A declaração de vontade do paciente terminal: as diretivas antecipadas de vontade à luz da Resolução 1.995/2012 do Conselho Federal de Medicina

Resumo: Este artigo objetiva tecer primeiras considerações acerca da validade das denominadas diretivas antecipadas de vontade de pacientes terminais, considerando a Resolução 1.995/2012 do Conselho Federal de Medicina e o Código de Ética Médico.

Palavras-Chave: Paciente terminal – Dignidade da pessoa humana – Diretivas antecipadas de vontade.

Abstract: This article presents the first considerations on the validity of the advance health care directives of terminal patients, according to the Resolution 1.995/2012 of the Federal Council of Medicine and the Code of Medical Ethics.

Keywords: Terminal patient – Human dignity – Advance health care directives.

Sumário: 1. Introdução – 2. A morte – 2.1. A constatação da morte – 2.2. A terminalidade – 2.3. A dignidade da pessoa humana e o direito a uma morte digna – 4. Procedimentos para abreviação ou prolongamento da vida – 4.1. Eutanásia – 4.2. Distanásia – 4.3. Suicídio assistido – 4.4. Mistanásia – 4.5. Ortotanásia – 5. A humanização da doença terminal – 5.1. A carta dos direitos dos usuários de saúde – 5.2. A resolução nº 1.805/2006 do Conselho Federal de Medicina – 5.3. Dos cuidados paliativos: o novo Código de Ética Médico (Resolução CFM nº 1.931/2009 – 6. Diretivas antecipadas de vontade e a Resolução CFM nº 1.995/2012 – 6.1. A questão da obrigatoriedade – 6.2. O momento de elaboração – 6.3. A forma – 6.4. A figura do procurador de cuidados de saúde – 7. Aspectos conclusivos – 8. Referências bibliográficas.

1. Introdução

No caminho dos problemas evocados pela extinção da personalidade, está a questão do processo de morrer, muitas vezes ignorado ou evitado, dada a associação do evento morte com intenso sofrimento e tristeza, na cultura ocidental.

Em uma das possíveis confluências da finitude da vida com as questões levantadas pelos avanços nas técnicas de manutenção da vida e prolongamento da sobrevida, está o debate acerca da denominada ortotanásia, medida defendida pelo Conselho Federal de Medicina, com expressão recente na Resolução CFM nº 1995/2012, que passou a vigorar em 31 de agosto de 2012, abordando as denominadas diretivas antecipadas de vontade.

É certo afirmar que o debate em torno da ortotanásia não é novidade. Mas os novos caminhos trilhados pelo Conselho, com a recente redação da Resolução em destaque, exigirão uma maior interatividade entre os profissionais da saúde e do direito, sempre tendo em vista, de um lado, o bem-estar de pacientes e familiares e, de outro, a segurança dos médicos.

Fato é que o progressivo avanço da medicina e o recrudescimento do envelhecimento da população, como o observado no Brasil, têm conduzido um maior número de pessoas à senectude, tornando-se mais frequentes as moléstias crônicas e degenerativas, como os cânceres e Mal de Alzheimer. Por conseguinte, vivencia-se um processo de morrer mais “prolongado” e sujeito ao sofrimento, por parte do próprio paciente denominado “terminal” e também de familiares.

Esse panorama, que não é exclusivo do Brasil, faz surgir algumas importantes indagações na área de saúde pública, como aquelas relativas aos recursos técnicos que devem ser empregados para o tratamento desses enfermos, nesse momento tão crítico: a proximidade da morte.

Está-se aqui a ingressar em um duro debate sobre a bioética do fim da vida. Longe de ser uma questão relativa ao indivíduo, o paciente em estado de terminalidade constitui uma autêntica questão de saúde coletiva, na medida em que perpassa pelo debate da condição humana, na esfera de sua dignidade individual, mas projetada na coletividade, galgada na qualidade da vida e na humanização da morte, fatores que reverberam em toda a sociedade.

A tensão, ou mesmo o conflito, entre beneficiar o paciente terminal com tratamentos paliativos, que promovam seu bem-estar físico e mental, e a absolutização do valor da vida humana no seu sentido biológico, gera um dilema que alguns médicos e familiares preferem resolver a favor do prolongamento artificial da vida.

Mas, até que ponto é esta uma decisão que cabe ao próprio paciente? Em que medida a sua vontade de não ser submetido a tratamentos inúteis deve ser considerada? A pessoa tem o direito de escolher a maneira como pretende morrer – ou como não pretende morrer –, abreviando o próprio sofrimento? Há uma forma legalmente admitida para a manifestação dessa autonomia?

O presente trabalho pretende apontar as atuais diretrizes do Conselho Federal de Medicina acerca do tema, explorando uma figura ainda pouco debatida nos corredores acadêmicos das faculdades de direito: as diretivas antecipadas de vontade e sua aptidão para gerar efeitos no mundo jurídico.

