabilidade objetiva, ao agente que não foi o causador do dano, uma vez que aqui, segundo nos parece evidente, a imposição de multa decorreu de conduta da instituição financeira que desobedeceu a legislação de regência e, portanto, foi autuada em razão de ato próprio e não de terceiro.
O que pretendemos deixar claro é que, a nosso juízo, a multa imposta pelo IBAMA ao Santander não decorreu do fato de considerá-lo como um elo da cadeia produtiva e, por conseguinte, como poluidor indireto, tal como previsto no art. 3º, IV, da PNMA e no conceito elástico proposto pelo ministro Herman Benjamim, como citado acima.
Decorreu, na verdade, de uma conduta direta do banco que, diante da obrigação de analisar o risco socioambiental como uma das variáveis do negócio, máxime no caso em questão em que havia uma lista contendo um rol das áreas embargadas pelo IBAMA, mesmo assim concedeu o financiamento.
Ora, se havia uma lista pública de terras embargadas pelo IBAMA, bem como uma resolução do BACEN impondo a análise do risco socioambiental por uma estrutura de governança compatível com o porte, a natureza do negócio e a complexidade dos serviços do Banco Santander S/A, além da previsão expressa de responsabilidade objetiva pela Lei 12.864/13, forçoso é reconhecer que a instituição deu ensejo, em razão da cinduta de seus dirigentes, à lavratura do auto de infração.
Dessa maneira, o que estamos sustentando neste artigo não se aplica a esse caso do Banco Santander, pois aqui não há qualquer violação à garantia fundamental de que a penalidade somente pode ser imposta a quem foi o autor do dano. Trata-se, ao contrário, de providência que se amolda perfeitamente à legislação de regência sobre a matéria.
10. Conclusão
A multa administrativa ambiental, prevista na Lei 9.605/98, possui natureza jurídica mista, punitiva e reparatória, e o regime jurídico a ela aplicável difere daquele que incide nos casos de reparação civil do dano ambiental.
Na esfera cível são inteiramente aplicáveis as regras da responsabilização extracontratual previstas nos arts. 3º, IV e 14, §1º, da Lei 6.938/81, por meio das quais o poluidor indireto responde objetivamente pela reparação do dano, máxime se a atividade por ele desenvolvida envolver risco potencial ao meio ambiente, tal como ocorre com a distribuidora de combustíveis que contrata uma empresa transportadora para realização do seu negócio. Aplica-se a teoria da atividade de risco prevista no art. 927, parágrafo único, do Código Civil.
No âmbito administrativo a questão comporta uma divisão, havendo a necessidade de tratamento jurídico diferente quando se trate de poluidor direito ou indireto.
Ao causador direto do dano a imposição da multa independe, como regra, da demonstração do elemento subjetivo no caso concreto, bastando a voluntariedade da conduta que se subsome ao tipo sancionador, pois essa é a sistemática das multas administrativas em geral, da qual a ambiental é apenas uma das espécies, devendo seguir a mesma sorte das demais.
Excepcionalmente, porém, diante do que dispõe o art. 72, §3º, da Lei 9.605/98, dependerá de comprovação do elemento subjetivo, mas essa hipótese fica circunscrita aos casos expressamente nele previstos, pois, cuidando-se de casos excepcionais, devem ser interpretados restritivamente. Além disso, não há nenhum motivo razoável para que a aplicação de multa dependa de demonstração de culpa enquanto que para sanções mais graves, como a interdição da atividade, não haja necessidade de sua comprovação. Entendimento diverso colide frontalmente com o postulado da proporcionalidade.
Àquele que não foi o causador direto do dano não se afigura possível a imposição de multa com fundamento na responsabilidade objetiva, uma vez que, por constituir a multa predominantemente uma sanção, encontra barreira intransponível no princípio constitucional da intranscedência subjetiva das sanções, previsto no art. 5º, XLV, da CF, que, como visto, não tem aplicação limitada ao campo penal, atingindo também o Direito Administrativo sancionador.
O que precisa ficar bem esclarecido é que muitas vezes, malgrado em princípio possa se cogitar estar diante de caso de poluidor indireto, uma análise mais profunda da questão vai descortinar que, em verdade, está-se diante de situação em que o agente, por ato próprio, contribui para eclosão do resultado danoso ao meio ambiente, caso em que pode ser sancionado administrativamente, e mais, de forma objetiva, desde que, evidentemente, o caso não se amolde a alguma das hipóteses excepcionais do art. 72, §3º, da Lei 9.605/98.
Foi o que ocorreu com a multa aplicada pelo IBAMA ao Banco Santander do Brasil S/A, que, violando a Resolução Bacen nº 4.327, de 25 de abril de 2014, concedeu crédito para plantação de milho e soja em área que já se encontrava embargada pelo órgão ambiental e que constava de lista pública para consulta de todos os interessados. Nesse caso o banco não agiu com a diligência que lhe impunha a resolução.
Em suma, não se confundem as responsabilidades civil e administrativa pelo dano ambiental causado. Aquela é sempre objetiva e atinge todos os elos da cadeia produtiva que participam, ainda que indiretamente, da produção do resultado danoso, sobretudo se a atividade envolver risco potencial ao meio ambiente. É o que se dá com a distribuidora de combustíveis, proprietária da carga, em razão do dano ocasionado pela transportadora. Esta, por sua vez, pode ser objetiva ou subjetiva a depender do caso concreto. Como regra será sempre objetiva a não ser que se esteja diante das hipóteses excepcionais do art. 72, §3º, da Lei 9.605/98, mas, cuidando-se de penalidade, deve estar sujeita obrigatoriamente ao princípio da legalidade, que no caso da multa ambiental está resguardado pelos artigos art. 70 da Lei 9.605/98 e art. 20 do Decreto n. 6.514/2008, e não pode ser imposta contra a pessoa, natural ou jurídica, que não tenha, por ato próprio, dado causa ao resultado.
A 1ª e a 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça divergem a respeito da possibilidade ou não de aplicação da multa, com base na responsabilidade objetiva, a quem não foi o causador do dano, mas, segundo nos parece correto, a orientação da Corte deverá inclinar-se pela impossibilidade. Aguardemos as decisões.
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Fábio Meneguelo Sakamoto