2. A morte

Vida e morte podem ser apreendidas como potências ambíguas de um mesmo processo. Assim como há a vigília e o sono, a juventude e a velhice, existem em nós a vida e a morte (SIQUEIRA-BATISTA; SCHRAMM, 2004, p. 35). Esse processo de viver e morrer, portanto, faz parte da experiência humana.

É da cultura ocidental a percepção de existência-finitude que enxerga a morte como um evento de profunda tristeza e sofrimento. Morrer significa, antes, deixar de fazer parte do mundo conhecido, afastar-se do convívio de pessoas queridas. Morrer pode, ainda, estar ligado ao derradeiro temor: é o desconhecido que está por vir.

À par de todas as discussões religiosas e psicológicas umbilicalmente ligadas aos tema, em que consiste a morte? Em qual momento se pode considerar que uma pessoa está morta?

 2.1. A constatação da morte

Juridicamente, o Código Civil, em seu artigo 10, determina que a morte é causa de extinção da pessoa natural. Todavia, não estabelece um conceito do que se deva entender por “vida” e por “morte”. Tampouco fixa um momento no qual se deve entender como ocorrido o evento morte.

Cabe, portanto, à medicina, em especial à medicina legal, estabelecer critérios válidos para se aferir o evento morte. Para SIQUEIRA-BATISTA e SCHRAMM, há diferentes perspectivas para a conceituação da morte, podendo-se estabelecer (2004, p. 36):

1) a morte óbvia, na qual o diagnóstico é inequívoco (evidente estado de decomposição corpórea, decaptação, esfacelamento ou carbonização craniana, dentre outros);

2) a morte clínica, caracterizada por parada cardíaca (com ausência de pulso), respiratória e midríase paralítica (dilatação das pupilas, mesmo submetida à incidência da luz, que surge cerca de 30 segundos após a suspensão dos batimentos cardíacos), podendo ser reversível, desde que sejam implementadas adequadas medidas de reanimação;

3) a morte biológica, que surge como uma “progressão”da morte clínica, diferindo desta por seu caráter irreversível (manobras adequadas de ressuscitação não regridem o quadro). Caracteriza-se pela “destruição” celular em todo o organismo, o que habitualmente se desenrola ao longo de 24 horas (algumas células demoram esse período para fenecer);

4) a morte encefálica, que é compreendida como um sinônimo para a morte biológica (resolução no 1.480/97 do Conselho Federal de Medicina), sendo caracterizada por uma série de parâmetros que atestam a lesão encefálica irreversível, situação em que todos os comandos da vida se interrompem. O centro respiratório se torna danificado de forma irreversível, com a “vida” podendo ser mantida apenas com o emprego de aparelhos;

5) a morte cerebral, que não deve ser confundida com a morte encefálica. Nos casos de morte cerebral perde-se a consciência da respiração, a qual permanece funcionando de forma “automática”.

2.2. A terminalidade  

O evento morte, normalmente, incide de maneira abrupta, inesperada, como ocorre nas mortes por acidente ou crime, por parada cardio-respiratória, por acidente vascular cerebral, entre outros.

Há, todavia, os casos nos quais o evento morte é precedido por uma enfermidade ou condição pós-traumática que não ceifa de imediato a vida da pessoa, ou seja, não ocorre de maneira súbita, mas se torna latente, um acontecimento certo e iminente. Aqui, a morte não é somente esperada (afinal, todos vamos morrer), mas é aguardada em escala perceptível, sentida, dada a sua proximidade, seja pela própria vítima, seja pelas pessoas próximas. Neste caso, a medicina cunhou o termo paciente terminal.

Mas o que se deve entender por “paciente terminal”? A partir de qual momento na evolução de uma condição clínica, é possível considerar a terminalidade de um paciente? Em outras palavras, é bem identificar em qual momento da vida humana, a morte adquire contornos de certeza e, também, atualidade; quando a morte se torna um evento de iminência calculada.

Sob o aspecto médico, “considera-se paciente terminal aquele que, na evolução de sua doença, é incurável ou sem condições de ter prolongada a sua sobrevivência, apesar da disponibilidade dos recursos, estando, pois, num processo de morte inevitável” (França, 1995, p. 247).

Em outras palavras, é terminal o paciente que, “a despeito das tentativas médicas, não responde a nenhuma medida terapêutica aplicada” (NAVES; REZENDE, 2007, p. 95)

O fato apto a conduzir o paciente à situação de terminalidade pouco importa. Pode decorrer de uma doença contraída ou desenvolvida geneticamente; pode ter origem em qualquer evento acidentário que empreendeu severas lesões; pode, inclusive, ter origem em tentativa de homicídio ou suicídio. O que releva para que se declare um paciente como terminal é o fato de estar declarado desenganado pela ótica da ciência médica, sem possibilidade de reversibilidade do seu quadro clínico pelas técnicas hodiernas.

Assim, pode ser considerado terminal, numa relação exemplificativa: o moribundo, aquele que está em processo de agonização, às portas da morte; aquele que, acometido de doença incurável em estágio avançado, está internado em hospital ou em “home-care” sob cuidados médicos, com uma estimativa acerca de tempo para morrer; aquele que teve morte encefálica declarada e sobrevive ligado a aparelhos.

2.3. A dignidade da pessoa humana e o direito a uma morte digna

Neste quadro irreversível, de morte iminente, há um “morrer com dignidade”? O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana atua também no momento da morte?

O Constituinte de 1988 deixou manifesto seu intento de conferir aos princípios fundamentais, entre eles o da dignidade da pessoa humana, a característica de norma base e integradora de toda ordem constitucional, incluindo aí as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais que juntamente com os princípios fundamentais designam o chamado núcleo essencial da nossa Constituição formal e material (BARCELLOS, 2002).

Para JOSÉ AFONSO DA SILVA, a “dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida” (2008, p. 105). Isso significa que o valor da dignidade humana alcança todos os setores da ordem jurídica.

Mas qual o alcance da atuação do princípio da dignidade humana na esfera individual do paciente terminal? Se a humanidade de cada pessoa reside no fato de ser ela racional, dotada de livre arbítrio e com capacidade para interagir com as demais pessoas do meio social, pode-se afirmar ser “desumano”, ou seja, atentar contra a dignidade humana, tudo aquilo que puder tolher o discurso e a ação do indivíduo, reduzindo-o à condição de objeto (MORAES, 2010, p. 85).

Podemos, assim, concluir que atenta claramente contra a dignidade da pessoa humana a manutenção artificial da vida do enfermo sem possibilidade de recuperação; a promoção de terapia inútil, que prolonga a agonia do paciente terminal incurável, contra a sua vontade.

Neste sentido, entendemos que a dignidade ínsita ao homem o autoriza a “morrer com dignidade”. Isto significa poder escolher não “quando” ou “como” morrer, mas “como não deseja morrer”. Essa compreensão é fundamental.

Para LUÍSA NETO, “morrer com dignidade não significa morrer quando queiram o enfermo, o médico ou os familiares, mas tão só uma morte na qual se respeitaram os seus direitos humanos, com serenidade, com o seu contorno familiar, cuidados médicos apropriados, com a assistência religiosa que deseje”. E prossegue: “a questão não versa sobre a utilização de medicamentos que poderiam curar o doente, mas precisamente sobre a utilização dos que sendo ineficazes para curar, permitem prolongar a vida do doente nalguns dias, semanas ou meses, o que não é mais que prolongar a agonia do enfermo, fundamentalmente quando tal se verifica contra a sua vontade” (2004, p. 769).

A questão é saber se é admissível ou não que a opção pelo “não tratamento” decorra de decisão voluntária do paciente terminal, e se essa medida implica em causação positiva do evento morte ou, simplesmente, em permitir que a vida tome o seu curso natural, dentro da evolução da enfermidade.

4. Procedimentos para abreviação ou prolongamento da vida

Toda vez que se discute o tema da morte associada a pacientes terminais, muitos procedimentos de abreviação da vida, como a eutanásia, a mistanásia e o suicídio assistido, ou, mesmo, de prolongamento da vida, como a distanásia, são suscitados. Todavia, não devem estes ser confundidos com a denominada “orototanásia”. Necessários, portanto, alguns esclarecimentos.

4.1. Eutanásia

O termo eutanásia tem origem do grego “eu-thanatos”, o que literalmente significa “boa morte”. É, portanto, utilizado para designar uma morte suave, sem sofrimento.

Durante muito tempo não houve convergência entre as várias definições. O termo já encerrou conceitos plurais, abarcando formas ativas e omissivas e incidindo sobre sujeitos passivos em condições as mais variadas possíveis.

Atualmente, parece haver um consenso no emprego do termo eutanásia para designar o ato pelo qual o profissional médico põe termo à vida humana de indivíduo acometido por doença incurável, para quem a morte é inevitável e iminente, e com a finalidade de evitar um sofrimento extremo. É, portanto, ação médica intencional para a abreviação ou provocação do evento morte, com exclusiva finalidade benevolente, diante de um quadro de terminalidade do paciente.

Na eutanásia, a morte deve constituir a finalidade primária e não secundária da intervenção médica.

A prática da eutanásia no Brasil é crime de homicídio doloso, podendo, apenas, merecer a redução de pena, considerando a motivação benevolente do agente.

4.2. Distanásia

No que pertine à origem semântica do termo, distanásia significa “morte lenta”, com o prolongamento demasiado da agonia, do sofrimento de um paciente, com o objetivo de manutenção da vida já em estágio terminal.

Compreende, portanto, a tentativa de retardamento da morte o máximo possível, com o emprego de todas as técnicas médicas ordinárias e extraordinárias conhecidas, imprimindo dores e sofrimentos a paciente cuja morte é inevitável e iminente. Caracteriza-se, portanto, por um excesso de medidas terapêuticas que impõem sofrimento e dor à pessoa irreversivelmente e terminalmente enferma (DINIZ, 2006, p. 1741).

Para PESSINI é um prolongamento artificial da vida do paciente, sem chance de cura ou de recuperação da saúde, segundo o que ele denomina de “estado da arte da ciência da saúde” (2001, p. 30).

Estão associados à distanásia termos como “obstinação terapêutica” e “tratamento fútil” (muitas vezes, inclusive, como sinônimos), sempre para designar o comportamento do profissional de medicina que se lança nesse combate inglório contra a morte, mas cujas ações médicas não são capazes de modificar o quadro mórbido.

Portanto, enquanto na eutanásia a preocupação maior é com a “qualidade” da vida remanescente, na distanásia a tendência é se fixar na “quantidade” desta vida e investir todos os recursos possíveis em prolongá-la ao máximo, mesmo que isso signifique o aumento do sofrimento do paciente terminal.

4.3. Suicídio assistido

No denominado suicídio assistido é o paciente quem retira a própria vida, mas com o auxílio ou assistência de terceiro, que age por motivos humanitários. Este colabora com o ato, seja prestando informações, seja disponibilizando os meios e condições necessárias à prática. Como o ato derradeiro é praticado pelo próprio paciente terminal, alguns autores também o denominam como auto-eutanásia.

O suicídio assistido não deve ser confundido com o suicídio propriamente dito: na primeira hipótese, a morte já iminente é antecipada pelo paciente, como único meio de fazer cessar o sofrimento físico e psíquico derivado de uma enfermidade terminal; na segunda hipótese, a vida é ceifada por qualquer outro motivo e em circunstâncias distintas.

É ilustrativa a história do Dr. Jack Kevorkian, o médico norte-americano que desenvolveu o que foi denominada de “máquina da morte”. O equipamento consiste em uma máquina contendo um aparelho de eletrocardiograma e um mecanismo que, ao ser acionado pelo próprio paciente, injeta na veia uma substância anestésica que causa inconsciência e, ato contínuo, uma dose letal de cloreto de potássio, que paralisa o coração, provocando a morte da pessoa em cerca de cinco minutos.

O equipamento era disponibilizado pelo Dr. Kevorkian a pacientes terminais que desejavam por termo ao sofrimento que era causado por doenças incuráveis e dolorosas. Estima-se em 130 o número de pacientes que fizeram uso da máquina, ao longo dos anos noventa.

Na defesa pelo direito dos pacientes terminais escolherem como e quando morrer, o Dr. Kevorian promoveu a mudança de paradigmas sociais. No estado de Oregon, onde um professor tornou-se o primeiro paciente cujo suicídio foi assistido pelo Dr. Kevorkian, foi aprovada, em 1997, uma lei que tornou lícita aos médicos a prescrição de medicamentos letais para o auxílio na morte de pacientes terminais.

No ano de 1999, o Dr. Kevorkian foi julgado e cumpriu oito anos de reclusão pelo auxílio na morte da paciente Janet Adkins, uma professora de 54 anos que decidiu por termo à própria vida, em meio à luta contra o Mal de Alzheimer. Adkins havia deixado uma declaração expressa afirmando que decidira antecipar a própria morte por não suportar o agravamento da doença e a agonia que seria enfrentada pelos familiares.

4.4. Mistanásia

A mistanásia, também denominada “morte miserável” ou “eutanásia social” pode ser compreendida como sendo a morte antecipada de uma pessoa, em decorrência (i) da ausência de estrutura estatal, (ii) da maldade humana ou (iii) da má prática da medicina. Pode decorrer, portanto, de condutas omissivas e comissivas.

A mistanásia omissiva refere-se à antecipação da morte, com o prolongamento do sofrimento do paciente, devido à negligência, imprudência ou imperícia no atendimento médico.

No Brasil, de modo geral, a forma mais comum de mistanásia omissiva encontra expressão na ausência do Estado na seara da saúde, caracterizada pelo deficiente sistema de atendimento ambulatorial e de emergência, bem como no despreparo de profissionais da área. A ausência ou a precariedade de serviços de atendimento médico, em muitos lugares, levam pessoas com deficiências físicas ou mentais ou com doenças que poderiam ser tratadas, a morrerem antes da hora, padecendo, enquanto vivem, de dores e sofrimentos em princípio evitáveis.

Já a denominada mistanásia comissiva ou ativa, de importância histórica, decorre diretamente da maldade humana, em tratar o indivíduo como se coisa fosse. Aqui, a pessoa é vítima de extermínio ou, mesmo, é submetido a experiências, como se fosse cobaia.

4.5. Ortotanásia

A origem do termo ortotanásia é atribuída ao professor Jacques Roskam, da Universidade de Liege, Bélgica. Em 1950, Roskam discursou no Primeiro Congresso Internacional de Gerontologia, concluindo que, entre encurtar a vida humana através da eutanásia e a sua prolongação pela obstinação terapêutica (distanásia), existiria um meio-termo aceito: uma morte correta, justa, ou seja, uma morte ocorrida no seu tempo oportuno. Daí a origem grega do termo “orthos” (correto) e “thanatos” (morte).

Denote-se que as práticas da eutanásia e da distanásia, em nada se confundem com a ortotanásia. É esta um meio-termo entre a morte acelerada e a agonia prolongada; não se desiste antes do tempo, mas também não se submete a pessoa a um encarniçamento terapêutico.

Assim, a ortotanásia “é o comportamento do médico que, frente a uma morte iminente e inevitável, suspende a realização de atos para prolongar a vida do paciente, que o levariam a um tratamento inútil e a um sofrimento desnecessário, e passa a emprestar-lhe os cuidados paliativos adequados para que venha a falecer com dignidade” (SANTORO, 2011, p.133).

Para Tereza Rodrigues Vieira:

Ortotanásia significa morte correta, ou seja, a morte pelo seu processo natural. Neste caso o doente já está em processo natural da morte e recebe uma contribuição do médico para que este estado siga seu curso natural. Assim, ao invés de se prolongar artificialmente o processo de morte (distanásia), deixa-se que este se desenvolva naturalmente (ortotanásia)” (1999, p. 90).

Na ortotanásia, portanto, a morte deve constituir a finalidade secundária e não primária da intervenção médica. Prioriza-se o respeito ao bem-estar físico, psíquico, social e espiritual, que é o conceito atual de saúde. Aqui, a vida não é abreviada; tampouco prolongada. Respeita-se, apenas, o curso natural e inevitável da enfermidade.

5. A humanização da doença terminal

Esclarecidos os procedimentos de abreviação e prolongamento da vida, é importante esclarecer que a eutanásia, o suicídio assistido e a mistanásia não encontram guarida no ordenamento jurídico, sendo tutelados na seara criminal. Vale dizer, quem os pratica, responderá criminalmente.

A questão, todavia, ganha outros contornos quando a discussão cinge-se em torno da ortotanásia. Seria ela um procedimento admitido pelo ordenamento jurídico? A questão ainda necessita de ser analisada pelas cortes superiores, mas há claro encaminhamento no sentido de que seja permitida, como prática médica salutar e fundamental à promoção da dignidade da pessoa humana.

5.1. A Carta dos Direitos dos Usuários de Saúde

Um primeiro caminho foi traçado pelo próprio Ministério da Saúde, por meio da Portaria nº 675/GM, de 30 de março de 2006, pela qual aprovou a Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde, entre eles o de consentimento ou a recusa de forma livre, voluntária e esclarecida, depois de adequada informação, a quaisquer procedimentos diagnósticos, preventivos ou terapêuticos, salvo se isso acarretar risco à saúde pública.

O referido documento foi ganhando alterações ao longo dos anos. O último, com origem na Portaria nº 1.820, de 13 de agosto de 2009, prevê ser direito da pessoa “a informação a respeito de diferentes possibilidades terapêuticas, de acordo com sua condição clínica, baseado nas evidências científicas, e a relação custo-benefício das alternativas de tratamento, com direito à recusa, atestado na presença de testemunha” (Art. 4º, parágrafo único, IX).

5.2. A Resolução nº 1.805/2006 do Conselho Federal de Medicina

No plano infralegal, o Conselho Federal de Medicina, talvez inspirado pela Portaria nº 675/GM/2006, do Ministério da Saúde, publicou, em 28 de novembro de 2006, a Resolução CFM nº 1.805, a qual disciplinou que “é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal.

Todavia, dada a enorme repercussão dessa Resolução, o Ministério Público Federal ajuizou a Ação Civil Pública n.º 2007.34.00.014809-3 contra o Conselho Federal de Medicina, pleiteando a nulidade dessa Resolução, argumentando que; (a) este conselho profissional não teria poder regulamentador para estabelecer como parâmetro ético uma conduta tipificada como crime; (b) o direito à vida é indisponível, de modo que só pode ser restringido por lei em sentido estrito; e (c) considerado o contexto sócio-econômico brasileiro, a ortotanásia pode ser utilizada indevidamente por familiares de doentes e pelos médicos do sistema único de saúde e da iniciativa privada.

O Conselho Federal de Medicina contestou, asseverando que: (a) a resolução questionada não trata de eutanásia, tampouco de distanásia, mas sim de ortotanásia; (b) a ortotanásia, situação em que a morte é evento certo, iminente e inevitável, está ligada a um movimento corrente na comunidade médica mundial denominado Medicina Paliativa, que representa uma possibilidade de dar conforto ao paciente terminal que, diante do inevitável, terá uma morte menos dolorosa e mais digna; (c) a ortotanásia não é considerada crime; e (d) o direito à boa morte é decorrência do princípio da dignidade humana, consubstanciando um direito fundamental de aplicação imediata.

Em agosto de 2010, entretanto, o próprio Ministério Público Federal revisou o caso e reconheceu, em alegações finais, que ocorrera confusão entre os conceitos de ortotanásia e eutanásia, sendo a primeira um procedimento que não ofende o ordenamento jurídico posto. A Procuradora da República Luciana Loureiro Oliveira assim se manifestou:

Em termos práticos, considera-se ortotanásia a conduta omissiva do médico, frente a paciente com doença incurável, com prognóstico de morte iminente e inevitável ou em estado clínico irreversível.

Neste caso, em vez de utilizar-se de meios extraordinários para prolongar o estado de morte já instalado no paciente (que seria a distanásia), o médico deixa de intervir no desenvolvimento natural e inevitável da morte. Tal conduta é considerada ética, sempre que a decisão do médico for precedida do consentimento informado do próprio paciente ou de sua família, quando impossível for a manifestação do doente. Tal decisão deve levar em conta não apenas a segurança no prognóstico de morte iminente e inevitável, mas também o custo-benefício da adoção de procedimentos extraordinários que redundem em intenso sofrimento, em face da impossibilidade de cura ou vida plena.”

Assim, ainda em 2010, o juiz do processo julgou o feito improcedente, declarando que concordava com as alegações finais do Ministério Público, no sentido de não haver ilicitude na prática da ortotanásia. A ortotanásia passou a ser um procedimento reconhecido pela Justiça Federal de primeiro grau.

A doutrina especializada segue o mesmo entendimento:

A Ortotanásia é conduta atípica frente ao Código Penal, pois não é causa de morte da pessoa, uma vez que o processo de morte já está instalado. Desta forma, diante de dores intensas sofridas pelo paciente terminal, consideradas por este como intoleráveis e inúteis, o médico deve agir para amenizá-las, mesmo que a conseqüência venha a ser, indiretamente, a morte do paciente” (VIEIRA, 1999, p. 90).

5.3. Dos cuidados paliativos: o novo Código de Ética Médico (Resolução CFM nº 1.931/2009)

Pouco antes dessa decisão nos autos da Ação Civil Pública n.º 2007.34.00.014809-3, a medicina brasileira ganhou um novo Código de Ética Médica (Resolução CFM n. 1931/2009), que passou a vigorar em 13 de abril de 2010. Um dos pontos importantes considerados nesse código é, justamente, sobre a terminalidade da vida.

Nos princípios fundamentais desse código (Capítulo I), que, no seu conjunto, se constituem num documento bioético, consta:

“XXII – Nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados”.

Já na parte normativa da prática médica (Capítulo V), consta:

“É vedado ao médico:

Art. 36. Abandonar paciente sob seus cuidados.

§ 2° Salvo por motivo justo, comunicado ao paciente ou aos seus familiares, o médico não abandonará o paciente por ser este portador de moléstia crônica ou incurável e continuará a assisti-lo ainda que para cuidados paliativos.”

Por fim, no mesmo Capítulo V, dispõe que:

“É vedado ao médico: Art. 41.

Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal. Parágrafo único. Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal.”

Em suma, o Código diz “não” à pratica da eutanásia (isso é tradicional) e também “não” à prática da distanásia (isso é novo). E, claramente, se filia à ortotanásia como medida salutar, introduzindo na área dos cuidados médicos, quando se está frente a uma situação de não possibilidade de cura, a oferta de cuidados paliativos.

Para PESSINI e HOSSNE, “essa filosofia de cuidados é uma proposta de abordagem integral à pessoa, indo ao encontro das necessidades físicas, psíquicas, sociais e espirituais, quando estamos frente a uma pessoa com doença crônico-degenerativa ou sem prognóstico positivo ou em fase final de vida” (2010, p. 127).

Não há nenhuma obrigação de iniciar ou continuar uma intervenção terapêutica quando o sofrimento ou o esforço gasto são desproporcionais aos benefícios reais antecipados. Neste caso, não é a interrupção da terapia que provoca a morte da pessoa, mas o processo patológico previamente existente (PESSINI, 2004).

Assim, o paciente terminal, na visão da atual medicina, pode determinar os limites do tratamento que aceita ser submetido, optando apenas pela oferta de cuidados paliativos, ou seja, pode manifestar sua vontade nas decisões terapêuticas, dividindo a responsabilidade da escolha com o seu médico de confiança.

Acerca do que se deve entender por cuidados paliativos, FLORIANI e SCHRAMM apontam trata-se de cuida de um ser humano que está morrendo, e de sua família, com compaixão e empatia (2008, p. 2127).

No que diz respeito às práticas utilizadas, a literatura médica parece caminhar em uníssono: medicamentos para a dor, alimentação e hidratação adequadas, um bom banho, a presença ostensiva da família e amigos (ainda que isso signifique quebrar algumas regras com relação a horários de visita), conforto físico e emocional.

Mas de que maneira poderá o paciente terminal declarar essa vontade? Que meios são colocado à sua disposição?

6. Diretivas antecipadas de vontade e a Resolução CFM nº 1995/2012

Além das orientações constantes do Código de Ética Médico, o Conselho Federal de Medicina editou, recentemente, uma nova resolução: a Resolução CFM nº 1995/2012, que passou a vigorar em 31 de agosto de 2012, e cuidou de abordar as denominadas diretivas antecipadas de vontade.

Eis os motivos que levaram à publicação da Resolução 1.995/2012: a necessidade de regulamentação sobre diretivas antecipadas de vontade do paciente no contexto da ética médica brasileira; a necessidade de disciplinar a conduta do médico em face das mesmas; a atual relevância da questão da autonomia do paciente no contexto da relação médico-paciente, bem como sua interface com as diretivas antecipadas de vontade; o fato de que, na prática profissional, os médicos podem defrontar-se com esta situação de ordem ética ainda não prevista nos atuais dispositivos éticos nacionais; o fato de que os novos recursos tecnológicos permitem a adoção de medidas desproporcionais que prolongam o sofrimento do paciente em estado terminal, sem trazer benefícios, e que essas medidas podem ter sido antecipadamente rejeitadas pelo mesmo.

Entende-se por diretivas antecipadas de vontade, consoante definição dada pelo artigo 1º da Resolução:

“O conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade”.

Existem, em verdade, diversas maneiras de denominar esta mesma questão: manifestação explícita da própria vontade, testamento vital, biotestamento, testamento biológico, diretivas avançadas, vontades antecipadas, entre outras.

A expressão norte-americana Living Will, adotada pelo Direito daquele país que previu, em 1991, a possibilidade de elaboração de um documento com os desejos acerca dos tratamentos médicos para prolongamento da vida, tem sido traduzida ou adaptada no Brasil pelo termo “testamento vital”.

Todavia, o termo pode gerar confusão, na medida em que o testamento é manifestação antecipada, mas que gera efeitos apenas com a morte da pessoa. As diretivas antecipadas de vontade, ao contrário, são declarações de vontade a serem seguidas enquanto a pessoa ainda está viva.

De toda maneira, o termo eleito pela Resolução 1955/2012 parece se coadunar melhor com o seu propósito: Diretiva, por ser um indicador, uma instrução, uma orientação; Antecipada, pois é dita de antemão, fora do conjunto das circunstâncias do momento atual da decisão; e Vontade, ao caracterizar uma manifestação de desejos, com base na capacidade de tomada de decisão acerca do melhor interesse (ALVES; FERNANDES, GOLDIM, 2012, p. 359-360).

Prosseguindo, pelas recentes orientações expedidas pelo Conselho Federal de Medicina, nas decisões sobre cuidados e tratamentos de pacientes que se encontram incapazes de comunicar-se, ou de expressar de maneira livre e independente suas vontades, o médico deverá levar em consideração as eventuais diretivas antecipadas de vontade deixadas pelo, agora, paciente.

6.1. A questão da obrigatoriedade

Questão que certamente trará muitos debates entre os profissionais da área médica e juristas diz respeito à obrigatoriedade dessa declaração de vontade. Estaria o profissional médico vinculado à manifestação de vontade do agora paciente terminal? Ou pode agir de maneira distinta ou, mesmo, contrária ao quanto pré-estabelecido pelo indivíduo?

Neste ponto, é importante ressaltar, tratar-se de uma diretiva, ou seja, uma orientação. Entendemos que o médico que acompanha a pessoa em estado terminal pode se negar, sim, a cumprir o quanto determinado na diretiva antecipada da vontade. Todavia, não deve ser uma decisão pautada em valores pessoais do profissional da medicina. Ou seja, a vontade do paciente deverá ser considerada, mas, também, o conjunto das circunstâncias presentes no momento da tomada de decisão. Logo,

Consubstanciando este entendimento, o artigo 2º, parágrafo 2º, da Resolução dispõe que:

“o médico deixará de levar em consideração as diretivas antecipadas de vontade do paciente ou representante que, em sua análise, estiverem em desacordo com os preceitos ditados pelo Código de Ética Médica.”

Assim, quando a vontade do paciente for contrária ao que está disposto no Código de Ética Médica, o médico fica eticamente impedido de acatar a vontade do paciente.

6.2. O momento de elaboração

Entendemos que a elaboração das diretivas antecipadas de vontade pode ocorrer em dois momentos: antes da ciência do quadro de terminalidade e depois de tomar ciência desse quadro.

No momento anterior, a pessoa desfruta de um quadro estável de saúde e, por precaução, resolve elaborá-las. Variados são os fatores que podem conduzir a pessoa à elaboração antecipadas das diretivas. O principal está ligado às experiências familiares vivenciadas. Aqui, a pessoa quer evitar que ocorra consigo, o que testemunhou ocorrendo com um parente próximo.

Mas as diretivas também podem ser formuladas em momento posterior à ciência da condição de terminalidade. Neste caso, é fundamental o acompanhamento de um médico de confiança, apto a transmitir todas as informações conhecidas sobre a doença e as técnicas médicas existentes (ou não) para o tratamento.

Em ambas as hipóteses a pessoa deverá gozar da plenitude de suas faculdades mentais, ciente das consequências de suas escolhas.

6.3. A forma

O Conselho Federal de Medicina não apontou uma forma específica para a elaboração das diretivas antecipadas de vontade. Tampouco há na lei, conforme já afirmado, essa especificação.

Entendemos que a forma deve ser livre, podendo a pessoa optar por documento escrito, seja instrumento público ou particular, desde que reste comprovado que o declarante é mesmo a pessoa que assinou ou elaborou o documento.

Assim, cartas redigidas de próprio punho, ainda que não assinadas, devem ser consideradas. Da mesma maneira, quaisquer documentos nos quais consta a assinatura do declarante, sendo possível atestar a autenticidade.

Quando escritas, as diretivas antecipadas de vontade, aqui muitas vezes denominadas de testamento vital, devem ser compreendidas como o documento, redigido por uma pessoa no pleno domínio de suas faculdades mentais, que traz disposições acerca dos tratamentos que autoriza sejam realizados, bem como aqueles que deseja não sejam realizados quando estiver diante de um diagnóstico de doença terminal e impossibilitado de manifestar sua vontade.

Vídeos gravados pelo declarante, no qual seja possível depreender a data de produção, também merece resguardo.

Questão ligada à declaração verbal, merece um maior cuidado. Se feita diretamente ao médico que acompanha a pessoa, terá validade, desde que registrada no prontuário do paciente. Neste sentido o artigo 2º, parágrafo 4º, da Resolução:

“o médico registrará, no prontuário, as diretivas antecipadas de vontade que lhes foram diretamente comunicadas pelo paciente.”

Todavia, será possível ao médico considerar a decisão de familiares, acaso o paciente já se encontre em estado terminal e incapaz de manifestar os seus desejos, conforme se depreende da leitura do artigo 2º, parágrafo 5º, da Resolução. Neste caso, entendemos que os familiares devem estar aptos a expressar a vontade desejada pelo parente terminal. Ou seja, sejam capazes de reproduzir a vontade do paciente que lhes fora verbalmente transmitida em outrora.

Na ausência das diretivas antecipadas de vontade expressas ou mesmo diante da falta de consenso de familiares, o médico, ainda assim, poderá optar por medidas paliativas, devendo recorrer ao Comitê de Bioética da instituição, caso exista, ou, na falta deste, à Comissão de Ética Médica do hospital ou ao Conselho Regional e Federal de Medicina para fundamentar sua decisão sobre conflitos éticos, quando entender esta medida necessária e conveniente (artigo 2º, parágrafo 5º, da Resolução).

Por fim, destaca-se o polêmico artigo 1º, parágrafo 3º, da Resolução 1995/2012: “§ 3º As diretivas antecipadas do paciente prevalecerão sobre qualquer outro parecer não médico, inclusive sobre os desejos dos familiares.” Ou seja, se o paciente terminal deixou prévias instruções, terceiros, sejam familiares ou não, não poderão sobrepor suas vontades às diretivas antecipadas pelo paciente.

6.4. A figura do procurador de cuidados de saúde

Outro ponto que trará bastante debate, diz respeito ao denominado procurador de cuidados de saúde. A figura se refere à pessoa de confiança do declarante, que deverá ser consultado pelos médicos no caso de incapacidade do paciente terminal, quando estes tiverem que tomar alguma decisão sobre o tratamento ou não tratamento. O procurador de saúde decidirá tendo como base a vontade do paciente.

De acordo com a Resolução 1995/2012, “caso o paciente tenha designado um representante para tal fim, suas informações serão levadas em consideração pelo médico” (artigo 2º, parágrafo 1º).

Mas quem pode ser essa pessoa: somente familiares, amigos próximos? Poderá essa pessoa designada tomar todas as decisões relacionadas ao tratamento do paciente terminal? Entendemos que a vontade da pessoa deve ser respeitada. Assim, caberá à pessoa designada pelo paciente a decisão acerca do tratamento.

7. Aspectos conclusivos

Pelo exposto, é possível concluir que o Ministério da Saúde e o novo Código de Ética Médica trazem expressas previsões sobre a ortotanásia, tornando-a no meio médico, um procedimento aceitável e estimulado.

De outro lado, sob o aspecto legal, não se verifica ilicitude na conduta do médico que respeita a vontade do paciente terminal e se abstém de promover terapias inúteis que só terão o condão de prolongar o sofrimento dapessoa.

Ademais, no esteio do Código de Ética Médica e da Resolução 1995/2012, para que tenham validade no Brasil, as diretivas antecipadas de vontade apenas podem versar sobre interrupção ou suspensão de tratamentos extraordinários, que visam apenas prolongar a vida do paciente.

Tratamentos tidos como cuidados paliativos, cujo objetivo é melhorar a qualidade de vida do paciente, serão adotados na tentativa de garantir uma maior qualidade da vida que resta ao paciente em estado de terminalidade.

A terminalidade da vida, imposta por doença incurável, portanto, é condição de validade dessa declaração. Mas a questão ainda carece de maiores debates a fim de aclarar uma série de situações ligadas às diretivas antecipadas de vontade, dando suporte e segurança à comunidade médica e trazendo tranquilidade aos maiores interessados: os pacientes terminais e seus familiares.

 

Referências bibliográficas
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Informações Sobre o Autor

Marcelo Romão Marineli

Mestrando em Direito Civil pela PUC-SP. Professor de Direito Civil no Complexo Educacional Damásio de Jesus. Advogado


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